PE. CELSO PEDRO-2001

Pe. Celso Pedro da Silva

2. RETIRO - 4 A 11 DE JANEIRO DE 2001

Piumhi – MG

Comentários á Carta do Cairo: meditações do retiro

Introdução

Nossos irmãos participantes da assembleia do Cairo introduzem sua mensagem a todos os membros da Fraternidade Sacerdotal citando a conhecida frase do Irmão Carlos, escrita ao abade trapista Dom Martin, em carta de sete de fevereiro de 1902: “Não temos o direito de ser sentinelas adormecidas, cães mudos, pastores indiferentes”.

O Diretório de 1976, n. 18, falando do povo no qual vivemos e com o qual convivemos, lembra que às vezes se fazem necessárias “tomadas de posição claras e públicas e até mesmo rupturas indispensáveis”. E cita então o pensamento do Irmão Carlos: Não sejais sentinelas adormecidas, cães mudos”. Trata-se, pois, de um pensamento já conhecido e assumido na Fraternidade Sacerdotal. Faz parte dos nossos objetivos não ser sentinela adormecida, cão mudo, pastor indiferente, ou, positivamente, na Fraternidade cada um de nós procura ser sentinela desperta, cão ruidoso, pastor comprometido.

Sentinela acordada, desperta, sentinela que não está dormindo ou não está sonolenta. A sentinela tem a função de vigiar, guardar, por isso deve estar atenta o tempo todo. No nosso caso, isso supõe 24 horas de doação. Devorados pelo Evangelho, não há pausa ministerial. Não somos “padres” na igreja-templo e fora dela o que as circunstâncias permitirem. Estamos o tempo todo disponíveis, a serviço. Parece cansativo, mas é a realidade daquele cujo coração vela enquanto dorme!

Cão ruidoso, ladrando para dar sinal, reagindo à presença indébita, por vezes mordendo. É lógico que não somos cães e qualquer comparação com seres irracionais é claudicante. Somos humanos, somos racionais, não reagimos pela violência do instinto. Compreendemos a comparação. Não pretendemos ficar quietos se for preciso falar. Interesses pessoais, interesses carreiristas não nos impedirão de dar o sinal quando a justiça estiver comprometida, quando a misericórdia for abandonada.

Pastor indiferente não se importa com a sorte do rebanho. Pastor comprometido está o tempo todo envolvido em ações concretas em favor de pessoas concretas e do conjunto da sociedade. Sua visão é larga, abrangente, envolvente. Suas ações são construtivas e criativas. Sua mente está concebendo constantemente e seu coração dá à luz projetos de vida. Marca presença, está, responde. Vive em função do rebanho. Pastor indiferente cuida de si mesmo e de seu prestígio, não duvidando sacrificar as ovelhas para salvaguardar seu lugar ao sol.

1. Missão e compromisso profético

1.1. A centralidade da pessoa humana

Diante do triunfo do capitalismo liberal e da lei do lucro máximo, devemos relembrar energicamente que é a pessoa humana quem deveria permanecer no centro de todas as decisões políticas ou econômicas, no absoluto respeito pela dignidade de cada ser humano.

A mensagem do Cairo começa por onde deveria começar: pela pessoa humana. Parece que não foi totalmente pacífica a decisão de iniciar a mensagem relembrando “energicamente que a pessoa humana deve ficar no centro de todas as decisões políticas ou econômicas, no respeito absoluto da dignidade de cada ser humano”, isto afirmado “diante do triunfo do capitalismo liberal e da lei do lucro máximo”. O fato, porém, é que assim começa a mensagem do Cairo.

Na Fraternidade, o ser humano ocupa o centro de todas as nossas atenções porque esta é a vontade de Deus. O Irmão Carlos medita o texto de Jo 4,34: “Meu alimento é fazer a vontade de meu Pai” e deseja que “este seja também o nosso alimento, nossa vida” (Oeuvres, 216).

Numa carta a Henri de Castries, de 14 de agosto de 1901, relembrando sua conversão, Irmão Carlos escreve: “Assim que acreditei que havia um Deus, compreendi que não podia fazer outra coisa a não ser viver para ele: minha vocação religiosa data da mesma hora que minha fé. Deus é tão grande! Há tanta diferença entre Deus e tudo o que não é Ele!”

É exatamente esta descoberta do absoluto de Deus que leva o Irmão Carlos a aprofundar sempre mais o sentido da solidariedade humana. É porque amamos a Deus sobre todas as coisas que amamos o irmão e a irmã como Jesus os amou! Não há contradição. “Aquele que guarda seus mandamentos, permanece em Deus e Deus nele”. E “este é o seu mandamento: crer no nome do seu Filho Jesus Cristo e amar-nos uns aos outros como ele nos deu o mandamento” (1Jo 3,24.23). É assim que saímos das trevas e entramos na luz de Deus: amando o irmão porque “aquele que diz que está na luz, mas odeia o seu irmão, está nas trevas até agora. O que ama o seu irmão permanece na luz e nele não há ocasião de queda. Mas o que odeia o seu irmão está nas trevas, caminha nas trevas e não sabe aonde vai, porque as trevas cegaram os seus olhos” (1Jo 2,9-11).

Meditando Mt 25,35, o Irmão Carlos diz, duas vezes seguidas: “Tudo o que fazemos ao próximo, é a Jesus mesmo que o fazemos”. E ele ainda nos diz: “É amando as pessoas que se aprende a amar a Deus. O meio para alcançar a caridade para com Deus, é praticá-la com as pessoas”. Todos nós conhecemos sua reação diante do relato do juízo final em Mateus 25: “Creio que não há uma frase do Evangelho que me tenha causado impressão mais profunda e tenha transformado mais minha vida do que esta: “Tudo o que fizerdes a um destes pequenos, a mim o fareis”. Se pensarmos que são palavras da Verdade Increada, da mesma boca que disse: “Isto é meu corpo... Isto é meu sangue”, com que força somos impulsionados a buscar e a amar Jesus nos pequenos, nos pecadores, nos pobres, oferecendo todos os meios materiais para aliviar suas misérias temporais”.

Na carta a Dom Martin de 7 de fevereiro de 1902, já citada, Irmão Carlos revela seu pensamento sobre a dignidade da pessoa humana e revela sua maneira de dizer o que pensa. Parece que Dom Martin, em carta, o havia aconselhado a evitar rebeliões e fugas de escravos e a consolar os escravizados com a esperança da libertação futura no céu. Irmão Carlos responde de maneira muito respeitosa, dizendo: “Obrigado pela resposta tão clara e completa sobre a escravidão. O que o Sr. diz é o que estou fazendo em relação aos escravos. Longe de pregar-lhes rebelião e fuga, digo-lhes: paciência e esperança. Deus permite vossas penas para o vosso arrependimento e vossa glória celeste. Orai a Deus e santificai-vos. A quem busca o reino de Deus, o resto se lhe dá por acréscimo. A escravidão do homem e a pátria terrestre passam depressa, como a vida. Pensai na escravidão de satanás e na pátria celeste”. Tais palavras do Irmão Carlos soam muito mal a nossos ouvidos latino-americanos, ao menos soavam até agora.

Mas, o Irmão Carlos continua e é na continuação que ele se revela. “Porém, dito isto, e tendo-os aliviado na medida do possível, parece-me que nossa obrigação não terminou. É preciso dizer, ou existir alguém a quem compete dizer: non licet, vae vobis, hypocritae, que pondes nos selos e em toda parte ‘liberdade, igualdade, fraternidade, direitos humanos”, e reforçais os grilhões dos escravos, condenais às galeras os que falsificam vossos bilhetes de banco, e permitis que as crianças sejam roubadas de seus pais e vendidas publicamente, que castigais o roubo de um frango e permitis o de um homem (de fato, nestas regiões, crianças nascidas livres são arrancadas violentamente e de repente de seus pais). É preciso, pois, amar o próximo como a si mesmo e fazer por estas pobres almas o que quiséramos que se fizesse conosco, impedir que não se perca nenhum dos que Deus nos confiou, e ele nos confia todas as almas de nosso território. Não devemos nos imiscuir no governo do temporal, ninguém está mais convencido disso do que eu, mas é preciso “amar a justiça e odiar a iniqüidade”, e quando o governo temporal comete uma grave injustiça contra aqueles dos quais, de alguma maneira, estamos encarregados (sou o único sacerdote da Prefeitura num raio de 300 kms), é preciso dizê-lo, pois nós representamos na terra a justiça e a verdade, e não temos direito de ser sentinelas adormecidas, cães mudos, pastores indiferentes.

Eu me pergunto, numa palavra, (estando de acordo, como estamos, a respeito da conduta a ser seguida com os escravos), se não é preciso levantar a voz, direta ou indiretamente para tornar conhecida na França esta injustiça e este roubo autorizado da escravidão em nossas regiões, e dizer ou fazer dizer: isto acabou, non licet. Avisei o Prefeito Apostólico. Talvez seja suficiente. Longe de mim o desejo de falar ou escrever, mas não quero trair meus filhos, não fazer o necessário por Jesus, vivo em seus membros; é Jesus quem está nesta dolorosa situação. “O que fazeis a um destes pequenos, a mim o fazeis”. Não quero ser mau pastor, cão mudo. Tenho medo de sacrificar Jesus a meu descanso e meu grande gosto pela tranqüilidade, à minha preguiça e timidez naturais”.

Irmão Carlos respeita a opinião dos outros e a acolhe no que ela tem de humanamente lógico, mas não fica nisso. Abre a perspectiva e leva às últimas conseqüências seu amor por Jesus, empenhando-se vivamente pela pessoa humana na situação em que se encontra.

Irmão Carlos acolhe a pessoa humana sem distinção. Ele a coloca verdadeiramente “no centro de todas as decisões”, sem nenhum tipo de rótulo. Nas Meditações sobre os salmos, de Roma 1896, meditando o salmo 81, ele percebe o amor de Deus para com os mais pobres e diz que Deus no-los recomenda, que sejamos para eles “pais, irmãos, filhos”, “sejamos seu consolo, seu refúgio, seu asilo, seu lar, sua casa paterna. Para o Irmão Carlos é essa a maneira de nos tornarmos efetivamente “pais, irmão e filhos de Jesus”. “Não nos preocupemos”, diz ele, “com aqueles a quem nada falta; ocupemo-nos com aqueles a quem falta tudo, em quem ninguém pensa. Sejamos os amigos dos que não têm amigos. Pensemos na chagas de Lázaro em vez de dar presentes ao rico, por bom que seja. Sejamos os pais, os irmãos, os filhos dos abandonados, dos deserdados, dos miseráveis, e seremos os pais, os irmãos e os filhos de Jesus.

Amemos os ricos porque também são filhos de Deus, mas não nos ocupemos com eles porque não precisam; preocupemo-nos com os pobres porque eles precisam de tudo e porque Jesus no-los legou não como irmãos e sim como Ele mesmo, de quem é preciso cuidar, a quem é preciso alimentar, vestir, consolar, santificar, salvar, em suma, amar. Eles são seus irmãos, nos diz, a família que Ele adotou, a que nos legou. Compete a nós ver se queremos aceita-la de suas mãos ou rechaçá-la.

Somos todos filhos do Altíssimo! Todos...

O mais pobre,

o mais repulsivo,

um recém-nascido,

um velho decrépito,

o ser humano menos inteligente,

o mais abjeto,

um idiota, um louco,

um pecador,

o maior pecador,

o mais ignorante,

o último dos últimos,

o que mais repugna, tanto física como moralmente,

é um filho de Deus

um filho do Altíssimo,

acompanhado de um Anjo da Guarda

resplandecente de beleza e de poder.

Como devemos valorizar todo ser humano, como devemos amá-lo!...

Estimemos, amemos do fundo do coração todo ser humano por Deus, nosso Pai comum”.

A mensagem do Cairo diz que a pessoa humana deve estar no centro. O amor do Irmão Carlos por Jesus e sua sensibilidade levam-no a assimilar até às últimas conseqüências as palavras do Senhor: “... foi a mim que o fizestes”. Jesus se identifica com o pequeno e sofredor, e assim também o Irmão Carlos. Haveria, porém, uma palavra do Senhor reveladora da centralidade da pessoa humana enquanto tal? Não por sua situação sócio-econômica, mas simplesmente por ser pessoa?

Parece que a discussão em torno do Sábado oferece uma resposta a esta questão. Lucas diz simplesmente que Jesus é senhor do Sábado (Lc 6,1-5); Mateus explica por que. Jesus é maior do que o Templo. Ora, maior do que o Templo é só Deus. Portanto, Jesus é senhor do Sábado por ser Deus (Mt 12,1-8). Marcos tem outro tipo de argumentação. Se o Sábado foi feito para o homem e não o homem para o Sábado, Jesus é senhor do sábado simplesmente por ser homem. Não é preciso apelar para a sua divindade. Conseqüentemente, todo homem, todo ser humano, é senhor do Sábado. Se o Sábado é sagrado, verdadeiramente sagrado aos olhos de Deus é o ser humano.

Na cura da mão atrofiada de um homem (Mc 3,1-6), logo após ter afirmado que o Filho do Homem é senhor do Sábado, Jesus pergunta se no Sábado é permitido fazer o bem ou fazer o mal, salvar a vida ou matar? Jesus repassa sobre os que estavam na sinagoga um olhar de indignação e se entristece pela dureza do coração deles. A indignação de Jesus mostra a seriedade da situação. O Sábado existe em favor da pessoa humana e está a serviço da pessoa humana. Sua tristeza pela dureza do coração deles lembra o profeta Ezequiel que contrapõe o coração de pedra, duro portanto, ao coração de carne, coração de gente. Jesus se entristece pela insensibilidade deles diante da pessoa humana.

Afinal, na profissão de nossa fé dizemos que foi “por causa de nós homens/mulheres e por nossa salvação” que ele “desceu do céu e se encarnou por obra do Espírito Santo”. A razão da encarnação é o ser humano. Os irmãos da assembléia do Cairo não podiam começar sua mensagem à toda a Fraternidade a não ser lembrando a centralidade da pessoa humana.

1.2. Uma opção de vida: promover os valores de partilha e solidariedade

No plano da justiça, há lances importantes tanto em nível local como internacional: devemos nos envolver e promover os valores da partilha e da solidariedade.

Nossa vida é feita de decisões. Desde que nos levantamos até o término de nossa jornada de trabalho passamos o dia tomando decisões e fazendo interpretações. Interpretações e decisões revelam a opção fundamental de nossa vida. A mensagem do Cairo fala de “laces importantes”. São as decisões que tomamos. Fala dos níveis tanto local como internacional, expressão abrangente para dizer em qualquer lugar. Restringe a questão ao plano da justiça. Sobre a justiça dirá mais adiante que “o compromisso com a justiça é inseparável do resto, se não nossa vida será manca como uma cadeira à qual falta uma perna”. Quando fala da “promoção dos valores de partilha e solidariedade” abre a “justiça” para o que a aperfeiçoa, ou seja, para a misericórdia ou a compaixão.

O Irmão Carlos procurava tomar suas decisões sempre em sintonia com a vontade de Deus. Para tanto sabia consultar, sobretudo o Pe. Huvelin, seu confessor. Comentando Jó 19,30, Irmão Carlos escreve entre outras coisas: “Não vim fazer minha vontade mas a daquele que me enviou. O mais perfeito para Jesus foi fazer em todo instante a vontade de Deus; o mais perfeito para nós é também fazer em todo momento a vontade de Deus”. E comentando Mt 26,36-46, falando do desejo da cruz, diz ele: “...não querer as coisas a não ser que sejam a vontade de Deus, na medida em que são a vontade de Deus e porque são a vontade de Deus”.

Nossas escolhas ou nossas decisões devem coincidir com a vontade Deus. O Evangelho de Mateus (7,21ss) é muito enérgico neste ponto quando diz que “nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino dos Céus, mas sim aquele que pratica a vontade de meu Pai que está nos céus”. Quem então entrará no Reino, seja qual for a concepção que se tenha de Reino? A resposta de Mateus é clara: entrará no Reino aquele que faz a vontade do Pai. Fazer a vontade do Pai não significa fazer coisas boas. Mateus continua dizendo que no dia do juízo haverá gente diante de Jesus afirmando ter feito milagres em nome dele. Fazer milagre em nome de Jesus parece ser uma coisa boa. Outro dirá que profetizou em nome de Jesus.

Independente do que possa significar “profetizar” parece estarmos também diante de alguma coisa boa. E há ainda quem expulsou demônios em nome de Jesus, uma prática bastante em voga até mesmo nos meios católicos. Fazer milagres, profetizar, expulsar demônios em nome de Jesus, só poder ser vontade de Deus. E, no entanto, Jesus dirá a toda essa gente: “Nunca vos conheci! Nem sei quem vocês são! Afastem-se de mim! O que vocês fazem é iniquidade, não é coisa boa, é má!” Inacreditável! Alguém que faça milagres em nome de Jesus pode não estar fazendo a vontade de Deus! Podemos discutir como é possível que um milagre se faça sem que Deus o queira, mas não é o caso. Basta concluir que fazer a vontade do Pai não é fazer qualquer coisa, mesmo boa.

Segundo as Escrituras, é preciso chegar a uma atitude espontânea de sintonia com a vontade de Deus, mesmo cometendo erros históricos. Há duas passagens paulinas que, lidas em conjunto, dão abertura ao tema. Em Rm 12,2 lemos a exortação: “Não se deixem esquematizar por este mundo (eôn), mas deixem-se metamorfosear pela renovação da mente, a fim de poderem discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, agradável e perfeito”. A conjunção final “a fim de que” indica o que se quer: discernir qual é a vontade de Deus. Não se trata apenas de ter critérios para um discernimento. Trata-se de discernir de forma espontânea, por força de hábito. É o que indica o verbo “discernir” (dokimázein, em grego).

Para isso, há dois caminhos. Um negativo: não assimilar o esquema do mundo, chamado “eôn”, que é a sociedade construída por nós mesmos naquilo que ela tem de negativo. Esta sociedade tem seus valores, seus princípios, seus critérios de interpretação que influem nas decisões. Ela sabe vender o seu produto, convence com facilidade, usa de embalagem “bela à vista e saborosa ao paladar”, como o fruto do paraíso. Com facilidade aceitamos o estilo mundano do eôn por ser ele convincente. Lembrem-se que no paraíso o fruto não era apenas belo ao olhar e saboroso ao paladar. Era também apto para o discernimento do bem e do mal. “Sereis como deuses”. Então, por que não?

No entanto, para se discernir espontaneamente qual é a vontade de Deus não se pode ter o estilo do mundo envolvente, ou, não podemos nos deixar esquematizar pelos contra-valores do esquema da sociedade de hoje. O outro caminho, o positivo, orienta-nos para uma metamorfose que se dá através da renovação da mente ou do espírito. A mente (nous) é a faculdade que nos permite perceber onde estamos, ajuda-nos a situar-nos. Como ela pode enlouquecer, a conseqüência seria não ter mais capacidade de discernimento. Para garantir essa capacidade, é preciso que o espírito se renove, seja de tal forma novo que não possa perder o rumo, ou enlouquecer. A renovação do espírito é obra gratuita do próprio Espírito.

O “nous” tem que transformar-se em Pnêuma. O que é movido pelo Espírito não erra. Seu fruto é o bom, o agradável e o perfeito aos olhos de Deus. O caminho positivo supõe que nos deixemos transformar, deixemos o Espírito agir, não coloquemos obstáculos a sua ação renovadora.

A reflexão se completa com a passagem de Fil 1,9-11. São Paulo reza pela comunidade dos filipenses. É uma comunidade pela qual Paulo demonstra um carinho especial. Foi lá que ele passou pela primeira provação, tendo sido açoitado e preso. Lá ele aceitou hospedar-se na casa de Lídia, a purpurária, que deu início à primeira comunidade cristã local. Dos filipenses Paulo aceitava ajuda financeira. Sua carta, ou seus bilhetes juntados num só escrito, têm a marca de Jesus e do Amor. Jesus+Cáritas é bem o resumo da carta aos filipenses. Por isso, quando dizemos que Paulo rezou por eles, estamos dizendo que ele deve ter pedido a Deus o que havia de melhor para essa comunidade de sua predileção. E Paulo pede que eles tenham a capacidade prática de discernir. Aqui ele não fala de discernir a vontade de Deus mas de discernir o que mais convém.

Esse discernimento levará os filipenses ao céu. Se os filipenses souberem exercitar o discernimento, sendo capazes de perceber em cada decisão a ser tomada o que mais convém, isto é, o que é bom, agradável e perfeito aos olhos de Deus, segundo a carta aos Romanos, no dia do juízo eles serão considerados puros e irrepreensíveis. Não serão puros por não terem manchas, nem irrepreensíveis por não terem cometido nenhum erro histórico. Serão tudo isso por terem tido a capacidade de discernir, em cada ato concreto, o que está de acordo com a vontade de Deus. Para isso é preciso que o Amor que está neles cresça. O Amor que está neles como dom é aquele de Rom 5,5: “O Amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado”.

Esse Amor deve crescer, expandir-se, manifestar-se. É o próprio Espírito, que informando o espírito, move os nossos passos para o rumo certo. O Amor cresce em conhecimento e sensibilidade, diz a carta aos filipenses. Em conhecimento, porque se torna conhecido. Você experimenta e conhece o Amor que está em você na medida em que ele se expande em sensibilidade. O ponto inicial é a sensibilidade: o coração de pedra substituído pelo coração de carne, segundo Ezequiel. O Espírito que é Amor se deixa ver na sensibilidade. Quando a mensagem do Cairo diz: devemos nos envolver e promover os valores de partilha e solidariedade”, está sugerindo atos de sensibilidade, expressos nas palavras partilha e solidariedade. Reconhecer os atos de solidariedade que acontecem em nosso meio, exercitar-se na solidariedade e ensinar os outros a serem solidários, três momentos da mesma sensibilidade que revela o Espírito.

Assim procedendo, conhecemos experimentalmente o Amor que impulsiona as nossas decisões. Decisões movidas pelo Amor levam-nos ao tribunal de Deus, puros e irrepreensíveis.

As decisões brotam do coração. Dele saem os projetos. A mensagem do Cairo nos propõe que o projeto fundamental de nossa vida seja a justiça misericordiosa ou a justiça compassiva.

“O compromisso com a justiça é inseparável do resto, se não nossa vida seria manca, como uma cadeira à qual faltasse uma perna”. E “No plano da justiça, há lances importantes tanto e, nível local como internacional: devemos nos envolver e promover os valores da partilha e da solidariedade.

1.3. Os pobres e sua causa

No dia a dia, nossas vidas devem poder testemunhar, como a de Jesus, nossa proximidade com os pobres e nosso compromisso na defesa de sua causa.

Se olharmos com atenção a seqüência dos textos litúrgicos da primeira parte do Tempo Comum deste ano C, veremos que é exatamente esse o projeto de Jesus ao vir a este mundo. Jesus veio com uma missão concreta a ser realizada e ele a anuncia no início de seu ministério na Sinagoga de Nazaré, de acordo com o relato de Lucas. Nós nos lembramos de como ele abriu o texto do profeta Isaías e leu: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção para anunciar a Boa Nova aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos cativos e aos cegos a recuperação da vista, para libertar os oprimidos e para proclamar um ano da graça do Senhor”. E acrescentou: “Hoje se cumpriu essa passagem da Escritura que acabastes de ouvir” (cf. Lc 4,14-21).

Trata-se de uma verdadeira proclamação do projeto de Jesus, à semelhança de Esdras que “apresentou o Ensinamento diante da assembléia de homens, mulheres e de todos os que eram capazes de compreender” (cf. Ne 8,2-10). Ungido pelo Espírito, Jesus vem para anunciar a Boa Notícia aos pobres, a libertação de todas as dominações, inaugurar o ano jubilar definitivo, e abrir os olhos de quem não enxerga para que veja o que está acontecendo.

Na seqüência seguinte, Lucas diz que “todos estavam admirados com as palavras cheias de encanto que saiam de sua boca”. Realmente, a proclamação do “projeto de Jesus” não tem nada de desagradável. É uma notícia boa para todos, pobres e não pobres. Dizer “eu vim para tirar os pobres da rua, dar emprego a todos, organizar a cidade, ter uma população estudada, alimentada, bem vestida, agradável e educada”, é uma notícia muito boa até para quem não é pobre. É muito bom não ter pobres sujos e inoportunos perambulando pelas ruas, à porta de nossa casa ou assaltando transeuntes. “Todos estavam admirados com as palavras cheias de encanto que saiam de sua boca”.

No entanto, de repente, o clima de encanto muda para um clima de raiva e furor.”Quando ouviram estas palavras de Jesus, todos na sinagoga ficaram furiosos. Levantaram-se e o expulsaram da cidade. Levaram-no até ao alto do monte sobre o qual a cidade estava construída, com a intenção de lançá-lo no precipício”. O que aconteceu? O que disse Jesus que mudou repentinamente os ânimos dos ouvintes até então benevolentes? À exigência de fazer milagres em Nazaré de preferência a Cafarnaum, num tipo de apropriação da pessoa do Senhor, Jesus lembra o profeta Elias que atendeu às necessidades de uma viúva pagã quando havia tantas viúvas em Israel, e o profeta Eliseu que curou a lepra de Naamã, o sírio, quando havia tantos leprosos em Israel.

Os exemplos rebatem apropriações e privilégios. No contexto da proclamação de seu projeto, Jesus está dizendo que a Boa Nova aos pobres e aos oprimidos está condicionada à renúncia aos privilégios. Os “privilegiados” desequilibram a sociedade, concentram os bens em suas mãos e multiplicam os deserdados. Se compreenderem - e, portanto, se converterem, - que não são donos do mundo e o mundo não foi feito só para eles, os outros terão voz e vez. Elias e Eliseu não eram propriedade exclusiva das viúvas e dos leprosos de Israel, assim como Nazaré não podia exigir milagres de Jesus. A conversão dos privilegiados é conversão para os pobres. Muda de direção e orienta-se na direção dos pobres.

A reação contra Jesus foi tão forte que quiseram matá-lo. Estavam de acordo que ele cuidasse dos pobres, mas não concordavam em deixar seus privilégios em benefício dos pobres. Apesar da reação, Jesus passou pelo meio deles e continuou o seu caminho, o que nos lembra a palavra de Deus a Jeremias: “Não tenhas medo, senão eu te farei tremer na presença deles... eles farão guerra contra ti, mas não prevalecerão, porque eu estou contigo para defender-te”(Cf. Jr 1,4-5.17-19).

Na terceira seqüência, forma-se a comunidade dos que aceitaram o projeto de Jesus em contraposição aos opositores da seqüência anterior, com uma diferença. Os opositores, que tentam matar Jesus, surgem numa explosão espontânea quando se sentem ameaçados em seus privilégios. Os colaboradores são chamados. “Quem enviarei? Quem irá por nós?” pergunta o Senhor, e Isaías responde: “Aqui estou! Envia-me”, não, porém, sem ter antes reconhecido a própria fragilidade (Cf. Is 6,1-8). O colaborador, disposto a trabalhar junto, não se arroga tal pretensão. Ele responde a um tipo de aceno de quem o chama, e vai temeroso. Pedro recebe ordem de “avançar para águas mais profundas” onde todos lançarão suas redes. Diante da pesca extraordinária, Pedro reconhece sua frágil condição de pecador, mas Jesus o chama. De pescador de peixes, ele passará a ser pescador de gente. Os pescadores “deixaram tudo e seguiram Jesus” (Cf. Lc 5,1-11).

Estes homens, e todos os demais, homens e mulheres que irão compor sua comunidade, destinam-se à pessoa humana. Os destinatários de todo o seu trabalho são as pessoas. Tudo o mais está a serviço da pessoa.

Diante da violenta reação de seus opositores na sinagoga de Nazaré, Jesus poderia voltar atrás, corrigir o que tinha dito, explicar-se melhor. Mas não o fez. Ao contrário, Jesus confirma seu projeto na quarta seqüência, no sermão das bem-aventuranças. Ele havia anunciado seu projeto na Sinagoga de Nazaré, expresso no texto de Isaías: “evangelizar os pobres, libertar os cativos...” No sermão, Jesus proclama bem-aventuradas três categorias universais: os pobres, os famintos e os aflitos; e uma categoria particular: seus fiéis, que por sua causa forem perseguidos. Em contrapartida, os ricos, os fartos, os tranquilos devem se cuidar. E os discípulos de Jesus, sempre elogiados, sempre bem com todos, peritos em fazer média, também devem cuidar-se. Pobres, famintos, aflitos, cristãos perseguidos são beatificados pelo próprio Cristo (Cf Lc 6,20-26).

O profeta Jeremias chama de “malditos” os que fazem “consistir a sua força na carne humana”, isto é, cujos critérios não são apenas humanos e sim mundanos. Ao contrário, são bem-aventurados os que confiam e esperam no Senhor (Cf. Jr 17,5-8). Mesmo se tal confiança e tal esperança não forem explícitas nos pobres, famintos e aflitos, o Senhor os vê como bem-aventurados.

Mais uma seqüência, a quinta, e estamos no núcleo central do projeto de Jesus: o amor. E aqui nos encontramos: Jesus+Cáritas. Tudo se reduz ao amor prático levado às suas últimas conseqüências, amor que chega até o inimigo enquanto tal, isto é, inimigo que continua sendo inimigo. Fazer o bem a quem nos odeia, bendizer quem nos amaldiçoa, rezar por que nos calunia. Estas atitudes só são possíveis numa pessoa verdadeiramente forte e livre. Não é propriedade da fraqueza. Oferecer a outra face a quem nos dá uma bofetada, deixar levar a túnica a quem nos tira o manto, é sinal de força criativa e não de fraqueza acomodada. Repetir o mesmo gesto já feito, com o qual não concordo, é repetir o conhecido.

Nada de novo é introduzido na história humana. Permanecemos no velho, no conhecido. Introduzimos um mecanismo de repetição que deteriora o relacionamento humano. A uma bofetada segue-se outra, e assim ao infinito. Quem poderá romper tal mecanismo gerador de violência? Somente aquele que for capaz de introduzir algo novo, rompendo este mecanismo. Somente o forte e criativo, capaz de um gesto contrário, novo, até então desconhecido é agente transformador da história. O que o move não é o espírito mundano da concorrência e das mútuas ameaças. É o Amor transformador que estabelece uma nova qualidade nos relacionamentos humanos. O núcleo central do projeto de Jesus é o seu Espírito Santo, o Amor (Cf. Lc 6,27-38). Davi teve uma oportunidade fora do comum de matar seu adversário, o rei Saul, e não o fez. Não fez com o inimigo o que o inimigo queria fazer com ele. Fez algo novo. A consideração de que Saul era o ungido do Senhor ajudou Davi em sua atitude, mas, de fato, ele se mostrou superior (Cf. 1Sm 26,2-23).

Por fim, a última seqüência da primeira parte do Tempo Comum, que corresponde ao VIII Domingo, conclui a temática do projeto de Jesus. Jesus veio para dar a Boa Nova aos pobres. Alguns se opuseram a este projeto e rejeitaram-no bem como a Jesus. Outros o aceitaram e quiseram colaborar com ele e transforma-lo em realidade. O projeto é retomado e confirmado por Jesus que anuncia: “Bem-aventurados os pobres”. Em última análise, tal projeto significa “amar” até as últimas conseqüências. Isto deve estar profundamente enraizado no coração daqueles que aderiram a Jesus, a ponto de se tornar sua opção fundamental de vida, o que, a partir do íntimo de seu coração impulsiona todas as suas ações. “O homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração. Mas o homem mau tira coisas más do seu mau tesouro, pois sua boca fala do que o coração está cheio” (cf. Lc 6,39-45).

O projeto anunciado pela boca de Jesus na Sinagoga de Nazaré brotou da bondade de seu coração. “A palavra mostra o coração do homem. Não elogies a ninguém, antes de ouvi-lo falar: pois é no falar que o homem se revela”(Cf. Eclo 27,5-8).

Daí a proposição da assembléia do Cairo: No dia a dia, nossas vidas devem testemunhar, como a de Jesus, nossa proximidade com os pobres e nosso compromisso na defesa de sua causa.

1.4. O Absoluto de Deus e o sentido da existência

Nas sociedades marcadas pelo materialismo ou pela secularização, como nossas Fraternidades podem ser um sinal que remete ao “Totalmente-Outro”, ou, mais simplesmente, ao sentido a ser dado à vida?

Conhecemos todos a sentença de Santo agostinho: “Irrequieto está o nosso coração enquanto não repousa em ti”. Os ventos nos impulsionam aos quatro cantos da terra. Somos levados de um lado para o outro. Atrações e distrações se multiplicam. A mente salta como um símio. Há certas coisas e certas pessoas que neste movimento contínuo de nossa existência – sinal de vida – possuem maior força de atração. A atração pode crescer a ponto de coisa e pessoa tomarem feições de “absoluto”. A noção de absoluto exige que seja um só. Tudo o mais é relativo. Quando o relativo assume feições de absoluto, será sempre um “falso absoluto”. “Que nossos corações estejam fixos onde estão as verdadeiras alegrias”, rezamos na liturgia. “Ouve, Israel, o Senhor é nosso Deus, o Senhor é Um. E amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração...”. Ele é o único Absoluto. Para Ele orienta-se o eixo central de nossa vida. Em torno e ao redor, tudo é relativo.

Se cada coisa está em seu devido lugar e os relacionamentos fluem de forma harmoniosa. A vida tem sentido. Os objetos materiais estão em seu lugar e têm o valor que devem ter. Não ocupam espaço no eixo central. Este eixo é reservado a Deus, o único Absoluto, e aos seres inteligentes, puros espíritos ou dotados de corpo. É normal que os outros ocupem lugar no eixo central entre minha pessoa e Deus, porque são um outro eu. Daí a facilidade com que se absolutizam. Meu relacionamento com Deus passa pelas criaturas; não pode, porém, parar nas criaturas. Isto seria absolutizá-las. “Só tu és o Santo, só tu, o Senhor, só tu, o Altíssimo”. Equilíbrio e tranqüilidade são sinais do Totalmente-Outro. Talvez por isso São João Crisóstomo, patriarca de Constantinopla, se equivocava ao queixar-se dos monges que atendiam a qualquer solicitação desde que sua tranqüilidade não fosse perturbada.

No Diretório dos Irmãos e Irmãs do Sagrado Coração, Art. XX, Irmão Carlos se expande em considerações sobre o Absoluto de Deus:

“‘Ama teu Deus de todo teu coração, de toda tua alma, de todo teu espírito e com todas as tuas forças. Ama teu próximo como a ti mesmo’. Compreendamos a diferença infinita que há entre o Criador e a criatura. Amemos a todas as pessoas como Jesus as amou, querendo-lhes tanto bem quanto ele, fazendo-lhes todo o bem ao nosso alcance, devotando-nos à sua salvação, prontos a dar nosso sangue para a salvação de cada uma delas; amemo-las em vista de Deus, tanto quanto ele o quer, como ele quer, não por nós nem por elas, mas por Ele; nosso amor por elas não será diminuído, mas incomparavelmente aumentado, exaurindo nesta fonte da vontade divina uma força, uma estabilidade, um devotamento, um ardor que o amor puramente humano não tem, e que estão unicamente nos corações que, deixando Jesus viver neles, amam por Jesus e não por si mesmos.

Façamos, pois, em nossos sentimentos para com o próximo e nossas relações com ele, que Deus passe à frente de tudo, tendo em vista somente a Deus em nossos afetos, nossos pensamentos, nossas palavras, nossas ações, em tudo procurando uma única coisa, ser e fazer o que é mais agradável a Deus. Que Deus seja verdadeiramente o único mestre de nossos corações, de nossos pensamentos, de nossas palavras, de nossas ações, como é direito seu, ele, o único que “é”, ele, em cuja comparação tudo é como um nada, pois ele tirou tudo do nada e pode fazer voltar ao nada. “Tudo é nada diante de Deus”, diz a Sagrada Escritura. “Será sempre fraco e encurvado para a terra quem aprecia alguma coisa fora do único, do imenso, do eterno bem”, diz a Imitação de Cristo...”.

Nosso coração se tranquiliza e nossa vida recobra o sentido quando o único absoluto de nossa vida é Deus.

2. Abertuta às outras culturas

2.1. Universalidade inculturada

A hora é a da mundialização, que não tem somente lados positivos, mas nos lembra que devemos viver mais a universalidade, sendo menos fechados em nós mesmos e valorizando outras imagens da Fraternidade que não sejam somente ocidentais. Pelo esforço de inculturação, as fraternidades devem encontrar um novo rosto em sua própria cultura, na África, na Ásia, na América Latina.

Vivemos num país de dimensões continentais, falamos a mesma língua, temos as mesmas marcas culturais. O outro, como cultura, como nação, é um ser distante. Os grandes centros conhecem estrangeiros. É raro, porém, ouvir línguas estrangeiras. Há um certo pudor em se falar outra língua entre nós. No entanto, participamos de uma forma ou de outra da globalização, da mundialização, de um mundo sem fronteiras. No campo econômico, não há dúvida. No campo cultural, percebemos menos, a não ser pelas influências norte-americanas no cinema e na música. De fato, nós somos nós mesmos. Não há vizinho estrangeiro falando outra língua. Onde estão as fronteiras e onde estão os outros países? Isso talvez nos faça pensar, também enquanto Igreja, que somos um pouco únicos. O melhor país, o mais belo, um dos maiores, o melhor povo, uma Igreja ativa, uma ação transformadora, liturgia participada.

Às vezes pensamos que os outros não têm a inserção social que nós conhecemos, ou uma leitura bíblica inserida e uma teologia encarnada. Ao menos pensávamos assim até pouco tempo, orgulhosos de um grande episcopado, grande em qualidade. Nossa CNBB, nossos planos pastorais, nossa Campanha da Fraternidade, nossos teólogos esclarecidos, nosso Rio de Janeiro, nossa Amazônia, nossos pampas e o pantanal...O Cairo nos convida a termos olhos universais e internacionais, a relativizarmos o “nosso” e a somarmos com os outros, a aprendermos dos outros e a percebermos os valores das outras Igrejas e nações.

Ao mesmo tempo, o documento da Assembléia Geral nos incentiva a sermos nós mesmos, com nosso jeito e nossas características. A semente do Evangelho é a mesma que brota com coloração e aspectos diversificados segundo o terreno e o clima em que se desenvolve. As intuições do Irmão Carlos foram vividas na França e no sul da Argélia, particularmente. Vividas aqui poderão ter uma roupagem própria. Mas no “próprio” devemos poder reconhecer o “comum”. Temos uma bandeira e um hino nacional, mas nascemos cidadãos do mundo. Temos características próprias, mas somos todos Fraternidade Sacerdotal Jesus+Caritas.

2.2. Rejeição e combate ao racismo

Face à exclusão e ao medo diante do estrangeiro, somos convidados a lutar com outros, contra o ressurgimento de qualquer forma de racismo em nossas sociedades.

Purificações étnicas, racismos, preconceitos estão sempre presentes na história humana. Não acabamos de resolver os problemas do relacionamento humano. O outro continua sendo um concorrente e por isso mesmo uma ameaça. No nível da natureza é difícil aceitar o diferente. Temos a tendência a igualar conosco; a nivelar à nossa altura; a mensurar segundo o nosso tamanho. Alongamos o que não atinge as nossas medidas e amputamos o que as ultrapassa. Não é fácil aceitar quem chega de fora, como não é fácil respeitar quem já está dentro quando chegamos. É preciso buscar o equilíbrio recusando qualquer consideração que parta das diferenças. Fraternidade pede um olhar fraterno recíproco. Se algum corretivo se faz necessário no relacionamento humano individual ou social, este se fará para a correção de desvios e jamais por preconceito. Em Rm 14 São Paulo pede que nos acolhamos sem rótulos, aceitando-nos como somos aos olhos de Deus: estou diante de um irmão, de uma irmã, filhos do mesmo Pai que está nos céus. Todos nascemos igualmente cidadão do mesmo mundo; depois nos fizeram cearenses, paulistas ou gaúchos, cristãos, judeus ou muçulmanos. Se necessitarmos de algum corretivo, não há de ser por particularidades culturais. As diferenças podem não ser meramente acidentais, mas todos coincidimos no “ser humano”.

3. Viver em Igreja

3.1. Amorosa presença gratuita

Queremos uma Igreja que se deixe mover sempre mais pelo sopro de Pentecostes, como o desejou o Concílio Vaticano II; uma Igreja cada vez mais fraterna, através de comunidades eclesiais que se tornarão sempre mais em nossas sociedades o sinal de uma presença gratuita de amor.

A Assembléia do Cairo pensa numa Igreja cuja estrutura básica sejam comunidades de pessoas que, por uma presença amorosa gratuita, se tornam “sinal” de uma outra Presença, também ela amorosa e gratuita. Medellín falava de uma Igreja, “consciência crítica do meio em que vive”, perspectiva mais ativa e combativa. Esta visão é também a do Irmão Carlos quando insiste em dizer que não podemos ser cães mudos diante de determinadas situações da vida humana. Mas a maneira de ser transformadora, própria da espiritualidade do Padre de Foucauld é, sem dúvida, a presença gratuita. Presença que é preciso ter. Não é com ausências que se faz alguma coisa. É com uma presença significativa. Algo acontece com tal presença, que é profundamente respeitosa, por isso gratuita. Não há interesses ocultos, nem mesmo pastorais, quando nos aproximamos dos outros e das estruturas da vida.

Uma comunidade assim só pode ser movida pelo Espírito, pelo sopro de Pentecostes. É um ideal a ser constantemente buscado.

Escrevendo aos tessalonicenses, em sua primeira carta (cc.1-2), Paulo fala de sua presença, e de seus companheiros, entre eles. Mostra inicialmente a ação do Espírito. O Espírito moveu o grupo apostólico: “Nosso evangelho foi pregado com grande eficácia no Espírito” (1Ts 1,5) e moveu os destinatários da mensagem, que a acolheram com alegria: “Vós vos tornastes imitadores nossos e do Senhor, acolhendo a Palavra com a alegria do Espírito Santo, apesar das numerosas tribulações” (1Ts 1,6). Portanto, o “sopro de Pentecostes” se fez sentir na evangelização de Tessalônica.

E o apóstolo continua falando então de sua presença. “Nossa estada entre vós não foi inútil”, diz ele. Se não foi inútil foi útil, proveitosa, significativa, serviu para alguma coisa. Ai está a qualidade básica da presença da Comunidade-Igreja no meio da sociedade. Deve servir para alguma coisa que seja verdadeiramente útil. Por que não foi inútil. Primeiramente porque se deu no meio de tribulações. Não foi fácil, custou alguma coisa, custou provações, tanto da parte dos apóstolos quanto dos tessalonicenses. Deles se diz que acolheram a Palavra “apesar das numerosas tribulações”, e de Paulo e seus companheiros: “Sabeis que sofremos e fomos insultados em Filipos. Decidimos, contudo, confiados em nosso Deus, anunciar-vos o Evangelho de Deus, no meio de grande lutas” (1Ts 2,2). Neste sentido lemos na mensagem da Assembléia do Cairo, a respeito de Irmão Carlos: “Ele nos convida a viver, como ele, uma fecundidade nova, aceitando passar pelo deserto como Jesus”.

Além das tribulações, a presença dos missionários não foi inútil ou vazia, que é o significa grego da palavra “kénos”, por não ser feita de intenções enganosas, de motivos espúrios, nem de astúcias (1Ts 2,3); Paulo não se apresentou – tornou-se presente – “com adulações”, “com secreta ganância”, “nem procuramos o elogio dos homens” (1Ts 2,5-6).

“Intenções enganosas” traduz o grego “plane”, que significa erro. Isto significa que Paulo e seus companheiros procuraram ser ortodoxos em sua doutrina. Transmitiram com fidelidade o que receberam. Um incentivo a ter idéias claras e a estudar.

“Motivos espúrios” traduz o grego “akatharsía”, que tem o significado de “impureza” e significa realmente impureza sexual. Paulo está dizendo que seu grupo apostólico teve um comportamento sexual correto entre os tessalonicenses.

“Astúcias” traduz o vocábulo “dólos”, de onde vem o nosso português dolo. Trata-se de fato de astúcia, duplicidade. Não fizeram jogo duplo os evangelizadores de Tessalônica, ou seja, não usaram de astúcia para converter ninguém.

Paulo acrescenta ainda “adulação, ganância, elogio humano”. Deus nos livre, aos membros da Fraternidade e a todos os membros da Igreja de Jesus, de trabalharmos para obter elogio dos outros, de criar pastorais para obter lucro financeiro, de viver adulando ou bajulando superiores ou qualquer detentor de poder para fazermos carreira na Igreja. Se algum padre da Fraternidade for nomeado Bispo, que isto não seja resultado de bajulação. Pode até ser cochilo do Espírito Santo, mas não resultado de astúcia bem sucedida.

3.2. Fraternidade universal, ecumênica e inter-religiosa

Pensamos que o Espírito conduz a Fraternidade a uma maior abertura ecumênica e até inter-religiosa. É a tradução, hoje, da “fraternidade universal” da qual Carlos de Foucauld quis ser o artesão.

Saber conviver com as diferenças, estar aberto ao conhecimento do outro e de suas motivações, querer dialogar é o que os irmãos do Cairo esperam de todos nós quando falam de abertura ecumênica e inter-religiosa. É uma exigência da “presença”. A tendência natural leva-nos a procurar proteção e não a correr riscos, expondo-nos imprudentemente. Evidentemente, a nossa fraqueza pode receber influências da fortaleza alheia. A comunidade joanina em seus momentos de crise procurava proteger-se de contatos ecumênicos e inter-religiosos. A segunda carta de João recomenda vivamente: “se alguém vem até vós sem ser portador desta doutrina, não o recebais em vossa casa, nem o saudeis. Aquele que o saúda participa de suas obras más” (2Jo 10-11).

Na primeira carta aos coríntios Paulo manda que a comunidade esteja atenta aos que se desviam. “Não sabeis que um pouco de fermento leveda toda a massa? (1Co 5,6). A presença da comunidade no meio do mundo precisa ser transparente. Daí a necessidade de um estado constante de revisão de vida: “Purificai-vos do velho fermento” (1Co 5,7). Referia-se a alguém que tinha entendido mal a doutrina da liberdade e caíra na libertinagem, passando a conviver com sua madrasta. Mas Paulo acrescenta imediatamente: “Eu vos escrevi em minha carta que não tivésseis relações com impudicos. Não me referia, de modo geral, aos impudicos deste mundo ou aos avarentos ou aos ladrões ou aos idólatras, pois então teríeis que sair deste mundo”. Paulo é muito realista’: ou aprendemos a conviver ou saímos do mundo. Foi esta a posição da Igreja em alguns momentos de sua história: sair do mundo para evitar o contágio com sua maldade. Não, Paulo não pede que saiam do mundo. Pede que não permitam atitudes que impeçam a transparência da Igreja. “Escrevi-vos que não vos associeis com alguém que traga o nome de irmão e, não obstante....” (1Co 5,11). Quanto aos que não pertencem à visibilidades desta comunidade concreta, Paulo pergunta: “Acaso compete a mim julgar os que estão fora? ... Os de fora, Deus julgá-los-á” (1Co 5,12-13).

Trata-se portanto de se fazer presente e estar próximo de todo mundo, deixando transparecer o tesouro que carregamos em vaso de barro e que nos foi dado como presente. Proximidade e transparência exigem estar próximo de todos sem perder a própria identidade.

O outro, de outra crença, de outra religião, afigura-se, por vezes como um deslocadas, fora do esquema, fora da verdade, na heresia, no cisma ou no paganismo.

Quando se fala em “transparência”, não estamos pensando apenas nos bons costumes ou na santidade de vida. Aproximar-se do diferente de maneira transparente significa ter convicções e deixar transparecê-las. Sou católico, conheço minha fé, minha Igreja, estou feliz nela, e a partir de minhas convicções entro em contato com a humanidade, com o diferente, passo a dialogar, a conhecer o outro, a caminhar junto. Nunca abandono minhas convicções que Paulo, na carta aos romanos (c. 14) chama de “fé”. Aquilo, no entanto, que é liberdade teórica, na prática está sujeito às regras da caridade. Por convicção, posso comer qualquer tipo de carne, mas não comerei nenhum tipo de carne se isso se constituir em obstáculo para meu irmão.

3.3. A serviço do presbitério

Na Igreja, a vocação particular de nossa Fraternidade é estar ao serviço de todo o presbítero de nossas dioceses (sem esquecer os laços com os padres que deixaram a Fraternidade ou o ministério). Por isso, desejamos reforçar nossos laços com a Igreja local e universal e continuar o diálogo com todos.

Jamais passou pela cabeça de nenhum padre da Fraternidade que somos os melhores em nosso presbitério. O raciocínio talvez seja o contrário. Por seremos os piores precisamos do apoio forte que encontramos na Fraternidade. Mas, apesar da nossa fraqueza e das nossas incoerências, queremos estar a serviço de todos. Disponibilidade para tudo o que estiver em nosso alcance é uma virtude que todos procuramos. Não há nada que diga respeito ao presbitério, aos nossos irmãos padres, que não nos diga respeito. Daí também a nossa preocupação de estar em sintonia com a Igreja local, de forma ativa, buscando unicamente a construção do Reino. E nos sentimos membros de toda a santa Igreja. Podemos sair se quisermos, podemos deixá-la, mas se estamos, queremos estar plenamente.

A Igreja enquanto instituição sofre de todas as fraquezas presentes no humano de nossa história. O próprio Irmão Carlos sabia disso. “Não se surpreenda das misérias deste tempo, nem na Igreja, nem fora dela: sempre existirão, mas Jesus está na barca divina” (Carta a Louis Massignon, de 31 de janeiro de 1912). Certamente é realista saber que a Igreja não é o que gostaríamos que fosse porque nós estamos nela. Seria correto dizer que a Igreja não é o que deveria ser? Ou será mais acertado pensar que a Igreja é o que pode ser. Seja ela sociologicamente o que for, não estamos dispensados de viver nossas convicções. Se quero que alguma coisa aconteça, devo começar a fazer com que aconteça. Comece aquilo que você quer ver realizado. Não se justifica não fazer nada porque ninguém faz. A história da Igreja conheceu seus melhores expoentes nos grandes momentos de crise e fragilidade.

Quando São Roberto de Molesme, precursor de Cister, aos quinze anos quis entrar no Mosteiro, seu pai, que preferia vê-lo armado cavalheiro, num diálogo romanceado pelo trapista M. Raymond, lhe diz: “Se queres ir, vai e fica. Se te fazes monge, sê um monge de verdade. Sê firme. Sê sincero. Sê pessoa em quem sempre se possa confiar. Dizes que queres ser galante para com Deus. Queira Deus que o sejas. ... Considera teu ingresso na vida religiosa como se desembainhasses a espada pela causa de Deus. Não embainhes jamais essa espada!” E seu pai continua: “Nesse tempo a Igreja necessita de combatentes... Agora temos um Papa que se chama Bento IX. Um menino de doze anos na sede de São Pedro! A Igreja de Deus está necessitada de santos... Se vais te entregar a Deus entrega-te por inteiro ou não te entregues! (Três monges rebeldes, ed. espanhola, pp. 35/36).

3.4. Relacionamento presbitério/laicato

Queremos também colaborar mais com todo o povo dos batizados: uma verdadeira parceria padres-leigos poderia suscitar em nossas comunidades cristãs uma renovação da fé e do compromisso de viver conforme o Evangelho. Neste espírito, devemos suscitar fraternidades seculares onde não existem e acompanha-las onde começaram a nascer.

A Assembléia do Cairo nos coloca diante de duas considerações: uma, caminhar todos juntos como discípulos; outra, promover fraternidades seculares.

Somos todos membros do mesmo corpo, fomos todos batizados no mesmo Espírito, somos todos discípulos do mesmo e único Mestre. Há diversidade de dons, há diversidade de funções, até sacramentalmente diversas, que nos colocam em estados diferentes na Igreja de Deus. Na Igreja Católica há uma hierarquia sacerdotal formada de bispos, presbíteros e diáconos e há o povo de Deus que chamamos de laicato. Simplificando, há padres e leigos. E assim foi desde o início. Desde o início, porém, o chamado fundante da comunidade cristã foi o discipulado. Somos todos igualmente discípulos e o que importa é ser discípulo. O resto vem depois. É possível ser bispo e não ser discípulo de Jesus, é possível ser leigo membro de uma Fraternidade e não ser discípulo de Jesus. Não é difícil ser padre. Difícil é ser discípulo.

Sabemos todos que os evangelhos tem como fio condutor a formação dos discípulos. Cada um a sua maneira mostra o que entende por discipulado. E sabemos que João é particularmente o Evangelho do discípulo. O discípulo amado contracena com os apóstolos, especialmente Pedro. Na conversa final, andando pela praia, Pedro deve manifestar a Jesus que possui a qualidade requerida para uma função na Igreja, sobretudo a função de presidi-la: o amor. Pedro deve ter consciência de amar a Jesus e mais do que os outros. Recebe então o pastoreio. Em seguida, Jesus acena para a morte de Pedro: “Outro te cingirá e te conduzirá aonde não queres”. E diz a Pedro uma palavra que deveria ser a última: “Segue-me”. Pedro, porém, tem ainda uma pergunta a respeito do Discípulo. Jesus corta a conversa com um “que te importa?” e repete a palavra final: “Quanto a ti, segue-me”.

“Segue-me”, é a palavra do Mestre ao discípulo, a qualquer discípulo. Carlinhos, Dona Maria, seu Benedito, Irmã Teresa, Padre Amato e Dom João, todos são chamados igualmente a seguir Jesus, todos são igualmente discípulos. Jesus conversa com Pedro, o primeiro Papa, também ele discípulo, também ele chamado a seguir: “Segue-me”.

São Marcos sabe que é difícil ser discípulo e que é mais fácil procurar Jesus para sair na fotografia, aparecer na televisão, ser aclamado pela multidão, possuir poderes extraordinários. São Marcos sabe que a natureza humana fugirá do esforço e do sacrifício de si mesma e procurará o primeiro lugar, com astúcias e jogos de dominação. Por isso, no centro de seu Evangelho, entre a narração do cego de Betsaida (c.8) e do cego de Jericó (c.10), ele insere o tríplice anúncio da paixão e ressurreição do Senhor, cada anúncio seguido da revelação de uma natureza ainda não convertida. Pedro é o primeiro a se mostrar. Não quer ouvir falar de prisão, maus tratos, morte. Sua idéia messiânica é diferente. Depois, é o grupo todo que discute quem é o primeiro.

E, por fim, Tiago e João, que compreendem que o Messias deve passar pelo sofrimento antes de entrar em sua glória mas, quando entrar na glória, que ele não se esqueça de dar os primeiros postos a estes dois irmãos. Mateus, como sempre, ameniza a história. Para salvaguardar o bom nome dos dois apóstolos, diz que foi a mãe deles que fez o pedido. Pobres mães. Há sempre um lugar pala elas em todas as histórias.

A conclusão de Jesus em Marcos é fantástica e forte. Ele parece clamar em voz alta aos apóstolos: “Entre vocês não será assim” (Mc 10,43). Vocês não serão como os que dominam e tiranizam.

O irmão da Fraternidade procura exercer com responsabilidade as suas funções. Sabe, porém, que é um discípulo entre discípulos.

Outro ponto de reflexão proposto pelos irmãos do Cairo foi o relacionamento da Fraternidade Sacerdotal com a Fraternidade Secular. No espírito da assembléia, suscitar fraternidades de leigos significa “estabelecer parceria entre padres e leigos”. As primeiras fraternidades de leigos e leigas, consagrados ou não consagrados tiveram seu início pelo trabalho dos padres da Fraternidade Sacerdotal. Naquele tempo éramos chamados de Padres da União (União Sacerdotal). Os padres da União, onde estavam, reuniam leigos e os colocavam em contato com a espiritualidade do Irmão Carlos e a organização da Fraternidade Secular ou do Instituto Jesus+Caritas. Isso no Brasil e em outras partes do mundo. O relacionamento fraterno era muito bom. Éramos todos igualmente discípulos. Os retiros em Petrópolis ou Aparecida ou Ribeirão Preto foram marcantes no período.

Hoje, no Brasil, a Fraternidade Secular poderia não se sentir à vontade ouvindo que os padres se propõem estimular o nascimento de novas fraternidades de leigos. É um direito que os leigos reivindicam a si. Estamos, porém, falando de “instituições”. A proposta da assembléia permanece enquanto cada um de nós pode propor a grupos de leigos a espiritualidade do Padre de Foucauld, ajuda-los a se organizarem e até terem uma instituição própria na área onde estão. Quanto às fraternidades de padres, se aparecer alguma no território nacional, iniciada por quem quer que seja, procurando filiar-se à instituição Fraternidade Sacerdotal Jesus + Caritas, seja bem-vinda! A instituição pertence a um determinado grupo. O Irmão Carlos de Jesus é patrimônio de toda a Igreja e da humanidade.

4. O espírito da fraternidade

Nós nos lembramos daquilo que fundamenta o espírito de nossa Fraternidade:

A) A figura de Carlos de Foucauld

4.1. Durante toda a sua vida, Carlos de Foucauld buscou realizar a vontade de Deus; ele nos chama a viver, como ele, uma nova fecundidade, aceitando passar pelo deserto como Jesus.

4.2. É preciso trabalhar para um conhecimento maior de sua vida e de seus escritos, que ainda podem sensibilizar o homem de hoje e fazer-nos compreender o lugar que ele ocupa em nossa Fraternidade.

Nem todos entramos na Fraternidade por termos conhecido antes o Padre de Foucauld. Muitos entramos por amizade com os colegas, por busca de um grupo de apoio e de oração e descobrimos depois a figura do Irmão Carlos de Jesus. Os jovens se encontram, se conhecem, namoram e só mais tarde descobrem a família de cada um e a personalidade marcante de um antepassado. A aventura Jesus+Caritas tem seu início na figura histórica do Irmão Carlos e nas suas intuições. “Seu testemunho está na origem das fraternidades” diz o nosso Diretório. Estamos, porém, atentos ao que ele mesmo ensinou: “Olhemos os santos, não para imita-los, mas para imitar a Jesus”. A Fraternidade não pretende “reproduzir servilmente o estilo de vida e os gestos concretos do Irmão Carlos”. Sabemos que o que importa é o espírito e não a letra, mas sabemos também que é preciso viver a letra para poder captar-lhe o espírito.

Os irmãos da assembléia do Cairo afirmam que “é preciso trabalhar para um conhecimento maior de sua vida e de seus escritos que ainda podem sensibilizar o homem de hoje e fazer-nos compreender o lugar que ele ocupa em nossa Fraternidade”.

Antoine Chatelard, irmãozinho que vive em Tamanrasset, acaba de publicar uma obra sobre a morte de Carlos de Foucauld (Antoine Chatelard, La mort de Charles de Foucauld, Paris: Karthala 2000). Numa rápida síntese, ele assim apresenta a pessoa do Irmão Carlos:

Nascido em Strasbourg a 15 de setembro de 1858, Carlos perde seus pais quando ainda não tinha seis anos. Seu avô materno, o coronel de Molet, toma-o consigo assim como sua irmãzinha. Aos doze anos, depois da anexação da Alsácia pela Alemanha, a família se desloca para Nancy.

Com dezesseis anos encontra-se em Paris, preparando as grandes Escolas, e perde a fé. Aos vinte anos, no segundo ano na Escola de Saint-Cyr, morre seu avô, para Carlos uma perda irreparável. A herança, porém, passa a ser sua nesse mesmo ano. Em Saumur, em Pont-à-Mousson e enfim no Sétif, na Argélia, suas extravagâncias o tornam célebre. Um “envolvimento com mulher” motiva sua demissão do exército, mas quase imediatamente pede reintegração pelo prazer da ação. Não encontrando o que procura, pede demissão para poder viajar. Sua escolha o orienta finalmente para o Marrocos desconhecido. Prepara-se para essa expedição durante um ano, em Argel. A viagem de exploração dura quase doze meses. Os anos seguintes são empregados para a publicação de um livro que o torna célebre, Reconnaissance au Maroc.

Tendo voltado a Paris no início de 1886, está à procura da verdade. “Meu Deus, se vós existis, fazei com que vos conheça”. Fim de outubro, sua vida oscila. “Desde que acreditei que havia um Deus, compreendi que não podia proceder de outra forma a não ser viver para ele”. Esse absolutismo o fará deixar tudo e ir para longe, para uma Trapa na Síria. Pensava poder aí levar uma vida de acordo com a que se tinha feito um ideal durante uma peregrinação à Terra Santa, na cidade de Nazaré. Não encontrando na Trapa aquilo com que sonhava, obteve permissão para deixar a Ordem, tendo nela permanecido sete anos. Instala-se numa choupana junto ao mosteiro das Clarissas em Nazaré e aí permanece três anos e meio levando vida de eremita.

É ordenado sacerdote em Viviers, na França, no dia 9 de junho de 1901, depois de alguns meses de preparação na Trapa de Nossa Senhora das Neves. Uma mudança completa de orientação acontece naquele ano. Renuncia à Terra Santa e vai viver no Saara.

Deixa a vida eremítica por uma vida fraterna junto às pessoas que vai encontrar, primeiro perto da fronteira marroquina, em Beni-Abbès, e mais tarde em Tamanrasset, no coração do Ahaggar.

Em 1911, passa cinco meses no planalto de Asekrem, num lugar que julgava mais central no meio das tribos.

Por três vezes voltou à França com o objetivo de organizar uma associação de fiéis que pretende criar.

Em seguida o encontramos em Tamanrasset onde se estabeleceu modestamente em agosto de 1905. Pouco a pouco as pessoas foram aceitando sua presença e ele começou a redigir um léxico da língua tuaregue; juntou mais de 6.000 versos de poesia e começou uma gramática, obra imensa que o pôs à escuta de todas as histórias desse povo, de sua cultura e de suas ambições.

O vilarejo que em 1905 não contava mais do que umas vinte choupanas com uns quarenta habitantes cresceu. Quase oitenta casas de terra formam uma aldeia. Alguns tuaregues se sedentarizaram ao lado de suas hortas.

Quando começa a guerra em 1914, ele já tinha adquirido um perfeito conhecimento daqueles que o cercavam. Sua influência sobre os tuaregues é tão grande quanto a que tem sobre os oficiais e outros militares, em particular sobre os que estão aquartelados a cinqüenta quilômetros, no Forte Motylinski.

É por todos considerado um santo, respeitado e amado. Apreciam seu saber e sua generosidade. Alguns temem suas observações e suas críticas. Outros pedem seus conselhos e sua orações. Alguns estão ligados a ele por uma verdadeira amizade.

Para todos, ele é um “marabut”.

“No ano de mil e novecentos e dezessete, nós, de la Roche, capitão comandante do setor do Hoggar, levantamos o presente processo verbal com o objetivo de nele consignar a declaração abaixo de falecimento para servir à redação da ata de falecimento pelo oficial da vara civil do anexo de In-Salah.

Declaração de falecimento

Nós, El Madhi, de profissão nômade, Mohamed ben Ahmed, de profissão nômade, Bidari, de profissão nômade, testemunhas abaixo assinados, declaramos ter constatado neste dia em Tamanghasset, o falecimento de Foucauld Charles, de profissão Padre Branco, nascido em 1858 em Strasbourg, cantão do mesmo, departamento do Baixo Reno, filho do falecido Édouard e Beaudet de Morlet Elisabeth, domiciliados em Strasbourg, falecido a 1o de dezembro de 1916 e inumado em Tamanghasset.

Seguem as assinaturas dos três testemunhas em caracteres árabes. O presente processo verbal foi redigido e assinado por nós no dia, mês e ano acima.

Assinado: de la Roche

Certificado o oficial de polícia judiciária:

Assinado: Duclos

A intérprete abaixo assinado certifica que as assinaturas apostas são de fato as dos chamados: El Madhi, Mohamed bem Ahmed e Bidari”.

Assinado: Belaïd

Carlos de Foucauld foi alguém que, durante toda a sua vida, buscou fazer a vontade de Deus. Ele nos chama a viver, como ele, uma fecundidade nova, aceitando passar pelo deserto como Jesus.

B) O Mistério de Nazaré

4.3. Disponibilidade total a Deus e aos outros

Ele nos chama a viver simplesmente o cotidiano numa disponibilidade total a Deus e aos outros, e isto questiona nosso estilo de vida.

Simplicidade é marca da Fraternidade. Não temos pretensões, não nos julgamos nem mais nem melhor do que somos. Nosso estilo de vida reflete nossas opções. E o estilo de vida enquanto forma ou esquema é condição para a aquisição do bom senso, da sabedoria, do discernimento da vontade de Deus. É o que lemos em Rm 12,2: “Não se deixem esquematizar por este mundo”. É preciso pensar também que a vida como tal deve ser uma resposta plena à vontade de Deus. Nesse sentido é uma vida orante e apostólica. No nosso trabalho pastoral, a marca de Nazaré pede que valorizemos a vida das pessoas como um todo. Cada um está respondendo plenamente a Deus em todos os momentos de sua existência. O leigo está fazendo pastoral no seu meio de vida, com sua presença silenciosa, mas significativa. Não podemos pensar que o leigo faz a obra de Deus quando está ocupado nas atividades da Igreja, em fins de semana ou nas horas que lhe sobram depois de um dia de trabalho. Nazaré é a vida. O leigo é apóstolo sobretudo no seu meio de vida.

4.4. Ser irmão e viver como irmão

Ele nos chama a sermos humildemente “irmãos” em todos os aspectos da vida, a “viver entre nós como irmãos”, através de múltiplos apoios, espiritual, amigo, material, e a partilhar com os pobres e aqueles que não têm poder, mantendo relações de amizade com eles. Vivamos então o mistério da Encarnação: Deus partilhando nossa condição humana e fazendo-se pobre no meio de nós.

Quem são as pessoas de nossa amizade? Quem são nossos amigos pobres, com os quais mantemos uma amizade gratuita? Sem interesse pastoral, sem interesse assistencial! Entre os padres, somos companheiros de caminhada? Sou amigo que apóia, visita, reza, se interessa quando se trata dos colegas de ministério? Sou atencioso e prestativo para com o Bispo?

4.5. Missão

Ele nos propõe um novo caminho de missão, caminho de “presença oculta” e de testemunho onde importa mais ser do que fazer. Mas nas sociedades de hoje que, colocam em primeiro lugar a visibilidade, seria preciso talvez encontrar outras palavras para dizer que nós queremos nos misturar à vida de todas as pessoas como o fermento se mistura à massa: falar de enraizamento, de proximidade, de convivência.

Irmão Carlos escreve a Henri de Castries, em 23 de junho de 1901 expondo-lhe sua maneira de evangelizar: “Com esta finalidade, para fazer por esses infelizes o que gostaríamos que fosse feito por nós se estivéssemos em seu lugar, gostaríamos de fundar na fronteira marroquina não uma trapa, não um mosteiro grande e rico, não uma em[resa agrícola, mas uma espécie de ermida, pequena e humilde, onde alguns monges pudessem viver de algumas frutas e um pouco de cevada, colhidas com suas mãos, em rigorosa clausura, penitência e adoração ao Santíssimo Sacramento, sem sair do seu claustro, sem pregar, mas oferecendo hospitalidade a quem chegar, bom ou mau, amigo ou inimigo, muçulmano ou cristão. É a evangelização não pela palavra mas pela presença do Santíssimo Sacramento, pela oferenda do divino sacrifício, pela oração, pela penitência, pela prática das virtudes evangélicas, pela caridade, uma caridade fraterna e universal, repartindo até o último pedaço de pão, com qualquer pobre, com qualquer hóspede, com qualquer desconhecido que se apresente, recebendo qualquer ser humano como um irmão bem-amado”.

5. Os caminhos da fraternidade

Queremos aprofundar os caminhos que a Fraternidade nos convida a seguir:

5.1. A oração contemplativa

Uma oração contemplativa, que passa pela meditação da palavra de Deus, pela adoração, pelo deserto, e nos convida a aprofundar nossa intimidade com Deus.

Palavra de Deus, adoração, deserto, meios que a Fraternidade nos propõe e que precisam ser experimentados para poderem ser devidamente apreciados.

Palavra de Deus é em primeiro lugar o texto da Bíblia. Ler o texto e conhece-lo bem. Ter idéia do conteúdo, o que dizem os capítulos, como a obra está organizada. Ter familiaridade com o texto e rumina-lo constantemente. Os monges de Pacômio, indo de um lado para outro, murmuravam passagens da Escritura, evitando murmurar uns contra os outros. Todos deviam saber ler. Eram alfabetizados no Mosteiro para aprenderem de cor os salmos e um evangelho. Confira no Missal as antífonas de Entrada e da Comunhão. Veja como são bem selecionadas. A antífona da comunhão poderia ser repetida ao longo do dia. É o ruminar ensinado por Guigo, o cartuxo. Depois, pedir a Deus a graça de realizar o que entendemos no texto. Há uma distância entre o entender e o praticar, por isso rezamos pedindo a Deus a graça de praticar a palavra meditada.

Adoração é o tempo que passamos de joelhos, em silêncio, diante do Santíssimo Sacramento. Tempo no qual é preciso perseverar corajosamente. Não é tempo livre. Se houver tempo em nossa jornada de trabalho, faremos a adoração. Não! Ela faz parte do tempo ocupado, faz parte das tarefas inadiáveis do dia a dia. Se estamos juntos, a adoração se torna mais fácil. Sozinhos, parece mais difícil ir à igreja e ali permanecer um tempo não curto. É um meio proposto e não é um meio mágico. Supõe um decisão livre de nossa parte, sem esperar muita coisa. É uma simples presença de amigos, mas presença transformadora.

Deserto. O Aurélio o descreve como “região natural caracterizada por terreno arenoso e seca quase absoluta, e que apresenta, por isso, pobreza de vegetação e fraca densidade populacional”. A prática da Fraternidade nos encaminha a procurar um lugar “desértico”, isto é, “terreno ou região que, embora não seja perfeito deserto, a um deserto se assemelha”... Na Fraternidade falamos de Dia de Deserto. Nesse dia você sai de seu ambiente costumeiro e procura um lugar que “a um deserto se assemelhe”, onde você possa estar sozinho e permanecer sozinho o tempo todo. Dê preferência a um ambiente aberto, exterior, em contato com a natureza – não muito exuberante. O importante é estar sozinho e quieto. Você passará o dia com você mesmo, entregue nas mãos de Deus que estará cuidando de tudo que você tem a fazer e não está fazendo porque está perdendo tempo sozinho num lugar sem nada e ninguém.

São meios, diz a Assembléia do Cairo, para aprofundar nossa intimidade com Deus numa oração contemplativa. O objetivo é a contemplação.

Há muitas teorias sobre a contemplação, há escolas de oração, há exercícios que ajudam ao recolhimento e ao esvaziamento. Na Fraternidade, porém, a contemplação é realista, de pé no chão. Ficamos na linha da Irmãzinha Madalena, que orientava as irmãzinhas para uma oração inserida na vida, sem elevações místicas, visões e revelações extraordinárias. Ela não gostava da idéia de suas irmãs tendo visões ou nelas acreditando. E, no entanto, sabemos agora que Irmãzinha Madalena via e conversava com freqüência com o Menino Jesus, o fundador da Fraternidade, segundo ela. Que quer dizer contemplação na vida? Ver Deus agindo na história, ver o invisível, perceber a ação do Espírito nos relacionamentos humanos, saborear Deus “que é o Amor com que amamos nosso irmão”. “O Amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5).

Expandindo-se em sensibilidade, esse Amor se torna conhecido. Ele cresce em conhecimento e sensibilidade (Fl 1,9-11). No amor fraterno vemos a Deus e o contemplamos. A obra de Jesus, segundo a carta aos Efésios (2,14-18), foi crucificar em sua carne a inimizade e proximar os que estavam longe e os que estavam perto. Jesus nasce em cada ato de solidariedade humana. Olhos contemplativos o vêem; contemplam-no e transmitem o que contemplaram e ensinam a contemplar. Contemplar o Espírito Santo agindo no relacionamento humano, e perceber quando o Espírito está entristecido (Ef 4,30) ou sufocado (1Ts 5,19) por não poder se manifestar naquilo que lhe é próprio. Palavra de Deus, adoração, deserto situam-nos na nossa realidade humana diante de Deus, dos outros e de nós mesmos.

5.2 A revisão de vida

Uma revisão de vida mais profunda e mais exigente, preparada no dia do deserto ou no acompanhamento espiritual

- que nos convida a fazer uma leitura de fé de nossas vidas, com as alegrias, as preocupações, as esperanças de nossa vida de homem e de presbítero, as apostas e os desafios de nossa sociedade, de nossa Igreja;

- que supõe um compromisso real e regular para com a Fraternidade;

- que se propicia os meios de uma formação séria.

As lideranças da Ação Católica se formaram na revisão de vida sistemática, no esquema do ver, julgar e agir, aplicado sistematicamente à vida pessoal e grupal. Não há dúvida de que a revisão de vida é formativa. Somos questionados nas nossas opções e somos levados a ver a vida como ela é. A revisão de vida, porém, não é uma varinha mágica. Não produz efeitos por si mesma e nem efeitos fora da natureza de cada um. Torna-se formativa na medida de nossa ativa participação e vontade séria de se deixar questionar. Não é fácil, mas é preciso chegar lá.

Os padres da Fraternidade normalmente são conhecidos como pessoas comprometidas com o povo, gente de vida simples e de oração, sem grandes pretensões na vida a não ser tornar-se sempre mais discípulos de Jesus. São bons colegas e prestam bom serviço na diocese e no presbitério. Nos retiros, percebe-se o bom espírito de todos. Mas, prolonguemos o retiro por mais tempo, fiquemos juntos no mesmo lugar e assumamos trabalhos em conjunto. Passemos a nos corrigir na convivência do dia a dia. Alguma coisa poderá mudar de nossa boa fama.

5.3. Compromisso com a justiça

Um compromisso com a justiça, que é inseparável do resto, se não nossa vida seria manca, como uma cadeira à qual faltasse uma perna.

Sabemos muito bem o que significa empobrecido, marginalizado, excluído. Sabemos o que significa concentração de rendas e concentração do saber. A ignorância de um povo favorece seus exploradores. Conhecemos a Palavra de Deus e a Doutrina Social da Igreja e vivemos num continente de predominância católica onde católicos geram tranqüilamente empobrecidos, marginalizados e excluídos. A paz existe quando se abraça com a justiça. É ininteligível que um coração informado pelo Espírito Santo seja insensível a situações de injustiça. Mais inexplicável quando a consciência insensível se cauteriza com o esplendor do culto litúrgico. A busca da justiça está no âmago de nossa opção de vida. O contrário é pecado contra o Espírito Santo. Por isso, na revisão de vida em fraternidade, nossa busca da justiça deve ser questionada.

5.4. Mês de Nazaré

O mês de Nazaré que é um tempo privilegiado de formação, fazendo-nos descobrir o carisma do Irmão Carlos e a graça da revisão de vida. Pode ser também ocasião de uma universalidade maior, convidando irmãos de outras regiões e outros continentes para participarem, assim como os retiros organizados pelas fraternidades. Pode enfim ser ocasião, para quem quiser, de um compromisso explícito na Fraternidade.

Esta é uma experiência que devemos fazer. Nos inícios da Fraternidade se pensou num tempo prolongado de formação, semelhante a um noviciado, com duração de um ano, e no deserto. Isso nunca chegou a acontecer porque logo se viu a dificuldade para o clero secular e, mais uma vez, não queríamos ser “religiosos” nem Ordem Terceira dos Irmãozinhos e Irmãzinhas. Valorizando tudo o que há de bom nos religiosos e nas Ordens Terceiras, queríamos, e queremos, preservar o caráter secular de nossa vocação.

Neste sentido, o Mês de Nazaré é o nosso tempo forte para experienciar os valores da Fraternidade. É um tempo prolongado, com duração de um mês, no qual estamos juntos, rezamos, refletimos, trabalhamos e fazemos nossa revisão de vida com calma e profundidade. Gostaríamos que fosse realmente um tempo de iniciação: iniciação à oração, que a gente aprendesse a rezar e tomasse gosto pela oração silenciosa e prolongada; passamos longos tempos de oração silenciosa diante do Santíssimo, também durante a noite. Nossa oração é simples, mas uma orientação sempre ajuda. O importante seria fazer a experiência e prolongar a experiência no nosso dia a dia. Não é difícil rezar no ambiente do Mês estando junto com os colegas. É mais difícil rezar no ambiente em que vivemos, sem a presença dos colegas: ir sozinho à igreja, ajoelhar-se diante do sacrário e ali permanecer por um bom tempo. O Mês de Nazaré é “longo” para criar hábitos. Todos nós sabemos como o tempo de adoração faz um bem enorme ao coração. Chegamos a ter saudade do tempo e do espaço no qual rezamos com os colegas. E ficamos esperando pelo próximo retiro.

Iniciação ao trabalho manual em sintonia com o trabalho humano e como participação na obra redentora do Cristo de Nazaré. Trabalho manual no sentido estrito da palavra, aquele que se faz com as mãos e nos identifica com os trabalhadores braçais. O Irmão Carlos intuiu o valor do trabalho manual em sua meditação do mistério de Nazaré, mas também levou consigo a herança do trabalho na Trapa. O trabalho manual faz parte do dia a dia do monge e o identifica com o pobre que trabalha para sobreviver. Irmão Carlos queria se identificar com Jesus, que trabalhou manualmente durante os trinta anos de vida oculta.

A iniciação ao trabalho manual tem sua importância para nós, padres seculares. É uma atividade que não faz parte do dia a dia do pároco, do vigário, do capelão, do professor, do formador. No entanto, deve fazer parte do estilo de vida do padre secular da Fraternidade. Se na distribuição do nosso tempo não há grande espaço para o trabalho com as mãos, esse tipo de trabalho deveria ser espontâneo em nós: fazê-lo com alegria, rapidez e boa disposição. Não considerar “indigno do padre” pegar uma vassoura, uma enxada, trocar uma lâmpada ou varrer o chão. Nos dias do Mês de Nazaré fazemos trabalhos manuais práticos, na medida de nossas possibilidades.

O Dia de Deserto, além de seu caráter de despojamento que nos faz sentir a presença do único Absoluto, é um momento precioso para a preparação da revisão de vida. No Mês de Nazaré fazemos revisão de vida calma e tranqüilamente. Cada um tem tempo para se expressar e tempo para ouvir os irmãos em suas perguntas e suas considerações. É possível também abrir-se mais profundamente com um dos irmãos em particular. A Revisão estreita os laços de amizade, de compromisso mútuo, de oração porque faz com que nos conheçamos mais intimamente. Os padres não têm muito com quem falar. Têm muito o que falar mas não com quem. Onde estamos somos os mestres, os conselheiros, os confessores. Quando temos problemas, quando surgem interrogações, com quem falar? Até mesmo nossas alegrias, nosso sucessos, com quem partilhá-los?. A revisão de vida é um bom momento para isso.

Como fazer a revisão de vida? Uma certa técnica pode ajudar a aproveitar bem o tempo dedicado à revisão. A revisão não tem sua origem nas experiências ou nas intuições do Irmão Carlos. Vem da prática da Ação Católica. A Fraternidade tem origem francesa e por isso uma forte marca da Ação Católica. Arturo Paoli e Carlo Carreto foram expoentes da Ação Católica italiana. Trata-se de uma prática válida, assumida pela Fraternidade e que perdura. Há diversos métodos para se fazer uma boa revisão de vida. É preciso experimenta-los. O Mês de Nazaré pode nos ajudar nesse aprendizado.

As reflexões do Mês de Nazaré giram em torno dos Estatutos e do Diretório da Fraternidade, reflexão que não pode faltar, e de um tema bíblico. A meditação das Escrituras, sobretudo do Evangelho, é um dos legados do Irmão Carlos. Tratando-se de padres seculares, envolvidos com a pregação dominical, poderia ser uma praxe no Mês de Nazaré repassar os temas ao menos do Tempo Comum, estudar as ligações das leituras entre si, a mensagem teológica e prática de cada bloco de domingos, a aplicação construtiva à vida da comunidade. Perceber, por exemplo, como no Tempo Comum a primeira Leitura com o Evangelho dão o “tema” do dia; já na Quaresma é a segunda leitura que sintetiza o tema do Evangelho.

5.5. Laços de amizade

A Fraternidade, que não é uma palavra vazia, mas se traduz por laços de amizade entre nós (rezar pelos irmãos no seu dia natalício), por intercâmbios (cartas, boletins, e-mails, experiências pastorais ou missionárias, parceria entre Fraternidades etc...) e também pelos laços com os diversos seguimentos da família espiritual do Irmão Carlos, o que manifesta nossa dimensão ao mesmo tempo local e universal.

Nossos retiros anuais têm sido momentos fortes de encontro fraterno, num clima de simplicidade e muita amizade. A correspondência epistolar nunca foi o nosso forte. Visitas e telefonemas são mais fáceis do que escrever cartas. Hoje há o correio eletrônico ou e-mail. É claro que os laços seriam mais estreitos se nos servíssemos mais dos meios de comunicação. A mensagem do Cairo está sugerindo que o façamos. Nós que vivemos distantes uns dos outros pela extensão territorial de nosso país, poderíamos fazer um propósito firme de entrarmos em contato uns com os outros, de alguma maneira, ao longo do ano. Está aí a sugestão dos aniversários: nascimento, ordenação. Poderíamos também aparecer mais no Boletim Nacional com notícias, partilha de experiências pastorais, artigos de reflexão.

A Fraternidade Secular organiza um encontro da Família cada dois anos. Há um bom relacionamentos entre os diversos ramos.

5.6. Um mínimo de estrutura

Um mínimo de estruturas: o responsável geral e seu conselho, a organização por regiões, por continentes... (cf. Diretório). Alguns irmãos desejam que o responsável geral esteja disponível a tempo pleno para esse serviço, enquanto outros acham que basta um tempo parcial. De qualquer maneira, o responsável geral e seu conselho farão todo o possível para estar à disposição e ao serviço das fraternidades locais e das diversas regiões ou continentes, a fim de responder às suas necessidades e apóia-las. Deveríamos também considerar a possibilidade de um funcionamento mais descentralizado, cada continente assumindo a responsabilidade de organizar assembléias continentais...

As estruturas organizacionais dependem muito da realidade de cada pais. Entre nós há um Responsável nacional e áreas regionais. Os responsáveis das Áreas Regionais formam, com o Responsável Nacional, o Conselho Nacional. Este Conselho tem se reunido uma vez por ano, fora do retiro anual. No fim do retiro anual, reúnem-se os que podem em Assembléia Nacional para a orientação geral da Fraternidade no país. As Áreas Regionais também organizam retiros e encontros.

5.7. O Responsável

Pode-se enfim relembrar a importância do responsável em cada nível: mais do que um coordenador é um irmão a serviço de seus irmãos, que deve recordar-lhes a fidelidade ao espírito e aos meios da Fraternidade, a exigência de uma abertura sempre maior ao universal, pelos laços com as outras regiões e os continentes.

Não temos a estrutura dos religiosos, por isso nossos Responsáveis não têm a função de superiores de comunidade. Não que isto não seja bom ou funcional. Simplesmente somos padres seculares com nossa estrutura própria de vida. Na Fraternidade os Responsáveis são necessários. Há sempre um lado prático em sua função: lembrar os irmãos do dia de fraternidade, dos compromissos assumidos, veicular comunicações, organizar o dia de fraternidade para que não se perca tempo e se saiba o que fazer e o que se está fazendo. Mas há também, por vezes, o lado paternal de sua função: ele pode ajudar pessoalmente os irmãos em sua caminhada, sobretudo na superação dos obstáculos. Ele pode, sem dúvida, tornar-se um pai espiritual na fraternidade.