BOLETIM 111-2002

BOLETIM AS FRATERNIDADES Nº 111 – JUNHO 2002

 (Os dois artigos "Graças a eles" estão postados no boletim 212)

Da redação

 

Caros leitores, amigos e irmãos da Fraternidade.

 

2002 é o ano do cinquentenário da Fraternidade Sacerdotal. Celebrando a data, o Courrier des Fraternités, edição internacional, publicou um suplemento do nº 171 intitulado “50 anos da Fraternidade Sacerdotal”. Belo texto, rico e denso. Neste número do nosso Boletim, edição brasileira, você poderá ler alguns pensamentos do nosso responsável geral, Mariano Puga, que muitos conheceram no último retiro. Esses pensamentos fazem a introdução do texto comemorativo, que é seguida de sete “dossiers”. 

Henri Le Masne, com Michel de la Villeon, redigiu os “dossiers” 2 e 3. O primeiro trata das origens e evoluções da Fraternidade. O segundo, que tem como título “Graças a eles”, apresenta de forma muito viva e pessoal, os primeiros que iniciaram e marcaram a Fraternidade com sua personalidade. Isto é um fato constatável: a Fraternidade não são idéias ou instituições. A Fraternidade é a vida dos padres. É a vida concreta de muitos de nossos irmãos que nos estimula e incentiva na caminhada. Lendo os relatos de Le Masne sobre Gabriel Isaac, René Voillaume, o “Vieux Frère” Pierre Cimetière, Guy Riobé, o Bispo de Orléans, Baba Simon, dos Camarões, Pierre Loubier, a gente se sente muito bem acompanhado. A leitura dos breves relatos da vida destes nossos irmãos da primeira hora renova o entusiasmo não pela Fraternidade, mas por nosso ministério e, consequentemente, pela Fraternidade. 

          Neste Boletim apresentamos apenas as figuras de Gabriel Isaac e René Voillaume. Os outros serão apresentamos nos números seguintes. Lendo os relatos de Henri Le Masne percebe-se também muito da personalidade entusiasta desse irmão também ele da primeira hora. Henri esteve no Brasil no ano passado por ocasião da Assembléia internacional da Fraternidade secular. 

Esperamos poder recuperar também um pouco de nossa história com as “colunas” da primeira hora que ainda estão entre nós: Rui Coutinho do Pará e Waldyr Calheiros, bispo emérito de Volta Redonda. O terceiro já está na glória do Pai e foi Hélio Campos, bispo de Viana no Maranhão. Hélio e Rui participaram da primeira Assembléia geral de Taybeh. 

Temos também uma interessante contribuição de nosso irmão do Piauí, Henrique Geraldo. É um exemplo estimulante. 

          Boa leitura!

 

* * *

Mariano Puga Concha

 

1. Fraternidade sacerdotal vivida por padres diocesanos.

 

Aquele “que bate à porta de sua Igreja, nem fria nem quente, mas morna”, serve-se, entre outros, de seu discípulo e testemunha, Carlos de Foucauld, para suscitar irmãos em fraternidade:

- homens não satisfeitos,

- que buscam o Absoluto,

- irmãos de Jesus de Nazaré e de todos os seres humanos,

- dispostos a viver a gratuidade de Nazaré, dia a dia, passando pelo deserto árido e fértil de suas vidas,

- próximos dos trabalhadores, dos pobres e dos oprimidos, tornando-se seus irmãos,

- homens na encruzilhada do mundo do ecumenismo, do inter-religioso,

- irmãos padres que dão testemunho de uma Igreja pobre e servidora,

- homens seduzidos por Deus, contemplativos penetrados pela palavra de fé de alegre simplicidade,

- padres conscientes de sua fraqueza e de seus limites, que necessitam de um ombro amigo, do apoio mútuo de outros irmãos em fraternidades, nas quais se partilha o essencial de nossas vidas,

- padres trabalhados por nosso Bem-Amado irmão e Senhor Jesus para “gritarem o Evangelho através da própria vida”. 

 

Que a leitura da “história da Fraternidade” nos impulsione a reinventar sempre de novo as fraternidades pela força do Espírito para um serviço melhor à Igreja.

 

* * *

 

Henri Le Masne e Michel de la Villeon

 

2. ORIGEM E EVOLUÇÃO DA FRA

TERNIDADE SACERDOTAL JESUS+CARITAS

 

Para resumir a história que vivi dos inícios da Fraternidade Jesus+Caritas, estou convencido de que caminhei “cercado por uma nuvem de testemunhas” (Hb 11,1). De fato, seu nascimento e seu desenvolvimento não foram obra de uma só pessoa, mesmo tendo o Padre Voillaume desempenhado importante papel ao tomar, no início, a iniciativa de nos reunir, permanecendo guardião de nossa fidelidade à mensagem de Carlos de Foucauld. “A Fraternidade tomou corpo colegialmente” (Gabriel Isaac). 

 

1.- A “Pré-União”.

 

Alguns padres procuravam juntos como viver a mensagem de Carlos de Foucauld no clero diocesano. Sobretudo Gabriel Isaac. É em seu itinerário pessoal que se enraíza a intuição do começo da Fraternidade Sacerdotal. 

No Seminário Maior de Issy-les-Molineaux, desde 1927, Gabriel está em contato com René Voillaume e os que formarão a primeira equipe dos Irmãozinhos de Jesus. Alimenta-se da Vida de Carlos de Foucauld, livro escrito por René Bazin, dos Escritos Espirituais e do Diretório, este último um texto importante por ter sido trabalhado pelo Irmão Carlos quase até sua morte. Participa dos dois retiros que, em 1932 e 1933 preparam a fundação dos Irmãozinhos. Sente grade atração pela vida religiosa. 

Logo, porém, tem a intuição de ser chamado a ser discípulo de Carlos de Foucauld como padre diocesano e não como Irmãozinho. 

Desde o início, Gabriel participa da vida da “Associação Carlos de Foucauld” que reúne todos os discípulos do Irmão Carlos. Entre os membros da Associação, há alguns padres. Começam a se reunir buscando viver uma fidelidade maior à mensagem evangélica do Irmão Carlos de Jesus e, ao mesmo tempo, à sua vocação de padres diocesanos: À mensagem evangélica de Carlos de Foucauld, pela importância dada à oração em Nazaré: as virtudes ocultas; às duas fontes vivas: a Eucaristia e o Evangelho; a um estilo de apostolado: bondade, amizade; à preferência pelos mais pobres, à fraternidade universal. À sua vocação de padres diocesanos, pela união com o Bispo, sem obrigações de obediência na Fraternidade; pela prioridade às reuniões diocesanas em relação aos encontros de fraternidade. 

A preocupação pela missão tem um grande espaço. Alguns pedem para trabalhar num meio bem popular com outro estilo de vida: trabalho manual, habitação, para estarem mais perto das pessoas, com relacionamentos simples e partilha de amizade. 

O grupo começa a se organizar e se dá o nome de ”União dos irmãos do Sagrado Coração de Jesus”. Permanece estreitamente unido com os Irmãozinhos, comprometendo-se a um dia mensal de retiro numa de suas fraternidades, se possível. Mas, quer ser antes de tudo “um espírito e uma amizade”.

É nesta época que o Padre Voillaume começa a aparecer, colaborando conosco diversas vezes entre 1948 e 1951. Tinha uma tríplice preocupação:

          - responder ao pedido dos jovens atraídos pelos Irmãozinhos, mas com o desejo de levar uma vida apostólica ativa.

          - responder à caminhada de muitos padres que batiam à porta da Fraternidade dos Irmãozinhos de Jesus.

          - assegurar o estabelecimento dos Irmãozinhos onde estiverem surgindo comunidades cristãs. Como no norte dos Camarões, pedindo missionários ativos no mesmo espírito. 

Em junho de 1951, o Padre Voillaume redige uma nota sobre um ramo dos Irmãozinhos para padres de ministério. Trata-se de um Instituto Secular e não de uma congregação religiosa, para padres diocesanos, mas é de fato um ramo dos Irmãozinhos, e o superior é o Prior. 

Em setembro de 1951, uma etapa decisiva será vencida. O Padre Voillaume nos convida a participar de um retiro que vai pregar às Irmãzinhas, no Tubet, perto de Marselha. Nesta ocasião tivemos a oportunidade de nos encontrar diversas vezes com ele e com Monsenhor de Provenchères, arcebispo de Aix-em-Provence, que acompanhava o conjunto dos grupos da Família Carlos de Foucauld. Um padre, Pierre Cimetière, que veio assistir à profissão de uma de suas sobrinhas, se junta a nós. Foi um amor à primeira vista, e para a União nascente, uma grande oportunidade de se enraizar ainda mais no clero diocesano. Ele dirá que descobriu em Carlos de Foucauld: 

 

“Aquele que será talvez o santo típico de nossa época, tão presente a Deus e ao mesmo tempo aos homens, tão sedento de contemplação e ao mesmo tempo irmão universal, com um ardente amor por Jesus a ser levado aos mais pobres, aos mais afastados. Não foi isso que nos seduziu nele, porque era isso que angustiava nosso espírito e nosso coração?”

 

II.- “A União dos Irmãos de Jesus”.

 

Em Mombard, Costa d´Ouro, Departamento cuja capital é Dijon, novo encontro em março de 1952. O grupo toma agora o nome de “União dos Irmãos de Jesus”, escolhe um responsável, Pierre Cimetière, e organiza estatutos, bem na linha do Irmão Carlos. Leigos consagrados são inteiramente membros da União. Infelizmente, seu pequeno número em relação aos padres amplamente majoritários, vai obrigá-los a se organizarem em grupo independente, que não durará muito. E a União se tornará “União Sacerdotal”. 

Em seguida, acontecem diversos encontros que possibilitarão precisar melhor os objetivos e o espírito da União. Abre-se um debate que durará anos sobre o “compromisso”, revelando uma tensão normal entre os que entraram na Fraternidade atraídos pela vida religiosa, por vezes monástica, e os que vinham primeiro a procura de uma vida fraterna entre padres para assumirem melhor sua missão. 

 

III. – Duas assembléias que fundam a União. 

 

          1) O primeiro Mês de Nazaré (Boquen, agosto de 1955)

 

Com a preocupação de não tirar os padres por muito tempo de seu ministério – na época, ainda não havia ano sabático – foi proposto um mês de formação àqueles que já tivessem caminhado numa fraternidade. Tratava-se menos de um grande retiro e mais de uma vida fraterna simples, partilhada na oração, no trabalho manual, na revisão de vida com um tempo de formação dado pelo Padre Voillaume. 

Éramos uns cinquenta padres numa abadia em ruínas, a abadia de Boquen, na Bretanha, que Dom Aléxis, uma figura! tentava refazer com alguns monges. As condições materiais eram rudimentares, não faltava trabalho - cozinha, reconstrução das ruínas, - mas o ambiente era magnífico, em plena natureza, a dez quilômetros de qualquer povoação. 

Foi para cada um de nós um tempo muito forte. Padre Voillaume fazia cada dia uma conferência, esforçando-se para adaptar a mensagem de Carlos de Foucauld. Não queríamos ser religiosos. Estava conosco Mons. De Provenchères, que nos acompanhava de perto desde o primeiro encontro de 1951, no Tubet. 

Um pequeno grupo fazia uma experiência paralela à nossa. Tornar-se-á a Fraternidade dos Irmãozinhos do Evangelho. Entre eles, um padre extraordinário, Philippe Dien, Reitor do Seminário Menor de Saigon. Uma amizade profunda nos unirá no decurso de seu itinerário que o levará ao arcebispado de Hué, encargo pesado que ele assumirá “entre sangue e lágrimas”, durante a guerra do Viet-Nam e depois. 

No fim do Mês, dezessete dos nossos fizeram seu primeiro compromisso, dizíamos “primeira consagração”. Este passo correspondia ao nosso desejo de viver a fundo o Absoluto de Deus e era necessário – pensávamos então – para fundar a União. 

Um momento importante será a eleição de Gui Riobé como responsável geral. Seu papel será capital na continuação do enraizamento da União no clero diocesano, na criação de um mínimo de estruturas e na constante abertura à Igreja universal. Guy fará inúmeras viagens na Europa, na África, na América do Norte e na América Latina. A primeira viagem foi de quatro meses. Essas viagens eram, por vezes,  muito exigentes para a sua saúde, mas possibilitaram-lhe o duro aprendizado da gratuidade: sentimento de não estar sendo esperado, acolhida fria de alguns bispos que tinham medo que seus padres deixassem o clero diocesano. Guy, porém, semeou a semente e a semente produziu frutos como se viu já na primeira assembleia internacional. 

 

          2) A primeira Assembleia internacional (Taybeh, na Palestina, em julho de 1962)

 

Foi o primeiro encontro verdadeiramente internacional: cinquenta padres de 18 nações: Europa, África Negra, Oriente Médio, Egito, América do Norte e América Latina. 

Esse grupo tão diversificado encontrou-se numa aldeia palestina, a Efraim do Evangelho, aonde, para escapar das autoridades que tinham decidido a sua morte, “Jesus se retirou” (Jo 11,54), região vizinha ao deserto, que foi o lugar ideal de nossos dias de deserto. 

Era um ambiente estranho para a maioria: moradia, alimentação, liturgia. A aldeia era totalmente cristã. Mas a acolhida dos moradores deixou todo mundo à vontade, tanto que, tendo chegado no dia em que um filho da terra celebrava a sua primeira missa, fomos convidados a participar da festa. Cinquenta convivas imprevistos não é um problema nesta sociedade. 

A vida fraterna era forte, sobretudo graças aos encontros diários em pequenas fraternidades, nas quais íamos nos conhecendo. Tive a chance de estar com Luigi Betazzi, atualmente Bispo de Ivrea, grande figura do episcopado italiano. 

Tivemos, no entanto, que descobrir que a Fraternidade Universal não surge feita. Houve tensões, e até mesmo uma crise, quando os franceses foram criticados por quererem impor seus modelos, seu vocabulário, como “revisão de vida”. Era preciso deixar os não-franceses pensarem e construir a União segundo seu próprio jeito. Esta crise nos colocou uns diante dos outros na verdade. Um homem desempenhou um papel essencial na solução da crise, Piere Cemitière, porque se mostrou muito próximo dos africanos, dos latino-americanos e de outros “estrangeiros”: sem ter viajado, ele mantinha contato epistolar com cada um, para quem ele era de fato o “Vieux Frère” (Velho Irmão).

Houve para mim momentos particularmente fortes, como a primeira palestra do Pe. Voillaume: “Vocês vieram até aqui a procura de Deus, caso contrário só lhes resta voltar para casa”. Os dias de deserto, a visita a alguns lugares santos, em particular lugares ortodoxos, graças a Vsevolod, sacerdote russo, - em Betânia participamos do enterro de uma monja ortodoxa – a consagração definitiva que fizemos em Jerusalém, a visita a Nazaré. 

Há também rostos dos quais não posso me esquecer, como Emile Biayenda, cheio de alegria, embora tivesse sofrido prisão e tortura em seu país. Foi arcebispo de Brazzaville e cardeal, e morreu assassinado; Simon M’Peqê, o Babá Simon, irradiando a sabedoria dos anciãos de sua África e que, embora pároco de uma grande paróquia, partiu como missionário para o norte dos Camarões. Duas faces entre outras nas quais se encontravam anciãos como Gabriel Isaac e jovens que estavam descobrindo a União, especialmente na América Latina. 

 

IV – Que evoluções?

 

Deste breve histórico dos inícios, pode-se tirar algumas evoluções? 

 

1) Nossa Fraternidade foi encontrando pouco a pouco o seu lugar na família espiritual originada da vida e da morte de Carlos de Foucauld. Isto aconteceu na tensão, às vezes difícil, mas finalmente fecunda, entre o chamado à perfeição evangélica, um pouco segundo o modelos da vida religiosa, e a fidelidade ao clero diocesano. 

Entre os que entraram na União nos primeiros anos havia o desejo de uma vida religiosa, até mesmo contemplativa: apelo interior, expansão dos Irmãozinhos e das Irmãzinhas. O próprio Pe. Voillaume tinha dificuldade, no início, em ver nosso grupo como plenamente diocesano. 

 

“Era o momento no qual Pio XII abria a possibilidade de um caminho de perfeição reconhecido aos leigos e aos padres, no mundo e com os meios do mundo, pelos institutos seculares. Muitos grupos evangélicos, já existentes ou em gestação, aspiravam por esse reconhecimento” (Gabriel Isaac, Origines et étapes, p. 64).

 

Mas, havia os padres que tinham procurado a União para nela encontrar os meios para uma fidelidade maior à sua missão pastoral e também uma vida fraterna, uma amizade entre padres, sem desejo de vida religiosa. 

Desde o início, foi afastado tudo o que pudesse nos separar do presbitério, como equipes de ministério, tempos longos de formação. Pierre Cimetière e mais ainda Guy Riobé com o peso de sua autoridade, garantiram o caráter plenamente diocesano da União. Durante alguns anos foi pedido o reconhecimento da União como Instituto secular, mas depois o pedido foi abandonado. 

Permanece, porém, inteira a exigência de perfeição evangélica. No lugar dos quadros da vida religiosa, há a fraternidade: “Tudo está na fraternidade”, dizia Pierre Cimetière. É o lugar onde se verifica a nossa fidelidade, graças à amizade de nossos irmãos, amizade compreensiva e ao mesmo tempo exigente. A revisão de vida deve ser o meio dessa verificação num clima de verdade e de transparência. 

 

2) É interessante notar uma evolução no papel do responsável de fraternidade. No início havia um relacionamento pessoal com cada um; era a ele que a gente entregava a revisão de vida por escrito. Era um pouco como um superior. Agora, sua responsabilidade consiste em fazer com que a fraternidade desempenhe bem seu papel em relação a cada um de seus membros e garantir sua fidelidade ao Evangelho. 

 

3) Uma outra evolução: o lugar de Carlos de Foucauld na Fraternidade Sacerdotal. É certo que esse lugar dentro do movimento espiritual que ele suscitou é humilde e discreto. Seu papel é de nos levar a Jesus, ao Evangelho, à Igreja. Quem transmitiu fielmente a mensagem do Pe. de Foucauld, em sua pureza e seu vigor, foi o Pe. Voillaume. Por isso, devemos sempre voltar às intuições do início:

          - Presença a Deus – presença ao povo.

          - Nazaré: vida simples, perto do povo, na amizade e na gratuidade.

          - Atenção privilegiada aos mais desprovidos.

Pode-se entrar na Fraternidade sem conhecer Carlos de Foucauld; penso, porém, que não se pode ficar na Fraternidade sem um esforço para estudar sua vida e seus escritos. Parece que tal estudo se torna sempre mais importante em nossa Fraternidade. 

 

4) O anúncio do Evangelho a quem ainda não o ouviu foi a paixão de Carlos de Foucauld:

 

“O sr. pergunta se estou disposto a ir para outro lugar além de Beni-Abbès para a extensão do santo Evangelho; para isso estou pronto a ir ao fim do mundo e a viver até o juízo final” (a Dom Guérin, 27.2.1903).

 

Na União dos primeiros anos os padres eram orientados – ao menos de coração – para aqueles dos quais a Igreja está longe, e muitos exerciam o ministério em meio muito popular ou entre imigrantes muçulmanos. 

Talvez tenhamos percebido mais a dimensão missionária da vocação de Carlos de Foucauld, enquanto, no início, éramos mais sensíveis aos aspectos contemplativos da adoração, do deserto. Fizemos de alguma maneira um caminho paralelo ao seu, como o mostram, no fim de sua vida, sua carta de maio de 1911 ao Pe. Antonin sobre o “monge missionário” e seus esforços para fundar a “União” – associação – e promover um laicato missionário tanto na França quanto nas “colônias” (cf. “Correspondência com Joseph Hours”).

          Ser da Fraternidade foi para muitos na Europa um elemento determinante na decisão de partir como “fidei donum” ou de se consagrar à missão na França como padres operários ou numa vida mais próxima dos imigrantes magrebinos. 

Haveria outras evoluções a serem destacadas, sobretudo no campo da missão. Que nossa Fraternidade possa estar sempre em busca na Igreja, respondendo às necessidades deste mundo ao qual o Senhor nos enviar para levar sua Boa Notícia. 

 

* * *

 Henri Le Masne

 3-COMUNICADOS

3.1 “TERRA SEM MALES”

 

A difícil união entre “fé e vida” ficou evidente, para mim, por ocasião da Campanha da Fraternidade deste ano, com toda a sua inspiração sobre a real idade dos povos indígenas. Tivemos que refletir sobre um passado pouco conhecido, pelo qual nós mesmos não somos responsáveis. Ao mesmo tempo, tivemos de tirar conclusões, agora sob a nossa responsabilidade, em relação aos antigos donos deste país. Aqui no Piauí, eles foram eliminados sem deixar uma comunidade indígena sequer, nem tampouco um só território demarcado para a sobrevivência de alguns remanescentes ou assentamento de alguns ressurgidos.

Na nossa paróquia, procuramos sentir a ausência do índio na sociedade piauiense por ocasião do lava-pés da Quinta-Feira Santa, quando deixamos três vagas desocupadas no grupo dos doze. Não existem entre nós os que só pudemos lembrar através das fotografias dos cartazes. Então, esta Campanha da Fraternidade terminaria na declamação de saudades e de intenções teóricas?

A partir desta perplexidade, surgiu a idéia de fazer uma visita a uma comunidade indígena neste Brasil afora. Por intermédio do irmão da nossa Fraternidade, Pe. Gunter, de Rondonópolis, MT consegui a oportunidade para continuar a Campanha da Fraternidade. Pude passar dez dias na aldeia de “PIEBAGA” que, com outras duas aldeias, faz parte da reserva “Teresa Cristina”. Trata-se de uma área de 120.000 hectares, demarcada para os índios BORORO. Esta nação era uma das maiores do Brasil e hoje não tem mais de 1.150 indivíduos. Com cerca de 80 deles pude conviver durante estes dez dias.

A minha intenção era chegar não como turista que tira retratos e compra lembranças, nem como pesquisador e nem como missionário. Queria, antes, prestar uma homenagem a estes irmãos que trazem as feridas de um passado cruel. Por isso, são extremamente frágeis, também nos desafios do presente. Eu queria ter um pouco desta atenção silenciosa do Filho de Deus que, durante 30 anos, foi somente o filho do carpinteiro, na cidade de Nazaré. Eu levei um saquinho de terra de Simplício Mendes. Os índios passaram esta terra nas suas mãos dizendo: “é terra boa, mas ela sofre muita seca”. No fim, o cacique José Bocodoro (i.é. tatu-canastra) concedeu que eu levasse um pouco da terra da aldeia para mostrar ao povo do Piauí. Mas disse também: “a nossa terra, nós não dá, nem vende, nem empresta, nem dá licença para nenhum civilizado caçar ou pescar”.

Não é fácil transmitir a rica experiência que me foi proporcionada neste dias entre os Bororos. Eram observações nos contatos que, lentamente, deixei acontecer. E foram conhecimentos da história, da índole e da cultura dos Bororos através de uma literatura especializada cedida pelo Pe. Gunter. Muitos detalhes que li nos livros foram confirmados nas conversas com os índios.

Estou longe de afirmar que já conheça o suficiente sobre o assunto — ele é complexo demais para tirar conclusões precipitadas. Mas percebo que duas reflexões se impõem pelo que pude captar nestes dias.

Mais do que esperava, percebi a dificuldade dos índios para uma síntese entre a sua cultura particular e o mundo moderno do Brasil atual com todas as suas virtudes e vícios. Seria ingênuo isolar os povos indígenas em gigantescas áreas. Per mais que se respeite a tradição e cultura destes povos, não podemos protegê-los da atração dos elementos básicos da sociedade moderna, como por exemplo, a educação escolar e o uso do dinheiro. Parece, também, que nas próprias comunidades indígenas faltam lideranças para conduzir um processo harmonioso de adaptação tolerável. O problema dos índios, porém, não é outra coisa senão mais um sintoma do mal crônico da sociedade brasileira: a massa dos pobres que são desrespeitados, excluídos, iludidos e manipulados. Por isso, este assunto cabe numa Campanha da Fraternidade de toda a comunidade cristã deste país.

A segunda observação que faço, reconhecendo os meus poucos conhecimentos de uma realidade que não existe aqui no Piauí, diz respeito ao discurso evangelizador da Igreja no mundo indígena. Os índios que conheci são todos batizados, mas quase ninguém é crismado ou iniciado na eucaristia. Alguns têm a bíblia, mas não existe nenhuma catequese ou celebração comunitária. De tanto respeitar a cultura indígena, evita-se o anúncio direto e limita-se a um testemunho silencioso de solidariedade. As crenças dos índios correm o mesmo perigo das práticas cristãs: serem reduzidas ao folclore pela sociedade secularizada. Essas mesmas crenças, junto com a situação social dos índios, até favoreceriam a descoberta do Deus feito homem que liberta os seus filhos. A “terra sem males” não se encontra fora deste mundo. Ela é conquistada aqui com este Deus encarnado, pois “o Verbo também se fez índio”. 

Ao me despedir de Piebaga, tentei deixar uma palavra de animação para as duas pessoas brancas que vivem naquela aldeia: a freira e a enfermeira. Ambas andam bastante desanimadas diante das dificuldades e perspectivas limitadas, dos obstáculos e do pouco êxito dos seus esforços. A causa dos índios realmente anda bem devagar. O anel de tucum que o bororo João Jatugareu mesmo fez e me deu é, portanto, mais do que uma lembrança: é um apelo para ficar fiel ao lado dos irmãos pequenos de Jesus e unir sempre a fé e a vida. Toda a minha gratidão ao Pe. Gunter que me proporcionou estes dias de graça. 

 

3.2-DESPEDIDA DO PE. MÁRIO FILIPPI

 

Irmãos e Irmãs das Comunidades da Área Missionária São Francisco e de todo este imenso e querido Brasil!

Na impossibilidade de despedir-me pessoalmente de todos (as) e de cada um, desejo, através destas palavras, agradecer a todos, especialmente aqueles(as) que estiveram mais próximos ao longo da caminhada, oferecendo seu tempo, suas mãos, seu entusiasmo e seu carinho para construirmos juntos o Reino de Deus, tornando-se, por isso mesmo, mais companheiros e mais amigos. 

Estou retornando à Itália, à Diocese de Trento, que me formou, me ordenou padre, me enviou como missionário, e a qual pertenço como presbítero diocesano. Estou no Brasil a quase trina e seis anos e tenho muito que agradecer a Deus por isso: foi um dom extraordinário e precioso que o Senhor me fez, enviando-me a esta terra. 

Cheguei ao Brasil quando o Concílio Vaticano II concluía seus trabalhos. As Conferências Episcopais de Medellin e de Puebla, a atuação profética da CNBB, especialmente no tempo da ditadura militar, o testemunho de tantos leigos, padres, religiosas, bispos, fiéis ao Projeto de Deus até o martírio, a 

Teologia da libertação, a profética opção pelos pobres, a fé simples e verdadeira do povo, foi marcando fortemente e positivamente a minha vida. 

Devo muito a esta Igreja e sou-lhe muito grato. Como o Salmista posso cantar: “O cordel mediu para mim um lugar delicioso; sim, e minha herança é a mais bela” (Sl 16,6). 

A Palavra de Deus, anunciada e testemunhada por Jesus, nascido na estrebaria e morto na cruz, a situação dolorida de tantos pobres e excluídos, a posição firme e corajosa da Igreja questionaram fortemente a minha vida, exigindo uma resposta.

Achei que a presença que Deus estava pedindo de mim, era a de uma encarnação no meio dos pobres, vivendo, morando, trabalhando, sofrendo e lutando com eles. Foi por isso que, durante 21 anos, morei em favelas e invasões, no meio dos pobres; foi também por isso que, durante sete anos, trabalhei como operário na fábrica, desistindo dessa opção de vida só por causa de Dom Cardoso, Bispo do Recife, que não aceitou que eu trabalhasse na sua Diocese como padre operário. 

Tinha consciência de que, por quanto me esforçasse, nunca conseguiria ser de fato um pobre como o são os pobres. Mas assim mesmo assumi o desafio, porque esta opção foi assumida pelo próprio Jesus, Filho de Deus, que se fez em tudo igual a nós, menos o pecado (Fil. 2,5-8).

Creio que estes anos de vida e partilha no meio dos pobres, foram um grande dom de Deus, um dom maravilhoso e gratuito de sua ternura. Reconheço que o dom foi muito maior do que a minha capacidade de acolhida e resposta. Por isso, ao mesmo tempo em que agradeço ao Pai, me penitencio pelas covardias, incoerências e ambiguidades. 

Agradeço e abençoo a Igreja do Brasil pelo crescimento humano e espiritual que me proporcionou, e agradeço e abençoo igualmente a todos os que me acolheram, me ensinaram, me amaram, me desculparam e me perdoaram.

Envio um abraço saudoso aos primeiros irmãos e irmãs que me acolheram na paróquia de Ajuricaba, RS, quando ainda falava mal o português, e com os quais estreitei forte amizade, apesar de ter permanecido com eles somente três anos. Um abraço sincero aos irmãos e irmãs de Restinga Seca, RS. Aqueles nove anos que passei no meio deles foram fecundos e deixaram uma grande marca na minha vida. 

Saúdo carinhosamente os amigos e amigas de “Vila Matadouro”, no bairro Nossa Senhora do Trabalho, Santa Maria, RS. Durante sete anos compartilhamos alegrias e tristezas, dificuldades, lutas e esperanças. Anos cansativos, mas inesquecíveis. Deus abençoe esse povo sofrido, que fazia ponto no “Salão da Irmã Léa”. A todos os irmãos que encontrei por lá, meu abraço fraterno, amigo e agradecido. Quanta saudade!

Abraço fraternalmente o povo bom e amigo da Guabiraba e da Paróquia de Macaxeira, no Recife. Trabalhando com o Pe. Cláudio Dalbon, apesar das dificuldades com o Bispo, o trabalho foi abençoado pelo Senhor, e alegro-me pela bela amizade construída com muitos, e que permanece firme no tempo. 

Enfim, agradeço os amigos e as amigas da Área Missionária São Francisco, aqui, na periferia de Manaus. Quase doze anos se passaram, e vimos comunidades nascerem, crescerem e se tornarem adultas. Trabalhando com o incansável Pe. Luiz Guigliani e com o querido Pe. Cláudio, que se foi cedo demais, deixando uma imensa saudade em todos nós: anos de belas realizações e de amizades profundas, especialmente com os pobres, os pequenos, os mais afastados das Comunidades doa Bom Pastor e Santíssima Trindade.

Meus agradecimento é, enfim, para os Bispos: Dom Luís Victor Sartore, que me acolheu no Brasil, em Santa Maria, RS, Dom Ivo Lorcheiter, que me ajudou no discernimento e opção pelos pobres, Dom Clóvis Frainer, que me trouxe para Manaus, Dom Luiz Soares e Dom Mário Pasqualotto, atuais bispos de Manaus, e a todos os padres com os quais trabalhei: Pe. Galindo Cuel, Pe. Maurício Gottardi, Pe. Ézio Berteotti, Pe. Cláudio e Pe. Luiz. Agradecimento especial aos padres da Fraternidade Jesus Cáritas, aos demais presbíteros e Irmãos com quem levamos adiante o projeto de Deus. 

Não falo propriamente em despedida, pois é somente o corpo que se afasta: permanece a proximidade dos afetos e, especialmente, a fé no mesmo Senhor Jesus Cristo, o amor ao mesmo povo, a luta pelo mesmo ideal, a construção do mesmo projeto de Deus.

Como num grande mutirão, uns trabalham numa ponta e outros, na outra ponta, mas com o mesmo objetivo. Assim, estaremos todos trabalhando, embora distantes, pelo mesmo Reino de Deus. E, como acontece nos mutirões, na hora da merenda nos encontraremos todos em torno da mesma mesa, uns numa ponta e outros na outra, uma mesa tão comprida, que os que estão numa ponta, não conseguem enxergar os que estão sentados na outra ponta da mesa, mas todos nos alimentando da mesa da Palavra, do mesmo Pão, e cantando o mesmo canto. 

Gostaria de poder afirmar que me esforçarei para ser um bom pastor, que dá a vida pelo rebanho, Sem obscurecer a figura do único e verdadeiro Pastor Jesus Cristo” (Mensagem do 9 ENP, 13). Mas como estive longe deste ideal! Peço que me perdoem. Assim mesmo, nestes anos todos, muitos me ensinaram a ser gente e a ser padre. Não aprendi tudo: mas o que assimilei é bastante para que possa voltar à Itália fortalecido e continuar por lá a missão do Reino.

Nunca quebraremos os laços da amizade e da fé que nos unem. Permaneçamos firmes nos compromissos que assumimos, pois os abraçamos não por motivações humanas, e sim, por causa do nosso povo e de Jesus Cristo, que a todos nos abençoa: a Ele seja glória e louvor, com o Pai e o Espírito Santo. Pe. Mário Fillippi. 

 

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