D EDSON-RETIRO 2013

INTRODUÇÃO AO RETIRO

CARO VISITANTE:

Desligue o carro

Abaixe os vidros

Acenda as luzes internas

Identifique-se na portaria

(Esta placa encontra-se na entrada de uma grande fábrica em Manaus.)

A palavra “Visitante”, em primeiro lugar, não parece indicar apenas um ser ocasional e provisório no ambiente. Somos amigos, companheiros de caminhada e de buscas. Visitante desperta a curiosidade no que diz respeito à relação, ao imprevisível escondido em cada encontro. A visita remete ao outro, isto é, àquela dimensão que ainda não conheço e num ambiente que pode reservar gratas e extraordinárias surpresas devido aos sinais e aos laços tecidos, escondidamente e misteriosamente pelo Espírito dentro da experiência forte e envolvente do convívio fraterno.

Visitante, relembra, neste retiro, a visita do Anjo à Maria, de Maria à Isabel, dos Pastores ao Menino recém nascido, dos Magos à Família em Belém, de Jesus a Nazaré, dos discípulos a Cafarnaum, da Samaritana a Jesus ao poço de Jacó, dos amigos de Betânia. Visitante recorda também todas as passagens do Evangelho que nos falam de visitas inesperadas e de encontros intensos que transformaram radicalmente a vida de muitas pessoas. Lembremos a visita de Charles de Foucauld ao Abbé Huvelin, início de uma conversão que o fez exceder-se em generosidade até o fim de sua vida.

Um visitante nunca vivencia sozinho e individualmente a realidade da visita. Sempre se supõe coparticipação e cumplicidade de quem o acolhe, de quem o espera, de quem o aguarda, para ir ao encontro dele e atender com esmero suas expectativas.

Quais as expectativas de tua vinda a este retiro da Fraternidade?

A motivação que te trouxe aqui é de um visitante apressado, furtivo, interesseiro? Ou de um amigo-irmão inteiramente livre, despojado, disponível que deseja encontrar Jesus de Nazaré que há tempo está à tua espera para acolher tuas perguntas, teus pedidos, teus desejos e tuas buscas? Vieste livremente e aqui não és escravo da agenda carregada de compromissos. Aqui és dono do teu tempo e desejas entregá-lo gratuitamente ao Senhor.

Para entrares na condição de visitante, todavia, deves desligar o carro.

A corrida aqui é diferente. É preciso estacionar o carro e andar a pé fim de não ser condicionado pela pressa, pela sofreguidão, pela impaciência. Um simples corredor pode reservar a beleza de um encontro, de um diálogo franco com outros que andam por aqui na mesma busca e aonde se pode vislumbrar e experimentar com intensidade o calor da fraternidade, do companheirismo, da amizade verdadeira que podem preparar para futuras ajudas mútuas e colaborações.

Desligar o carro significa silenciar profundamente para te predispores à escuta do outro, para permitir ao porteiro que te identifique e te prepare para o encontro demorado e profundo. Jesus disse que Ele mesmo, “é a porta, o porteiro e o pastor” (Cf Jo 10,1-9). “Tal é encargo que recebi de meu Pai”, assim conclui Jo 10.

O carro da vida que te conduz ao longo do caminho, precisa de vistoria e, deves lembrar-te que aqui não se corre como lá fora. Aqui não há nenhuma competição. No momento da chegada não importa a potência da cilindrada nem a marca do teu carro. Precisas desligar o motor para assumires um novo estilo, uma nova consciência. Desligar é silenciar o barulho que impede um dialogo franco com Aquele que te acolhe e que está à tua espera. “O silêncio é a medida do amor. Só quem ama sabe curtir o silêncio a dois. É ruidoso o mundo em que vivemos. Há demasiadas máquinas de fazer barulho: telefone, fax, rádio, TV, veículos, campainhas. Nosso cérebro habitua-se tanto à sonoridade excessiva que custamos a desligá-lo. Uns preferem remédios que façam dormir. Outros a bebida, as drogas. Assusta-nos a hipótese de manter a casa em silêncio. Decretar o jejum dos ruídos; deligar rádio, TV e telefone. Isso pode levar ao pânico.

A “louca da casa”, a imaginação, entra em rebuliço, supondo que há uma notícia importante a ser ouvida ou um telefonema de urgência a ser recebido. Ou experimenta-se o medo de si mesmo. Sentir-se ameaçado por si mesmo é uma forma de loucura frequente em quem, súbito vê-se privado de sons exteriores. Como alguém preso no elevador. Não é claustrofobia que amedronta. É o peso de suportar a si mesmo, entregue aos próprios ruídos interiores. É terrível o espectro de uma parcela dessa geração que se nutre de ruídos desconexos. Comunica-se por um código ilógico; balbucia letras musicais sem sentido; entope de sons os ouvidos, na ânsia de preencher o vazio do coração. São seres transcendentes, porém cegos. Trafegam por veredas perdidas, sem consciência de que procuram fora o que só pode ser encontrado dentro” (Frei Betto).

Como segunda condição, pede-se que abaixes o vidro. O vidro te limita à tua moradia, te enclausura em teu pequeno mundo. O vidro é sinal de barreira que defende e delimita o teu espaço. Na verdade, és convidado a te abrires e te dispores ao encanto da escuta e do diálogo.

Quem abaixa ou abre o vidro, se entrega ao encanto de uma natureza e de uma realidade sem subterfúgios e sem máscaras que impedem o contato direto. Baixar o vidro vai possibilitar-te a visão de novos horizontes, o respiro refrescante, e ao mesmo tempo, proporcionar-te que entres em contato com o outro sem barreiras nem preconceitos. A realidade que vemos e encontramos precisa ser purificada por esta atitude: baixar nossa defesa e teimosa armação e silenciar com encanto diante da alteridade.

Vieste ao retiro para te encontrares com o Senhor e com teus irmãos e não para ficares separado. Comunitariamente vamos baixar o vidro de qualquer isolamento e de qualquer solitária separação. Baixar o vidro é gesto que mostra a vontade de romper com qualquer situação individualista, narcisista. A fraternidade presbiteral nasce do Sacramento da Ordem e nos ajuda a acolher no coração a afirmação profética do papa João Paulo II: “O ministério ordenado tem uma radical forma comunitária e apenas pode ser assumido como obra coletiva” (PDV 17).

Baixar o vidro é tecer laços visando colaboração, simpatia, cumplicidade, empatia e amizade de acordo com o que Deus vai providenciar e aos poucos te doar ao longo desta aventura.

Neste contexto de vida fraterna e de abertura para uma pastoral cada vez mais missionária e comprometida com os pobres, é que se pede como terceiro passo que acendas as luzes internas. No caso sublinhado pela placa, acender as luzes internas, permite a quem está no exterior localizar e reconhecer melhor o morador do veículo.

Em linguagem figurativa, significa que é preciso ser iluminado ou deixar-se iluminar para ser identificado com facilidade. “Não se acende uma lamparina para colocá-la de baixo de uma caixa, mas para colocá-la num candelabro a fim de que ilumine a todos os que estão em casa” (Mt 5,15), ou seja, para que todo mundo possa enxergar. Acender as luzes internas é ação delicada que requer a decisão de romper com as trevas. É uma enérgica e consistente decisão de inevitável ruptura com uma situação estática e, talvez, reveladora do caos no qual persistem realidades obscuras que resistem à luz. É preciso coragem para romper o esconderijo de nossos egoísmos e de nossas visões parciais e deformadoras que nos dão a ilusão de que o pequeno mundo que nos rodeia já expressa “o novo céu e a nova terra” (Ap 21).

Com a criação da luz, no início de sua obra, Deus deu um basta à indefinição envolta inexoravelmente nas trevas. Essa é, na verdade, a primeira palavra que celebra o despontar da vida, o aparecer da vida com todas as suas maravilhas, com suas infinitas cores e a fantasia de suas exuberantes formas.

Em seguida, nas poucas e incisivas linhas da placa, não se requer apenas que o visitante se mostre, mas que revele prontamente a sua identidade, o seu ser, a sua interioridade.

“Vós sois a luz do mundo” (Mt 5,14) diz-nos Jesus, convidando - nos não apenas a acender a luz para ver a exterioridade e sim, a sermos luz e a fazê-la resplandecer a partir de nossa própria interioridade. Socorre- nos neste momento a certeza de que é a luz do Espírito que nos habita, nos alimenta e nos impulsiona, arde em nós tornando-nos chama, fogo, faísca que rapidamente determinam nosso testemunho. “Brilhe a vossa luz diante dos homens para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem o Pai que está nos céu” (Mt 5,16).Acender as luzes internas é assim tomar consciência, cada vez mais, da iniciativa do Espírito que nos antecede e que só precisa ser acolhido, ser escutado e ser amado para configurar nossa vida à vida do Bem Amado, para dar peso e força à nossa fiel e comprometida “martiría” em nome de Jesus. Na Igreja primitiva, o Batismo era também chamado de iluminação.

É notória cientificamente a velocidade da luz. Ela depende, porém, da intensidade da fonte. Uma coisa é a luz de uma estrela e outra a luz de um planeta. A primeira perfura as trevas com a rapidez proveniente de sua fonte a segunda só se dá como reflexo. Uma clareia e define os contornos aquecendo e queimando, a outra apenas oferece uma pálida amostra. Acender as luzes internas é arrancar-te da escuridão, da treva, do esconderijo secreto fazendo resplandecer a luz que já está no teu âmago, fruto de um dom que te antecedeu amando-te e iluminando-te por primeiro.

Meus irmãs e irmãs, de lugares diferentes e distantes, no início deste retiro somos convidados a: parar da correria desligando o motor, abaixar os vidros para uma autêntica comunicação, acender as luzes internas para fazer aflorar o arco-íris escondido no porão! Estas atitudes favorecerão um encontro na plenitude de tua identidade profunda, através da íntima comunhão com o Bem Amado Irmão e Senhor e da convivência fraterna sob a luz e orientação do Espírito Santo.

Por fim, os agentes do retiro, colocados na devida hierarquia, são os seguintes:

O Espírito Santo é o protagonista da ação santificadora dos cristãos e da missão evangelizadora da Igreja. “Técnicas e instrumentos podem ajudar, porém, jamais substituem a “ação discreta” do Espírito Santo que faz arder o coração do discípulo e da discípula de Jesus e o/a coloca no caminho dos irmãos para expressar a sua experiência” (DGAE, 108). “Não entristeçais o Espírito Santo com o qual Deus vos marcou como com um selo para o dia da libertação” (Ef 4,30).E não esqueçamos que o Espírito

Santo chega sempre primeiro que o missionário.

Cada retirante, com suas angústias e esperanças, com seus êxitos e fracassos, com a disposição de dar o melhor de si para acolher e escutar o Senhor que quer lhe falar ao coração: “Oxalá ouvísseis hoje a sua voz: não endureçais os vossos corações como em Meribá, como em Massa, no deserto, em que outrora vossos pais me provocaram apesar de terem visto as minhas obras” (Sl 94,8-9). O caminho mais difícil é o que conduz para dentro de nós mesmos.

Os irmãos participantes podem nos ajudar e também atrapalhar. Solidários na vocação e na missão, sintamo-nos também corresponsáveis uns pelos outros na busca de Deus, colaborando para criar o ambiente e as condições favoráveis aos nossos irmãos para que possamos colher os melhores frutos do nosso retiro: no silêncio fecundo, na leitura orante, na adoração, nas celebrações, nas conversas a dois.

O orientador é um irmão que sugere em voz alta as reflexões, dá pistas, sugestões. É um companheiro de viagem, um copiloto, que se parece um pouco com a “burrinha de Balaão”, que chuta algumas coisas.

Não direi novidades. Tentarei ajudá-los a fazer emergir os valores que já estão dentro de vocês, no coração do povo, no meio das comunidades que o Senhor confia ao amor missionário de vocês, pois “o Reino de Deus já está no meio de nós” (Lc 17,21).

Canto: “Em silêncio abandona-te ao Senhor” e Oração do Abandono.


PRIMEIRA MEDITAÇÃO

50 ANOS DA ABERTURA DO CONCÍLIO:

A VIABILIZAÇÃO DO CONCÍLIO E CONTINUIDADE DO

ESPÍRITO CONCILIAR

De 06 a 21 de novembro de 2012 realizou-se em Paris a Assembleia Internacional da Fraternidade Sacerdotal Jesus Caritas. A carta da Assembleia conclui assim: “Nestes anos em que comemoramos o Concílio Vaticano II, lembremo-nos que há aspectos da espiritualidade do Bem-aventurado Carlos de Foucauld nos textos conciliares e que a família foucualdiana contribuiu para o nascimento da Igreja de nosso tempo presente em todas as nações, para torná-la acessível a todos os homens. Testemunhas e portadores do Evangelho da bondade, em fraternidades em gestação, com o lugar original de nosso carisma e de nossa vocação, tornamos presente aos homens o Deus de Amor que se fez nosso irmão em Jesus de Nazaré”.

Nosso interesse pelo Concílio vai além da curiosidade histórica. Ele nos envolveu, e estamos interessados em conhecer melhor sua dinâmica, para nos apropriar dela, de tal modo que continue nos impulsionando, fortalecendo nossa identidade eclesial.

O Concílio, de fato, já ao ser anunciado, desencadeou um intenso processo participativo, que entusiasmou toda a Igreja. Muitas pessoas sentiam que tinha chegado o tempo propício para empreender uma profunda renovação eclesial.

A memória do Concílio, passados já 50 anos, precisa incentivar de novo este sadio protagonismo. É bom advertir que esta memória não pode levar a uma espécie de paralisia, fruto de um saudosismo inibidor, como se o dinamismo eclesial tivesse se esgotado com o término do Concílio. “Do Vaticano II herdamos 16 documentos e um espírito novo”, disse o Cardeal Suenans.

O jubileu de 50 anos nos anima a retomar a dinâmica conciliar. Vamos, portanto, recordar fatos, com a intenção de descobrir o que os tornou possíveis, para habilitar-nos a produzir outros, em continuidade daqueles!

1. Como surgiu o Concílio

À primeira vista, o relato dos acontecimentos que descrevem o surgimento do Concílio, pareceriam indicar que ele foi totalmente inesperado, sem vínculo histórico com as circunstâncias que o precederam.

Na verdade, houve uma dose muito grande de surpresas. Mas analisadas com mais atenção, se descobre que o surgimento do Concílio se deu, sim, por uma inspiração divina, como não cansava de afirmar João23. Mas uma inspiração prontamente acatada e assumida, com os riscos históricos que ela supunha, e sabiamente valorizada e colocada em sintonia com o dinamismo eclesial já existente na época.

O surgimento do Concílio foi fruto da simbiose entre inspiração de Deus e iniciativa humana. João 23 não foi só um dócil acolhedor da ideia do Concílio. Ele foi também um exímio estrategista. Ele soube revestir de motivação espiritual os seus generosos planos de iniciativas pessoais.

Os passos que conduziram João 23 a anunciar o Concílio, no dia 25 de janeiro de 1959, se constituíram numa série de surpresas, onde se podia facilmente reconhecer a mão da Providência. E onde ao mesmo tempo apareciam as marcas da ação humana. Entre Deus e nós existe sempre a mediação humana.

A primeira surpresa foi a própria eleição papal do Cardeal Ângelo Roncali, com 77 anos, desconhecido de quase todo o mundo, com aparência de simples vigário de campanha, surpresa reforçada até pelo nome por ele assumido, de João 23!

Logo foi entendido como “papa de transição”. A surpresa maior foi descobrir que, na verdade, ele seria o papa da grande transição por que passaria a Igreja!

Mas à surpresa de sua eleição, o novo (velho) papa foi acrescentando outras surpresas, fruto de sua vivência pessoal e profundo conhecimento da história, e que muito contribuíram para preparar o clima favorável para o lançamento do concílio Ele se mostrou logo como o “papa da bondade”. Uma bondade revestida de mística cristã, mas feita também de gestos muito humanos, que foram logo cativando a simpatia de todos.

No Natal ele saiu do Vaticano para visitar crianças doentes no hospital No dia seguinte foi visitar os presos na cadeia de Roma.

Com estes gestos que recuperavam a autenticidade evangélica, João 23 pavimentou o caminho para o anúncio do Concílio, que foi prontamente aceito com entusiasmo, sobretudo pelo povo romano, que tinha logo aprendido a amar o seu papa simples, cordial e bondoso.

No anúncio do Concílio houve um evidente fenômeno de transferência afetiva. A grande simpatia pela pessoa do papa foi transferida para a ideia do concílio ecumênico. O concílio foi aceito com o mesmo entusiasmo que o povo começava a ter com o papa.

O concílio passou a ser olhado com esperança, porque era proposto pelo Papa João 23. Aí e deu de novo o acoplamento entre graça de Deus e ação humana. Pois a pronta acolhida da ideia do concílio por parte do povo, e do mundo inteiro, serviu para o papa de confirmação do caráter divino da inspiração que ele tinha tido. Como nos inícios da Igreja, o povo animado do Espírito Santo servia de critério para guiar os passos da missão.

A generosa adesão do povo foi muito bem capitalizada por João 23. Assim o processo conciliar teve desde o início um grande respaldo popular, que servia de aval para as providências a serem tomadas.

O Concílio nasceu sob a inspiração de Deus, prontamente acatada pela adesão do povo, dando segurança para desencadear o processo conciliar.

Este fato nos dá um precioso ensinamento, e um bom desafio. Como fazer para também nós, nos tempos que vivemos, perceber o rumo a seguir, sinalizado pelos “sinais dos tempos”, que nos revelam o “sensus fidelium”, como soube fazer João 23?

As mudanças na Igreja não acontecem só por iniciativas que vem de cima. Elas acontecem quando se capta a percepção do povo, a ser integrada nas decisões a tomar.


2. Os momentos decisivos do Concílio

A memória do Concílio, a ser recuperada, não é retilínea. Houve momentos que direcionaram o processo conciliar. Eles nos ajudam a perceber como é importante discernir o momento certo, a opção conveniente, a hora da graça.

Podemos identificar diversos desses momentos, que acabaram definindo o rumo do Concílio, com clareza e segurança.


2.1. O anúncio do Concílio.

O anúncio do Concílio, no dia 25 de janeiro de 1959, se constituiu no fato primordial de todo o Vaticano II. As circunstâncias em que se deu este anúncio, desencadearam todo o processo conciliar.

O anúncio do Vaticano II, na festa da conversão do apóstolo Paulo, dia 25 de janeiro de 1959, na Basílica de São Paulo Fora dos Muros, tem um profundo significado simbólico. Data, lugar e pessoa escolhidos pelo papa João XXIII apontam para o propósito de reconstruir uma Igreja com atitude de conversão fora dos muros do legalismo; apontam para uma Igreja apostólica, cuja atividade missionária se torna responsabilidade libertadora para com toda a humanidade. A missão da Igreja começa “fora dos muros”, entre aqueles que vivem nas margens da sociedade e da Igreja.

Como colocar a Igreja em dia com o mundo e com uma nova consciência histórica, e inseri-la na realidade de hoje? Inserção na realidade, consciência histórica, contemporaneidade, diálogo e visão utópica estão contidas na palavra aggiornamento criada por João XXIII.

Ainda antes de iniciar o Concílio, o papa João XXIII mostrou, simbolicamente, que a Igreja Católica precisava abrir-se ao mundo, o que ele chamou de um aggiornamento. Para um interlocutor, que lhe perguntou sobre o significado desse aggiornamento, ele abriu as janelas de uma sala e deu para entender: a Igreja precisa deixar sol e vento entrar para ver longe e respirar fundo.

O sucessor de João XXIII, Paulo VI, em sua Carta Encíclica Ecclesiam suam (1964), menciona o “aggiornamento” como “orientação programática” do Concílio (ES 27).

A “orientação programática” do Vaticano II, portanto, era abertura, deixar a realidade do mundo entrar na Igreja e fazer essa Igreja entrar no mundo. E essa realidade tem várias dimensões: a dimensão macrocultural do mundo moderno, da modernidade secularizada, e a dimensão da vida cotidiana, a microestrutura das culturas, da convivência concreta no mundo pluricultural. Aggiornamento expressa a vontade de construir pontes de mão dupla: uma entre Igreja e a dimensão universal das conquistas da modernidade e do mundo secular, e outra, entre Igreja e o mundo local e cultural, a vida cotidiana onde o povo vive, se encontra e comunica.

Tinha se criado uma grande expectativa em torno do novo papa. Era a conclusão da semana de orações pela unidade dos cristãos. A estratégia de João 23, de mandar convocar os jornalistas para difundir a notícia, repercutiu muito positivamente entre os meios de comunicação e no ambiente externo à Igreja, superando de imediato antigas resistências e preconceitos mútuos.

Desta maneira ficaram também contornadas as resistências internas, sobretudo dos cardeais e da Cúria Romana. O anúncio do concílio encontrou logo uma recepção entusiasta.

Olhada esta estratégia agora, depois de 50 anos, e constatando resistências que perduram ainda hoje, fica a pergunta a respeito dos limites de nossas estratégias humanas para conseguir melhor os fins desejados.

Ao longo de todo o Concílio, será que não faltou um diálogo maduro e franco, para superar as resistências, mesmo sabendo que pudessem ser fruto de preconceitos ultrapassados?

2.2. Ampla consulta às bases

Criada a “comissão ante preparatória”, incumbida de elencar os assuntos a serem abordados pelo Concílio, foi muito feliz a ideia dar palavra às bases, através de ampla consulta, endereçada aos bispos do mundo inteiro, às congregações religiosas, aos reitores de universidades católicas, e aos membros da Cúria Romana.

Com a resposta de 77% dos entrevistados, foi possível não só recolher preciosas sugestões para a temática do Concílio, mas perceber também como é válido dar atenção às bases, e valorizar o que o povo tem a dizer.

2.3. Expectativa mundial em torno de um evento eclesial

Desde o início, já no dia do seu anúncio, o Concílio entrou na pauta das agências de notícias. Foi muito significativo o interesse do mundo em acompanhar um evento da Igreja. É sintoma positivo quando a Igreja se torna sinal de esperança para o mundo.

2.4. O discurso de abertura do Concílio

Repercutiu muito o discurso de João 23 no dia da abertura do Concílio não deixou dúvidas que o Concílio era mesmo para valer. A Igreja precisava atualizar a maneira de apresentar ao mundo as verdades perenes, que precisam ser bem captadas em cada época.

Repercutiu sobretudo a disposição da Igreja diante dos erros, preferindo “usar mais o remédio da misericórdia do que o da severidade. E a recomendação da Igreja de se mostrar “mãe amorosa de todos, benigna, paciente, cheia de misericórdia e bondade também com os filhos dela separados”.

Este devia ser um concílio sem nenhum anátema!

Diante desta generosa proposta de João 23, vale perguntar se é ainda esta a postura da Igreja, ou, parafraseando o salmo, “a mão da Igreja mudou, não é mais a mesma”!

2.5. A eleição dos membros das comissões conciliares

Uma providência muito importante foi tomada pelos bispos na sua primeira sessão de trabalho. Precisavam escolher 15 nomes para cada uma das dez comissões conciliares Como podiam tirar da cabeça tantos nomes, assim de improviso? Graças à intervenção do Cardeal Liénard, secundado por outros, a escolha foi adiada, com três dias para os episcopados se consultarem entre si, em vista de identificar os nomes mais convenientes a serem indicados. Assim ficou garantida a representatividade do episcopado mundial.

Com isto, os bispos se apropriaram do espaço conciliar, que lhes pertencia de fato. Assim também puderam levar como peritos bons teólogos que haviam sido punidos e até exilados.

Como ocupar os espaços que são nossos? Como colocá-los a serviço da Igreja e da sociedade? Esta é outra questão muito pertinente, que o concílio nos aponta.

2.6. Prioridade dada à liturgia

O primeiro assunto debatido no Concílio, no começo da primeira sessão anual, foi a liturgia. Foi uma feliz escolha. Pois o assunto era o mais próximo a todo bispo, e despertava um interesse imediato.

Além do mais, era o esquema mais maduro, que recolhia os esforços do Movimento Litúrgico, um dos principais movimentos que precederam o Vaticano II. João XXIII, para sair da uniformidade latina, solicitou que as Eucaristias das primeiros dias fossem celebradas em muitos ritos que a maioria dos bispos nem sequer conhecia.

Os debates em torno da liturgia serviram também para os bispos afinarem um pouco melhor o seu latim, seja para as intervenções na aula conciliar, como sobretudo para entenderem o que se falava. A liturgia aplainou o caminho dos debates conciliares. Serviu para amaciar o motor para a longa viagem que estava à frente.

2.7. A primeira rejeição de um esquema

Terminado o debate preliminar sobre a liturgia, e aprovado o seu esquema como “base para o documento conciliar”, foi introduzido outro tema, cujo desfecho seria surpreendente, e iria provocar um alinhamento do plenário, que atravessou depois todo o Concílio.

Acontece que o esquema sobre a Revelação, “De fontibus revelationis”, era vazado em temos fortemente polêmicos, próprios ainda da “contra reforma”. Em contraste, portanto, com a proposta de João XXIII, de buscar a aproximação com os “irmãos separados”, que estavam presentes como observadores atentos.

Levado à votação, expressiva maioria se mostrou contrária ao documento, pedindo sua substituição. Mas faltaram alguns votos para atingir os dois terços necessários para rejeitar o esquema, de acordo com o regulamento. Parecia criado um impasse difícil de contornar.

Foi então que João XXIII interveio pela primeira vez nos trabalhos conciliares, mandando substituir o esquema por outro mais de acordo com as expectativas ecumênicas.

O fato teve grande repercussão, e consequências práticas muito determinantes, pois de certa maneira conformou uma expressiva maioria conciliar, feita dos que tinham votado contra o documento, e acrescida de muitos outros bispos que no gesto do Papa perceberam que ele não se prendia aos esquemas preparatórios, expressos em linguagem da

contrarreforma. A partir daí, as votações encontraram um claro critério de posicionamento, que atravessou todo o concílio.

Alguns historiadores chegam a identificar naquele gesto do Papa o fim da “contrarreforma”. Ela teria se encerrado no dia 20 de novembro de 1962, data da decisão de João XXIII de mandar retirar o polêmico esquema sobre “as fontes da revelação”.

Aqui se introduz outra ponderação, que não é fora de propósito. Trata-se da oportunidade que um evento extraordinário oferece, para superar preconceitos cristalizados há séculos, romper resistências, e abrir espaços para um clima de diálogo.

Foi o que proporcionou este Concílio, possibilitando uma nova relação, de diálogo e de respeito, entre católicos e “irmãos separados”.

E em boa parte, somente à luz do forte impacto do concílio se compreende a aceitação das grandes mudanças efetivadas na liturgia. E se compreende como alguns ainda não as tenham aceitado. A superação de posicionamentos radicais é mais difícil quando envolve convicções religiosas. Dado o grande leque de relacionamentos históricos entre a Igreja Católica e outras instâncias da sociedade, o impacto do concílio poderia levar a mudanças de atitudes, criadas em outros contextos históricos e culturais, e que hoje são francamente anacrônicas, mas ainda permanecem. À luz do Concílio, não seria o caso de tentar a superação de preconceitos que ainda marcam o relacionamento da Igreja com algumas instituições da sociedade? Não seria o caso de decretar o fim de outras “contrarreformas” que existem por aí?

Em todo o caso, fica o desafio: como canalizar as energias positivas dos acontecimentos que causam impactos, e podem provocar mudanças de diversas ordens. E no que se refere ao ecumenismo, será que não desperdiçamos uma preciosa oportunidade de maior aproximação e de compromissos progressivos em direção à reconciliação final?

2.8. A redução dos esquemas preparatórios

No intervalo entre a primeira e a segunda sessão, foi tomada uma importante decisão. Foi reduzido drasticamente o número dos esquemas preparatórios. Eram mais de setenta. Foram reduzidos a pouco mais de dez.

Isto foi possível porque no final da primeira sessão, ao iniciar a análise do esquema sobre a Igreja, os bispos se deram conta, muito claramente, que tinham chegado ao tema central, que poderia aglutinar todos os outros. Tinha emergido o núcleo central do Concílio. Este seria um concílio claramente “eclesiológico”, enquanto os primeiros concílios da Igreja tenham sido claramente “cristológicos”.

Estava definida a tarefa do Concílio: apresentar a verdadeira identidade da Igreja, na sua natureza e na sua missão, no contexto do mundo de hoje. Uma Igreja comprometida com a renovação, inspirada no Evangelho de Cristo e no exemplo da Igreja Primitiva, comprometida com a causa da unidade dos cristãos, e inserida na sociedade, com quem se mostra solidária na busca da justiça, da fraternidade e da paz.

A partir daí, o Concílio estava bem centrado, tinha um tema que nucleava todos os outros assuntos.

Em nossa pastoral também é importante encontrar um núcleo central, que possa dar organicidade à diversidade de aspectos e de atividades.

3. Contexto histórico do Vaticano II

Não se entende o Concílio Vaticano II sem ter presente o ambiente histórico em que ele se realizou.

As décadas de 50 e de 60, foram as mais otimistas dos últimos séculos. A Europa estava em pela reconstrução no pós guerra. A humanidade iniciava sua carreira espacial, com a meta de chegar na lua antes do final da década de sessenta.

Na política estava acontecendo a distensão entre leste e oeste, com Kennedy nos Estados Unidos, Kruchev na União Soviética, e João XXIII no Vaticano.

As nações da África iam proclamando sua independência e, o mito do desenvolvimento sem limites contagiava a todos.

No Brasil se construía a nova capital, com a promessa de cinco anos valerem por 50. Em termos eclesiais, era tempo da rápida implantação de estruturas da Igreja, com a criação de 70 novas dioceses durante o período do Núncio Dom Armando Lombardi. Foi neste clima de otimismo e de esperança que se realizou o Vaticano II.

Pode-se fazer a importante constatação: A Igreja percebeu a hora da graça, soube aproveitar as condições favoráveis que a história lhe proporcionava. A vivência diplomática, que João XXII tinha tido, culminando sua carreira como Núncio na França, ajudou o Papa a perceber que era viável mobilizar a Igreja com um evento de tamanha envergadura, como seria o Concílio Vaticano II.

Esses tempos de otimismo duraram pouco. Já no final da década de sessenta, eclodiu em 1968 a revolta dos estudantes na França, sintoma da grande transformação cultural que a secularização iria espalhar rapidamente pela Europa e pelos países do primeiro mundo.

A propósito da secularização, com os profundos impactos que ela trouxe, alguns fazem uma leitura equivocada da história. Porque a secularização ocorreu depois do Concílio, se conclui, erroneamente, que ela foi causada pelo Concílio.

Não deixa de ser verdade que a recepção do Concílio coincidiu em muitos lugares com a chegada da secularização, confundindo as cabeças de muitas pessoas.

Não deixa de ser válido colocar-se a hipótese de como teria sido diferente o Concílio, se fosse realizado depois da crise dos anos setenta.

Com certeza alguns documentos seriam diferentes, como certamente a Gaudium et Spes, por exemplo.

João XXIII convocou o Concílio em tempos favoráveis para a sua realização. E nós, sabermos aproveitar os ventos favoráveis da história, para conduzir melhor a barca da Igreja?

Fica outro bom desafio: como sincronizar os passos da história, para neles inserir nossa presença, e contribuir com a luz do Evangelho, como fez o Concílio.

Conclusão

O Concílio foi escola de vivência eclesial. Ao longo da descrição do processo conciliar, percebemos como os diversos momentos decisivos do Concílio, se constituem em exemplos de atuação eclesial Independente de quando vamos ter um outro concílio, o que importa é resgatar o processo conciliar, vivendo a conciliariedade da Igreja, com sua prática de estar atenta aos sinais dos tempos, com a certeza de contar com a atuação do Espírito quando ela se reúne para discernir os passos que precisa dar.

Assim o Concílio fica integrado na vida da Igreja e nós podemos continuar o seu espírito e o seu dinamismo.


SEGUNDA MEDITAÇÃO

A “VIRADA POPULAR” DO VATICANO II

(Síntese da conferência do Pe Paulo Suess no 3º Congresso Nacional Missionário, em Palmas, TO, de 12 a 15/10/12, com alguns acréscimos).

O Vaticano II produziu 16 documentos e um espírito que procuravam romper as heranças do Império Romano e do sistema colonial, vertentes ideológicas, incompatíveis com o evangelho de Jesus Cristo.

Com a decretação do cristianismo como religião oficial do Império Romano, em 380, pelo imperador bizantino Teodósio I, e com a progressiva decadência desse império, insígnias, liturgias, estruturas e modos de administração imperiais foram assumidas pela nova religião de Estado.

De geração para geração, de século para século, foram transmitidas e se tornaram fetiches do cristianismo. Setores do Vaticano II estavam decididos de romper com essa herança, historicamente, caducada.

Para a ação missionária, um dos precursores da descolonização e do seguimento de Jesus histórico foi Charles de Foucauld (1858-1916).

Com seus seguidores nos mais diversos movimentos espirituais e fundações religiosas, antecipava questões posteriormente articuladas em torno do paradigma da inculturação e da inserção missionária. “A Igreja não descuidou da promoção humana dos povos aos quais levava a fé em Cristo... Basta lembrar o exemplo do Padre Charles de Foucauld, que foi considerado digno de ser chamado, pela sua caridade, “Irmão universal”, e redigiu o precioso dicionário da língua tuaregue” (Populorum Progressio, 12).

No contexto pós-colonial da opção pelos outros, emerge a opção pelos operários do Cardeal Joseph Cardijn que, em 1924, fundou na Bélgica a Juventude Operária Cristã (JOC), inspirando a Ação Católica com o método do ver, julgar, agir. A sobriedade missionária do movimento dos padres operários e da Mission de France já apontaram para a opção pelos pobres.

No final do Concílio, no “Pacto das Catacumbas”, 40 padres conciliares renunciaram à herança do Império Romano, “à aparência e à realidade da riqueza, especialmente no traje, nas insígnias de matéria preciosa; recusaram-se a ser chamados “com nomes e títulos que significassem a grandeza e o poder (Eminência, Excelência,Monsenhor...)”. Paulo VI deu um sinal na mesma direção quando, no dia 13 de novembro de 1964, antes de viajar para Bombaim, colocou a Tiara, a tríplice coroa dos papas, no altar de S. Pedro para nunca mais usá-la.

Mas, para o conjunto da Igreja Católica, muitas das estruturas e da indumentária imperiais até hoje não foram abolidas. O Vaticano II iniciou uma “virada popular”, que ainda precisa ser completada. Seu objetivo era “continuar a obra do próprio Cristo que veio ao mundo para dar testemunho de verdade, para salvar e não para condenar, para servir e não para ser servido” (GS 3,2). O Pe Victor Codina recorda as linhas fundamentais da virada copernicana produzida pelo Vaticano II:

- Da Igreja de Cristandade, centrada no poder e na hierarquia, para a Igreja de comunhão (primeiro milênio) que se abre aos desafios dos sinais dos tempos.

- De uma eclesiologia centrada em si mesma para uma Igreja orientada para o Reino, do qual ele é semente e início. O Reino de Deus é maior que a Igreja.

- De uma Igreja sociedade perfeita para a Igreja mistério que nasce da Trindade, multidão congregada pela unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

- De uma cristologia exclusivamente cristocêntrica (“cristominismo”) para a Igreja que nasce do abraço do Pai: um dos braços é Jesus e o outro é o Espírito Santo (S. Ireneu).

- De uma Igreja centralizadora para uma Igreja corresponsável e sinodal, que respeita as Igrejas locais: nelas e por elas existe a Igreja Universal.

- De uma Igreja identificada com a hierarquia para a Igreja toda ela Povo de Deus, onde vigora a igualdade de todos os batizados, com muitos carismas e ministérios.

- De uma Igreja senhora e dominadora para uma Igreja samaritana e servidora de todos, principalmente dos pobres, nos quais reconhece o rosto de seu divino Fundador.

- De uma Igreja comprometida com o poder para uma Igreja enviada a evangelizar os pobres, com os quais se sente comprometida na construção de outro mundo possível.

- De uma Igreja arca de salvação para uma Igreja sacramento de salvação em diálogo com outras Igrejas e religiões, em pleno reconhecimento da liberdade religiosa.

Quais são os impulsos do Concílio que configuram essa “virada popular” e quais os passos para fazê-la avançar, hoje?

1. Aggiornamento como orientação programática

Ainda antes de iniciar o Concílio, o papa João XXIII mostrou, simbolicamente, que a Igreja Católica precisava abrir-se ao mundo, o que ele chamou de um aggiornamento. O sucessor de João XXIII, Paulo VI, em sua Carta Encíclica Ecclesiam suam (1964), menciona o “aggiornamento” como “orientação programática” do Concílio (ES 27).

A “orientação programática” do Vaticano II, portanto, era abertura, deixar a realidade do mundo entrar na Igreja e fazer essa Igreja entrar na realidade do mundo. Aggiornamento expressa a vontade de construir pontes de mão dupla: uma entre Igreja e a dimensão universal das conquistas da modernidade e do mundo secular, e outra, entre Igreja e o mundo local e cultural, a vida cotidiana onde o povo vive, luta sofre e espera.

O Concílio nomeou essas tentativas de aproximação aos povos e ao mundo com algumas palavras balbuciantes, como “aggiornamento” e “adaptação” (SC 37s; GS 514), “autonomia da realidade terrestre” (GS 36; 56) “sinais dos tempos” (GS 4; 11), e “diálogo” (CD 13; UR 4), “encarnação” e “solidariedade” (GS 32). Em nossa caminhada teológicopastoral latino-americana traduzimos essas palavras como “opção pelos obres” e “libertação”, em Medellín (1968), “participação”, e “comunidades de base”, em Puebla (1979), como “inserção” e “inculturação”, em Santo Domingo (1992) e como “missão”, “testemunho” e “serviço” de uma Igreja samaritana e advogada da justiça e dos pobres, em Aparecida (2007). Nenhuma dessas palavras descreve a totalidade do projeto pastoral do Vaticano II, mas seu conjunto representa uma síntese daquilo que o Vaticano II queria ser: um farol da luz de Cristo no meio do povo e do mundo.

2. Ser farol da luz de Cristo

As primeiras palavras das duas Constituições sobre a Igreja, a Lumen gentium e a Gaudium et spes, já apontam para o programa da“virada popular”. Ser farol da luz de Cristo para os povos e acompanhá-los, sobretudo os pobres, em suas alegrias e tristezas, e ser, como povo de Deus, instrumento de salvação de Jesus encarnado - eis a origem, identidade e meta dos discípulos. No ser transparente para o mundo e no estar próximo aos crucificados na história temos o núcleo da “virada popular” do discipulado missionário.

Quando Paulo, em Damasco, ouviu a voz do Mestre, por ele perseguido, Jesus lhe deu razões para uma vida nova: foste chamado para voltar das trevas à luz e constituído “servo e testemunha” (At 26,16).

No início da vida do discípulo missionário há sempre uma iluminação e uma conversão. “Voltar das trevas à luz” significa conversão, dar foco à vida, sair da alienação, fazer discernimentos, estabelecer prioridades para que Deus possa resplandecer na face das testemunhas e nas mãos dos servos enviados.

Para ser luz do mundo e dos povos (Lumen gentium), Jesus submeteu-se às águas do Jordão; despojado de tudo recebeu o batismo de João e o Espírito Santo tomou conta dele. Nesse despojamento, como na pequenez do presépio, da cruz da Eucaristia, se revela o amor trinitário de Deus e a missão de Jesus. O Filho amado é o Filho iluminado, despojado e enviado.

No batismo, a iluminação torna-se recriação do mundo, como mostra o episódio da cura do cego de nascença, que era mendigo, e representa os discípulos missionários. Na Conclusão do Decreto Ad

gentes, os padres conciliares fazem votos que “a claridade de Deus, que resplandece a face de Cristo Jesus, pelo Espírito Santo a todos ilumine” (AG 42,2). Quem recupera a vista ganha mobilidade e autonomia para “iluminar todas as pessoas com a claridade de Cristo” (LG 1) pelo anúncio e testemunho do “Evangelho do Reino da vida” (DAp 143).

3. “Virada popular” com audácia e fidelidade

A “virada popular” do Vaticano II, essa tentativa de definir o povo, adulto e autônomo, como sujeito da Igreja, sacudiu a instituição e a pastoral da Igreja Católica. Uma Igreja que celebrava a Missa de costas para o povo e falava em latim, com a teologia e a pastoral amarrada a padrões culturais da Europa, essa Igreja deu no Concílio uma meia volta versus populum, realizou uma “virada popular”. Ela exigiu a passagem de um mundo pré-moderno e fundamentalista à assunção crítica da modernidade e a passagem do monólogo salvífico ao diálogo com outras religiões, credos e visões do mundo.

Ao definir-se como concílio pastoral, o Vaticano II utiliza uma metodologia indutiva – partir da realidade concreta das pessoas. À luz da fé, buscou com essa realidade estabelecer uma comunicação em linguagens contemporâneas, “porque uma coisa é o próprio depósito da Fé ou as verdades e outra é o modo de enunciá-las” (GS 62,2). “Não é o Evangelho que mudou. Nós é que começamos a compreendê-lo melhor”, disse João XXIII.

A proximidade do mundo, dos reais problemas da humanidade, e o reconhecimento da autonomia da realidade terrestre e da pessoa são aprendizados históricos; são buscas permanentes para escapar da conformação alienante à prosperidade material e da adaptação superficial a modas nesse mundo, e do distanciamento deste mundo em nichos de bem-estar espiritual.

A Conferência de Aparecida reconheceu a necessidade de a Igreja “repensar profundamente e relançar com fidelidade e audácia sua missão nas novas circunstâncias latino-americanas e mundiais” (DAp 11).

Repensar a missão no contexto do cinquentenário do Concílio Vaticano II significa aprofundar origem e alcance da “natureza missionária” (cf. AG 2) de todos os batizados. “Fidelidade”, nessa reconstrução, só faz sentido se houver “audácia” na recepção, nos aggiornamentos contínuos e na projeção do Vaticano II.

4. Três ajustes importantes na “Virada Popular”

O Vaticano II produziu muitos frutos. Todavia, falta algo para concretizar a “virada popular”. Deus escuta os dois gritos de seu povo: o grito por justiça dos pobres e o grito por misericórdia dos pecadores. “A conversão a Deus consiste sempre na descoberta da sua misericórdia” (DM 13,6). Essa conversão passa por três retomadas da “virada popular”, por três ajustes:

- a opção pelos pobres há de ser com os pobres/outros como sujeitos;

- a opção pelos e com os leigos e leigas como povo de Deus;

- e a opção por inculturação, encarnação e aggiornamento, que são pressupostos de uma Igreja universalmente autóctone em diálogo com o mundo. Nestes três ajustes, O Irmão Carlos tem muito a nos ensinar.

4.1. Os pobres e os outros: sujeitos e mediadores

A “opção pelos pobres” e “pelos outros”, que se tornou linha mestra da reflexão teológica da AL, precisa hoje transfigurar-se em “opção com os pobres/outros” e “opção dos próprios pobres/outros” de uma Igreja povo pobre de Deus. Aparecida reconhece que os pobres “se fazem sujeitos da evangelização e da promoção humana integral [...] e dão vida ao peregrinar da Igreja” (DAp 398). “Quantas vezes os pobres e os que sofrem [...] evangelizam realmente” (DAp 257) a Igreja! Todas essas frases de efeito e benevolência para com os pobres nos documentos da Igreja ainda refletem certo paternalismo e um divórcio sociológico entre pobres e Igreja. A Igreja parece fazer algo para alguém que ainda não é Igreja.

Quando Aparecida afirma que “a Igreja é [...] casa dos pobres” (DAp 8) tem-se a impressão de que os pobres e os outros, nessa casa, habitam um quartinho de empregada ou são inquilinos e não proprietários. Também a “Igreja samaritana” (DAp 26) ainda é uma benfeitora dos pobres e não expressa sua subjetividade na Igreja pobre.

Aos pobres, sujeitos da evangelização integral, corresponde seu estatuto mediador da graça: “O encontro com Jesus Cristo através dos pobres é uma dimensão constitutiva de nossa fé” (DAp 257). Um comprometimento mais próximo com os pobres (cf. DAp 396), com a intenção de fazê-los realmente sujeitos na Igreja que desde seu batismo já são, aponta não só para uma conversão eclesial, mas para uma reestruturação pastoral que ainda não aconteceu (cf. DAp 396).

4.2. Os leigos: sacerdotes, profetas, apóstolos

Até a véspera do Vaticano II, o papel dos leigos na Igreja era o de um auxiliar e subordinado do clero. O Concílio rompeu com essa visão. A Igreja, antes de qualquer diferenciação em funções, carismas e ministérios, é povo de Deus, comunidade fraterna com uma igualdade constitucional (cf. LG 37). Os Leigos participam do sacerdócio comum dos fiéis (LG 34), do “múnus profético de Cristo” (LG 12; 35,1) e do apostolado. Essa visão do Vaticano II espera ainda por sua tradução pastoral: “O apostolado dos leigos é participação na própria missão salvífica da Igreja. A este apostolado todos são destinados pelo próprio Senhor através do batismo e da confirmação. [...] Assim todo leigo, em virtude dos próprios dons que lhe foram conferidos, é ao mesmo tempo testemunha e instrumento vivo da própria missão da Igreja `na medida do dom de Cristo´” (LG 33,2). Geralmente, o estatuto laical participativo não avançou além de uma função consultativa. A escassez ministerial, que põe em risco a pastoral ordinária, ainda não conta, como deve, com a participação do povo de Deus, também na elaboração de alternativas.

A questão dos leigos é uma causa do povo de Deus, uma causa evangélica da igualdade dos filhos e filhas de Deus. O conjunto do povo de Deus, certamente, teria mais soluções para os problemas pastorais atuais do que um pequeno grupo clerical. O Espírito sopra onde quer. Ao definir a Igreja como “mistério” e como “povo de Deus”, o Vaticano II nos deixou muitas tarefas. Houve pequenos avanços e, atualmente, retrocessos. A tarefa da “virada popular” como “virada laical” permanece desafiadora.

4.3. Igreja autóctone: inculturação e rosto próprio

O Vaticano II procurou, com espírito crítico, acolher a realidade de seus interlocutores que vivem inseridos numa cultura específica (microestrutura) e pertencem, ao mesmo tempo, à modernidade com

desafios e conquistas. Na lógica do Reino, “os pequenos”, as vítimas na estrada de Jerusalém para Jericó são caminhos da verdade e porta da vida; são lugar da epifania de Deus, por excelência. A questão social está estreitamente vinculada à questão da ortodoxia. Pecado significa também indiferença diante da exploração dos pobres e do desprezo aos que sofrem.

A “virada popular” do Vaticano II clama por uma Igreja autóctone que rompe com qualquer tipo de tutela colonial. Para que na prática pastoral possa responder à diversidade sociocultural, dispersão geográfica e necessidade espiritual do povo de Deus, ela precisa de certa autonomia para a ampliação, descentralização e reestruturação dos ministérios.

A preocupação pastoral com o êxodo de católicos e com a multiplicação das denominações evangélicas leva a repensar em profundidade o ministério eclesial. Implica reformulação do ministério ordenado na linha do serviço, despojado de autoritarismo e centralismo pastoral. Leva-nos a repensar a maneira como reinserir no ministério ordenado aqueles que o deixaram e estariam dispostos a retomá-lo na nova situação de vida. E, finalmente, cabe corajosa atitude inovadora diante das possibilidades ministeriais das mulheres e homens casados.

A Igreja autóctone será uma Igreja evangelicamente pobre. Por não ter cultura própria, ela não importa cultura, mas a empresta dos respectivos povos. Ela será serva, peregrina, hóspede, instrumento, sinal.

Ela tem rumo. Nasce e renasce ao pé da cruz, na perseguição e na fuga, no êxodo e na peregrinação. Para que servem os discursos do aggiornamento e da inculturação se não para a construção de uma Igreja autóctone, coerente com o Evangelho e relevante para o mundo?

Para nós que, às vezes, somos missionários de Fórmula 1 com pit-stop nas comunidades e aldeias indígenas, tudo anda muito devagar.

Queríamos que Lula desse o tiro de largada para a construção da “terra sem males” dos guarani; que Evo Morales lançasse a pedra fundamental do sumak kawsai, o bem viver, dos quechua, e que com a eleição do papa Bento XVI começasse o Reino de Deus na terra. Ledo engano. Eles deram um golpe duro à nossa mentalidade construcionista e intervencionista. Não esperemos de líderes políticos ou eclesiásticos a inauguração de um paraíso terrestre, que o próprio Jesus de Nazaré se recusou a instalar. Sumak kawsai, terra sem males e Reino de Deus são árvores pequenas, como um bonsai, às vezes, até invisíveis. Num jardim que cultivamos podem-se tornar realidade como dádiva e kairós.

Todos nós já recorremos à sombra dessas árvores, no quintal de uma Igreja despojada, que não tem pátria nem cultura, nem é dona de verdades, mas serva, samaritana, peregrina, hóspede, sinal. Ela tem rumo. Navegar é preciso. Na urgência do amor (2Cor 5,14), a nossa pastoral encontra tempo para se deixar interromper pelos pobres e pelos índios, para interromper os programas de aceleração de uma corrida ao abismo e puxar os freios de emergência. Na luta ampliamos a margem de nossa intervenção. Mas ao mesmo tempo experimentamos os limites dessa liberdade intervencionista. Para que serve então a utopia do Reino, da terra sem males, do sumak kawsay se ela nunca estará ao nosso alcance?

Ella está em el horizonte. Me acerco dos passos y ella se aleja dos passos. Caminho diez pasos, y el horizonte se desplaza diez passos más allá. A pesar de que camine, no la alcanzaré nunca. ?Para qué sirve la utopia? Sirve para esto: caminhar. (Eduardo Galeano)

Em que aspectos Charles de Foucauld e as Fraternidades foram precursores do Vaticano II? Como as Fraternidades podem contribuir para levar a diante o espírito do Concílio?


TERCEIRA MEDITAÇÃO

ENCONTROS COM CRISTO

Na história das origens do cristianismo, o encontro de Paulo deve ser colocado entre os fatos mais importantes. A vigorosa figura do apóstolo sobressai entre outros apóstolos e discípulos. Suas palavras e testemunho brilham como verdadeira luz (Mt 5,14-16) no sinuoso caminho dos homens e mulheres de todas as épocas. Tudo nele produz fascínio: o evento de Damasco, o amor apaixonado por Jesus e o ardente desejo de viver nele e para ele, o caminhar indefeso pelo mundo tangido e consumido pela irresistível missão de evangelizar (1Cor 9,16), a incansável e febril paixão pela Igreja, o ímpeto de sua ternura pelos irmãos e irmãs (Fl 1,7-8; 2,1-5).

1. Paulo persegue a Igreja

Os versículos iniciais de At 9 (ler 1-9) retomam o fio narrativo da presença de Saulo na morte de Estevão e sua posterior perseguição à Igreja de Jerusalém. O movimento de Jesus é identificado como “os discípulos do Senhor” (9,1), “os do Caminho” (9,2). Os discípulos são “homens e mulheres” (essa linguagem inclusiva aparece frequentemente nos Atos: 5,14; 8,3.12; 9,2; 22,4). Saulo pretende trazê-los amarrados para Jerusalém a fim de reintegrá-los à institucionalidade judaica, colocá- los novamente nos eixos.

O livro dos Atos lembra de modo expresso, doze vezes, o Saulo perseguidor: No episódio do apedrejamento de Estêvão (At 7,58); duas vezes no pequeno sumário sobre a perseguição da Igreja (At 8,1-3); quatro vezes na primeira narrativa da conversão de Saulo (At 9,1.5.13-14.21); três vezes ao falar ao povo no templo (At 22,4-5.8.19-20); e mais duas vezes no processo diante de Agripa (At 26,9-11.15).

Por que Saulo persegue a Igreja? Porque é um judeu autêntico, foi educado no zelo pelas coisas de sua religião, cumpre e defende com ardor os mandamentos da Torá. Zeloso que é, Saulo não aceita qualquer relativização da Lei. Também não pode concordar com aquelas ideias messiânicas sobre Jesus. Ele pertence ao grupo daqueles judeus que esperavam um Messias poderoso que, inclusive, livraria a nação judaica da dominação romana. Como poderia chamar de Messias a alguém que terminou sua vida numa cruz? Um escândalo, para Saulo! Loucura para os pagãos!

2. Mas, Jesus laçou Saulo no caminho de Damasco

Paulo se encontra com Cristo ressuscitado em suas vítimas. Jesus está vivo e corporalmente presente nos cristãos que Paulo persegue. Paulo vê Jesus Ressuscitado. Isso está explicitado em 9,17 e 27: testemunho de Ananias e Barnabé. O próprio Paulo dirá em suas cartas: “Por acaso não vi Jesus, nosso Senhor?” (1Cor 9,1; cf. também 15,8). Paulo cai por

terra e fica cego: “Embora tivesse os olhos abertos, não via nada”. Ele ainda não entende nada e resiste a crer; eis porque passou três dias sem ver, nem comer, nem beber. Paulo, depois de ver Jesus, fica cego, prostrado por terra como morto. Não conseguiu chegar aonde desejava ir e ingressou no “Caminho” que rejeitava, onde jamais imagina entrar.

O livro dos Atos narra três vezes a conversão de Paulo (9, 1-19; 22, 1-21; 26, 1-23). Para Lucas, este é o maior de todos os acontecimentos da Igreja dos primeiros tempos. Quando quer falar do sucesso que o anúncio cristão está alcançando por toda parte, Lucas refere-se às conversões em termos quantitativos: 3 mil convertidos (cf. At 2,41), 5 mil (cf. At 4,4), muitas aldeias (cf. At 8,25), todos os habitantes de uma cidade (cf. At 9,35).

Quando o convertido é alguém ilustre ou especial, Lucas dá um pouco mais de destaque ao episódio: o mago Simão (cf. At 8,9-24), um alto funcionário da rainha da Etiópia (cf. At 8,26-40), Cornélio, comandante romano em Cesareia (cf. At 10), o procônsul da ilha de Chipre (cf. At 13,6-12). Quando o convertido é muito especial mesmo, Lucas conta e reconta o episódio - é o caso de Paulo. De perseguidor obstinado e feroz, Paulo se torna o maior dos evangelizadores. Isto realmente merece destaque especial.

Algumas imagens bíblicas ajudam a compreender a radical transformação da vida de Paulo.

a) Queda: “Tu me seduziste, Senhor, e eu me deixei seduzir. Foste mais forte que eu e me venceste” (Jr 20,15). Jesus não pediu licença: entrou sem mais e o derrubou. Caído no chão ele se entrega.

b) Luz: “Vi em volta dele uma luz de brilho faiscante, parecendo fogo...Esse brilho em torno dele parecia o arco-íris, que surge nas nuvens em dia de chuva. Era a aparência visível da glória de Javé. Quando vi, caí imediatamente com o rosto no chão, e ouvi a voz de alguém que falava comigo” (Ez 1, 27-28). No caminho de Damasco Saulo é envolvido por uma grande luz – em pleno meio-dia, sol a pino, luz intensa; no entanto, a luz que Paulo vê é mais brilhante que o sol; ele cai por terra e fica cego. Luz e queda simbolizam um momento de lucidez total.

Paulo revê toda a sua vida e faz a experiência de Deus presente nos discípulos/as de Jesus. Ressuscita quando é acolhido na comunidade como irmão. Morre o perseguidor, ressuscita o profeta.

c) Aborto: “Em último lugar apareceu também a mim, que sou um aborto” (1Cor 15,8). O Senhor arrancou Paulo da vida que levava como uma criança extraída a força (com forceps) do ventre materno.

d) Laço: “Não que eu já tenha conquistado o prêmio ou que já tenha chegado à perfeição; apenas continuo correndo para conquistá-lo, porque eu também foi conquistado por Jesus Cristo” (Fl 3,12). Paulo foi apanhado, laçado. Imaginamos alguém correndo atrás dele com um laço na mão, tentando apanhá-lo e segurá-lo.

3. Onde estavas, Saulo, quando Jesus te conquistou?

A resposta encontra-se no texto autobiográfico da carta aos Filipenses 3,4-6 e também em Gálatas 1, 11-24. Paulo afirma que Cristo o surpreendeu quando estava em plena posse de valores que lhe eram muito caros, recebidos de seu povo, de sua história e também conquistados a alto preço com seu esforço pessoal, com empenho de fariseu:

a) “circuncidado no oitavo dia”: não como os pagãos,

chamados com desprezo de incircuncisos, tratados como amaldiçoados, abandonados por Deus.

b) “israelita de nascimento, da tribo de Benjamim, hebreu filho de hebreus”: membro do povo eleito, conhece seu passado e a gloriosa geração que o entrelaça ao filho de Jacó.

c) “quanto à lei judaica, fariseu”: adepto da estrita observância da lei, do rigor moral absoluto, que vive as tensões espirituais profundas do judaísmo. Fariseu era nome glorioso que revestia os seguidores de alto conceito moral e espiritual e angariava a simpatia de muitos. Além disso, é bom lembrar que o farisaísmo é uma tendência que acompanha pessoas boas e esforçadas.

d) “quanto ao zelo, perseguidor da Igreja: os cristãos eram vistos como uma excrescência dentro do judaísmo, um câncer que deveria ser extirpado antes que se alastrasse.

e) “quanto à justiça que se alcança pela observância da lei, irrepreensível”: qualifica-se a si mesmo como “homem justo”.

É a mesma palavra de louvor aplicada a José. Assim também são descritos os pais de João Batista, Zacarias e Isabel; ambos eram justos. O louvor máximo que se pode dar do ponto de vista bíblico, Paulo o aplica a si: irrepreensível, sem reprovação.

Poderia ter dito: “Quem de vós poderá me acusar de um pecado?” ou “nada havia em mim que se pudesse censurar do ponto de vista da lei”. Sabemos como eram minuciosas as leis e complicadas as prescrições rituais. Havia 613 leis que correspondiam aos 365 dias do ano e aos 248 ossos do corpo humano.

Portanto, Paulo é encontrado numa situação privilegiada em que possui ricas tradições herdadas e adquiridas: um conjunto de grandes bens que lhe são imensamente caros, descritos por ele com intensa emoção. Se reparamos bem, Paulo enumera sete atributos pessoais, descritos como vantagens, superioridade, méritos, motivos de glória.

Quem conhece um autêntico hebreu sabe com que convicção confessa sua estirpe e eleição. O ser hebreu é algo que lhe penetra na carne como uma segunda natureza, um modo de ser irrenunciável. Um caso típico é o de Simone Weil. Ela intuiu com lucidez os mistérios do batismo, da eucaristia, da oração e escreveu páginas, talvez entre as mais belas, sobre a vida cristã, o trabalho, e a contemplação, mas nunca chegou a ser batizada. Embora tendo uma intuição da verdade e da beleza do cristianismo, morrendo de vontade de alimentar-se da eucaristia na qual descortinava o ápice da história e da criação, sentiu-se até o fim bloqueada pela plenitude da crença judaica e também pela necessidade de solidariedade com seu povo martirizado pelo holocausto do nazismo.

4. Para que direção o Senhor te conduziu?

Jesus aparece a um discípulo chamado Ananias e lhe ordena que vá visitar Paulo. Ananias resiste: “Senhor, já ouvi muita gente falar mal deste homem e do mal que fez aos teus fiéis em Jerusalém. E aqui em Damasco ele tem plenos poderes para prender todos os que invocam o teu nome” (9,13). O Senhor insiste: “Vá, porque esse homem é um instrumento que eu escolhi para anunciar o meu nome aos pagãos” (9,14).

Então Ananias entra na casa onde Paulo se encontra, acolhe-o como irmão (esta palavra aparece setenta vezes nos Atos) e lhe impõe as mãos. Paulo que se julgava um mestre sábio e considerava as comunidades cristãs um câncer dentro de judaísmo, sente-se curado pela comunidade.

Recupera a vista através do ensino dos apóstolos, é batizado e fica cheio do Espírito Santo. Depois se levanta (verbo que significa ressuscitar!), se alimenta e recupera as forças. Assim, Paulo ressuscita física e espiritualmente.

O próprio Paulo nas cartas aos Filipenses e Gálatas revela que o Senhor o conduziu a um total desapego daquilo que antes, sob qualquer hipótese, lhe parecia irrenunciável. “Por causa de Cristo, porém, tudo o que eu considerava como lucro, agora considero como perda. E mais ainda: considero tudo uma perda, diante do bem supremo que é o conhecimento do meu Senhor Jesus Cristo. Por causa dele perdi tudo e considero tudo como lixo, a fim de ganhar Cristo e estar com ele” (Fl 3,7-8).

Não se trata de um conhecimento puramente intelectual, mas de um conhecimento-encontro. É por isso que Paulo afirma ter sido alcançado (capturado, laçado) por Cristo (Fl 3,12). Aos Gálatas, Paulo apresenta o seu conhecimento de Cristo como resultado de uma revelação: “O Evangelho anunciado por mim... eu não o recebi nem aprendi de homem algum, mas por revelação (apocalipse) de Jesus Cristo” (Gl 1,11-12).

Em nenhuma das duas passagens, trata-se propriamente de uma “conversão” de Paulo, mas de um encontro-conhecimento-revelação que o fez descobrir a justiça de Deus de uma forma diferente da que ele procurava antes. Antes, Paulo procurava a justiça na Lei, diante da qual ele se considerava irrepreensível (Fl 3,6). Agora, ele procura a justiça de Deus, que vem por meio do conhecimento de Cristo (Fl 3,9).

Paulo não diz se Jesus revelou tudo de uma vez ou em várias etapas. O que é evidente é que ele recebeu uma iluminação tão forte que o levou a uma mudança radical de rumo na existência. De um golpe, rejeitou tudo o que para ele era valor absoluto, para entrar no caminho que mais odiava.

Será que depois dessa conversão houve outras de tamanha radicalidade?

Quando Jesus lhe pergunta: “Por que me persegues?”, Paulo compreende, de repente, que confundiu miseravelmente a verdade. Foi um terrível choque, não através de um raciocínio, mas de um encontro-revelação, dar-se conta de que era preciso refazer tudo. Paulo não era um pecador antes de sua “conversão”, mas um homem justo, correto segundo a Lei. Depois do seu encontro com Cristo, Paulo continua procurando ser justo, porém de um modo totalmente diferente: não na lei, mas em Cristo. Esse encontro com Cristo é a raiz de sua vocação e também da escolha em função da evangelização dos gentios. “Deus, porém, me escolheu desde o seio materno e me chamou por sua graça.

Ele houve por bem revelar em mim o seu Filho para que eu o enunciasse entre os gentios” (Gl 1,15). É surpreendente que os dois fatos, conversão e vocação, aconteçam juntos: no mesmo instante em que Jesus o faz compreender que errou redondamente, confia-lhe uma exigente missão.

Toda sua vida, teologia e missão estarão marcadas por esse encontro-iluminação-revelação pessoal de Jesus.

Paulo deixou para trás a vida na lei, segundo a carne, para seguir a vida em Cristo, segundo o Espírito. Despoja-se de tudo o que era vantagem e glória na prática do judaísmo para seguir o Cristo Crucificado e anunciá-lo aos gentios.

O encontro de Paulo no texto dos Atos, iluminada pelos textos das cartas acima citados, desafia-nos a refletirmos sobre nossa própria conversão, como pessoas ou como Igreja. Estamos realmente convertidos? Encontramos o Cristo Crucificado-Ressuscitado? De que maneira, como e quando? Encontramos realmente o Cristo nos pobres e excluídos? E, nesse encontro pessoal com Cristo, dá-se um conhecimento ou uma revelação com a profundidade semelhante a de Paulo? Esse conhecimento me leva a considerar os privilégios e seguranças religiosas como perda e lixo? Cristo não será para muitos católicos apenas uma doutrina ou uma mera figura histórica do passado?

Há pessoas na Igreja que são como Saulo antes do encontro com Cristo, perfeitas segundo a lei. São pessoas boas que buscam a Deus no fiel cumprimento da lei, na observância do direito canônico. Muitas dessas pessoas encontram-se em movimentos eclesiais, preferencialmente conservadores. Elas são boas e perfeitas segundo a lei; mas, será que se encontraram pessoalmente com Cristo? O relato do jovem rico (Mc 10, 17-31) possibilita-nos fazer um paralelo entre quem é simplesmente “correto” e quem é discípulo de Jesus.

O exemplo de Dom Oscar Romero ajuda-nos a ilustrar esta comparação. Um biógrafo que o conhecia, descreve-o como alguém que foi “correto” durante 60 anos. Quando foi transferido de Esteli para San Salvador, os comandantes da ditadura militar e as elites dominadoras do país saudaram-no como um deles. E de fato, durante algum tempo, Dom Romero procurou permanecer em cima do muro, procurando ser pastor de todos. Até o dia em que assassinaram o Pe Rutílio Grande, seu amigo pessoal e confidente.

A partir deste martírio, colocou-se definitivamente ao lado dos pobres massacrados, vítimas da cruel ditadura. Autêntico discípulo do Mestre! Bastaram-lhe apenas três anos para ser morto violentamente como o próprio Jesus.

Leitura Orante:

Três relatos do encontro de Paulo At 9, 1-30; 22,1-21; 26,1-23; Mc 10,17-31

Meu itinerário espiritual:

Lembrar acontecimentos, pessoas, encontros marcantes em minha conversão.

O que ainda falta, em minha conversão, para me tornar autêntico discípulo missionário de Jesus?


QUARTA MEDITAÇÃO

A CRUZ NA VIDA DO DISCÍPULO DE JESUS

“Se alguém quiser ser meu discípulo, tome a sua cruz e me siga” ( Mc 8,34).

Em toda a sua vida, Jesus não fez outra coisa se não rebaixar-se. Escolheu de tal modo o último lugar que ninguém lhe poderá tirar” (Charles de Foucuald). “Pensa que deves morrer mártir, despojado de tudo, estendido no chão, nu, irreconhecível, coberto de sangue e de ferimentos, violenta e dolorosamente assassinado... e deseja que seja hoje” (Foucuald). “Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, fica só um grão de trigo. Mas se morrer produzirá muito fruto” (Jo 12,24).

O hino Cristológico – Fl 2,5-11 – Coração da carta, resumo do Evangelho de Paulo, ajuda-nos a compreender “ busca do último lugar” na vida de Jesus e do Irmão Carlos.

Os filipenses estavam confusos porque havia surgido falsos pregadores: os judeus-cristãos ou judaizantes. Além de continuar exigindo a circuncisão e a pratica da lei, anunciavam uma cristologia de milagres, concepção “triunfalista” de Cristo, ressurreição sem a cruz. Essa tendência existe também hoje. Certos movimentos vivem à caça de milagres e revelações extraordinárias.

Se o apóstolo prega um evangelho falso, não é um verdadeiro apóstolo, mas um “cão” (insulto dos judeus aos pagãos, portanto, devolve o insulto aos próprios judeus), “um mau operário” e “falso circunciso” (3,2-3) pois confiam na carne-lei.

Para Paulo o que permite fazer o discernimento, a distinção entre falso e verdadeiro evangelho é a cruz. O Evangelho de Cristo está centrado na cruz. “Stat crux dum volvitur orbis” (Cruz permanece enquanto o mundo gira) é o lema dos monges cartuxos. O Evangelho que não coloca a cruz no centro, não é o evangelho de Jesus Cristo. “Entre vós não quis saber

de outra coisa a não ser de Jesus Cristo, e Jesus Cristo Crucificado” (1 Cor 2,2) A cruz é loucura para os judeus, escândalo para os pagãos, mas salvação para os que crêem ( 1Cor 1, 17-31). O que faz a autenticidade da pregação de Paulo é o seguinte:

Paulo afirma com toda a radicalidade que há somente um meio de libertação: a cruz de Cristo. Opõe-se a todos os que buscam apoio nas suas tradições religiosas, em ritos, manifestações de poder. Por exemplo, anunciar a cruz de Cristo é excluir a necessidade da lei dos judeus ou da circuncisão.

A cruz é o caminho seguido por Jesus, que renunciou a todos os privilégios e a todos os poderes que lhe davam superioridade. Renunciou aos direitos de Deus (onisciência, onipresença, onipotência) e também aos diretos de um homem livre. A cruz é esvaziamento de todo o poder.

Significa a condição de escravo condenado injustamente e expulso do seu povo para morrer como um reprovado, visivelmente rejeitado até por Deus. Paulo segue Jesus no seu aniquilamento. Renunciou a tudo o que ele era, a qualquer forma de privilégio ou poder. Tudo espera de Cristo.

“Para mim o viver é Cristo” (1,20). “Perdi tudo a fim de ganhar Cristo e estar com ele” (3,8).

O Evangelho da cruz é o esvaziamento que se manifesta na perseguição, na prisão, no opróbrio da morte crucificada, que é a morte de um excomungado-herege. Paulo prega a cruz de Cristo porque pessoalmente está sendo perseguido, preso, sob a ameaça de morte, mas está disposto a aceitar esta morte por Cristo, com Cristo. Quem prega um evangelho que não inclui o perigo de prisão, perseguição, e morte, não prega o evangelho da cruz.

Por fim o evangelho da cruz significa o serviço a todos. Jesus escolheu a condição de escravo, isto é, homem obediente que serve aos outros, escravo voluntário pelo bem dos outros. Por isso, Paulo nada quer para si mesmo, somente o bem da comunidade. Em virtude deste caminho da cruz Paulo quer subsistir pelo próprio trabalho para que ninguém viesse a cogitar que ele evangelizava em função do salário ou outras regalias.

Outras motivações que levaram Paulo a optou pela sobrevivência através do trabalho de fabricante de tendas e sapatos: não ser pesado a ninguém, dispor de recursos para partilhar com os mais pobres, identificação com Jesus, “o filho do carpinteiro”. Por fim, o trabalho é a porta de entrada para a vida, cultura, sofrimentos e esperanças dos pobres. O trabalho para Paulo foi um jeito de assumir e testemunhar o Evangelho da cruz.

Evangelizar a partir do lugar dos pobres. Fiz esta experiência trabalhando um ano como varredor de rua em Salvador-BA, em 1981.

A ajuda que aceitou dos filipenses foi uma exceção motivada pelo serviço dos próprios filipenses. Timóteo, fiel discípulo de Paulo, também se tornou “escravo do evangelho” (2,2; 2,19-23). Epafrodito, participa do mesmo espírito, veio servir Paulo na prisão, arriscou a vida já que no seu serviço ficou doente e quase morreu (2, 25-30). Os filipenses também estão do lado da cruz de Cristo. Solidarizam-se com Paulo na sua prisão.

São fiéis e não se deixam seduzir pelos falsos apóstolos. Colaboram na evangelização, por isso merecem amor tão grande de Paulo.

Se este é o evangelho da cruz, é evidente que o hino cristológico exprime exatamente o conteúdo do evangelho. Por isso o lugar que ocupa na carta é realmente central. Paulo achou neste hino a melhor expressão condensada do evangelho. Sem dúvida é o resumo do evangelho de Paulo e tem importância única na pregação do apóstolo. Provavelmente este hino era cantado nas comunidades cristãs. Trata-se portanto de um testemunho de primeira grandeza sobre a fé da igreja primitiva. O hino cristológico constitui o verdadeiro coração de toda a carta, mas não só, é também o ponto mais alto da cristologia das cartas de Paulo e de todo o N T, uma das revelações mais profundas do cristianismo.

O evangelho da cruz é o evangelho de Jesus porque ele mesmo seguiu o caminho da cruz: abandonou qualquer apoio, qualquer poder e até qualquer dignidade humana. Aceitou a perseguição, a morte, a rejeição total e até do aparente abandono de Deus. Dedicou ao serviço dos irmãos todas as suas forças, fez-se obediente e nada quis para si. Por isso Jesus

é o missionário autêntico. Parecido com ele deverá ser todo o missionário verdadeiro. “Deus reservou para nós o último lugar” (1Cor 4,9-13). “O discípulo nunca será superior ao Mestre. Mas o discípulo autêntico será parecido com o Mestre” (Lc 6,40). “A semelhança a é a medida do amor” (Charles de Foucauld).

O caminho de Jesus tem dois movimentos:

BAIXAR SUBIR

Humilhação Exaltação

Fez-se homem Recebe nome novo: Senhor Torna-se escravo Nova condição: Ressurreição Obediente até a morte Adoração ao nome de Jesus Morre crucificado No céu, na terra e no inferno Reduziu-se a nada Recebeu tudo.

O sujeito do primeiro movimento é o próprio Jesus que, consciente e livremente se despoja de tudo. O infinitamente grande fez-se infinitamente pequeno.

O sujeito do segundo movimento é Deus Pai que restitui tudo ao Filho e o torna Senhor. Cristo rebaixa-se. Quando alcança o ponto mais baixo da descida, o Pai o exalta e o faz subir ao ponto mais alto. A descida começa a partir do ponto mais alto. Cristo estava no nível de Deus. No fim, volta a esse mesmo nível. Mas para voltar aonde estava, ele desceu ao nível mais baixo possível nesta terra. O preço da encarnação foi a cruz. “Em toda a sua vida não fez outra coisa se não rebaixar-se. Escolheu de tal modo o último lugar que ninguém lhe poderá tirar”.

Dom Valfredo Tepe diz que Jesus veio entre nós para fazer pós-graduação em pequenez (manjedoura, cruz e Eucaristia). Redenção é dom: pobre como o presépio, eficaz como a cruz e vivificador como a Eucaristia.

Na mente de Paulo, este duplo movimento contém toda a novidade do evangelho. “Kenosis” significa esvaziamento, aniquilamento, redução a nada. Perdeu não somente o poder da divindade, mas também direitos naturais de um homem livre.

Jesus não se contentou em descer o primeiro degrau, aparecendo como homem. Desceu o segundo degrau, tomando a forma de homem pobre, oprimido, a condição de escravo humilhado pela perseguição injusta. Não foi escravo de nascença, nem de conquista, mas escravo voluntário: vida de serviço voluntário aos homens e nem se quer foi retribuído. Pelo contrário, seus serviços foram pagos com perseguições, humilhações e finalmente pela morte. Essa condição de escravo é o elemento mais visível e surpreendente do esvaziamento.

O terceiro degrau acentua, explicita ainda mais o segundo. Ser escravo é ser obediente. Esvaziar-se é humilhar-se. Aqui, porém, a condição de escravo vai até a morte e morte de cruz. Esta morte sublinha a ausência total de poder do escravo, pois a morte na cruz é uma morte maldita, escândalo para os judeus, loucura para os pagãos!

A cruz na teologia de Paulo é a expressão extrema da condição de escravo e do esvaziamento de todo o poder. É o quarto degrau na descida de Jesus até a impotência total, até a eliminação de todas as forças e todas as dignidades. Reduziu-se a nada. “É maldito quem morre na cruz”. Em Jesus a obediência ao Pai e a solidariedade com os homens encontrou na cruz a sua realização extrema e paradoxal até o grito: “Meu

Deus, por que me abandonaste?” Aqui acontece a suprema epifania da kénose do Filho, epifania do Amor que se doa sem nada pedir em troca.

Depois da descida vem a subida. Depois da humilhação vem a exaltação. Não se trata de uma simples sucessão, mas há um laço de causalidade entre os dois movimentos. O elo de ligação encontra-se na expressão: “Por isso Deus o exaltou”. A cruz foi a última palavra na vida terrena de Jesus, mas não foi a última palavra de Deus sobre ele. Porque entregou tudo, o Pai lhe devolveu tudo: a glorificação através da ressurreição. O que se fez o último, o baixíssimo, agora é o altíssimo.

Não há caminho de subida, não há caminho para o Reino de Deus que não seja passando pela humilhação. “Se o grão de trigo caído na terra não morrer, não produzirá fruto” (Jo 12,24). A cruz está no coração do evangelho de Marcos: “Quem quiser ser meu discípulo... Quem guardar a vida para si vai perdê-la” (Mc 8,34-35: texto “dobradiça” entre as duas partes do evangelho de Marcos). O caminho da cruz é a etapa inevitável para Jesus e para todos quantos queremos participar do seu Reino. O “por isso” já estava no Cântico do Servo de Javé (Is 52, 13 e 53,12).

Existe naturalmente uma marcante oposição entre o escravo que Jesus foi e o Senhor que começou a ser com a ressurreição. O escravo torna-se Senhor pelo poder de Deus. Aquele que os homens trataram como escravo obediente e humilhado, Deus o tratou como Senhor. Por isso, ele merece a adoração devida somente a Deus (Is 45,23). Se Jesus merece esta homenagem é porque recebeu o Nome de Deus e com o nome todos os direitos e atributos de Deus. Céu, terra e inferno expressam a totalidade do universo em adoração a Deus.

O hino culmina com a profissão de fé: “Toda a língua confesse: Jesus Cristo é o Senhor para a glória de Deus Pai”. Esta é a profissão de fé dos primeiros cristãos europeus evangelizados por Paulo. Ao cantar esse hino a comunidade se associa à criação inteira redimida pela Morte e Ressurreição do Kyrios. A liturgia acompanha a adoração do mundo inteiro.

Tiremos algumas conclusões para nossa vida e ministério.

“Kénosis”: “Tende em vós os mesmos sentimentos que havia em Cristo” (2,4). Em nossa vida e ministério somos convidados a seguir o mesmo caminho de Jesus, a mesma prática de despojamento, esvaziamento de si, escravo voluntário que se coloca livre e generosamente a serviço de todos. Coração da caridade pastoral é dar a vida. Se somos seguidores do Mestre e Senhor que escolheu em tudo o último lugar, como podemos estar entre os que buscam o primeiro lugar?

“A semelhança é a medida do amor”.

Todo e qualquer triunfalismo pessoal, eclesial, pastoral é antievangélico. Clericalismo, concorrência, carreirismo, autoritarismo estão na contramão do evangelho. Ministério quer dizer “minus stare”, estar

abaixo para lavar os pés de todos (Jo 13,1-17). O “minus stare” deve visibilizar-se na pobreza, austeridade, humildade. O ministério ordenado tem radical forma diaconal. O Vaticano II restaurou o diaconato permanente para questionar o presbiterado e episcopado. Não recebemos a ordenação diaconal como simples degrau para a ordenação presbiteral, mas para sermos a vida inteira presbíteros servidores.

A kénose no seguimento de Jesus nos leva a mergulhar no abismo do sofrimento e da miséria humana de milhares de brasileiros para, através da força do Ressuscitado reerguer homens e mulheres decaídos e excluídos. “Pobres sempre tereis no meio de vós” ( Mc 14,17 ). Mas, se não forem bem recebidos em nossas Igrejas e instituições, ou pior ainda, forem tão mal recebidos e maltratados como o são nas repartições públicas, em que outro lugar poderão esperar acolhida, atenção e respeito?! Quanto maior for a miséria, tanto maior deverá ser a misericórdia. “Tudo o que fizerdes ao menor dos meus irmãos, é a mim que o fazeis” (Mt 25, 40).

Opção pelos pobres é colocar-se ao lado dos crucificados e sofrer o desprezo e rejeição que recai sobre eles. Quem trabalha na Igreja de Roraima sente em sua própria pele todos os preconceitos, desprezo e rejeição que os não índios manifestam pelos índios. “Para ser missionário em Roraima é preciso ter vocação para o martírio” disse Dom Jayme Chemello na visita que nos fez quando ainda era presidente da CNBB. “É preciso tocar as chagas do Crucificado para encontrar o Ressuscitado”, dizia o texto-base da Campanha da Fraternidade de 1995, dedicada aos excluídos. Conferir “Carta aos Presbíteros”, n. 40, 41 e 45. Recomendação dos apóstolos a Paulo: “Eles pediram apenas que nos lembrássemos dos pobres, e isso eu tenho procurado fazer com muito cuidado” (Gl 2,10). “Os pobres são os nossos mestres”. “Os pobres nos evangelizam” (Puebla).

Quais são as cruzes que mais me pesam em minha vida e ministério? Como reajo diante delas? Onde encontro forças para carregá- las? Como ajudo os pobres e sofredores a carregar a cruz?

Leitura Orante: 1Cor 1, 17-31 e Gl 6,11-14.

Hino Cristológico de Filipenses

Jesus Cristo sendo Deus,\

Disso não se aproveitou. Rebaixou-se a si mesmo,\ Feito escravo se encontrou. Ser igual a um de nós\ Era pouco pra Jesus;\

Humilhou-se e obedeceu.\

Indo até morrer na cruz. Deus, por isso, o elevou,\

E um nome tal lhe deu;\

Que se curvem diante dele\

O inferno, a terra e o céu. Toda a língua então confesse\

Para a glória de Deus Pai,\

Jesus Cristo é o Senhor.\

Para a glória de Deus Pai. Ofereço este bendito\

Ao Senhor daquela Cruz; Ao seu Pai e ao Divino\ Toda a Glória! Amém, Jesus!


QUINTA MEDITAÇÃO

EVANGELIZAR – “GRITAR O EVANGELHO COM A VIDA”

Evangelizar é uma necessidade que se me impõe. Ai de mim se não evangelizar” (1Cor 9,16).

Para tornar conhecido o Evangelho, estou disposto a ir até o fim do mundo e a viver até o juízo final” (Foucauld).

Paulo e Charles de Foucauld são dois convertidos apaixonados por Jesus e pela causa do Evangelho. Vamos contemplar estes dois irmãos na fé e na missão.

Creio que não há versículo que em tão poucas palavras caracterize melhor o apóstolo das gentes do que Rm 1,1:”Paulo, servo de Cristo Jesus, chamado para ser apóstolo, separado para o evangelho de Deus”. O apóstolo inicia sua carta aos Romanos revelando sua identidade, convicto de que o Senhor o “chamou por sua graça” (Gl 1,13).

Paulo não se apresenta aos Romanos como Doutor da Lei, como Mestre em teologia bíblica ou como Escriba que “penetra na sutileza das parábolas” (Eclo 39,2), nem mesmo como Profeta que fala “da parte de Deus” (cf. 2 Pd 1,21). Paulo renuncia a títulos acadêmicos. O título com que se apresenta é, no mínimo, inusitado para quem quer ser portador de uma mensagem alvissareira. Ele simplesmente se entende como “servo”. Apresentar-se-á do mesmo jeito, junto com Timóteo, aos Filipenses (Fl 1,1) para informar à comunidade de que não fala nem escreve em nome próprio, mas sim em nome de Cristo Jesus a quem serve. O termo grego em português: “doulós”, significa primeiramente “escravo”. Escravo é quem depende total e exclusivamente de seu Senhor, é-lhe submisso no que der e vier, obediente sem nunca reclamar, fiel cumpridor das ordens recebidas sem questionar motivos nem porquês.

Desde a experiência de Damasco, Cristo é o Senhor absoluto, é Ele quem o orienta, dirige, impulsiona, entusiasma. Paulo entra numa total dependência do Senhor: “Tudo considero perda, pela excelência do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor. Por ele, perdi tudo e tudo tenho como esterco, para ganhar a Cristo e ser achado nele”. (Fl 3,8-9) Paulo é instrumento nas mãos do Senhor, sua irrestrita propriedade.

Coloca-se de modo incondicional a serviço do Senhor e o justifica: “Se quisesse agradar aos homens, não seria servo de Cristo”. (Gl 1,10).

O servo pertence ao Senhor. Aos Romanos ele escreve que essa pertença nem se rompe com a morte, ultrapassa todas as dimensões imagináveis: “Pois ninguém de nós vive e ninguém morre para si mesmo, porque se vivemos é para o Senhor que vivemos, e se morremos é para o Senhor que morremos, Portanto, quer vivamos quer morramos, pertencemos ao Senhor”. (Rm 14,7-8)

Paulo é um perito na Lei e nos Profetas, “educado aos pés de Gamaliel” (At 22,3). Assim, “servo” – “escravo” tem para ele uma forte conotação bíblica. Falava fluentemente grego (At 21,37), mas sua língua materna é o hebraico (At 22,1). Se ele usa a palavra grega “doulos”, ele pensa em “ebed” e “doulos” o remete ao “ebed IHWH” da Lei e dos Profetas.

A palavra “ebed” evoca toda a teologia do “Servo Sofredor” que se baseia nos comoventes “cantos do servo” (Is 42,1-9; Is 49,1-6; Is 50,4- 11; Is 52,13 – 53,12). São duas dimensões que caracterizam o “servo”: a irrestrita submissão: “Foi oprimido e afligido, mas não abriu a sua boca; como um cordeiro foi levado ao matadouro, e como a ovelha muda perante os seus tosquiadores, assim ele não abriu a sua boca” (Is 53,7) e, ao mesmo tempo, a mais absoluta, indelével, irrevogável confiança em Deus: “Perto está aquele que defende a minha causa. Quem ousará mover ação contra mim? (...) o SENHOR DEUS me socorrerá” (Is 50,8-9).

Desde a morte martirial do Senhor, do “servo sofredor” por excelência, perseguição e morte dos servos e servas de Cristo Jesus nunca mais se afastaram da Igreja até os nossos tempos. O sangue derramado de Estêvão que “viu os céus abertos e o Filho do Homem, de pé, à direita de Deus” (At 7,56) é, sem dúvida, a semente da conversão de Saulo (At 7,58). Impressiona-o imensamente que um jovem como Estevão chega a preferir a morrer apedrejado do que negar sua fé em Cristo Jesus.

As últimas palavras do mártir “Senhor Jesus, recebe o meu espírito” não o deixam mais tranquilo. A experiência de Damasco foi o desfecho dessa conversão que se opera no coração e na mente de Saulo que se tornou Paulo. Nunca mais se desvia do “Caminho” e abraça todo tipo de sofrimento por causa do nome do Senhor (cf. At 9,16; 2 Cor 11,23-28), pois anunciar o Evangelho de Deus é a paixão de sua vida. Basta-lhe a graça divina (cf. 2 Cor 12,9).

Paulo explica que ser “servo” vai até o âmago, o cerne da pessoa, até o fundo da alma. “O serviço dos “servos de Cristo” vai até ao extremo: “fazem de coração a vontade de Deus”, traduzido ao pé da letra: “põem a alma em atender a vontade de Deus”. (Ef 6,6).

Ser “servo de Cristo Jesus” significa para Paulo profundo amor e irrevogável fidelidade. “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim. Minha vida presente na carne, vivo-a pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim” (Gl 2,20). “Tudo que para mim era lucro, tive-o como perda, por amor de Cristo!” (Fl 3,7) No Evangelho de São João o próprio Jesus esclarece: “Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que seu Senhor faz; mas vos chamo amigos, porque tudo o que ouvi de meu Pai vos dei a conhecer. Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi e vos designei para irdes e produzirdes frutos e para que vosso fruto permaneça...” (Jo 15,15- 16).

O servo se torna amigo pela graça de Deus, porque o Senhor assim o determina. Doravante “nem a vida nem a morte, nem os anjos nem os principados, nem o presente nem o futuro, nem os poderes, nem a altura nem a profundeza, nem qualquer outra criatura poderá nos separar do amor de Deus manifestado em Cristo Jesus, Senhor nosso” (Rm 8,38-39).

CHAMADO A SER APÓSTOLO

São Jerônimo traduz: “vocatus apostolus”. Paulo é apóstolo por vocação, é um chamado específico que recebe.

São três elementos que caracterizam todas as vocações no Novo Testamento. A história da vocação dos primeiros discípulos no Evangelho de Marcos é paradigmática (Mc 1,16-20). Há um encontro, um chamado e uma reação ao chamado. Jesus caminha à beira do Mar da Galileia e vê Simão e o irmão deste, André, e, em seguida, os filhos de Zebedeu, Tiago e João. O encontro se dá no contexto corriqueiro do dia-a-dia, em meio aos árduos trabalhos da pesca. Sem introdução e motivação, sem nenhuma apresentação prévia, Jesus dirige-lhes o chamado que, ao mesmo tempo, é uma ordem e uma promessa: “Segui-me e farei de vós pescadores de homens”.

Pedro e André continuam o que são, pescadores, mas sua profissão é sublimada para outro nível, outra dimensão. Doravante serão “pescadores de homens”. Sua profissão se transforma numa vocação que ultrapassa as dimensões meramente humanas. O mar em que pescam se transforma no “mar da vida”, no compromisso com o mundo. São chamados para seguir a Jesus e crer na Boa Nova para dar testemunho e contagiar o mundo com a Boa Nova “O Reino de Deus está próximo”. (Mc 1,14).

A surpreendente reação dos quatro discípulos é a mesma: “deixaram” e “seguiram”. Não há nenhuma discussão preliminar acerca de perspectivas no futuro, em relação a possíveis desdobramentos para a vida particular de cada um e de sua família (o que será do velho Zebedeu que perdeu os filhos e ficou apenas com os empregados?), a imprevisíveis consequências para saúde, bem-estar e seguro de vida, a respeito da conjuntura a ser analisada e levada em conta, de decisões a serem tomadas “a curto, médio e longo prazo”. Nada disso! Pelo contrário, há um detalhe muito significativo. Não apenas “deixaram”, mas deixaram “imediatamente.”


Qual não foi o impacto que esse encontro com Jesus, às margens do Mar da Galiléia, causou! Que abalo na vida destes quatro pescadores! Deixaram a família, os colegas, deixaram as redes de trabalho, mas também toda a rede (o tecido) “social”, que lhes dava segurança, estabilidade, futuro. Trocaram o presente certo por um futuro incerto e misterioso, uma vida instalada por uma vida sem previsões e provisões.

Onde e quando terminará este caminho? Não o sabem. Estão apenas no começo, mas já sentem no fundo da alma que não haverá mais retorno. E o caminho será pautado não apenas pela alegria de missões bem sucedidas “Senhor, até os demônios nos obedecem por causa do teu nome” (Lc 10,17), mas também por tremendas faltas de compreensão e por crises agudas de desânimo e medo, de modo que o próprio Jesus passa a censurá-los “Por que sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?” (Mc 4,40).

Na vocação de Saulo há os mesmos três elementos: o encontro, o chamado e a reação ao chamado, embora em circunstâncias bem diferentes.

Há três relatos nos Atos dos Apóstolos (At 9,1-22; At 22,4-16; At 26,9-18) e uma referência sucinta, mas muito expressiva, na Carta aos Gálatas (Gl 1,11-17). Saulo mesmo confessa que “perseguia e devastava a Igreja” (Gl 1,12) e respirava “ameaças de morte contra os discípulos do Senhor” (At 9,1). Mas os planos de Deus são outros. Neste contexto de um incontido rancor e ódio virulento contra os “adeptos do Caminho” (At 9,2), Jesus entra na vida de Saulo e o derruba, faz com que caísse por terra.

O encontro de Jesus com Saulo não tem nada de delicado e deleitoso. É extremamente violento! Jesus não se encontra na paisagem bucólica da beira de um lago e dirige aos discípulos que escolheu a palavra “Segui-me!”. Aqui, às portas de Damasco, aparece como luz “vinda do céu e mais brilhante que o sol” e chama o jovem duas vezes pelo nome “Saul, Saul” e logo o imobiliza com a pergunta peremptória “por que me persegues?” “É duro para ti recalcitrar contra o aguilhão!” (At 26,14) ou como outros traduzem: “É inútil teimares contra o ferrão!” (CNBB) ou então “É inútil dar coices contra o aguilhão” (Peregrino). Não adianta dar murro em ponta de faca! Paulo mais tarde descreverá o acontecimento com imensa gratidão: “Ele me chamou por sua graça” (Gl 1,15). “Quem és, Senhor?” arrisca a perguntar. E a resposta é o chamado que divide a vida de Saulo em duas partes, uma antes, outra depois: “Eu sou Jesus, a quem tu persegues. Mas levanta-te e fica firme em pé, pois, este é o motivo por que te apareci: para constituir-te servo e testemunha da visão na qual me viste e daquelas nas quais ainda te aparecerei” (At 26,15-16).

Como o chamado de Jesus a Pedro e André, a Tiago e João foi incisivo e imperativo, também o de Saulo não é uma “consulta”, uma “sondagem” ou “pesquisa de campo” para ver se porventura vai aceitar um convite. Não! É nada romântico, indulgente, tolerante. É ordem, ditame, mandato! Não é opção, gosto, escolha. Alguém chama, insiste, agarra alguém é chamado com insistência, é agarrado. Mais tarde revelará aos Filipenses a impetuosidade do encontro com o Senhor às portas de Damasco: “Fui agarrado por Cristo” (Fl 3,12). Alguém chegou perto e segurou pela mão. Em português brasileiro coloquial: “pegou-me pelo cangote”. Jesus o agarrou, o cativou, dominou, conquistou.

Não foi uma ideia, uma visão atualizada da conjuntura, uma nova compreensão da história, uma tese filosófica ou um tratado teológico que o levaram a abandonar o velho caminho e mudar de rumo na direção diametralmente oposta. “Alguém” entrou em sua vida e causou um verdadeiro terremoto na sua existência. É uma pessoa que o chamou. A luz que envolveu Paulo naquele meio-dia diante dos muros de Damasco, impregnou de modo indelével o sinal da presença do Cristo glorioso. Doravante dará testemunho do Senhor “como se visse o Invisível”. (Hb 11,27) Jamais esquecerá a hora de Damasco como João nunca esqueceu a hora em que pela primeira vez encontrou o Mestre, aquela inolvidável “décima hora” (Jo 1,39). Chegou a um ponto, de onde nunca mais haverá retorno!

A chave para realmente compreendermos com que força o chamado do Senhor transformou a vida de Saulo está na Primeira Carta aos Coríntios quando ele exclama: “Evangelizar não a título de glória para mim, é, antes, uma necessidade que se me impõe. Ai de mim, se eu não evangelizar” (1Cor 9,16).

Paulo fala de sua missão de apóstolo, totalmente gratuita e usa a palavra grega “anarke” para descrever a razão de seu empenho, de sua missão. Essa palavra lembra um personagem nas tragédias gregas (p.ex. Sófocles, Antigone) que representa uma espécie de força cega, de fatalidade inexorável, o poder inescapável do destino, inclusive acima dos próprios deuses, aos quais não é permitido desobedecer-lhe, uma força impessoal e misteriosa que determina a sina do ser humano.

Por que Paulo usa esse termo para caracterizar sua condição de pregador do Evangelho? Por que empresta da mitologia grega a palavra “destino” que inculca medo, pavor, e indica a sina de que ninguém escapa?

Paulo, na realidade, não acha outro termo adequado para descrever sua própria experiência, a experiência do encontro comum Cristo, a total reviravolta que aconteceu em sua vida.

É claro que “anarke” para ele não se reveste mais de pavor e medo e não é mais um destino impessoal, sinistro, fatídico. “Anarke” é agora entrega total, irrestrita, incondicional ao Senhor. Nada no mundo poderá doravante separá-lo do Senhor. “Quem nos separará do amor de Cristo? A tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, os perigos, a espada?” (Rm 8,35). Quem uma vez bebeu desta fonte, quem uma vez entrou neste convívio, quem uma vez imergiu neste amor, nunca mais será o mesmo! “Tudo que para mim era lucro, tive-o como perda, por amor de Cristo!” (Fl 3,7).

Esta é mística da vocação de Paulo e não existe outra mística a não ser esta que é capaz de motivar e sustentar a vocação do discípulo, da discípula, do missionário, da missionária: “Por Ele, perdi tudo!” (Fl 3,8). Esta é a verdadeira e única base de toda vocação: “Por Ele!”, esta é sua mística e motivação existencial Não tem mais como largar!

Não consegue mais viver sem fazer de sua vida um ardoroso anúncio do Evangelho, um testemunho de sua fé, esperança e caridade. É impossível deixar de bradar pelo mundo afora, nas praças e nas ruas, nos lares e nas igrejas, de dia e de noite, que “Jesus Cristo é o SENHOR, para a glória de Deus Pai!” (Fl 2,11).

E, exatamente, esta é a reação de Paulo ao chamado de Jesus. “Imediatamente (...) começou a proclamar Jesus, afirmando que é o Filho de Deus” (At 9,20). “Imediatamente”, sem mais delongas. “Mãos à obra!” sem hesitação ou receio, sem meias-palavras, sem tibieza ou moleza!

Com “parrhesia”! O termo é usado no Novo Testamento (Atos dos Apóstolos), mas tem sua origem na antiga literatura grega, especialmente em Eurípides. Significa literalmente “toda a palavra”. Parrhesia é assim a decisão corajosa de dizer “tudo”, “toda a verdade” sem reter ou esconder nada. Há várias traduções. Somente todas juntas conseguem dar o verdadeiro sentido à palavra “parrhesia”: intrepidez, ousadia, firmeza, audácia, destemor, coragem, fidúcia, confiança, paixão, ardor, fervor. Cfr. At 4,13; 4,29; 4,31; 9,27; 13,46; 14,3; 19,8; 26,26; 28,31.

A V Conferência em Aparecida “deseja despertar a Igreja na América Latina e no Caribe para um grande impulso missionário. Não podemos deixar de aproveitar esta hora de graça. Necessitamos de um novo Pentecostes! Necessitamos sair ao encontro das pessoas, das famílias, das comunidades e dos povos para lhes comunicar e compartilhar o dom do encontro com Cristo, que tem preenchido nossas vidas de ’sentido’, de verdade e de amor, de alegria e esperança (...) Somos testemunhos e missionários: nas grandes cidades e nos campos, nas montanhas e florestas da Amazônia, em todos os ambientes da convivência social, nos mais diversos “areópagos” da vida pública das nações, nas situações extremas de existência, assumindo ad gentes nossa solicitude pela missão universal da Igreja” (DA 548).

Os tempos mudaram! A Igreja, na época de Paulo, ainda restrita a algumas regiões do Mediterrâneo, ultrapassou todas as fronteiras e vive em todas as culturas, mas o ímpeto missionário e a paixão que caracterizaram o apóstolo das gentes animam até hoje os discípulos(as) missionários(as) do Senhor. É “o amor de Cristo (que) nos impele” (2 Cor 5,14). Não faz diferença ler o que Paulo escreveu a Timóteo: “Eu sei em quem acreditei” , “Eu sei, em quem depositei a minha fé” (2 Tim 1,12) ou a palavra que Irmã Dorothy falou na última entrevista, poucos dias antes de ser assassinada. Mae Stang, estadudinense, naturalizada brasileira, pertencia à Congregação das Irmãs de Notre Dame de Namur. Chegou na Prelazia do Xingu em 1982 e morreu assassinada em 12 de fevereiro de 2005 aos 73 anos de idade no município de Anapu, a 140 km de Altamira. Defendeu as famílias de agricultores contra grileiros e madeireiros e lutou por projetos de colonização que respeitem a dinâmica de uso sustentável da floresta.

“Eu acredito muito em Deus e sei que ele está comigo.” É o mesmo ardor, a mesma paixão pelo Cristo e seu Reino que atravessa os séculos!

Concluímos como as palavras de Charles de Foucauld: “Toda a nossa vida, por mais silenciosa que seja, a vida do deserto, tanto quanto a vida pública, devem ser uma pregação do Evangelho pelo exemplo: toda a nossa existência, todo o nosso ser deve gritar o Evangelho sobre os telhados; toda a nossa pessoa deve transparecer Jesus, todos os nosso atos, toda a nossa vida deve gritar que somos de Jesus, deve aprestar a imagem da vida evangélica; toda a nossa pessoa deve ser uma pregação viva, um reflexo de Jesus, um perfume de Jesus, algo que grita Jesus, que faz ver Jesus, que brilha como uma imagem de Jesus”.


SEXTA MEDITAÇÃO

MARIA DO MAGNIFICAT, TODA DE DEUS E TODA DOS IRMÃOS

Maria entoou o Magnificat na visita à Isabel. A ideia da “visitação evangelizadora” inquietava o Ir Carlos durante os anos de Nazaré e o acompanhou nas longas viagens e nas noites claras do Saara.

“Ó minha mãe, fazei que sejamos fiéis à nossa missão de levar fielmente o divino Jesus a estas pobres almas afogadas nas sombras da morte, instalando entre elas a Sagrada Eucaristia e o seu culto... Socorrei- nos constantemente, ó Mãe do Perpétuo Socorro, a fim de que façamos no meio dos pobres, o que fizestes em casa de Zacarias... Esta bendita festa da visitação é a festa de todos nós, os privilegiados que comungamos. É a festa de Maria levando Jesus em seu corpo, como também nós após a Sagrada Comunhão... Esta é também a festa dos viajantes: ensinai-nos, ó Mãe a viajar como vós viajastes, no esquecimento das coisas passageiras e os olhos fixos em Jesus que trazíeis em vosso seio”(Meditação de Festa da Visitação, 1898).

O Magnificat é o espelho da alma da Maria. Neste poema, a espiritualidade dos pobres de Javé e o profetismo da primeira aliança alcançam o ponto culminante. É também o prelúdio das Bem-aventuranças e do Sermão da Montanha, pois contemplando a ação de Deus, Maria antecipa o Evangelho.

O cântico emerge das anunciações dos dois nascimentos: de João Batista e de Jesus, quando as duas mães, a virgem e a estéril se encontram. Do encontro brota o canto. Tentemos compreender o clima psicológico desse encontro para intuir qual teria sido a experiência de Maria após a visita do Anjo.

Certamente uma grande alegria, como a que nos inunda quando sentimos a proximidade de Deus e nos abandonamos com confiança em suas mãos: “Faça-se em mim segundo a vossa palavra”.

“Meu Pai, a vós me abandono, fazei de mim o que quiserdes”. Mas, depois, Maria deve ter sentido também temores. Encontra-se sozinha, sem saber com precisão o que aconteceu, porque, como todas as mulheres, precisa de certo tempo para ter a certeza da gravidez.

E está sem poder falar com ninguém, pois, como explicar essas coisas a um estranho? Ela não contou logo a José. Ele chegou a saber mais tarde, com perturbação interior, e decidiu abandoná-la secretamente. Além de ver desmoronar seu casamento, imaginava também os sofrimentos e humilhações que cairiam sobre Maria, sem que ela pudesse explicar nada a ninguém. É difícil explicar certos acontecimentos extraordinários, pois quem os experimenta sente-se sozinho, com medo e até com tentações.

Neste contexto entendemos porque “Maria pôs-se a caminho, por uma região montanhosa, dirigindo-se apressadamente a uma cidade de Judá”.

Perguntamo-nos por que apressadamente? Deve ter passado pela mente de Maria que Isabel seria a única pessoa capaz de compreendê-la, pois estava vivendo um acontecimento divino semelhante ao seu. Tal é o estado de espírito de Maria e a razão principal da pressa do encontro.

Costumamos explicar a pressa motivada pela sua caridade e desejo de servir a prima numa gravidez de alto risco. Mas existe também o aspecto da necessidade. Maria precisa falar com alguém, desabafar, confidenciar seu segredo, sentir-se compreendida. Será que Isabel irá compreendê-la?

Após três dias de viagem, ao bater à porta de Isabel,

seu coração palpita, como quando não se sabe de que jeito começar uma conversa complicada e delicada. Para sua surpresa ela ouve, em resposta a sua saudação, a prima exclamando: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre! Donde me vem que a mãe do meu Senhor me visite?” Nesse momento, todos os temores que Maria guardava dentro de si desaparecem. Sem precisar explicar nada, sentese compreendida. Confirma-se que tudo aquilo que está acontecendo nela é verdadeiro e, por isso, explode num canto de louvor.

Compreender e ser compreendido são vitais para Maria e também para nós. Sentir-se compreendido pelo bispo, pelos presbíteros, pelo povo, sobretudo nos valores mais importantes, é algo indispensável em nossa vida e missão. Poder falar, expressar-se, perceber que há alguém que, com confiança, olha para nós e nos compreende e respeita, é uma das graças mais lindas.

Pe Lonergan coloca no “compreender – ser compreendido – compreender-se” uma chave analógica do Mistério da Trindade. O Pai é aquele que compreende. O Filho é aquele que é compreendido. E o compreender-se mutuamente é o Espírito Santo. Esta categoria é fundamental do ser humano: impossível viver sem sermos compreendidos e nem podemos ajudar os outros sem compreendê-los.

Quando se sentiu compreendida, Maria cantou os segredos e as maravilhas que guardava no coração, mas que não ousava desvendar enquanto não encontrasse alguém que a pudesse compreender.

O Magnificat é uma expressão tão espontânea que se torna difícil dividi-lo rigorosamente em partes. No entanto, existe uma estrutura bastante evidente que nos permite seccioná-lo em duas partes.

A 1ª parte (Lc 1, 56-50) expressa o louvor pelas maravilhas que Deus realiza na vida de Maria.

A 2ª parte (1, 50b-55) amplia o louvor que se expande sobre a história da salvação. Começa com as palavras que podem referir-se tanto à história pessoal de Maria quanto à história da salvação: “Agiu com a força do seu braço”.

O sujeito da 1ª parte é Maria e os dois verbos referem-se à sua pessoa: “A minha alma engrandece o Senhor e o meu espírito exulta em Deus meu Salvador”. Maria começa falando de si e, no mesmo instante se esquece de si para falar de Deus. Como pode engrandecer o Senhor que já é grande, como enaltecê-lo ainda mais? O verbo expressa o desejo de querer Deus como “o maior possível”. É um aspecto emocional profundo, semelhante ao da mãe que ama a criança e lhe diz: “Gostaria de fazer de você a maior, a mais feliz das pessoas da terra”. Assim como o filho que diz: “Quero que meu pai seja o maior, o mais forte, o mais feliz”. Isto é engrandecer. Brota de um amor imenso e intenso.

Maria ama a Deus com todas as forças, com um amor elevado, que transborda de si mesmo: “O meu espírito exulta”. Para compreender o conteúdo desde verbo convém referi-lo a outras passagens do Evangelho de Lucas. “Naquele momento, Jesus exultou de alegria sob a ação do Espírito Santo e disse: ‘Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste essas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos’” (Lc 10,21).

Este Cântico é paralelo ao Magnificat, não somente porque nasce de uma exultação semelhante, mas também porque se estrutura na oposição sábios / humildes. A oposição aparece também na 2ª parte do canto de Maria: orgulhosos/tementes a Deus, poderosos/ humildes, ricos/ pobres. Verifica-se igualmente, com facilidade, o paralelo com as Bem-aventuranças. Exultar significa dançar, pular. Idêntico termo é usado em relação à criança que pula no ventre de Isabel. Trata-se de algo instintivo, próprio de alguém que está fora de si de alegria.

Como uma mãe que ao perceber que seu filho sarou, toma-o nos braços e grita de contentamento. Esta é a alegria de Maria. Para ela Deus é uma pessoa, o seu Tu com o qual se sente em íntima e cordial familiaridade. Chama-o de Senhor Deus, meu Salvador. O Senhor de quem ela é serva, é Javé Senhor da História, Salvador do povo. Maria fala também como membro do seu povo. Não é só uma relação intimista, mas um relacionamento com o Senhor que tem nas mãos a história do povo.

Maria canta “meu Salvador” porque vive uma experiência pessoal de salvação, possui uma motivação precisa que a atinge profundamente: “Ele olhou para a humilhação de sua serva”. Deus tão excelso olha das alturas e percebe a minha existência, descobre que eu existo, envolve-se comigo, olha para a minha pequenez. “Humilhação” expressa também o temor e a ameaça real de ser rejeitada e marginalizada. Ela tinha colocado em perigo sua honra aceitando uma gravidez misteriosa e Deus a libertou, restituindo-lhe novamente segurança e honra. É uma dupla experiência de salvação, uma experiência plena dos dons de Deus e de ser libertada da vergonha e da humilhação, como estava prestes a acontecer na relação com José. Deus fez dela uma criatura que já não consegue mais dar-se conta dos dons recebidos porque são grandes demais: “O Todo poderosos fez em mim maravilhas ...doravante todas a gerações me proclamarão bem-aventurada”. Maria nos ensina a primazia do louvor, a personalização do louvor e a especificação do louvor.

Acima de tudo, Maria é a criatura que sabe se expandir no louvor. Sou eu uma pessoa que, ao invés de extravasar mágoas, aborrecimentos e ressentimentos pessoais, me expando no louvor? Quando encontro uma pessoa amiga, o primeiro sentimento que sai de mim, é louvor ou a queixa, a lamentação, a fofoca? Urge educar-nos para a primazia do louvor. Temos motivos de sobra para louvar-te, meu Deus, porque és grande, bondoso, misericordioso e amas loucamente a mim e a cada pessoa. Todas as cartas de Paulo começam com agradecimentos: “Bendito seja Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, Deus de toda a consolação”. “Bendito seja Deus pela paz que reina entre vós”.

A Carta aos Filipenses inicia com uma longa oração de ação de graças. Sabemos que suas comunidades não eram diferentes das nossas.

Apesar disso, tanto Paulo como Maria, tinham dentro de si a consciência da grandeza dos dons de Deus presentes nas pessoas, nas comunidades, na história humana. Às vezes tememos que nosso louvor seja como uma venda sobre os olhos, algo alienante, pois vivemos cercados de injustiças, violências, misérias. No entanto, se começarmos a olhar o mundo com os olhos de Deus, amar as pessoas com o coração de Deus e a louvá-lo por tudo o que ele faz de bom, teremos mais clareza para discernir o bem do mal, a verdade do erro. O sentido do louvor de Deus não é contrário à verdade, mas o único verdadeiro. É a contemplação do mundo que provém da bondade, da misericórdia e do amor de Deus pelo pobre, pelo doente, pelo excluído. Da misericórdia brota a opção pelos pobres.

Maria nos ensina também a personalização do louvor. Se não for personalizado, o louvor se torna vazio, palavra repetida com os lábios, enquanto o coração está longe. É preciso descobrir em minha experiência os motivos de louvor. Existem muitos, mas tantas vezes consideramos como normais os dons de Deus e não os apreciamos como presentes preciosos. “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo” diz o poeta Carlos Drumond de Andrade. O exame de consciência ou revisão do dia deveria começar sempre com o cordial agradecimento pelos dons que o Senhor me concede, pelas maravilhas que realiza em minha vida e na vida de meus irmãos e irmãs.

Por fim, Maria entoa um louvor imenso que abarca o universo inteiro e toda a história da humanidade. O que ela viu de extraordinário?

Um Anjo por alguns segundos, Isabel e sua palavra. Entretanto, soube ler nestes fatos, passando pelo conhecimento de Deus, um desígnio universal.

Para louvar basta perceber um real acontecimento em que o Senhor se manifesta e, através dele, chegar ao Deus Salvador, cujo nome é santo e cuja misericórdia perdura de geração em geração.

A especificação exemplar do louvor manifestado por Maria ensinanos a contemplar a vida, o universo e a história com louvor e gratidão. Às vezes, por causa de nossos problemas, ansiedades e angústias, ficamos com a visão desfocada da realidade. Convém então concentrar-nos num pequeno fato e, através dele, chagar-se-á a entender os outros, envolvidos pela ação amorosa e providente de Deus.

REVIRAVOLTA HISTÓRICO-SALVÍFICA

Passemos agora para a 2ª parte do Magnificat (50b-55), na qual a humilde mulher de Israel, depois de ter expressado sua alegria e gratidão por quanto lhe acontecia, canta a ação libertadora de Deus na história.

Maria, toda de Deus e toda dos irmãos, relê profeticamente a história da salvação como reviravolta histórico-salvífica: Deus põe em baixo quem está em cima e em cima quem está em baixo. Maria proclama que Deus realiza uma tríplice inversão das falsas seguranças humanas para restaurar seu plano. Ela dá nomes aos que são abaixados e aos que são elevados. E atribui tudo à ação de Deus através da libertação de Cristo.

ABAIXADOS E LEVADOS - AÇÃO DE DEUS

Aspecto Orgulhosos Aqueles que Dispersou – Misericórdia Ético-religioso o temem se estende Aspecto Poderosos Humildes Depôs – Exaltou Sócio-político Aspecto Ricos Famintos Despediu – Cumulou Socioeconômico Na dimensão ético-religiosa, Deus derruba as autossuficiências humanas, confunde os planos dos soberbos e orgulhosos que se erguem contra Deus ou pretendem se colocar no lugar dele e oprimem as pessoas.

Na dimensão sócio-política, Deus destrói os injustificáveis desníveis humanos, abate os poderosos de seus tronos construídos com o suor e a exploração dos pobres, repele os dominadores e exalta os humildes, acompanha os que promovem o bem comum da sociedade, encoraja os que defendem os direitos dos injustiçados e excluídos.

Na dimensão socioeconômica, Deus confunde e arrasa os planos das aristocracias elitistas e avarentas estabelecidos sobre o acúmulo dos bens de produção e do capital, despede os ricos de mãos vazias e cumula de bens os famintos para instaurar a justiça a verdadeira fraternidade entre os povos e nações.

Por que estas palavras proféticas, que ficariam bem na boca de Isaias, de Ezequiel, de Amós, brotam dos lábios de Maria? Porque ela é a primeira em que acontece a reviravolta, a passagem, a elevação. A que se considerava a humilde serva, indigna de qualquer favor, de repente é proclamada “cheia de graça” e “bendita entre as mulheres”! A reviravolta começa a dar-se nela através da presença do Espírito Santo que a torna grávida de Jesus. O coração do mistério da elevação e do abaixamento encontra-se, por tanto, na Encarnação, na kénose do Filho de Deus.

No mistério da Encarnação realiza-se a reviravolta, que começa em Maria e alcança a plenitude na vida, na prática e na Páscoa de Jesus.

Para entender como este mistério se revela é preciso examinar os acontecimentos históricos do Verbo encarnado. Ocorre-nos logo o seu nascimento: vem a nós como pobre e sem teto, expulso de Belém, mas é celebrado pelos anjos como Deus: “Glória a Deus nas alturas”. Ao ser batizado, entra nas águas como um pecador e é exaltado como “Filho Amado do Pai” pela ação do Espírito Santo.

Na parábola do bom samaritano, Jesus rebaixa o sacerdote e o levita e exalta o pagão samaritano. Poderíamos lembrar também as bem-aventuranças, a parábola de Lázaro, o fazendeiro rico, os convidados do banquete. Se procurarmos com o microscópio (porque são pequenos episódios!) descobriremos que o Evangelho chama a atenção sobre este princípio: os pequenos, os famintos, os doentes, os pecadores, os pobres, os marginalizados são acolhidos e elevados, ao passo que os autossuficientes, os ricos, os poderosos, Jesus os deixa de lado. Ou através da parábola de Lázaro, indica o futuro que os espera se não se converterem como Zaqueu.

Tais atitudes de Jesus são apresentadas com tal delicadeza e a ação acontece com tal discrição que, aqueles que não tem presente a chave do Magnificat quase nada percebem. Só quem entende o jeito de ser e de agir de Jesus, entende também o Magnificat.

Na vida de Jesus, a reviravolta vai acontecendo de um modo sutil e gradativo. Não se trata de um princípio psicológico, nem de uma regra maniqueia que divida e oponha o bem e o mal. Expressa-se de infinitas maneiras, até resplandecer no mistério da Páscoa: “Aquele que vós matastes, Deus o exaltou” (Lc 24; Fl 2). Os que acreditavam prevalecer, foram derrubados.

A morte e a ressurreição de Jesus constituem o momento culminante do jeito de agir de Deus cantado por Maria no Magnificat.

Jesus realiza a reviravolta ao preço de seu próprio sangue, vivendo em sua carne o abaixamento pelas mãos dos poderosos e a elevaçãoglorificação pela mão do Pai sob a ação do Espírito.

Jesus deixou-nos o sacramento permanente desta reviravolta na Eucaristia. Este dom é sinal inequívoco do aniquilamento, da kénose de Jesus que se entrega até à exaustão para ser devorável. Elevado e glorificado pela Igreja, também sacia e eleva toda a humanidade. O pão consagrado é o último modo com o qual Jesus se entrega no dom de si mesmo.

O cântico de Maria torna-se assim uma interpretação de toda a vida de Jesus, da Eucaristia, da Igreja. Eleita entre os pobres de Javé, a humilde serva do Senhor, Maria pode ser incluída entre as três pequenezas escolhidas por Jesus para revelar o rosto e o coração de Deus: o presépio, a cruz e a Eucaristia.

Com as últimas palavras do Magnificat, Maria situa-se dentro da história do seu povo: “Socorreu Israel seu povo, conforme prometera a Abraão e sua descendência para sempre”. Maria se insere na descendência de Abraão e assume a história de Israel com seus patriarcas e matriarcas, com seus profetas e profetizas, com a escravidão e o êxodo, com o exílio e o retorno à terra prometida.

Assim também nos recorda que a Igreja hoje deve manter sua relação com Israel, com os pobres e tementes de Javé, com os obedientes e fiéis à sua Aliança renovada pelo sangue do Cordeiro, Filho de Deus e Filho de Maria. Em Cristo e em Maria, o Magnificat também se torna nosso canto. E da mesma forma que Maria se refere a Abraão, ao povo de Israel, às promessas da antiga aliança, assim também nós fazemos memória constante de Cristo, do Evangelho, da Páscoa, da Eucaristia onde Cristo se faz Palavra, Pão, Aliança com o novo povo de Deus.

Antes de concluir, convém mencionar uma pergunta que certamente se encontra entalada em nossa garganta. Quando se concretizarão no Brasil, na América Latina, na África, na Ásia, as profecias contadas por Maria? “Os poderosos são derrubados de seus tronos e o humildes elevados?”. Olhando ao nosso redor, sejamos sinceros, é difícil ler a história com esta chave de leitura, pois vemos “os ricos se tornarem mais ricos às custas dos pobres que ficam cada dia mais pobres”. De vez em quando se invertem os papéis, mas em pouco tempo, quem assume o poder, esquece suas origens e acaba também se tornando dominador.

Novamente Maria ajuda a manter viva a esperança e a coragem na luta. Nossa crença nas transformações sócio históricas e nosso compromisso na ação libertadora com oprimidos e excluídos devem ser assumidos também no horizonte utópico de que “outro mundo é possível”.

No olhar profético de Maria que canta, refulge a ação salvífica e escatológica de Deus. Só assim podemos entender as profecias do Magnificat. Elas começam a se concretizar no ventre de Maria, na vida e na prática de Jesus, tem sua culminância histórica na cruz e na ressurreição de Cristo; latejam na Igreja e na Eucaristia, no coração e nas lutas dos pobres que prosseguem “esperando contra toda esperança” a chegada do “novo céu e da nova terra” (Ap 21).

Oração à Nossa Senhora da Libertação

Maria, mãe de Cristo e mãe da Igreja, Em nossa missão evangelizadora que nos cabe continuar, alargar e aprimorar, dirigimo-nos a ti. Mas de modo especial, pensamos em ti pelo modo perfeito de ação de graças que é o hino que cantaste quando tua prima Isabel, mãe de João Batista te proclamou a mais feliz dentre as mulheres!

Não paraste em tua felicidade: pensaste na humanidade inteira. Pensaste em todos, mas assumiste uma clara opção pelos pobres, como teu divino Filho faria depois.

Que há em ti, em tuas palavras, em tua voz, que anuncias no Magnificat, a deposição dos poderosos e a elevação dos humildes, o saciamento dos que têm fome e o esvaziamento dos ricos e ninguém ousa julgar-te subversiva ou olhar-te com suspeição?

Empresta-nos tua voz, canta conosco! Pede ao teu Filho que em todos nós e em nossa Igreja se realizem, plenamente, os Planos do Pai.