SEXTA-FEIRA SANTA

SEXTA-FEIRA SANTA: Sua Cruz era um peso morto

João 20,1-6.

Pe Adroaldo

+ A oração de hoje é profundamente silenciosa: trata-se de acompanhar Jesus no seu caminho em direção ao Gólgota e sua morte na Cruz.

+ Silenciar o corpo, a mente, o coração... através dos “preâmbulos”: oração preparatória, composição vendo o lugar, petição da graça...

+ Antes de “fazer o caminho” com Jesus até à Cruz, leia as indicações abaixo, como motivação para a experiência:

Jesus, o Justo e Santo, foi Aquele que não ficou indiferente diante da fome, da doença, da violência e da morte... Seu modo de ser, suas opções, sua liberdade diante da lei, da religião, do templo, seus encontros escandalosos com os pobres e excluídos..., desestabilizou tudo, pôs em crise as instituições e as pessoas encarregadas da religião. Jesus foi condenado como herege e subversivo, por elevar a voz contra os abusos do templo e do palácio, por colocar-se do lado dos perdedores, por ser amigo dos últimos, de todos os caídos. Tornou-se um perigo a ser eliminado.

“Jesus morreu de vida”: de bondade e de esperança lúcida, de solidariedade alegre, de compaixão ousada, de liberdade arriscada, de proximidade curadora...

Nesse sentido, a cruz de Jesus não é um “peso morto”; ela tem sentido porque é consequência de uma opção radical em favor do Reino. A Cruz não significa passividade e resignação; ela nasce de sua vida plena e transbordante; ela resume, concentra, radicaliza, condensa o significado de uma vida vivida por Jesus na fidelidade ao Pai, que quer que todos vivam intensamente.

Existem cruzes que são vazias, sem sentido, in-sensatas..., pois elas fecham a pessoa em si mesma, no seu sofrimento e angústia; não apontam para o futuro, para a vida.

São cruzes impostas sobre nossos ombros ou sobre os ombros dos outros. São cruzes que nascem dos fracassos, dos traumas, das rejeições, das experiências frustrantes... Tornam-se um “peso morto” pois não abrem um horizonte de vida; elas se fixam no passado, na morte... e nos deixam no túmulo.

Fazer o caminho contemplativo junto a Jesus que leva a Cruz da fidelidade nos ajuda a romper com as cruzes que nos afundam no desespero.

Na vida e missão de Jesus encontramos duas paixões: a primeira, é a paixão pela vida, pelo Reino, pelo compromisso em favor dos mais pobres e excluídos. Esta paixão é expressão de uma opção, assumida fielmente por Jesus até o fim.

A segunda paixão é a da cruz, imposta pelos poderes religiosos e civis. Ela não é fruto da opção de Jesus e nem faz parte da vontade do Pai. Ela é a visibilização da violência, do ódio, do fechamento frente à proposta de vida revelada por Jesus.

No grego, “cruz” é “staurós” e significa: prontidão, preparado, mobilizado, firme, sólido, estar de pé...

Jesus não buscou a cruz do sofrimento, o patíbulo, a morte violenta... Ele buscou o “staurós”, ou seja, a cruz da fidelidade, da vida comprometida. Nesse sentido, a “staurós-cruz” é vida aberta, expansiva, oblativa, vida descentrada em favor dos outros. Ela não é um evento, mas um modo de viver, pois perpassa toda a vida de Jesus. “Cruz-staurós” é vivida a partir de uma causa: o Reino.

Assim entendemos a afirmação de Jesus: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sua ‘cruz-staurós’ cada dia e siga-me” (Lc 9,23). Significa esvaziamento do próprio “ego” para viver em sintonia com os outros, sobretudo com os mais sofredores.

Infelizmente, a história da espiritualidade cristã confundiu “cruz-patíbulo” com “cruz-staurós” e acabou gerando uma espiritualidade do sofrimento, da mortificação, da renúncia... como se isso fosse agradável a Deus. A Paixão e Morte de Jesus foi “desconectada” de sua vida comprometida em favor dos pobres e sofredores, dando a impressão que só a “paixão de Jesus” é salvífica. Toda a vida de Jesus é salvação porque é vida que destrava vida e abre para elas um novo sentido.

Com isso, privilegiou-se a “cruz da dor” desligada da “cruz da vida”, do compromisso com o Reino. Tal concepção desembocou numa vivência cristã intimista, farisaica, alienada, descompromissada...

Sabemos que o(a) seguidor(a) de Jesus quando vive a fidelidade à “cruz-staurós”, por causa do Reino, pode encontrar a perseguição, oposição e morte, como o próprio Jesus (a cruz patíbulo). Mas Jesus integra a “cruz patíbulo” e revela sua máxima solidariedade com todos os crucificados da história. Por isso, esta Cruz assumida é também visibilização da salvação.

Mas o sofrimento não pode ser buscado nele mesmo; não tem sentido e não abre futuro esperançador.

Na Paixão e morte de Jesus, o Silêncio de Deus não é um silêncio vazio. É um silêncio eloquente, que nos fala: revela, desvela sem dizer, mostrando uma vida que não necessita palavras, a vida de Jesus que é puro amor até o fim e que, por sua vez, desvela o puro Amor de Deus.

No silêncio do seu coração, coloque-se, em atitude contemplativa, diante da escultura do Crucificado; notemos que um de seus braços está crucificado e o outro está estendido, com a mão aberta para acolher quem d’Ele se aproxima. Quanta vida e comunicação silenciosa nesse gesto! Trata-se de um grito de amor, silencioso e cheio de comunicação.

Aquela mão estendida nos chama a depositar a nossa mão na sua e estar aí, em silêncio, um longo tempo.

Que nos transmite esta imagem? Não precisamos palavras, nem ritos, pois é um gesto que nos conecta, como um cordão umbilical, ao Crucificado que nos revela o caminho da doação radical: como viver nosso dia a dia? Como usar nossos recursos? Como conectar-nos com o coração de Deus, com o coração do planeta Terra e de toda a humanidade?

Podemos também sentir que essa mão estendida nos chama e nos envia; primeiro, nos chama a segurá-la e sustentá-la. E como se Ele dissesse: “aproxime-se e permaneça comigo, pois preciso abrir-lhe meu coração; sinta minha pulsação e deixe seu coração pulsar no ritmo do meu; una-se ao meu coração, carregado de amor, e prolongue-o através do seu coração”.

E tudo acontece no silêncio; um silêncio que nos enche de vida, de paixão partilhada, de compaixão, de solidariedade... No fundo desse silêncio nos encontramos com a mão aberta de um moribundo que nos ama e que é revelação do rosto do Deus vivo e feito carne entre nós.

A mão quente do Crucificado é a mão de todos os irmãos e irmãs violentados, vítimas da cultura do ódio e da morte; a mão do Crucificado que pulsa é a mão latejante de nossa Terra, violada e abusada pela ânsia do lucro de uma minoria aterradora.

O silêncio pode ser também a escuta do coração aberto da realidade, enquanto apertamos a mão que nos comunica o pulsar e o amor do crucificado.

Esse silêncio nos dignifica porque nos vacina contra os outros silêncios covardes e autocentrados.

Os justos que carregam o sofrimento dos outros

Sexta Feira, 15 de abril de 2022: Sexta Feira Santa - Ano C

Marcel Domergue

Três das quatro leituras do Ofício de hoje oferecem pontos de vista originais e profundos sobre dois Servos de Deus que assumiram carregar em si mesmos o sofrimento dos outros, dando a própria vida. Também o salmista sofre e sente ter sido deixado entregue a si próprio; mas ele conta com Deus para libertá-lo.

Jesus, o Servidor.

Passemos ao largo da linguagem sacrificial da 1ª leitura (Isaías 52,13-53,12). Sabemos que se podem usar tais imagens, mas à condição de não tomá-las ao pé da letra. Aliás, os quatro evangelistas descrevem a Paixão de Cristo sem jamais experimentarem a necessidade de recorrer a uma linguagem sacrificial. O teólogo Paul Beauchamp explicou bem isto (em Salmos noite e dia), dizendo que os autores evangélicos, através de pequenos toques e alusões literárias, arranjaram um modo de mostrar-nos que Jesus se investiu de alguma forma no hábito do servo, de quem tomou a máscara, o personagem. Ora, estes cantos antigos, do servo sofredor, por proféticos que fossem, falavam precisamente de alguém, de um personagem existente ou que havia existido. Não se consegue saber de quem se tratava. De fato, a descrição do homem perseguido, desprezado, carregado com os pecados dos outros, pode ser aplicada a muitos personagens. É a multidão de nossas vítimas, de todos sobre os quais fazemos recair a responsabilidade de nossos males. Ao entrar na «pele» do servo, ao fazer seu o programa que é ele, Jesus se põe na situação de todas as vítimas do mundo, portanto, de todos os homens rejeitados e perseguidos. Somente, ele realiza melhor do que todos os outros o programa do servo; ele cumpre a sua figura a um grau inédito, insuperável. Ele, com efeito, é o justo por excelência. Podemos encontrar razões, boas ou más, para odiar alguém. Mas, com relação ao Cristo, verificam-se estas palavras das Escrituras: «Odiaram-me sem motivo» (João 15,25). Fica assim, portanto, desmascarado o pecado do homem que odeia a Deus porque odeia a vida; a verdadeira justiça; o amor. E, igualmente, é assim revelado o amor de Deus, que Se põe na situação, na posição do homem esmagado.

De boca aberta!

Por que permanecem os reis estupefatos, de boca aberta, sem palavras? Donde vem esta estupefação? Da descoberta da inocência e da exaltação do Servo. Bruscamente, diante deste cadáver, os homens tomam consciência de seu crime: «Desprezado, não fazíamos caso nenhum dele». E eis o brilho da verdade: «no entanto, eram nossos sofrimentos que ele levava sobre si, nossas dores que ele carregava» (Isaías 53,3-4) Nos sinóticos, depois da morte do Cristo, o centurião romano diz: «Realmente, este homem era justo» (Lucas 23,47); e toda a multidão voltou, batendo no peito. Em São João: «voltaram os olhos para aquele que traspassaram» (João 19,37) Muitos dos salmos pedem a Deus o aniquilamento dos perseguidores, o que choca os bons cristãos como se jamais tivessem experimentado nem ódio nem rancor... (A Palavra de Deus nos vem buscar bem aí onde nos encontramos, para nos fazer ir alhures). Pois, justamente, com a profecia do servo sofredor, o ódio e o rancor são superados: os perseguidores não são destruídos; são sim convertidos pelo que estão vendo. E, também, uma vez que foi «elevado da terra» pelo furor homicida, uma vez exposto na cruz, o Cristo atrai tudo para si. Aqui, não é questão nem de bons nem de maus: é cada um que se revela mau, que se reconhece como tal, voltando-se para a vítima. E este olhar para o trespassado é o umbral da salvação, o umbral da «justificação».

«Voltar os olhos para», o que é isto?

Primeiro, trata-se de não desviar os olhos ao espetáculo da fraqueza do homem. Descobrir aí a nossa pobreza fundamental, a nossa nudez original. Mas se trata igualmente de não escamotearmos o fato de sermos nós mesmos que «o temos traspassado»: o olhar que é uma confissão. Não basta voltar-se, batendo no peito; não é preciso voltar-se nem se desviar: é preciso permanecer aí e olhar. Tomar consciência. Somos nós mesmos que estamos na cruz. É um assassinato suicida. Desçamos até ao mais profundo de nosso mal. Mas «olhar para» quer dizer algo mais: se um partido político me decepciona, posso «olhar para» outro. Guardadas as devidas proporções, é neste sentido que é preciso «voltar os olhos para» o Cristo. Ele é o sinal da salvação (ver Sabedoria 16,5-7). Este voltar-se para o Cristo crucificado já é ressurreição: reconhecer no Cristo conduzido à morte a superabundância da vida e do amor é entrar em sua exaltação.

Marcel Domergue, jesuíta (1922-2015)

Tradução livre de www.croire.com pelos irmãos Lara

Sexta feira Santa

1ª Leitura: Is 52,13-52,12

Ouvimos o quarto canto (poema) do Servo de Deus. Embora pareçam dispersos pela segunda parte do livro de Is (Segundo Isaías), os quatro cantos formam uma grande unidade literária. No primeiro canto (42,1-7), Deus apresentou seu servo em quem pôs seu espírito para fazer justiça na terra com cuidado e sem violência (cf. leitura de 2ª feira; os evangelistas o aplicam ao batismo de Jesus; cf. Mt 3,17p combina 42,1 com Sl 2,7). No segundo canto (49,1-6), o servo falou da sua vocação de profeta e do seu insucesso, mas é enviado para além de Israel ser “luz das nações” (cf. leitura de 3ª feira). No terceiro canto (50,4-9), o servo falou como um sábio e discípulo fiel que suporta várias agressões, até que Deus lhe conceda a justiça (cf. leitura do domingo de Ramos e de 4ª feira). Cada vez ficou mais claro que este servo não é uma figura coletiva (Israel, cf. 41,8), mas um indivíduo (profeta, messias?).

O quarto canto do servo é o mais longo, o mais denso e o mais belo que chegou a ser chamado o “quinto evangelho”, pois nele se pode entrever uma imagem pormenorizada da paixão e glorificação de Jesus. Fala de um paradoxo: do cúmulo da dor e da humilhação, o servo chega ao auge do “êxito” e da “ascensão” (52,13; 53,10).

Existem variações nos manuscritos hebraicos (texto masorético e Qumrã) e gregos (LXX), por isso temos traduções divergentes nas diversas Bíblias. O gênero e o conteúdo são inéditos no AT, “nunca lhes foi narrado e conhecendo coisas que jamais ouviram” (52,15b). É uma lamentação, talvez proferida por outro profeta (discípulo) diante da comunidade no exílio da Babilônia, uma liturgia de funeral em memória do Servo de Javé que acabou de morrer. Compõe-se de três estrofes que podem ser lido em duas vozes (Deus, comunidade) na liturgia de hoje: na primeira e na última é Deus que fala (“meu servo”, 52,13; 53,11b), na segunda (53,1-11b), é a comunidade (a multidão: “nós”, 53,1-11a) que confessa seu pecado que fazia o servo sofrer (a dor é sua, a culpa é nossa).

Ei-lo, o meu Servo será bem sucedido; sua ascensão será ao mais alto grau. Assim como muitos ficaram pasmados ao vê-lo- tão desfigurado ele estava que não parecia ser um homem ou ter aspecto humano -, do mesmo modo ele espalhará sua fama entre os povos. Diante dele os reis se manterão em silêncio, vendo algo que nunca lhes foi narrado e conhecendo coisas que jamais ouviram (52,13-15).

Pela boca do profeta, Deus reapresenta seu servo eleito como no primeiro canto (cf. 42,1: “Eis o meu servo”) e revela a verdade última sobre aquele homem: apesar do insucesso aparente (cf. 49,4), “será bem sucedido”, “sua ascensão (lit. ele se levanta, é elevado) será ao mais alto grau”. Justamente aquele “desfigurado” no sofrimento “que não parecia ser um homem ou ter aspecto humano” é agora entronizado como rei dos reis. Aqui tem um acúmulo de expressões da realeza como em nenhum outro lugar do Antigo Testamento (AT).

O servo espalhará a sua “fama entre os povos” (cf. 42,6; 49,6). As multidões e os reis ficam espantados (52,14-15; cf. Ez 32,10), porque o que se passa com ele é absolutamente inaudito e humanamente incrível (53,1), revela uma realidade transcendente, “seu reino não é deste mundo” (cf. Jo 18,36). Antes e depois: antes era um servo desfigurado, depois Javé o unge como rei dos reis (cf. Sl 45). Não se deve julgar pelas aparências (cf. 1Sm 16,7); toda pessoa sofrida tem uma dignidade secreta (cf. a teologia da cruz em 1Cor 1,26-31; 2,1-5; 2Cor 12,1-10)

No ritual da posse do trono pelo rei, “os reis” e “os povos” fazem parte (1Rs 1,32-40; Sl 2; 72,11; cf. Gn 17,6.16; 35,11; Jr 27,7; Ez 32,10, Sl 102,16; 110,5s; 13,10; 148,11; 149,7s; 1Mc 2,48), eles ficam “pasmados” ao ver aquele que era “desprezado” (49,7) e “se manterão em silêncio” (cf. Mq 7,16s; Sl 107,42; Jó 5,16). Podemo-nos lembrar do funeral do Papa João Paulo II (desfigurado na sua doença) com toda presença de chefes de estados.

Quem de nós deu crédito ao que ouvimos? E a quem foi dado reconhecer a força do Senhor? Diante do Senhor ele cresceu como renovo de planta ou como raiz em terra seca. Não tinha beleza nem atrativo para o olharmos, não tinha aparência que nos agradasse. Era desprezado como o último dos mortais, homem coberto de dores, cheio de sofrimentos; passando por ele, tapávamos o rosto; tão desprezível era, não fazíamos caso dele (53,1-3).

A partir de 53,1, a comunidade (“nós”) toma a palavra e fala sobre o servo. Nesta memória, como numa meditação salmista, se alternam lamentação e agradecimento, penitência e profissão de fé. Os exilados ouviram a mensagem profética do servo, mas não acreditaram que a força (lit. “braço”; cf. 40,11…; Ex 6,6 etc.) do Senhor podia criar salvação através desta figura miserável do servo. A tradução aramaica (Targum) usou a palavra besorta,“evangelho, boa notícia” (v. 1; cf. 1Cor 15,1-3; Rm 1,16; Mc 1,1.15 etc.).

Desde seu nascimento (ou do início do seu ofício), o servo não tinha aparência atraente, é comparado a uma raiz em terra seca (v. 2). Como não correspondeu ao ideal de um homem belo e cobiçado (cf. Gn 29,17; 39,6s; 1Sm 16,12), era “desprezado” e abandonado pelas pessoas; não olharam para ele e negaram até o contato e a comunicação com ele (cf. o lamento dos excluídos em Sl 22,7.25; 102,7-9). Seu sofrimento físico (uma doenças crônica?) o fez íntimo do sofrimento: “homem coberto de dores, cheio (lit. íntimo, familiar) de sofrimentos”.

A verdade é que ele tomava sobre si nossas enfermidades e sofria, ele mesmo, nossas dores; e nós pensávamos fosse um chagado, golpeado por Deus e humilhado! Mas ele foi ferido por causa de nossos pecados, esmagado por causa de nossos crimes; a punição a ele imposta era o preço da nossa paz, e suas feridas, o preço da nossa cura (vv. 4-5).

Em vv. 4-5, interpreta-se de maneira diferente o sofrimento do servo. A aclamação “a verdade é” (ou: “com efeito)” marca um conhecimento surpreendente e transcendente (cf. 40,7; 45,15; Gn 28,16), uma intuição que não veio do pensamento lógico, mas pela contemplação deste homem de dores. O pensamento tradicional era que o homem sofre porque é castigado (“golpeado”) pelos seus próprios pecados (cf. Gn 12,17; Ex 11,1; 1Rs 8,37s; Jó 19,21; Sl 39,11; 73,14; 89,33; Jr 30,14; Os 5,2; 2Cr 26,20) ou como meio de educação (cf. Dt 8,2.5; Pr 3,11s; Hb 12,5-12). Agora cresceu a intuição que Deus fez sofrer o servo em representação e substituição do povo. Assim se revela não apenas a nova visão do sofrimento do servo, mas também a situação do povo que confessa seus pecados agora (usando os termos de Ex 34,7; Is 43,25; Gn 4,13). O servo pagou por nosso crimes, “a punição a ele imposta era o preço da nossa paz”. O hebraico não tem uma palavra por reconciliação, mas usa shalom, “paz” (cf. Rm 5,1.10s; 2Cor 5,19s).

Na metáfora da enfermidade, as suas feridas foram a causa da nossa cura. Mt 8,17 cita Is 53,4 referindo-se às curas de Jesus: “Levou nossas enfermidades e carregou nossas doenças.” A culpa e também o perdão podem ter efeitos para nossa saúde. Mas depois do servo sofredor fica claro, que ninguém deve reduzir qualquer doença imediatamente à uma culpa moral da pessoa enferma.

Todos nós vagávamos como ovelhas desgarradas, cada qual seguindo seu caminho; e o Senhor fez recair sobre ele o pecado de todos nós. Foi maltratado, e submeteu-se, não abriu a boca; como cordeiro levado ao matadouro ou como ovelha diante dos que a tosquiam, ele não abriu a boca (vv. 6-7).

Esta interpretação do sofrimento do servo serve-se das metáforas das ovelhas desgarradas e do cordeiro levado ao matadouro (em v. 2, a metáfora era a planta, em v. 6s é o animal). Mas aqui se alude à morte violenta do servo-cordeiro (cf. Jo 1,29; Ap 5,6-13). Já Jeremias usou esta metáfora, mas para sublinhar sua inocência (Jr 11,19). A metáfora revela a essência do pecado, o egoísmo: “cada qual seguindo seu caminho”, procurando seu próprio interesse, incapaz de compreender o outro (56,11; 1Cor 13,5; Fl 2,4.21; cf. o ditado: cada um só pensa em si, só eu penso em mim).

Mencionam-se três causas do sofrimento de servo: 1. Javé, na sua intenção de salvar o povo, “fez recair sobre ele o pecado de todos nós”. 2. O servo concordou, não pagou o mal como mal, mas “submeteu-se” (à vontade de Javé, cf. v. 10; numa espécie de Getsêmani do AT). 3. Os “maus tratos” e a tortura dos opressores lembram a escravidão no Egito (cf. Ex 3,7; 5,6ss) e a dureza nos latifúndios de Israel (cf. Dt 15,1-18).

Foi atormentado pela angústia e foi condenado. Quem se preocuparia com sua história de origem? Ele foi eliminado do mundo dos vivos; e por causa do pecado do meu povo foi golpeado até morrer. Deram-lhe sepultura entre ímpios, um túmulo entre os ricos, porque ele não praticou o mal nem se encontrou falsidade em suas palavras (vv. 8-9).

A quinta estrofe deixa claro que o servo morreu de fato, ou na prisão (cf. 2Rs 17,4; Jr 33,1; 39,15) ou depois de uma sentença, numa execução (cf. Dt 17,9ss; 25,1; 2Rs 25,6; Pr 16,10; Jr 21,1).

Não sabemos nada de um procedimento desse contra Deutero-Isaías ou outro judeu no exílio. Mas podemos imaginar a reação das autoridades babilônicas a respeito da pregação de Deutero-Isaías que anunciou a vitória do rei persa Ciro (41,1-5; 44,28-45,1), a queda da Babilônia com seus deuses Bel e Nebo (cap. 46-47; Bel era o senhor do céu e foi identificado com Marduk, o deus da cidade da Babilônia; Nebo era filho de Marduk e protetor da dinastia dos reis, p. ex. Nabu-codonosor). O profeta ridicularizou a idolatria dos deuses (cf. 40,18s; 41,21-29; 44,9-20) e declarou o monoteísmo absoluto (Jávé é o único Deus, fora dele não há outros deuses, cf. 43,8-13; 44,6-8; 45,5).

A sepultura sela uma vida de dores e desprezos. Quatro das expressões de v. 9, encontramos numa crítica anticapitalista de Mq 6,11s: “ímpios”, “mal” (ato violento), “falsidade” são três características dos “ricos”. Em Hab 1, estes termos se aplicam não só aos capitalistas de Israel, mas também aos povos estrangeiros.

A pregação cristã viu aqui um anúncio da sepultura de Jesus entre os ricos (José de Arimateia). Mas o sentido hebraico é pejorativo: O servo, verdadeiro israelita e inocente que anunciava um novo êxodo, foi sepultado na terra dos exploradores ricos da Babilônia (em v. 9b, a tradução da liturgia “porque” é duvidosa, melhor seria: “apesar de”, “se bem que” ele não praticou nenhum mal.

O Senhor quis macerá-lo com sofrimentos. Oferecendo sua vida em expiação, ele terá descendência duradoura, e fará cumprir com êxito a vontade do Senhor. Por esta vida de sofrimento, alcançará luz e uma ciência perfeita (vv. 10-11a).

A sexta estrofe conta a virada do destino do servo. Depois do seu sofrimento e da sua morte, vida em abundância lhe é concedida, lit.: ele “verá descendência, terá vida longa, … saciar-se-á ao ver a luz”.

São expressões tradicionais de vitalidade plena no AT que não conhecia ainda vida após morte. A única maneira de um indivíduo perdurar estava na sua descendência, “ver sua descendência” significa poder ainda vivenciar este “durar”. “Ter vida longa” é dom de Deus com o qual ele recompensa o justo e fiel (cf. Dt 4,26.30; 5,33 etc.). “Ver a luz” é metáfora de vida (feliz) em contraste com a morte (morrer é cair na cova e escuridão). “Saciar-se” pode se juntar ao “ver” (Sl 17,15; cf. Pr 27,20b; Ecl 1,8; 4,8) e significa matar a ansiedade no ato de ver, aqui satisfação plena (cf. Jo 10,10).

Encontramos todas estas expressões também em Ecl 6,3-7, numa meditação cética. Em Is 53,10s, porém, o autor tem certeza de que o servo, “por esta vida de sofrimento” (lit. “por sua vida de trabalho fatigante” cf. Ecl 1,2; 6,7) receberá vida em abundância. Não se trata de apenas revitalizar alguém que estava quase morto e volta a viver. Na estrofe anterior (vv. 8-9), o servo de fato morreu e foi sepultado.

Estamos num ponto em que se começa afirmar que há vida e justiça após a morte. Antes do exílio babilônico (586-538), pouco se refletia sobre isso. Após a escravidão do Egito (séc. 13 a.C.), Israel não quis saber da continuação da vida após a morte da mesma maneira injusta como era antes (escravos servindo o faraó ainda no além?). Javé é o Deus dos vivos, não dos mortos. Ele quer vida e liberdade aqui para seu povo. Aos poucos, porém, surgem questionamentos a respeito da morte injusta de indivíduos (cf. Sl 49; 73; Ecl) e da teologia da retribuição que nem sempre se cumpre nesta vida.

No exílio da Babilônia (onde o Segundo Is escreve), a ideia da ressurreição começa surgir (cf. Ez 37,1-14), porque o poder de Deus é universal, não tem limites de espaço (é Deus de todo a terra e não só de Israel; cf. Is 44,6; 45,4-7.12; Gn 1) nem tem limites de tempo: portanto, a justiça de Deus deve se estender para além da morte, como aqui, sem falar explicitamente da ressurreição (cf. Is 25,8; 26,19).

Na crise do exílio, um profeta contemporâneo no exílio, Ezequiel, descreverá a volta do exílio como ressurreição dos ossos secos em termos de uma nova criação pelo Espírito (Ez 37). Depois, pelas influências persa e grega, surge a ideia da vida eterna da alma justa no paraíso (cf. Sb 3; Lc 16,19-31), além da ressurreição da carne (Is 26,19; 2Mc 7; Dn 12,2-3).

Em vv. 10-11a, não se trata apenas da possibilidade de vida após a morte. A comunidade (que está falando ainda) reconhece que esta vida após a morte é a recompensa pela doação e obediência do servo que “oferecendo sua vida em expiação” correspondeu à “vontade do Senhor” (desígnio, projeto salvífico de Javé) que “quis” macerá-lo “com sofrimentos” (outra tradução possível: “e o traspassou”).

De fato, pela primeira vez no AT se fala aqui da “expiação” vicária, ou seja, de um sofrimento que paga a culpa de outros. Geralmente no AT se falava da doutrina da retribuição, “aqui se faz, aqui se paga” (cf. Sl 1 e a teologia da prosperidade hoje em dia). Já o livro de Jó a questiona: Se faz nada de errado, porque o justo sofre? Também uns salmos falam do sofrimento do justo (cf. Sl 22; 73; cf. Ecl; Sb 2). O servo não foi salvo mais aqui na terra (como Jó, como José do Egito e outros), morreu de fato e foi sepultado (vv. 8-9).

Aqui temos o único texto no AT que usa a imagem de uma vítima humana em expiação. É sabido que os sacrifícios humanos eram absolutamente proibidos (cf. Gn 22,12s: um cordeiro é oferecido no lugar do filho de Abraão).

O termo hebraico ‘asam tem um significado de “reparação” (em caso de delito inconsciente ou sem querer, cf. Lv 5,15-19) até “sacrifício de culpa” (em casos de delito consciente e grave, Lv 5,20-26). Em 1Sm 6,3.5, o homem toma iniciativa e espera que Deus aceite este sacrifício. Talvez o servo não tivesse a certeza desde o início, se Deus aceitaria seu sacrifício. Ele esperava ainda pela aceitação e justificação divina que será proclamado no final (vv. 11b-12), mas já em v. 11a reconhece-se que a doação de vida do servo está em “consciente” consonância com o projeto de Deus e assim “cria salvação” (nossa liturgia traduz: “ciência perfeita”; cf. Jr 22,15s: o rei Josias, que criou justiça e salvação para os pobres através do seu “conhecimento” de Deus).

Meu Servo, o justo, fará justos inúmeros homens, carregando sobre si suas culpas. Por isso, compartilharei com ele multidões e ele repartirá suas riquezas com os valentes seguidores, pois entregou o corpo à morte, sendo contado como um malfeitor; ele, na verdade, resgatava o pecado de todos e intercedia em favor dos pecadores (vv. 11b-12).

Aqui Javé Deus, pela boca do profeta, volta a falar. No terceiro canto, o servo maltratado esperava pelo auxílio de Javé (53,8-9) que o supremo juiz o defenderia e declararia publicamente sua inocência, dizendo como agora “meu servo é justo” (v. 11b).

No direito do AT (cf. Dt 25,1-3; 23,7; 1Rs 8,31s), precisa de um julgamento para solucionar um conflito que impossibilita a convivência e proclamar publicamente a sentença: 1) quem é inocente e justo (cf. Pr 24,24) e quem é culpado, 2) qual a consequência do ato (pena, sanção, indenização) e 3) justificar a sentença. Assim, Javé proclama a sentença (v. 11b: “ele é justo”), a consequência (v. 12a: não pena, mas recompensa), e a justificação da sentença (v. 12bc)

Deus declara justo o servo que os muitos desprezavam achando que era castigado por Deus. A ação justa do servo consistiu exatamente no fato de ele tirar a culpa daqueles que o desprezavam mostrando-se seus inimigos. Aqui a “justiça divina” chega ao cume: nunca era apenas justiça por obras ou méritos, sempre ajudava os fracos e indefesos (cf. Jr 22,15: Sl 72), mas agora ajuda até os pecadores, aqueles que o desprezavam (cf. Rm 5,8-10)!

A consequência (v. 12a), o resultado do julgamento divino é a recompensa, expressada com metáforas marciais: o servo receberá “sua parte”, repartirá despojos (cf. 9,2; Gn 49,27; Ex 15,9). “Repartir despojos” (a liturgia traduz “riquezas”) já não é tal bélico (cf. Pr 16,19; Jr 33,23) e significa num sentido amplo: “ganhar o bem da vida ao lado de certas pessoas.”

Neste termo, o servo desprezado, excluído e isolado (cf. v. 3) será ressocializado. Sua isolação é eliminada e transformada em experiência de comunhão feliz “com multidões” e “notáveis” (a liturgia traduziu: “valentes seguidores”. O mesmo par, “numerosos” e “poderosos”, se encontra em Ex 1,9; Dt 9,14; 26,5; Jl 2,2; Sl 35,18). Difícil de imaginar é como se dá esta comunhão e reintegração, porque o servo já morreu. Mas esta frase afirma coisa importante sobre a vida após morte: não será algo impessoal (como o nirvanabudista), mas interpessoal (podemos relacionar a transfiguração de Jesus com este canto do servo em vários aspectos, aqui sua conversa com Moisés e Elias, Mc 9,4p).

Qual será o despojo do servo? Pode-se dizer, a partir dos cantos de 42,1-7 e 49,6-9, que serão os povos, ou melhor: o resgate deles, a virada da salvação para o mundo. No NT, é a Igreja de todos os povos (católica), a comunhão com os discípulos que vão “ter parte” com o Corpo e Sangue de Jesus (cf. Jo 13,8; 1Cor 10,16s).

A justificação da sentença (v. 12bc) é mais do que mera repetição: fala-se de doar a vida e a honra e do papel de bode expiatório. “Pois entregou o corpo à morte”, lit. “se derramou a si mesmo até morte” (cf. Fl 2,7); o que no Sl 141,8 mais se teme, “derramar a minha vida”, o servo aceita (cf. Mt 26,28). “Deixou-se contar entre os malfeitores (criminosos)” (cf. Lc 22,37), quer dizer que renunciou à sua honra e sua justificação por conta própria, interrompendo a espiral da violência e reação violenta.

“Resgatava o pecado de todos”, lit. “carregou o pecado de muitos”. Há uma polêmica sobre a tradução, “muitos” ou “todos”, que levou Papa Bento XVI a pedir a revisão das palavras litúrgicas na consagração eucarística: Jesus derramou seu sangue “por muitos” ou “por todos”? No relato da última ceia, Mc 14,24 e mais ainda Mt 26,28 aludem ao servo de Deus em Is 53,12 e traduzem a palavra hebraica rabbim por “muitos” (cf. Mc 10,45; Lc 22,20: por vós). A reforma litúrgica na esteira do Concílio Vaticano II traduz (interpreta) a palavra “por todos”.

Em português (e outras línguas como grego, latim etc.) há contraposição entre muitos e todos, ex.: “muitos alunos foram aprovados”, quer dizer que “nem todos foram aprovados”. Em hebraico, não: rabbim significa uma “multidão” que pode ser todos ou nem todos.

Comparamos outros trechos no NT: Hb 9,28; Ap 7,9; Mt 22,14 usam a palavra grega por “multidão”, mas as cartas paulinas (Rm 5,15.18-19; 8,32; 1Cor 10,16s; 2Cor 5,14s; 1Tm 2,4-6; 2Tm 2,11.14) e os escritos joaninos (Jo 1,29; 6,51; 11,52; 1Jo 2,2) salientam a universalidade: Cristo morreu para salvar a “todos”. Ele é a vítima de expiação pelos nossos pecados; e não só dos nossos, mas também os pecados do mundo inteiro (cf. Mt 1,21; Jo 1,29).

A expressão desta síntese do quarto canto lembra a função do “bode expiatório”: Aarão porá ambas as mãos sobre a cabeça do bode e confessará sobre ele todas as faltas dos filhos de Israel, todos seus crimes todos os seus pecados. E depois de tê-los assim posto sobre a cabeça do bode enviá-lo-á ao deserto, conduzido por um homem preparado para isso e o bode carregará sobre si todas as faltas deles para uma região desolada” (Lv 16,21s).

O servo de Deus é o verdadeiro bode expiatório que tira do mundo o pecado de todos (cf. Jo 1,29), o conjunto de pecado-desgraça que pesa sobre a comunidade. A expressão hebraica het “pecado” designa uma situação de culpa pesada, que é maior do que os atos isolados e leva à morte (cf. Sl 51,7).

No texto hebraico (M, contra Q e LXX), o servo ainda tem uma atividade: a intercessão na vida e ainda depois da morte. Ele “intercede em favor dos pecadores (lit. transgressores)”. A palavra hebraica tem o sentido de “intervir” (cf. Jr 36,25) Jeremias confessa de ter feito intercedido a Javé também por seus inimigos (Jr 15,11). O servo de Javé não só “intercedia em favor dos pecadores” (53,12), como Moisés fez (Ex 32,11-14), mas “derramou a sua vida até a morte” (53,12).

Para os primeiros cristãos, este canto foi um texto-chave para a evangelização (cf. At 8,30-35), porque em muitos detalhes se assemelha à paixão, morte e ressurreição de Cristo. Ao que parece, foi o próprio Jesus que combinou os conceitos de Messias (2Sm 7; Sl 2) e de Filho do Homem (Dn 7,13s) com o sofrimento do Servo de Deus (cf. Mc 8,29-31 etc.); não é um messias belo e guerreiro (cf. Sl 45), mas um “homem coberto de dores” (v. 3) que “veio para servir e dar a sua vida em resgate de muitos” (Mc 10,45) e derramar seu próprio sangue (não o dos outros) “para remissão dos pecados” (Mt 26,28).

(Literatura: Werner Grimm/Kurt Dittert. Deuterojesaja, Deutung – Wirkung – Gegenwart, Stuttgart 1990)

Evangelho: Jo 18,1-19,42

Enquanto no Domingo de Ramos o relato da paixão é lido conforme o evangelho de cada ano (Mt, Mc ou Lc), na Sexta-feira Santa é sempre a Paixão segundo João. Cada um dos evangelistas apresenta um ângulo diferente, dependendo de sua comunidade e dos desafios da sua época. Assim, os evangelhos se completam e enriquecem nosso conhecimento de Jesus. A paixão narrada no quarto evangelho destaca o lado divino de Jesus. O evangelista usava um relato mais antigo da paixão, mas bastante independente dos outros evangelhos.

O primeiro que escreveu um evangelho foi Mc cerca de 70 d.C. (40 anos depois da morte de Jesus). Foi durante da Guerra Judaica (judeus contra romanos), por isso não queria apresentar um messias guerreiro, nacionalista e triunfalista, como os judeus esperavam. Em Mc, Jesus assume o sofrimento humano e morre abandonado na cruz; suas últimas palavras são do Sl 22,2 (Salmo responsorial do domingo de Ramos): “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc 15,34). Mt 26,46 segue Mc. Lc, porem, mostra que Jesus continua ser o salvador misericordioso na cruz rezando pelos inimigos (Lc 23,34; cf. 6,28), prometendo o paraíso ao pecador arrependido na cruz (Lc 23, 43), e morre com palavras mais confiantes de outro salmo: “Pai, em tuas mãos, entrego meu espírito” (Lc 23,46; citando Sl 31,6, o Salmo responsorial de hoje).

O evangelho de Jo foi escrito por último, no final do século I, quando “os judeus” (as autoridades dos judeus do ano 90 d.C.) excluíram os cristãos da sua religião (cf. Jo 9,22; 12,42; 16,2; antes os cristãos ainda faziam parte como um ramo do judaísmo). Jo quer mostrar que Jesus não é apenas homem, mas também divino e existe desde sempre unido ao Pai (cf. Jo 1,1-18; em 10,30 afirma: “Eu e o Pai somos um”; cf. 20,28). Esta visão influi no relato da paixão: ela não é um acidente da história, mas o desígnio de Deus, o caminho para glória, em que Jesus é soberano, não vítima inconsciente e passiva. Enquanto Mc mostrou o lado humano de Jesus, Jo apresenta o lado divino.

Jesus saiu com os discípulos para o outro lado da torrente do Cedron. Havia aí um jardim, onde ele entrou com os discípulos. Também Judas, o traidor, conhecia o lugar, porque Jesus costumava reunir-se aí com os seus discípulos. Judas levou consigo um destacamento de soldados e alguns guardas dos sumos sacerdotes e fariseus, e chegou ali com lanternas, tochas e armas. Então Jesus, consciente de tudo o que ia acontecer, saiu ao encontro deles e disse: “A quem procurais?” Responderam: “A Jesus, o nazareno”. Ele disse: “Sou eu”. Judas, o traidor, estava junto com eles. Quando Jesus disse: “Sou eu”, eles recuaram e caíram por terra (18,1-6).

Depois do seu longo discurso de despedida na ceia (caps. 13-17), Jesus sai da cidade e vai a um “jardim” que fica noutro lado da torrente do Cedron, isto é no monte das Oliveiras. Judas, que se tinha afastado da ceia em 13,30, conhece o lugar e leva os “destacamento de soldados” (= 500 homens!) e alguns guardas dos sumos sacerdotes e fariseus” para prender Jesus. Tudo isso para mostrar o poder do mundo. Mas o verdadeiro dono da história é Jesus.

Em Jo, não é Judas quem precisa indicar o mestre com o beijo, mas o próprio Jesus, “consciente de tudo o que ia acontecer, saiu ao encontro deles” (18,4). Jesus mesmo se identifica e quando diz “Sou eu”, os soldados e guardas “caíram por terra” (18,6; cf. Sl 35,4; 27,2). É por que “Eu sou” (cf. 8,24.57) alude ao significado do nome divino, Javé (Yhwh, traduzido em Ex 3,14: “EU SOU aquele que sou”). Diante da divindade de Jesus, os soldados caem involuntariamente por terra (como que num gesto de adoração, a prostração). O motivo que a palavra do rei faz os inimigos caírem no chão é conhecido no Antiguidade (Ramsés, Nero) e caracteriza o rei como ser divino (cf. Tomé em 20,28).

De novo lhes perguntou: “A quem procurais?” Eles responderam: “A Jesus, o nazareno”. Jesus respondeu: “Já vos disse que sou eu. Se é a mim que procurais, então deixai que estes se retirem”. Assim se realizava a palavra que Jesus tinha dito: “Não perdi nenhum daqueles que me confiaste” (18,7-9).

Toda tropa dos soldados não podia prender Jesus, se ele não deixasse (cf. 10,17s). Mostrando-se bom pastor (cap. 10) que não perde ninguém que o Pai lhe deu, Jesus cuida ainda que os outros discípulos possam sair ilesos (18,9; cf. 6,39; 10,28; 17,12).

Simão Pedro, que trazia uma espada consigo, puxou dela e feriu o servo do sumo sacerdote, cortando-lhe a orelha direita. O nome do servo era Malco. Então Jesus disse a Pedro: “Guarda a tua espada na bainha. Não vou beber o cálice que o Pai me deu?” (18,10-11)

Jo acrescenta uns detalhes aos outros evangelhos: o discípulo que quer defender Jesus (Mc 14,47p) é “Pedro”; o nome do servo do sumo sacerdote a quem ele cortou a orelha direita é “Malco” (18,10; cf. Lc 23,50p). A mensagem da cena, porém, é que Jesus renuncia a todos os meios de poder e entrega-se voluntariamente. Por isso, repreende Pedro (cf. Mt 26,51-53; Lc 22,51; Mc 8,32-33p). Jo menciona ainda o “cálice” que faltou na oração de 12,27s (cf. Mc 14,36p).

Então, os soldados, o comandante e os guardas dos judeus prenderam Jesus e o amarraram. Conduziram-no primeiro a Anás, que era o sogro de Caifás, o sumo sacerdote naquele ano. Foi Caifás que deu aos judeus o conselho: “É preferível que um só morra pelo povo” (18,12-14).

Para destacar o sentido da morte de Jesus, Jo lembra o que Caifás havia dito ao conselho supremo (sinédrio) em 11,50-52: “É preferível que um só morra pelo povo” (cf. evangelho de sábado passado). Caifás era sumo sacerdote em ofício de 18 a 36 d.C.

Mas em Jo, Jesus é interrogado primeiro por Anás, o sogro poderoso de Caifás. Anás tinha sido o sumo sacerdote de 6 a 15 d.C. e conservava o título honorífico (cf. vv. 15-22) e toda influência pessoal e familiar.

Simão Pedro e um outro discípulo seguiam Jesus. Esse discípulo era conhecido do sumo sacerdote e entrou com Jesus no pátio do sumo sacerdote. Pedro ficou fora, perto da porta. Então o outro discípulo, que era conhecido do sumo sacerdote, saiu, conversou com a encarregada da porta e levou Pedro para dentro. A criada que guardava a porta disse a Pedro: “Não pertences também tu aos discípulos desse homem?” Ele respondeu: “Não”. Os empregados e os guardas fizeram uma fogueira e estavam-se aquecendo, pois fazia frio. Pedro ficou com eles, aquecendo-se (18,15-18).

Pedro é introduzido ao pátio através de “outro discípulo” (talvez “aquele que Jesus amava”, o autor anônimo e fundador da comunidade, cf. 1,35-40; 13,23-25;19,26s.35; 20,2-10; 21,7.10.20-24; cf. comentário de terça-feira). Lá, no pátio, Pedro nega pela primeira vez ser discípulo de Jesus (18,15-17.26s), sua coragem de antes (13,36-38; 18,10) já não é a mesma diante de uma mulher.

Entretanto, o sumo sacerdote interrogou Jesus a respeito de seus discípulos e de seu ensinamento. Jesus lhe respondeu: “Eu falei às claras ao mundo. Ensinei sempre na sinagoga e no Templo, onde todos os judeus se reúnem. Nada falei às escondidas. Por que me interrogas? Pergunta aos que ouviram o que falei; eles sabem o que eu disse.” Quando Jesus falou isso, um dos guardas que ali estava deu-lhe uma bofetada, dizendo: “É assim que respondes ao sumo sacerdote?” Respondeu-lhe Jesus: “Se respondi mal, mostra em quê; mas, se falei bem, por que me bates?” (18,12-23).

Entretanto, Jesus não ficou calado no interrogatório. Ele questiona esse tribunal extraordinário e escondido à noite (cf. Mc 14,48s): “Eu falei às claras ao mundo … Porque me interrogas?” (18,20s), e desafia o guarda que bateu nele: “Porque me bates?” (18,23). Não mostrou outra face (Mt 5,39p), mas questiona levando o conflito a outro nível; quem usa de violência demostra que não tem argumento.

Então, Anás enviou Jesus amarrado para Caifás, o sumo sacerdote. Não és tu também um dos discípulos dele? Pedro negou: “Não!” Simão Pedro continuava lá, em pé, aquecendo-se. Disseram-lhe: “Não és tu, também, um dos discípulos dele?” Pedro negou: “Não!” Então um dos empregados do sumo sacerdote, parente daquele a quem Pedro tinha cortado a orelha, disse: “Será que não te vi no jardim com ele?” Novamente Pedro negou. E na mesma hora, o galo cantou (18,24-27).

Nos evangelhos sinóticos (Mc, Mt e Lc), a tríplice negação de Pedro é relatada de uma só vez. Em Jo está dividida (vv. 17.25-27). A lembrança da ação bélica de Pedro no jardim parece agora ironia. Suas palavras de “dar a vida” por Jesus se revelam vazias (13,37s).

O quarto evangelista inseriu a interrogação por Anás (vv. 19-24), porque não pode cancelar o interrogatório esperado diante dos judeus. Segundo 12,37, Jesus nem queria mais falar a eles, porque já falou tudo. Mas o interesse do evangelista está no diálogo com Pilatos.

De Caifás, levaram Jesus ao palácio do governador. Era de manhã cedo. Eles mesmos não entraram no palácio, para não ficarem impuros e poderem comer a páscoa. Então Pilatos saiu ao encontro deles e disse: “Que acusação apresentais contra este homem?” Eles responderam: “Se não fosse malfeitor, não o teríamos entregue a ti!” Pilatos disse: “Tomai-o vós mesmos e julgai-o de acordo com a vossa lei.” Os judeus lhe responderam: “Nós não podemos condenar ninguém à morte”. Assim se realizava o que Jesus tinha dito, significando de que morte havia de morrer (18,28-32).

Jesus é levado de Anás para Caifás (18,23), e depois sem mais ao “palácio do governador Pilatos … de manhã cedo”. Os judeus não entravam na casa de um pagão (18,28; cf. Mt 8,8; At 11,3), então Pilatos “saiu ao encontro deles”. Não queria julgar Jesus, mas os judeus não podiam condenar ninguém à morte. Isto era privilégio reservado ao governador romano. A crucificação era considerada a pena típica dos romanos. Herodes a evitava para não provocar os judeus, mas os romanos a aplicaram para escravos e subversivos. Se Jesus é condenado pelos romanos, então significa sua crucificação. Em 3,14 e 12,32s, ele já falava disso, mas em outros termos: “ser elevado, glorificado”. Justamente por este suplício mais miserável, Jesus voltará na glória do Pai.

Então Pilatos entrou de novo no palácio, chamou Jesus e perguntou-lhe: “Tu és o rei dos judeus?” Jesus respondeu: “Estás dizendo isto por ti mesmo, ou outros te disseram isto de mim?” Pilatos falou: “Por acaso, sou judeu? O teu povo e os sumos sacerdotes te entregaram a mim. Que fizeste?”. Jesus respondeu: “O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus guardas lutariam para que eu não fosse entregue aos judeus. Mas o meu reino não é daqui. “Pilatos disse a Jesus: “Então tu és rei?” Jesus respondeu: “Tu o dizes: eu sou rei. Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz.” Pilatos disse a Jesus: “O que é a verdade?”

Ao dizer isso, Pilatos saiu ao encontro dos judeus, e disse-lhes: “Eu não encontro nenhuma culpa nele. Mas existe entre vós um costume, que pela Páscoa eu vos solte um preso. Quereis que vos solte o rei dos Judeus?” Então, começaram a gritar de novo: “Este não, mas Barrabás!” Barrabás era um bandido.

Então Pilatos mandou flagelar Jesus. Os soldados teceram uma coroa de espinhos e colocaram-na na cabeça de Jesus. Vestiram-no com um manto vermelho, aproximavam-se dele e diziam: “Viva o rei dos judeus!” E davam-lhe bofetadas.

Pilatos saiu de novo e disse aos judeus: “Olhai, eu o trago aqui fora, diante de vós, para que saibais que não encontro nele crime algum.” Então Jesus veio para fora, trazendo a coroa de espinhos e o manto vermelho. Pilatos disse-lhes: “Eis o homem!”

Quando viram Jesus, os sumos sacerdotes e os guardas começaram a gritar: “Crucifica-o! Crucifica-o!” Pilatos respondeu: “Levai-o vós mesmos para o crucificar, pois eu não encontro nele crime algum.” Os judeus responderam: “Nós temos uma Lei, e, segundo esta Lei, ele deve morrer, porque se fez Filho de Deus”. Ao ouvir estas palavras, Pilatos ficou com mais medo ainda. Entrou outra vez no palácio e perguntou a Jesus: “De onde és tu?” Jesus ficou calado. Então Pilatos disse: “Não me respondes? Não sabes que tenho autoridade para te soltar e autoridade para te crucificar?” Jesus respondeu: “Tu não terias autoridade alguma sobre mim, se ela não te fosse dada do alto. Quem me entregou a ti, portanto, tem culpa maior.”

Por causa disso, Pilatos procurava soltar Jesus. Mas os judeus gritavam: “Se soltas este homem, não és amigo de César. Todo aquele que se faz rei, declara-se contra César”. Ouvindo estas palavras, Pilatos trouxe Jesus para fora e sentou-se no tribunal, no lugar chamado “Pavimento”, em hebraico “Gábata”. Era o dia da preparação da Páscoa, por volta do meio-dia. Pilatos disse aos judeus: “Eis o vosso rei!” Eles, porém, gritavam: “Fora! Fora! Crucifica-o!” Pilatos disse: “Hei de crucificar o vosso rei?” Os sumos sacerdotes responderam: “Não temos outro rei senão César” (18,33-19,15).

Em Jo, várias vezes Pilatos “entrou” (para falar com Jesus) e “saiu” (para falar com os judeus). Jo revela a farsa: os “judeus”, ou seja, as autoridades judaicas, negam cada vez mais sua própria identidade para conseguir seu objetivo de matar Jesus (cf. 5,18), até eles disserem: “Não temos outro rei senão César” (19,15; na verdade, Javé Deus é o rei de Israel (cf. 1Sm 8,7; Sl 93,95; 96-99), enquanto em 1,47, o “verdadeiro israelita (não diz: judeu)” acredita em Jesus.

Jo usa o termo “judeus” de várias maneiras, pode designar o povo em geral, no sentido positivo (cf. 4,22; 11,45 etc.), por outro lado designa os adversários de Jesus que são identificados com os “fariseus” (é o mesmo grupo no cap. 9). Depois da destruição do templo de Jerusalém em 70.d.C., não havia mais sacerdotes para realizar os sacrifícios e os fariseus permaneceram como grupo dominante que impuseram sua versão do judaísmo agora a outros grupos divergentes, entre eles os cristãos. O evangelista não é antissemita, quando ele usa “judeus” de forma negativa, é para designar as lideranças fariseus da época do evangelho que excluíram os cristãos (por decreto no sínodo de Jâmnia em 90 d.C.; cf. 9,22.34; 12,42). Jesus, sua família e seus discípulos, o próprio evangelista e a maioria da sua comunidade, todos eram judeus. Trata-se, pois, de um conflito da época no interior do próprio judaísmo e não pode ser usado para uma posição racista contra os judeus (como fez o nazismo alemão). A culpa na morte de Jesus “não pode ser indistintamente ser imputada a todos os judeus que então viviam nem aos de hoje” (Concílio Vaticano II, NA 4, § 1591).

Nos evangelhos sinóticos, Jesus se nega a falar com Pilatos (Mc 15,2-5p; cf. Is 53,7), mas em Jo há vários diálogos com o governador. Neles, Jesus se mostra superior, ele é o “rei” de “verdade”, testemunha da verdade que é de Deus (cf. 14,6). Com sua pergunta, Pilatos mostra não conhecer a verdade (cf. 18,37s); agora tem medo (19,8), apesar de declarar três vezes a inocência de Jesus, deixa-se pressionar. Solta Barrabás, um “ladrão” (pode significar também que lutava contra os romanos de forma violenta, cf. Mc 15,7), e condena Jesus.

Na sua teologia dualista, Jo quer distinguir dois níveis de reinados: o reino exterior deste mundo que se alimenta do poder político, econômico e militar, e o reino verdadeiro cuja fonte é a verdade divina, motivo pelo qual se deve obedecer e segui-lo. O poder de Deus não se impõe através de violência, opressão e submissão, mas surge através da verdade, luz, vida e amor.

Os presos não tinham direito de nada. Quem tinha direitos como cidadão romano, não foi crucificado (cf. Paulo em At 22,22-29). Os soldados fazem reverência a realeza de Jesus com “coroa … manto vermelho”, mas de maneira falsa e sádica. A flagelação era comum antes da crucificação. Pilatos a antecipa, talvez apelando à misericórdia dos judeus. Apresenta Jesus não como rei, mas como ser humano sofrido: “Eis o homem”, uma alusão ao Servo de Javé, “homem de dores” (cf. Is 52,14; 53,3) ou a Adão (= “homem, ser humano” em hebraico; já que Jesus carrega o pecado do mundo, da humanidade; cf. 1,29) ou ao “Filho de homem” (cf. Dn 7,13s)?

“Era o dia da preparação da Páscoa por volta do meio dia” (19,14). Em Mc 15,25, Jesus foi crucificado às nove horas da manhã; mas em Jo, Jesus é sacrificado na mesma hora em que os cordeiros estão sendo imolados no templo (cf. 1,29), ao cair da tarde (cf. Ex 12,6; Jo 19,14.42).

Então Pilatos entregou Jesus para ser crucificado, e eles o levaram. Ali o crucificaram, com outros dois. Jesus tomou a cruz sobre sie saiu para o lugar chamado “Calvário”, em hebraico “Gólgota”. Ali o crucificaram, com outros dois: um de cada lado, e Jesus no meio. Pilatos mandou ainda escrever um letreiro e colocá-lo na cruz; nele estava escrito: “Jesus o Nazareno, o Rei dos Judeus”. Muitos judeus puderam ver o letreiro, porque o lugar em que Jesus foi crucificado ficava perto da cidade. O letreiro estava escrito em hebraico, latim e grego. Então os sumos sacerdotes dos judeus disseram a Pilatos: “Não escrevas: O Rei dos Judeus, mas sim o que ele disse: Eu sou o Rei dos judeus.” Pilatos respondeu: “O que escrevi, está escrito”.

Depois que crucificaram Jesus, os soldados repartiram a sua roupa em quatro partes, uma parte para cada soldado. Quanto à túnica, esta era tecida sem costura, em peça única de alto a baixo. Disseram então entre si: “Não vamos dividir a túnica. Tiremos a sorte para ver de quem será”. Assim se cumpria a Escritura que diz: “Repartiram entre si as minhas vestes se lançaram sorte sobre a minha túnica”. Assim procederam os soldados (19,16-24).

Em Jo, “Pilatos entregou Jesus para ser crucificado, e eles o levaram”, quem são eles? Parece que são os judeus, mas a execução era assunto exclusivo dos romanos. Os autores do NT querem atenuar a culpa dos romanos e de Pilatos, e atribuem “a culpa maior” aos judeus (19,11). Devemos entender o texto pelo contexto histórico: no início, os cristãos sofreram perseguição por parte dos judeus (p. ex. Saulo) e foram excluídos da sinagoga (cf. 9,22; 12,42; 16,2), enquanto gregos, romanos e outros pagãos se converteram ao cristianismo. Mas a história não isenta Pilatos que era um homem cruel (segundo outras fontes) e também não isenta os cristãos de épocas posteriores por terem perseguidos o povo judeu. A culpa na morte de Jesus não é do povo judeu, mas de algumas autoridades da época e também de nós (!), porque Jesus morreu por nossos pecados (cf. CIC 598).

Em Jo, não se menciona Simão de Cireneu. Jesus carrega a cruz sozinho! Como nos outros evangelhos, a crueldade da crucificação não se descreve em detalhes. Era a pena de morte mais horrível da época. Cidadãos romanos não podiam ser crucificados, somente escravos e inimigos de estado. Mc 15,27p chama os outros dois “ladrões”, Lc 23,33 “malfeitores” (cf. Is 53,12); eram provavelmente terroristas zelotas como Barrabás; Jo é neutro, só fala de “outros dois” (v. 18), mas destaca “um de cada lado, e Jesus no meio” (v. 18), alusão ao lugar de honra para o “rei” (cf. os próximos vv. e 18,33-38a; 19,6.14s).

No letreiro da cruz “Jesus Nazareno, Rei dos Judeus” (I.N.R.I.), Pilatos diz a verdade, mais do que a acusação dos “judeus” (19,19-22). Pilatos queria humilhar os judeus (como fez outras vezes) e amedrontar qualquer pensamento subversivo contra os romanos. Mas inconscientemente (cf. 11,51), Pilatos proclama o condenado “rei”, ainda em alcance internacional de três línguas (cf. 4,42: “salvador do mundo”).

Como nos outros evangelhos, os soldados cumprem a profecia de Sl 22,8, repartindo as vestes do condenado conforme o costume. Jo descreve a túnica, “esta era tecida sem costura, em peça única de alto a baixo” (v. 24). Há interpretações simbólicas desta túnica, p. ex. Jesus como verdadeiro sumo sacerdote (cf. Ex 28; 39), ou a unidade da Igreja que não devia sofrer divisão (cf. 17,21-23), mas são suposições.

Perto da cruz de Jesus, estavam de pé a sua mãe, a irmã da sua mãe, Maria de Cléofas, e Maria Madalena. Jesus, ao ver sua mãe e, ao lado dela, o discípulo que ele amava, disse à mãe: “Mulher, este é o teu filho”. Depois disse ao discípulo: “Esta é a tua mãe”. Daquela hora em diante, o discípulo a acolheu consigo (19,25-27).

Além de mulheres da Galileia “olhando de longe” (Mc 15,40-41p), só em Jo há parentes e discípulos perto da cruz de Jesus, as três Marias: “sua mãe” (sem nome como em 2,1-12), “a irmã da sua mãe, Maria de Cléofas” (poderiam ser duas pessoas distintas; cf. Lc 24,18) e “Maria Madalena” (v. 25). Como nas bodas de Caná (2,4), Jesus trata Maria como “mulher”, mas desta vez sua “hora” tinha chegado.

Em termos sociais, o filho mais velho assumiu os negócios da família, quando o pai morreu. José já faltou em Jo 2. Agora, antes de morrer, Jesus assegura o destino da mãe (viúva), recomenda-a a um amigo leal. Pode ser um indício de que Maria não teve outros filhos que poderiam cuidar da mãe após a morte de Jesus (cf. os “irmãos de Jesus” em 7,3.5.10 que podem ser outros parentes). Maria e o “discípulo amado” representam a Igreja, a nova família fecunda que virá novo povo de Deus (cf. 19,25-27), baseada não no parentesco do sangue, mas na palavra de Deus (cf. 1,12s). Com isso, o discípulo amado torna-se herdeiro-sucessor de Jesus! Mas o que significa isso, só se esclarece em 21,20-24.

Depois disso, Jesus, sabendo que tudo estava consumado, e para que a Escritura se cumprisse até o fim, disse: “Tenho sede”. Havia ali uma jarra cheia de vinagre. Amarraram numa vara uma esponja embebida de vinagre e levaram-na à boca de Jesus. Ele tomou o vinagre e disse: “Tudo está consumado”. E, inclinando a cabeça, entregou o espírito (19,28-30).

Jo quer mostrar o lado divino de Jesus. Neste, Jesus é soberano, não tem medo, nem está abandonado e nem parece sentir todas essas dores. O vinagre misturado com água era bebida barata para matar a sede. Jesus diz: “Tenho sede”, mas só “para que a Escritura se cumprisse até o fim” (19,28; Sl 22,16; 69,22). Não sentiu sede de verdade, era só como um ator que finge o sofrimento? Assim se pensava no século II numa heresia (doutrina errada) chamada de “docetismo” (doutrino de aparência), segundo a qual o Filho de Deus não podia sofrer de fato, porque Deus não sofre (não morre, não muda, é eterno); o sofrimento na cruz seria só ilusão, “aparência”. Jo, porém, não nega o sofrimento da carne de Jesus (cf. 1Jo 4,1-3; 5,6-8); ele quer dizer que Jesus sabe (como em 13,1; 18,4) que é cumprimento da Escritura e por isso o provoca. O último cumprimento da sua obra é morrer (3,16). Sua morte não é um acidente, mas dom (cf. 10,18), vontade do Pai e corresponde à Palavra de Deus.

“Jesus, sabendo que tudo estava consumado” (cf. 13,1; 18,4), sabe que está completando sua obra, a missão, para a qual o Pai o enviou (cf. 14,31). Como o trabalho da criação terminou em Gn 2,1-3, é agora que termina o trabalho da redenção (cf. 5,17): “Tudo está consumado”. Jesus não morre desesperado com um grito (Mc 15,34.37 citando Sl 22,2), mas descansa da obra, “inclinando a cabeça, entregou o espírito” (19,30; cf. Is 53,12; At 15,26). Depois, em 20,22, o Espirito Santo será dado aos apóstolos.

A última palavra tem semelhança com Lc 23,46 (Sl 31,6), mas lembra o fim da obra da criação (Gn 2,1-2). Seu trabalho (cf. 5,17) agora terminou, pode descansar (no sábado) em paz. As últimas palavras de Jesus em cada evangelho não são reportagem histórica, mas uma síntese da meditação e reflexão sobre o Cristo (cristologia) conforme o conceito de cada evangelista.

Jo não sabe nada (ou não conta) de circunstâncias sobrenaturais (Mc 15,33p.38p; Mt 27,51-53) que acompanham a hora da morte de Jesus, nem da profissão de fé do centurião (cf. Mc 15,39p).

Era o dia da preparação para a Páscoa. Os judeus queriam evitar que os corpos ficassem na cruz durante o sábado, porque aquele sábado era dia de festa solene. Então pediram a Pilatos que mandasse quebrar as pernas aos crucificados e os tirasse da cruz. Os soldados foram e quebraram as pernas de um e depois do outro que foram crucificados com Jesus. Ao se aproximarem de Jesus, e vendo que já estava morto, não lhe quebraram as pernas; mas um soldado abriu-lhe o lado com uma lança, e logo saiu sangue e água. Aquele que viu, dá testemunho e seu testemunho é verdadeiro; e ele sabe que fala a verdade, para que vós também acrediteis. Isso aconteceu para que se cumprisse a Escritura, que diz: “Não quebrarão nenhum dos seus ossos”. E outra Escritura ainda diz: “Olharão para aquele que transpassaram” (19,31-37).

Frequentemente, os corpos dos condenados ficavam expostos na cruz por vários dias. Mas para evitar escândalos (cf. Dt 21,22s) ou tumultos na festa da Páscoa que se aproximava, os soldados aceleraram a morte dos outros dois crucificados quebrando suas pernas para morrerem logo de asfixia. Jesus, porém, enfraquecido pela flagelação anterior (19,1), já tinha morrido; então um soldado verificou a morte com uma lança. Do lado de Jesus “saiu logo sangue e água” (19,34). Isto quer dizer que de fato morreu (contra os docetistas, cf. 1,14; 1Jo 5,6) e pode ser correta observação médica (sangue e um líquido claro dos pulmões). O discípulo amado, antes mencionado em v. 26s, testemunhou tudo isso.

De certo modo, Jo deve ter pensado na dupla natureza de Jesus: o sangue testemunha sua humanidade (a carne, cf. 1,14), a água significa o Espirito Santo, dom de Deus (4,14; 7,37-39). Mas também podemos ver neste detalhe uma alusão aos sacramentos da Igreja: água = batismo (3,5; 7,39); sangue = eucaristia (6,53-56). O Corpo de Cristo é o novo Templo, a Igreja (cf. 2,19-21; Cl 1,18; Ef 1,22s; 5,23; cf. 1Cor 3,16s; 6,19). Assim a água saindo do lado desse novo templo é a fonte da salvação (Ez 47; cf. Jo 2,21). A Igreja (com seus sacramentos) é a nova Eva saindo do lado do novo Adão adormecido (cf. Gn 2,21s), de Cristo morto. A citação da “outra escritura”, Zc 12,10, combina com isso: “Olharão para aquele que transpassaram.”

Também se cumpre a Escritura sobre o cordeiro pascal: “Não se quebrarão nenhum dos seus ossos” (19,36; Ex 12,46; cf. Sl 34,20s). Já bem no início da narração, Jesus foi declarado “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (1,29.36). Jesus é o verdadeiro Cordeiro pascal (cf. 1Cor 5,7), assim em Jo, a morte de Jesus coincide com a hora exata da imolação dos cordeiros no templo “ao cair da tarde” (Ex 12,6; Jo 19,14.42).

Depois disso, José de Arimateia, que era discípulo de Jesus – mas às escondidas, por medo dos judeus – pediu a Pilatos para tirar o corpo de Jesus. Pilatos consentiu. Então José veio tirar o corpo de Jesus. Chegou também Nicodemos, o mesmo que antes tinha ido a Jesus de noite. Trouxe uns trinta quilos de perfume feito de mirra e aloés. Então tomaram o corpo de Jesus e envolveram-no, com os aromas, em faixas de linho, como os judeus costumam sepultar. No lugar onde Jesus foi crucificado, havia um jardim e, no jardim, um túmulo novo, onde ainda ninguém tinha sido sepultado. Por causa da preparação da Páscoa, e como o túmulo estava perto, foi ali que colocaram Jesus (vv. 38-42).

Os romanos costumavam deixar os cadáveres dos condenados na cruz a mercê dos urubus, cachorros e da decomposição. Se precisavam respeitar a religião da população, jogaram-nos em valas comuns. Mas em casos especiais, os corpos foram entregues a parentes ou conhecidos (como demostra um achado arqueológico de um crucificado enterrado no túmulo da família em Jerusalém).

Em Jo, José de Arimateia é “discípulo”, porém, “às escondidas, por medo dos judeus” (cf. 7,13; 9,22; 20,19), mas ele se arrisca. Tem acesso a Pilatos que concede o corpo de Jesus para receber uma sepultura digna num “túmulo novo no qual ninguém tinha sido colocado” (cf. Lc 23,53). Para isso, José recebe a ajuda de Nicodemos (cf. 3,1-21) que vem com 30 (!) quilos de perfume, quantidade digna de um rei dos judeus, rei ungido de Israel (cf. 12,3-8; 1,41.49). Envolvem-no em faixas de linho que serão deixadas atrás na ressurreição (cf. 20,5.7).

A paixão de Jesus começou e terminou num “jardim” (18,1; e o lugar do túmulo em 19,41). Pode ser uma alusão ao jardim Éden (Gn 3)? Maria Madalena confundirá o ressuscitado com um jardineiro (20,15), porque Jesus é o novo Adão (cf. 1Cor 15,21-22; Rm 5,12-20) de cujo lado adormecido saiu a esposa (igreja; cf. 19,34). Pilatos apresentou Jesus flagelado: “Eis o homem” (19,5), Adão significa homem, Jesus é “homem de dores” (Is 53,3), mas é assim que ele recupera o paraíso (cf. Is 53,10-12; Jo 1,29).

O site da CNBB comenta: Conhecer Jesus significa conhecer também o mistério da cruz e a grande mensagem que esse mistério nos traz: Deus amou tanto o mundo que lhe enviou seu Filho Unigênito, não para condenar o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele, e ele derramou o seu próprio sangue derramado na cruz, fazendo-se oferenda perfeita para expiação dos nossos pecados. Conhecer Jesus através do mistério da cruz significa tornar-se capaz de fazer-se também oferenda a Deus, amando até o fim, tornar-se uma perfeita oblação a Deus pela salvação da humanidade e, hoje, tornar-se oblação é antes de tudo tornar-se um missionário da vitória do Cristo sobre o pecado e a morte.

O CORAÇÃO DE JESUS ABERTO PELA LANÇA

PRIMEIRO PONTO: A ferida. – Vamos ao Calvário, depois da morte de Jesus. A multidão afastou-se, os amigos ficam. Alguns soldados vêm verificar ou, se é o caso, apressar a morte dos pacientes, para que o espetáculo do seu suplício prolongado não entristeça o dia do sabbat.

Um dos soldados adiantou-se, portanto, e abriu o lado de Jesus com uma lança. É um grande mistério da história sagrada, onde tudo é mistério e ação divina. A ferida exterior é aqui a revelação simbólica da ferida interior, a do amor. O amor, eis o algoz de Jesus! Cristo morreu porque quis, foi o amor quem o matou … É assim que a Igreja canta, para saudar o Coração trespassado do seu esposo: «ó Coração vítima de amor, Coração ferido por amor. Coração morrendo de amor por nós!

Nosso Senhor permitiu este golpe de lança para chamar a nossa atenção para o seu coração, para nos fazer pensar no seu amor que é a fonte de todos os mistérios da salvação: as promessas do Éden, as profecias e as figuras da antiga lei, a acção providencial sobre o povo de Deus, a encarnação, a vida, os ensinamentos e a morte do Salvador. A abertura do lado de Jesus, é como a fonte que regava o paraíso terrestre, é como a fenda do rochedo que deu a água para saciar o povo de Israel.

SEGUNDO PONTO: O sangue e a água. – E saiu sangue e água, diz S. João. O ferro ao retirar-se deixou jorrar uma dupla fonte de sangue e de água, na qual os Padres da Igreja viram o símbolo desta outra maravilha de amor, os sacramentos, canais preciosos da graça da salvação. – Rio de água que, no santo baptismo e no banho da penitência, lava a alma da mácula original; rio de sangue que cai todas as manhãs nos cálices dos altares, para se expandir pelo mundo fora, consolar a Igreja sofredora do Purgatório e reanimar a Igreja que combate sobre a terra; rio refrescante, onde o coração, ressequido pelos trabalhos e pelas tentações, vai saciar-se de piedade, de caridade e de santa alegria.

Senhor, concedei-me beber desta água e deste sangue, para não mais tenha esta sede doentia das coisas do mundo que me tortura, e que eu seja inebriado pelo vosso amor.

TERCEIRO PONTO: «Olharão para dentro daquele que trespassaram». – É a palavra do profeta Zacarias, recordada por S. João. O profeta não disse: «Olharão para aquele que trespassaram», mas «olharão para dentro daquele que trespassaram (Jo 19, 38). S. João aplica estas palavras à abertura do lado de Jesus; devia pensar no interior de Jesus, no Coração mesmo de Jesus que ele pôde entrever pela chaga aberta do lado, no momento do embalsamamento.

Esta ferida entrega-nos e abre-nos o Coração de Jesus. Espiritualmente, nós aí lemos o amor que tudo deu, mesmo a vida. Neste amor mesmo, nós reconhecemos o motivo e o fim de todas as obras divinas: Deus criou-nos, resgatou-nos, santificou-nos por amor. No Coração de Jesus, é o fundo mesmo da natureza divina que nós penetramos na sua mais maravilhosa manifestação. «Deus é emor». S. João leu isto no Coração de Jesus.

Tenho necessidade de contemplar esta ferida para ver como eu sou amado e como por minha vez devo amar. Lá hei-de aprender como um coração amante deve agir, sofrer, tudo dar, até à morte, por Deus e pelas almas.

Vamos mais profundamente ainda, e vejamos tudo o que sofreu o mais delicado dos corações: os desprezos, as calúnias, as traições, os abandonos, as desistências. Todas as dores estão reunidas neste Coração e transbordam. Sentiu-as todas, a todas santificou. Nas nossas dores, por mais extremas que sejam, tenhamos confiança na simpatia e na compaixão deste Coração, que quis assemelhar-se a nós no sofrimento, para ser mais compassivo e mais misericordioso (Heb 2, 17).

Comecemos nós mesmos lamentar este amor que não é amado e por compadecer com as suas dores.

Resoluções. – A abertura do Coração de Jesus recorda-nos o seu amor, a sua bondade, o seu sofrimento. Ele espera de mim o amor em troca, a gratidão, a compaixão. Eis­ me aqui, Senhor, para viver convosco e em Vós. Não permitais que eu jamais me separa de vós e que vos esqueça.

(Leão Dehon, OSP)

6ª-feira da Paixão

Isaias 52,13-53,12

A segunda parte do Livro do Profeta Isaias (Deutero-Isaias, Capítulos 40-55), se dedica ao trabalho da escola de profetas seguidores de Isaias, junto ao povo que havia sido levado para sua segunda temporada de escravidão da Babilônia.

A tarefa do profeta era ajudar o Povo redescobrir a sua identidade, levantar a cabeça, identificar a presença do Deus Criador, Libertador e Salvador no meio da vida arrasada deles, e percorrer o caminho de volta. Os quatro Cânticos tem o papel de identificar o Servo, que ao mesmo tempo é um alguém (Isaias ou Jeremias?) e o próprio povo sofrido, o resto fiel, o anawin, o povo oprimido.

O Deutero-Isaias mostra que este povo não é um povo abandonado e esquecido, mas por causa da sua maneira de viver “Não gritará, não clamará, não fará discursos nas ruas. ... Com toda a dedicação, ele anunciará a minha vontade. Não se cansará, nem desanimará até que todos aceitem a minha vontade”. (1º Cantico) é o escolhido por Deus com a missão de libertar e levar de volta para a casa do Pai não somente o seu grupo mas todas as nações. São preparados, ensinados e acompanhado por Deus (Cânticos 1, 2, e 3).

O 4º Cântico é o Cântico da virada em favor do servo, resultado não da derrota do opressor – aquele que causou a perda de identidade, a fome, o sofrimento, a escravidão -, mas da sua conversão motivado pela fidelidade do Servo, aquele que recusou desviar o rosto até o fim.

Este Cântico é a primeira leitura da Liturgia de Sexta-feira da Paixão, e a leitura do Evangelho é a Paixão e Morte de Jesus. Com isso o servo não é mais um alguém ou um povo, agora é Jesus, a encarnação dessa fidelidade até a morte. Com isso Jesus transforma a Cruz e a morte, que até então eram sinais de derrota e fracasso, em Vida Nova e Vitoria.

No 4o Cântico temos várias personagens – Javé, o profeta e os causadores do sofrimento do povo. Quem abre e fecha o Cântico é Javé. Depois a intervenção do profeta, e diante da resistência calada do Servo os responsáveis pelo sofrimento toma a palavra. O Cântico termina com a palavra do profeta e de Javé.

Costumamos colocar as palavras dos responsáveis pelo sofrimento e não-vida do povo na boca do próprio povo, que apenas serve para aumentar o sofrimento do servo. É a leitura que os grandes sempre fizeram para nós, a leitura que joga a culpe do sofrimento na s costas do sofredor. As cores talvez possam ajudar.

A divisão do Cântico:

52.13 - O Senhor fala.

52.14-15, - O profeta fala.

53.1-9 - As nações falam.

53.10 - 0 profeta fala.

53.11-12 - O Senhor fala.

O Cântico

52, 13 O SENHOR Deus diz: “Tudo o que o meu servo fizer dará certo; ele será louvado e receberá muitas homenagens.

14 Muitos ficaram horrorizados quando o viram, pois ele estava tão desfigurado, que nem parecia um ser humano.

15 Mas agora muitos povos ficarão admirados quando o virem, e muitos reis não saberão o que dizer. Pois verão coisas de que ninguém havia falado, entenderão aquilo

53 1 O povo diz: “Quem poderia crer naquilo que acabamos de ouvir? Quem diria que o SENHOR estava agindo?

2 Pois o SENHOR quis que o seu servo aparecesse como uma plantinha que brota e vai crescendo em terra seca. Ele não era bonito nem simpático, nem tinha nenhuma beleza que chamasse a nossa atenção ou que nos agradasse.

3 Ele foi rejeitado e desprezado por todos; ele suportou dores e sofrimentos sem fim. Era como alguém que não queremos ver; nós nem mesmo olhávamos para ele e o desprezávamos.

4 “No entanto, era o nosso sofrimento que ele estava carregando, era a nossa dor que ele estava suportando. E nós pensávamos que era por causa das suas próprias culpas que Deus o estava castigando, que Deus o estava maltratando e ferindo.

5 Porém ele estava sofrendo por causa dos nossos pecados, estava sendo castigado por causa das nossas maldades. Nós somos curados pelo castigo que ele sofreu, somos sarados pelos ferimentos que ele recebeu.

6 Todos nós éramos como ovelhas que se haviam perdido; cada um de nós seguia o seu próprio caminho. Mas o SENHOR castigou o seu servo; fez com que ele sofresse o castigo que nós merecíamos.

7 “Ele foi maltratado, mas agüentou tudo humildemente e não disse uma só palavra. Ficou calado como um cordeiro que vai ser morto, como uma ovelha quando cortam a sua lã.

8 Foi preso, condenado e levado para ser morto, e ninguém se importou com o que ia acontecer com ele. Ele foi expulso do mundo dos vivos, foi morto por causa dos pecados do nosso povo.

9 Foi enterrado ao lado de criminosos, foi sepultado com os ricos, embora nunca tivesse cometido crime nenhum, nem tivesse dito uma só mentira. ”

10 O SENHOR Deus diz: “Eu quis maltratá-lo, quis fazê-lo sofrer. Ele ofereceu a sua vida como sacrifício para tirar pecados e por isso terá uma vida longa e verá os seus descendentes. Ele fará com que o meu plano dê certo.

11 Depois de tanto sofrimento, ele será feliz; por causa da sua dedicação, ele ficará completamente satisfeito. O meu servo não tem pecado, mas ele sofrerá o castigo que muitos merecem, e assim os pecados deles serão perdoados.

12 Por isso, eu lhe darei um lugar de honra; ele receberá a sua recompensa junto com os grandes e os poderosos. Pois ele deu a sua própria vida e foi tratado como se fosse um criminoso. Ele levou a culpa dos pecados de muitos e orou pedindo que eles fossem perdoados. ”

Conversão do opressor.

A grande virada neste Cântico visionário, profético e escatológico, é a conversão do opressor. O 4o Cântico é uma escada com cinco degraus do processo de conversão daqueles que causavam a opressão:

1. Antes da conversão - Is 53.1-3

2. Início da conversão — Is 53.4-6

3. Aprofundamento da conversão — Is 53.7-9

4. A conversão se expressa — Is 53.10

5. Deus confirma a prece — Is 53.11-12

Quando o povo se separa de Deus e segue seus próprios caminhos, brota a situação onde é necessário voltar a reorientar-se pela palavra do Senhor. Portanto, a intenção dos Quatro Cânticos é levar o Povo de Deus, a Comunidade e cada um de nós, a uma reflexão sobre a vida, o mundo, a guerra, a fome, o desemprego e o abandono de refugiados, crianças e idosos, e a maneira de ser fiel a Javé. A Comunidade de Deus quer ser a Serva de Deus, ou seja, quer atuar e servir ao Reino de Deus.

Este anúncio nos Quatro Cânticos está carregado de coragem e ânimo para o povo sofredor, difamada por aqueles que acham que os cristãos não têm nada a ver com os problemas desta vida: sem-terra, sem-teto, sem-salário, sem-saúde, sem-emprego, sem-dignidade, sem-respeito, sem-direitos. Vítimas de guerras eda ganancia de apenas uns poucos.

O Quarto Cântico é uma profecia. Fala do futuro que ainda não chegou, mas fala como se já tivesse chegado. Nele se descreve o resultado da missão do Servo, que orientou toda a sua luta, desde o primeiro passo.

Por isso, Sexta-Feira Santa é uma celebração de fé e com fé nos acontecimentos do Antigo e do Novo Testamento, e ao mesmo tempo é um desafio para deixar a nosso vida ser guidão pelo Servo de Deus, Jesus, e se ela precisar ser também Servo de Deus neste mundo. Jesus passa a ser o caminho por onde a Comunidade passa. Jesus sofre a ação dos opressores do seu tempo, mas não se deixou ser dominado por eles.

Sexta-Feira Santa chama a nossa atenção não só para a violência e a prepotência dos opressores, mas principalmente para a atitude de Jesus na cruz: ao sentir-se abandonado “meu Deus, meu Deus, porquê me abandonastes” teve a confiança para dizer, “em tuas mãos entrego o meu espirito”. E ao olhar para seus assassinos teve a humanidade-divina de poder dizer: perdoai–lhes ó Pai, eles não sabem o que estão fazendo. Estas duas atitudes de Jesus na cruz são pistas para a vida cristã hoje. Pois, ser fiel ao Pai até o último respiro, e poder perdoar quem está acabando com a vida em todos os seus níveis é o caminho que fé em Javé exige para a libertação deste nosso mundo marcado pelo pecado.

Confiar em Deus — abandonar-se nas mãos de Deus — foi a exigência feito por Javé em Ur dos Caldeus, durante a escravidão do Egito, no deserto a caminho da Libertação, na Terra Prometida, na Babilônia, nos primeiros tempos da era Cristã. E continua sendo o desafio lançado para nós em tempos da destruição da natureza, guerras entre povos, e desrespeito generalizado para tudo e todos. Ao invés de confiar na força, na violência, na bomba ou na prepotência, fé em Deus significa olhar para a cruz e tudo que morrer crucificado significava, e continua significando. Significa olhar também para quem estava pregado nela e o que estava defendendo aquela sexta-feira de lua cheia 2000 anos atrás.

Os cinco degraus do processo de conversão podem nos ajudar a pensar:

l - Antes da Conversão — Is 53.2-3.

Desprezo pelo fraco e impotente, e fazê-lo sentir culpado pela situação em que se encontra.

2- Início da Conversão — Is 53.4-6.

É quando se começa a perceber que o pobre, na realidade, é um empobrecido. Que tem algo e alguém por detrás. Ao perceber uma relação direta entre o que alguns tem e o que a grande maioria não tem, inicia-se o processo de mudança.

3 -Aprofundamento da Conversão — Is 53.7-9.

Os detentores dos bens e dos recursos do mundo passar a perceber, sentir, e ser incomodado pela paciência, resistência e a não violência do povo sofrido – seguindo o exemplo do Servo e de Jesus. Eles começam a ter consciência, e sentir os abusos sofridos pelos pobres.

4 - A Conversão se expressa — Is 53.10

“Ele ofereceu a sua vida como sacrifício para tirar pecados e por isso terá uma vida longa e verá os seus descendentes”. Quem foi, direta ou indiretamente responsável pelo sofrimento e não-vida do povo sofrido (do Servo), começa a reconhecer que não é o crucificado que é o responsável pela situação. A partir desse momento começa a brotar a nova realidade, a nova sociedade, sem opressor e oprimido, uma sociedade de irmãos e irmãs. Aquela sociedade retratada nos Capítulos 2 e 4 do Livro dos Atos dos Apóstolos; o Novo Céu e a Nova Terra do Livro do Apocalipse. A visão de Isaias no Capitulo 65 do seu livro “As coisas antigas nunca mais serão lembradas, nunca mais voltarão ao pensamento” (v17).

5 - Deus confirma a prece — Is 53.11-12

Deus confirma que o seu Servo deu a sua própria vida e foi tratado como se fosse um criminoso, levando a culpa dos erros de muitos e pediu que eles fossem perdoados. A vitória será do Servo, dos pobres, que apesar de serem esmagados foram fieis até o fim.

E fica a pergunta: quando que isto vai acontecer? Mas que vai acontecer vai, e quem garante isso é o próprio Javé. “Os meus pensamentos e as minhas ações estão muito acima dos seus. A chuva e a neve caem do céu e não voltam até regar a terra, fazendo as plantas brotarem, crescerem e produzirem sementes para darem alimento para as pessoas. Assim também é a minha palavra: ela não volta para mim sem nada, mas realiza tudo o que eu prometo”. (Is 55,9-11).