A ORAÇÃO EM C. DE FOUC.

Caminhando na Oração… com o Irmão Carlos de Jesus

O CAMINHO DE ORAÇÃO DO IRMÃO CARLOS DE JESUS

(Reuniões feitas pela irmãzinha Annie de Jesus durante uma sessão de formação para as irmãzinhas de Jesus).


“Vós me fazíeis sentir um vazio doloroso, uma tristeza que nunca experimentara até então… Essa tristeza, essa inquietude, um dom vosso!… Como eu estava longe de percebê-lo!...”. (Retiro em Nazaré, nov. 1897).


“A encarnação tem sua fonte na bondade de Deus… mas o que logo aparece de maravilhoso é que ela brilha como um sinal ofuscante… É a humildade infinita que contém semelhante mistério” (idem).


Nosso aniquilamento é o meio mais perfeito que temos de unir-nos a jesus e de fazer o bem...”. (Carta a Marie de Boney, 1 de dez. 1916, dia de sua morte). Se o grão de trigo morre, produz muitos frutos…


INTRODUÇÃO

Para conhecermos uma estrada, um caminho, só há um jeito: andar nele. Se é uma estrada nova, um caminho ainda mal traçado, precisamos de um guia.

Pensei que não poderíamos encontrar um guia melhor que o irmão Carlos, não tanto pelo que disse ou escreveu sobre a oração, mas porque foi, até o fim, um grande homem de oração, alguém que mudou completamente de vida quando se encontrou com Deus, sob os traços de Jesus de Nazaré. Alguém que, de tanto viver da Eucaristia, acabou se tornando Eucaristia pra seus irmãos, a ponto de dar a vida por eles.

Seguindo as grandes etapas de seu itinerário espiritual, vamos procurar os traços característicos de sua oração, dessa intimidade com Deus que ele encontrou no caminho de Nazaré.


PRIMEIRA ETAPA: UM POBRE QUE PROCURA DEUS

Antes mesmo da conversão, o Irmão Carlos já tinha pressentido que Deus não se prova, mas se encontra… e que, para encontrá-lo, é preciso buscá-lo, sentir uma certa fome, precisar dele como um pobre.

Poder-se-ia dizer que o Irmão Carlos rezou antes de crer: “Meu Deus, se Vós existis, fazei com que eu Vos conheça”…

Adolescente, tinha rejeitado uma certa imagem de Deus e pensava ter perdido definitivamente a fé. Mas depois que esteve no Marrocos, sacudido pelo poder de testemunho de oração dos muçulmanos, pressentiu que Deus está além das possibilidades do conhecimento humano e que, por isso, não podemos fazer outra coisa senão chamá-lo para que venha ao nosso encontro, desejando esse encontro de coração.

Afinal, o que ele pede, sem ter consciência disso, é o dom de Deu: o Espírito Santo. Aquele que nos ensina a dizer a Deus: “Pai”! (Rom. 8,15).

Sem este Espírito, nada podemos fazer: “Só ele poderá fazê-las penetrar no mistério de Deus, Pai, Filho e Espírito Santo, modelando nelas um coração filial com o qual, como Jesus, poderão dizer em verdade: Abba, Pai...” (Constituições das Irmãzinhas de Jesus, cap. 11, art. 65).

Seria bom começar por aí, porque o Espírito Santo é o “grande esquecido” na oração… invocar este Espírito que criou o primeiro homem (Gn 2,7) e que tem o poder de nos recriar, de nos dar um espírito novo, um coração novo (Ex.36,26-27) capaz de acolher a Deus. A vida toda do Irmão Carlos foi marcada por uma grande docilidade ao Espírito Santo:

“Vamos deixar que a graça nos conduza… Vamos deixar que o Espírito Santo nos dirija e só tomemos as rédeas de nossa oração quando ele as colocar em nossas mãos”.

O Irmão Carlos rezava fielmente três vezes ao dia, e muitas vezes no meio da noite, o hino “Veni Creator Spiritus”, Vinde Espírito Criador, oração que nos legou. É um meio muito simples, mas que não devemos abandonar. É preciso que essa oração não se torne uma rotina, mas que permaneça realmente um grito, um pedido de socorro, porque sentimos nossa incapacidade radical.

Talvez seja bom reler a conversa de Jesus com Nicodemos, em João 3,1-21. Este, consciente de ser um “professor de religião”, se dirige a Jesus dizendo: “Nós sabemos”… e durante a conversa, Jesus se esforça para provar-lhe que justamente ele não sabe… por que, “para ver o Reino de Deus, é preciso nascer de novo, é preciso nascer do Espírito” (João 3,1-21). Podemos aproximar essa passagem de uma outra: “Se vocês não se tornarem como criancinhas, não entrarão no Reino dos Céus (Mt 18,3-4). Reencontramos, assim, a infância espiritual como fundamento da oração.

O Irmão Carlos, procurando a Luz, tem uma consciência profunda de que não sabe. Procura como um pobe, como uma criança… e nós? É como um pobre, ou como um sábio que procuramos a Deus? (Mt 11,25-26).

Creio que aí tocamos num ponto fundamental: ninguém pode chegar a Deus com suas próprias forças. Temos que acolhê-lo, como pobres e como pecadores que somos, na conversão do coração.

Nisso o Evangelho é muito claro:

o filho pródigo (Lc 15,11-32).

a oração do publicano (Lc 18,9-14).

a mulher perdoada aos pés de Jesus, em casa de Simão, o fariseu (Lc 7,36-50).

e muitas outras passagens…

O que também chama a tenção no Evangelho é que, muitas vezes, Jesus envia aqueles que acabou de curar ou perdoar para anunciar a Boa Nova:? O possesso geraseno e principalmente Pedro, que também precisou encontrar-se com Deus, sentir-se um pecador perdoado, antes de poder confirmar seus irmãos na fé (Mt 22,31-34).

É importante que cada um de nós possa reler a história de sua própria vida, sua história humana, e talvez seja bom fazê-lo a esta luz: a luz de um Deus que perdoa, que abre os braços para nós, de um Deus que sempre acolhe quem se reconhece pobre e pecador e lhe dá um coração novo.

É tão importante descobrir nas nossas vidas que Deus vem a nós o mais das vezes pelas “brechas” das nossas fraquezas e misérias… Nossa miséria nunca poderá impedir Deus de vir a nós, mas a nossa suficiência, sim. Ele não vem a nós por causa daquilo que nos orgulha, mas por causa daquilo que nos falta, pois “Ele veio para os doentes e não para os sadios, não veio chamar os justos, mas os pecadores”. (Mt 9, 12-13).

É bom reler o Evangelho fazendo-nos este questionamento: “Onde nos colocamos para que Jesus possa encontrar-nos”?

Não podemos sentir-nos assim tão seguras(os) de estarmos num bom lugar para que Jesus nos encontre e nos cure… Estamos do lado dos doentes ou dos sadios? No caminho daqueles que estão bem instalados em suas casas, ou com aquela pobre mulher que precisou esgueirar-se por entre o desprezo dos convidados até a sala do festim?

Estamos do lado do filho pródigo ou do filho mais velho?


SEGUNDA ETAPA: O ENCONTRO: QUAL O ROSTO DE DEUS?

O que foi muito bonito no encontro do Irmão Carlos com o seu Deus foi, antes de tudo, a acolhida do Padre Huvelin. Não avaliamos o quanto, nessa época, esta acolhida tenha sido excepcional - … a piedade era marcada por uma certa distância de Deus e não era habitual ser jogado imediatamente nos braços da Misericórdia… esta bondade, esta intuição do Padre Huvelin, foi realmente providencial como também foi providencial a bondade de sua prima, Maria de Bondy, que, a vida toda, foi para ele uma presença materna. É importante notar o quanto a bondade daqueles que o rodeavam abriu o Irmão Carlos para o encontro do Deus-Amor.

Quando devemos ajudar alguém neste caminho, podemos tão facilmente desfigurar o Rosto de Deus se nossas palavras e nossos atos não testemunharem este amor com que Deus nos ama. Ajudar a(o) irmã(ão) a encontrar Deus não seria antes de tudo dar testemunho desta bondade de Deus?

O Pe. Huvelin compreendeu que o Irmão Carlos era u m pobre que tinha sede de Deus e por isso não lhe fez grandes discursos. Recusou-se a discutir religião com ele, mas mandou-o beber na fonte: reconciliar-se com Deus e comungar.

Houve realmente, então, um encontro c om o Deus Vivo, que marcou o Irmão Carlos para a vida inteira. Anos depois, ele falará de “paz infinita, de luz radiosa” que ele experimentou nessa hora. Fez ao mesmo tempo a experiência do filho pródigo (Lc 15,11-32) que, no perdão, encontrou o Pai, e a dos peregrinos de Emaús (Lc 24,13-33), que depois de uma longa caminhada, reconheceram o Filho no pão partilhado.

O Irmão Carlos é um órfão. O autor de um recente livro sobre ele insiste no fato de que a morte de seus pais e principalmente a do pai, feriu-o profundamente. Seu pai, de fato, morreu em consequência de uma doença dolorosa, que tentaram esconder da criança porque, atingindo as células do cérebro, o pai foi ficando cada vez menos ele mesmo, apagando-se da vida familiar numa certa atmosfera de mistério.

Sobre esse fundo de ausência, seu encontro com Deus, experimentado como Pai, deve ter sido algo extraordinário.

Encontrar o Pai foi, para ele, fazer a experiência da Ternura de Deus, do perdão que nos chama, não à penitência, mas à festa. Num tempo marcado por um certo desinteresse pelo sacramento de Penitência, a parábola do Filho Pródigo é importante para compreender o que é a reconciliação com Deus.

É tão difícil compreender o amor com que somos amados enquanto não fizermos a experiência do perdão de Deus, enquanto não formos acolhidos como aquele que estava perdido (Lc 7,47). Essa experiência da misericórdia de Deus é também indispensável para criar em nós um coração misericordioso que saiba perdoar por sua vez (Mt 18,33).

Encontrar o Filho é reconhecê-lo na fração do pão, isto é, reconhecê-lo como Aquele que vem para salvar-nos fazendo-se servo, servindo à vontade do Pai, entregando sua vida por nós.

Para o Irmão Carlos, a Eucaristia foi, desde o primeiro dia, o tesouro da presença e o centro de sua vida… uma vida que será também “comida”, entregue a seus irmãos ao longo dos dias.

O Irmão Carlos encontrou, portanto, o Deus-Amor, que perdoa incansavelmente, que procura a ovelha perdida e já pressente, em Jesus, Aquele que veio com um pobre ao encontro do homem e que, dessa maneira, como pobre, continua caminhando em nosso meio. Aquele que está sempre presente no rosto do pobre.

Realmente, se o homem só pode ir ao encontro de Deus como pobre, é porque o próprio Deus veio como um pobre ao seu encontro.

Uma frase do Padre Huvelin irá acentuar essa ideia: “Jesus fez tanta questão do último lugar, que ninguém pôde tirar dele esse lugar”. É o mistério de Jesus servo, realizando nele o destino do Servo Sofredor de Isaías, aquele que foi contado entre os criminosos, enquanto carregava o pecado de multidões e intercedia pelos pecadores” (Isaías 53,12 e Lucas 23,34).

Antes de refletir sobre a oração em si mesma, não seria oportuno perguntar-se se foi realmente este Deus que nós encontramos e se é a Ele que rezamos? Pois nossa oração é condicionada pela imagem que temos de deus. O Irmão Carlos pode ajudar-nos a descobrir este Rosto de Deus que falou ao seu coração.

Sete anos depois de sua conversão, quando deixa a Trapa para ir enfim ao encontro de Jesus no caminho de Nazaré, ele escreve: “Minha vocação é descer”. E, no fim da vida, comentando uma frase do Evangelho: “Ele desceu com eles para Nazaré”, escreve novamente: “A vida toda, Ele só fez descer. Descer encarnando-se. Descer fazendo-se criancinha, descer obedecendo, descer tornando-se pobre, abandonado, perseguido, torturado, colocando-se sempre no último lugar”.

É muito importante descobrir através do Evangelho a humildade de Deus, d’Aquele que vem a nós na pessoa de Jesus de Nazaré, Aquele que desce.

Em Belém, como uma criancinha sem defesa e um pobre sem abrigo

Em Nazaré, durante trinta anos, o tempo necessário para formar, com todas as suas reações, um homem simples e pobre, um homem dessa aldeia de onde não podia sair nada de bom (Mt 2,23-13, 54 a 58; João 1,46).

No Jordão, para ser batizado, colocando-se no meio dos pecadores, apesar dos protestos de João Batista (Mt3,13-16).

No deserto, para ser tentado: tentação de tomar um outro caminho, de não ser o servo (Mt 4,1-11).

À mesa de Zaqueu e à de Levi, ainda com os publicanos e pecadores (Mt 9,9-13; Lucas 19,1-10).

Aos pés dos discípulos, num gesto de escravo, quando chega sua Hora (João 13,1-20).

No meio dos condenados e excluídos, nas trevas de Getsêmani e do Gólgota (Mt 26,36-46; 27, 32-52) etc.

É preciso que cada uma (cada um) faça desses textos algo seu… Não se trata somente de lê-los, é preciso guardá-los no coração. É preciso chegar à convicção de que o Amor se torna pequeno diante daqueles a quem ama. É assim que, ao buscar os fundamentos da oração, somos sempre reconduzidos ao espírito de infância.

Para encontrar Deus é preciso tornar-se pequeno e pobre. Não há outro caminho…


TERCEIRA ETAPA – VIVER SOMENTE PARA DEUS, NO SEGUIMENTO DE JESUS DE NAZARÉ.

Não sabemos se o Pe. Huvelin aconselhou o Irmão Carlos a ler muitos livros, mas sabemos que ele sugeriu uma viagem à Terra Santa, e essa peregrinação marcou-o muito e foi para ele o choque diante do realismo da Encarnação. Ele sabia que Jesus tinha se colocado no último lugar, mas chegando nos lugares onde se deu a Encarnação, foi como se O visse com seus próprios olhos, como se O tocasse com suas próprias mãos.

Chega à Terra Santa num momento em que o país, os cristãos, estão marcados em todos os planos por uma grande pobreza. Nazaré era, realmente, uma aldeiazinha perdida, abandonada, em todos os pontos de vista. Descobre, então, a que ponto Deus nos amou.

O Irmão Carlos é alguém que precisa sempre expressar na vida o que descobre e o que sente. A partir desse momento, seguir Jesus e viver somente para Deus, será algo extremamente concreto para ele: nessa aldeiazinha Jesus viveu durante trinta anos. Segui-Lo será, portanto, partilhar concretamente a mesma vida e viver somente para Deus. Será escolher esta vida escondida em Nazaré, numa condição de pobre.

Haverá etapas, buscas, mas o essencial já está aí, em germe: é realmente Jesus presente na pessoa do pobre, na banalidade de Nazaré que ele quer encontrar na condição social que escolheu.

Não há dúvida que o choque data desse tempo, pois sete anos mais tarde escreverá:

“Tenho sede de levar, enfim, a vida que procuro há sete anos, a vida que entrevi, adivinhei, andando nas ruas de Nazaré, ruas que os pés de Nosso Senhor percorreram, como um artesão pobre, perdido na abjeção e na obscuridade”.

É muito importante situar bem esta intuição fundamental do Irmão Carlos porque, se nós estamos na Fraternidade, é porque, de alguma maneira, fomos seduzidas (os) por Deus na pessoa de Jesus de Nazaré.

Nazaré é o lugar de nossa contemplação é na partilha concreta de uma vida de pobre que podemos ser configuradas a Jesus pobre e servidor.

Ser configurado é, de algum modo, adquirir o mesmo rosto, é assemelhar-se profundamente. Esta configuração é como a luz da inserção. Se não houvesse mais esse desejo, seríamos lâmpadas cuja luz estivesse apagada.

E este “lugar” onde encontrarmos Jesus não é somente a capela da Fraternidade; é tudo o que está contido na partilha da condição de pobre: aguentar o trabalho cotidiano com todas as suas exigências, alegrias e durezas. Nossa oração deve brotar dessa comunidade de destino porque é neste cotidiano que Deus se esconde e nos espera. Não devemos procurá-lo em outro lugar.

Para bem compreender isto devemos voltar à vida do Irmão Carlos. Foi provavelmente em Nazaré, no eremitério das Clarissas que ele teve mais tempo para rezar e condições exteriores que favoreciam o recolhimento e o silêncio. É desta época, aliás, que datam quase todos os seus escritos sobre a a oração.

“Estou fixado em Nazaré. Moro numa cabana de madeira… Abracei aqui a existência humilde e obscura de Deus, Operário de Nazaré” (12/04/1897), carta a L. de Foucauld.

Como ele, temos necessidade de enraizar-nos fortemente na oração. Temos que dar prioridade ao tempo para oração, nos começos da vida de fé. E será preciso saber, durante o resto da vida, retirar-se de vez em quando junto de Deus, ir com Ele ao deserto.

Mas por que o eremitério das Clarissas em Nazaré não foi para o Irmão Carlos a realização de sua vocação contemplativa?

“É o amor que deve recolher-te em Mim e não o afastamento de meus filhos. Vê-Me neles – e como Eu em Nazaré – vive perto deles, perdido em Deus”. - Escreve ele quando está pensando em instalar-se no Hoggar.

É o amor que está no centro de todo chamado à contemplação e é este amor que vai levar o Irmão Carlos a deixar o silêncio do seu eremitério para ir a um “Nazaré” mais misturado com todos,mais perdido no meio dos homens! Beni-Abbés e finalmente Tamanrasset, onde vive só, sem a menor clausura, Tuaregue no meio dos Tuaregues.

É a última etapa e uma grande pobreza marca nesse momento a sua vida: fisicamente sente-se “gasto”. Moralmente, tem a impressão de um fracasso, vai morrer sem companheiros...não somente não escreve mais muita coisa sobre a oração, mas parece não ter mais muitas palavras nem sentimentos na oração. E, no entando, os testemunhos daqueles que se aproximam dele nessa época são unânimes: ele irradia uma presença, sua vida expressa uma ternura. É constantemente “devorado” pelos outros, mas seu coração permanece unido a Jesus. Tem certamente menos tempo para rezar do que em Nazaré, mas pela transparência revela a Jesus de Nazaré, o pobre, o servo, acolhendo todo sofrimento, atento a cada pessoa. É este amor apaixonado de Jesus que unifica toda a sua vida.

O Evangelho sempre foi para ele um dos lugares privilegiados de encontro com Jesus: o Evangelho acolhido na simplicidade do coração. Mesmo se hoje em dia, com a renovação bíblica dispomos de melhores instrumentos de trabalho que o Irmão Carlos, seria pena não nos colocarmos à sua escola para acolhermos a Palavra na simplicidade de coração.

O Irmão Carlos recebe o Evangelho realmente como uma criança. Assim que ouve a Palavra, prefere-a a tudo e tenta colocá-la em prática, fazê-la passar em sua vida.

“Temos que nos deixar impregnar (“impregnar” faz pensar numa esponja que absorve a água) do Espírito de Jesus, lendo, relendo, meditando e meditando novamente sem cessar suas palavras e seus exemplos. Que sua ação sobre nossas almas seja como a da gota d’água que cai e recai sobre uma pedra, sempre no mesmo lugar”.

Não se trata de uma meditação abstrata, mas de um olhar cheio de amor que precisa traduzir-se em atos, expressar-se na vida cotidiana.

Assim, na vida de cada dia, o Evangelho é, para o Irmão Carlos, a luz que mantém acesa sua lâmpada, que lhe dá a capacidade de amor, não em palavras, mas em atos. Ele chega, então, àquele laço indispensável entre o conhecimento de Deus e a vivência do amor, de que São João falava com tanta força.

É importante ajudar os (as) mais jovens a descobrirem que o fruto de uma oração autêntica, de uma verdadeira comunhão com Deus, é o amor fraterno, uma certa qualidade de amor que nos dá a capacidade de acolher todo ser humano com respeito, mansidão e humildade como Jesus acolhe. Podemos reler em São mateus o retrato de Jesus manso e humilde (11,28-30) e o do servo que não apaga a mecha que ainda fumega (12,18-21).

“Vós tendes um só Pai que está nos céus”. “Deus criou o homem à sua imagem”. “Tudo o que fizerdes a um desses pequeninos é a mim que o fazeis”. Essas três palavras são suficientes para mostrar aos Irmãozinhos seu dever de imensa e universal caridade para com os homens, todos “filhos de Deus”, “Imagens de Deus” e “membros de Jesus”. (Antologia, pr. 453).

Nesta perspectiva, contemplação e compromisso se encontram. Se não há verdadeira oração sem conversão do coração, esta conversão do coração, no caminho de Nazaré, comporta sempre uma dimensão social. Viver somente para Deus no seguimento de Jesus de Nazaré é ter realmente um olhar novo para cada pessoa, é amá-la como Ele a ama e é, ao mesmo tempo, como Jesus, contestar ela nossa maneira de ser e agir, certos comportamentos impostos pela sociedade, certos sistemas políticos que não respeitam os direitos das pessoas e principalmente os direitos dos mais pobres.

O Irmão Paul Marnay tinha escrito certa vez: “O realismo do amor em contato com as realidades humanas, individuais e coletivas, nos convida a um olhar crítico e construtivo sobre a sociedade e nos impele a viver as suas consequências.

Para resumir podemos dizer que:

A contemplação de Deus Encarnado nos leva a descobrir em cada homem o rosto de um irmão. Esse rosto do irmão – principalmente se o sofrimento e a pobreza criam nele uma misteriosa transparência – nos revela o Rosto de Deus: Jesus de Nazaré. Esta convicção é indispensável para viver sem tensões no contexto conflitivo de Nazaré, porque é aí que se fundamenta a unidade de nossa vida.



QUARTA ETAPA: A ORAÇÃO DE JESUS – COMO JESUS NOS ENSINA A REZAR.


Quando lemos os escritos do Irmão Carlos, percebemos que ele procurou apaixonadamente saber como Jesus rezava. Eu acho que poderíamos encontrar em seus escritos um comentário de cada versículo do Evangelho que se refere à oração. No “Modelo Único” fez uma lista cuidadosa deles.

Uma boa sugestão é procurar nos Evangelhos, principalmente no Evangelho de Lucas, os textos que nos falam da oração de Jesus. Podemos também procurar aquilo que Jesus diz sobre a oração.


No desejo de apender a rezar com Jesus, o Irmão Carlos meditou longamente o Pai-nosso. Há principalmente uma oração redigida em data importante para ele: 23 de janeiro de 1897 (Anthologie, pg. 585).

Foi nesse dia que, tendo obtido a permissão para deixar a Trapa, partiu para Nazaré. Meditou o Pai-nosso de uma tirada só. Acho que podemos encontrar neste comentário – e de uma maneira muito simples – o que era a oração de Jesus para o Irmão Carlos e com ele entrou nessa oração.

Ele se detém primeiro na palavra “Pai”, que lhe revela a bondade de Deus e o amor com que se sente amado e tira imediatamente as consequências práticas para seu comportamento. Para ele, uma descoberta sempre deve expressar-se na vida.

“Já que sois tão bom para mim, como devo ser bom para os outros!”

“Já que quereis ser meu Pai e o Pai de todos os homens, como devo ter os sentimentos de um terno irmão para com todos os homens, para que os que forem bons e mesmo para os que forem maus”.

Para ele, a palavra “Pai” evoca imediatamente a relação fraterna com todos os homens. Podemos tantas vezes desfigurar o Rosto de Deus se o chamamos de Pai sem nos comportarmos como irmãos….

Ele se detém em que cada um dos três primeiros pedidos de Pai-nosso e faz notar que, afinal, expressam a mesma coisa: “Que a glória de Deus seja manifestada e que todos os homens sejam salvos”.

Descobre, assim, que a oração que brota das profundezas do Coração de Cristo é esse desejo de que se realize nele o plano de amor de Deus.

“O ministério de sua vontade, aquilo que previra realizar em Cristo na plenitude dos tempos. Em sua misericórdia queria unificar todo o universo, tudo o que está no céu e na terra, reunindo tudo sob um único Chefe, Cristo”. (Ef 1,9).

Ele acrescenta: “ Essa deveria ser a finalidade de todas as nossas orações, de todas as nossas ações”.

Nessas poucas palavras, o Irmão Carlos expressa toda a dimensão cristológica de sua oração: acolher no fundo do coração o grande projeto de amor do Pai e entrar na resposta do Filho pela oração e por toda a sua vida. “Que tua vontade se faça em mim”… é o âmago da oração do abandono: entrar no trabalho de Jesus Salvador.

Ele nota ainda que em todos os pedidos do Pai-nosso emprega-se o plural: “Não peço nada somente para mim, não digo “meu Pai”, mas “nosso Pai”. Não digo “Meu pão”, mas “nosso pão. Não peço nada para mim, tudo o que peço no Pai-nosso, eu o peço em vista de Deus ou para todos os homens”. Ele reafirma: “Não rezar somente para si, mas ter muito cuidado em pedir sempre por todos os homens, por todos nós, filhos de nosso Senhor, amados por Ele: por todos nós, resgatados com Seu sangue”.

A cada pedido, sempre fiel à sua preocupação de coerência, o Irmão Carlos tira as consequências para sua vida cotidiana.

“Perdoai-nos as nossas ofensas… não podemos pedir perdão se não perdoamos também. O perdão, como a graça, não se pede somente para si, mas para todos os homens.

O Irmão Carlos entra, portanto, na grande intercessão de Jesus pela salvação da multidão. Nenhum traço de individualismo na sua oração. Sente-se solidário a todos os homens, e é a própria lógica de sua intercessão que o leva a uma partilha cada vez mais concreta da condição dos pobres. Irá, então, cada vez mais longe, até o Hoggar, onde vai morrer por ter querido permanecer solidário, até o fim, ao destino desse punhado de homens perdidos no fundo do deserto.

Foi a oração que o levou a enraizar-se e a ser solidário, Muitos homens foram ao deserto para se tornarem eremitas, mas o Irmão Carlos não foi lá para ser eremita, mas par tornar-se cada vez mais o irmão de todos. Não foi ao deserto para fugir do mundo, mas para gritar melhor, com a vida, o amor com o qual se sentia amado, o amor com o qual Deus ama todos os homens.

Para aprofundarmos nosso conhecimento de Deus e da Palavra, precisamos ter tempo, mas nunca insistiremos bastante sobre o fato de que, na vida de Nazaré, a oração brota e se alimenta da solidariedade vivida e que a intercessão supõe, exige uma partilha de vida, uma pertença, um “sofrer com”. Nossa oração deve tornar-se, de certa maneira, o apelo de todos aqueles cuja condição partilhamos.

A intercessão mergulha suas raízes na partilha da vida, no “sofrer com”: compaixão. A oração é a fonte e o dinamismo de nossas solidariedades.

Podemos nos referir à oração de intercessão de Moisés, que também foi totalmente solidário ao povo pelo qual intercedia diante de Deus. (Ex. 32,7-14; 33,1.12-17). Também os textos de Ezequiel, quando Deus busca um vigia que permanecerá diante d’Ele na brecha do muro que cerca a cidade sitiada, para impedi-lo que a destrua (Ez. 13,5 e 22, 30)


QUINTA ETAPA: UMA ORAÇÃO CENTRALIZADA NA EUCARISTIA E UMA VIDA SOB O SIGNO DESSE MISTÉRIO.

Desde o dia de sua conversão, foi na Eucaristia que o Irmão Carlos concretizou seu encontro com Jesus. Nela encontrou Aquele que seu coração procurava, Aquele que tinha entregado seu corpo e dado seu sangue por ele. Toda fidelidade do amor do Irmão Carlos pelo seu Bem Amado Irmão e Senhor Jesus se expressa nas longas horas que passou aos pés de Jesus, de dia e o mais das vezes à noite, às custas de numerosas vigílias.

Essa oração noturna que nunca está em conflito com a disponibilidade, mas simplesmente com… a nossa generosidade, fazem realmente parte da herança do Irmão Carlos e pode ajudar-nos a verificar a verdade do nosso amor.

N ele, o amor à Eucaristia nunca enfraqueceu. É capital, então, que as Irmãzinhas enraízem sua vida inteira nesse amor. Acho que não é possível perseverar toda uma vida no caminho de Nazaré sem a fidelidade à Eucaristia, que deve tornar-se necessária para nós como o alimento de cada dia. É, portanto, indispensável que tornemos gosto por ela.

Mas para isso é preciso compreender bem o que a Eucaristia era para o Irmão Carlos. Não era uma devoção mais ou menos facultativa, mas o lugar onde ia realmente buscar a força de configurar sua vida à do Filho do homem, que deu a vida em resgate pela multidão – o lugar onde sua oração era uma só com a de Jesus.

Na nossa vida, adoração e celebração eucarística estão estreitamente ligadas e é importante insistir nisso e insistir também no laço muito profundo que deve existir entre esse Sacrifício e nossa vida de cada dia. Há um livrinho do Pe. Vanhoye: ”Missa, vida oferecida”, que pode ajudar-nos bastante, creio eu.

Vocês vão receber pistas para um começo de formação sólida sobre a Eucaristia, porque muitas jovens podem chegar com ideias vagas ou superficiais. É preciso cavar e partir da Escritura, a partir do Mistério de Jesus.

Para o Irmão Carlos e a Eucaristia é essencialmente Jesus que entrega a vida pela multidão. É um apelo a entrar no seu sacrifício. Ele passa, então, facilmente do “sacramento do altar” para o “sacramento do irmão”, para o “sacramento do pobre”. Pelo fim da vida, alguns meses antes de morrer, escreverá como uma espécie de testamento:

“A frase do Evangelho que mais transtornou minha vida foi: “e aquilo que vocês fizeram aos menores dos meus, é a mim que estão fazendo”. E quando se pensa que é a mesma boca que disse: “Isto é o meu Corpo, Isto é o meu Sangue”, como somos levados a procurar e a amar Jesus nesses pequenos!

O Irmão Carlos encontra, portanto, Aquele que seu coração ama sob o sinal do pobre, como sob o sinal do pão. É importante entender bem isso para que o nosso olhar seja realmente contemplativo, no caminho de Nazaré. Quando deixamos a capela para pôr-nos à disposição de quem chega, não deixamos Jesus… Ele vem a nós sob uma outra presença e é importante reconhecê-lo aí.

O Irmão Carlos resistiu muito tempo à ideia de tornar-se padre e, quando a aceitou, foi para levar o banquete aos pobres. Pensava numa presença de Jesus que se irradiaria através daqueles que rezasse a Ele, na medida em que aceitassem deixar-se “devorar”. Foi assim que viveu em Beni-Abbés, em Tamanrasset, entregue a todos, nunca fazendo esperar aquele que batesse à sua porta. E sua morte, na tarde do dia 1º de dezembro, teve uma nota eucarística: sangue derramado em união com o sacrifício de Jesus.

O Pe. Voillaume escreveu um dia: “Viver a eucaristia é ser entregue aos homens, tornando-se para eles, pela caridade e pela contemplação eucarística, algo utilmente devorável”.

Para sermos “utilmente devoráveis” é preciso que nossa oração permaneça viva, é preciso a fidelidade por amor às horas de intimidade com Jesus, presente sob o sinal do pão partilhado. Certas jovens entrarão espontaneamente nesta oração e, para outras, é preciso respeitar certas etapas, levar em consideração certos hábitos de oração. Talvez seja preciso, no começo, que cada uma se expresse da sua maneira.

No entanto, seria bom ajudá-las a compreender, aos poucos, que o encontro com Deus se situa como no termo de uma travessia no deserto. É preciso fazer silêncio, no fundo do coração, para escutar Deus. A oração do Irmão Carlos sempre teve essa marca de uma espera silenciosa, de uma escuta que dá a Deus o tempo de falar.

Ainda nisso a escritura pode ajudar-nos. Por exemplo, no primeiro livro dos Reis, cap. 19, o profeta Elias, a caminho da montanha de Deus, deve andar 40 dias no deserto e o encontro com Deus é o “ruido de uma brisa leve”, “o sussurro do silêncio”, diz uma tradução.

“Quando amamos, não fazemos passar antes de tudo a preocupação de estar o mais possível em presença do Bem-Amado, a menos que outra coisa lhe agrade mais, pois é seu consolo, seu bem, sua vontade, que devemos buscar, antes das nossas”. (Antologia, pág. 297).

“Deixemos que Ele viva em nós, que prossiga em nós sua vida de Nazaré. Deixemos que Ele continue em nós sua via de universal caridade. Que nós possamos dizer a todo momento de nossa vida”: “Eu vivo, mas já não sou eu quem vive, é Jesus que vive em mim”. (Antologia, pág. 464).


SEXTA ETAPA: UMA VIDA QUE SE TORNA ORAÇÃO, A ORAÇÃO DE UM POBRE

Nossas Constituições dizem: “As irmãzinhas se esforçarão por viver com olhar e o coração voltados para Jesus”. Contemplação no meio do mundo. Talvez seja uma definição da oração contínua? Sentimos bem no fundo do coração que nossa vida só poderá unificar-se quando chegarmos a viver assim, simplesmente, sob o olhar de Deus, em tudo o que fizermos. O que devemos fazer para chegar a isso?

Nos seus escritos, o Irmão Carlos fala muitas vezes da atenção ao momento presente, porque, para ele, rezar é fundamentalmente acolher a vontade de Deus, fazer essa Vontade. Ora, o único lugar em que nossa vontade pode encontrar-se com a vontade de Deus é o momento presente. É nele que temos a possibilidade de dizer sim ou não à Sua vontade.

Então, “rezar sem cessar” não é certamente ficar tenso para conseguir pensar em Deus o tempo inteiro. Ao contrário! Será ser habitada (o) por sua Palavra, estar atenta(o) o dia inteiro àquilo que Ele nos diz. O Pe. Voillaume disse uma vez: “Sabemos que a Palavra de Deus está viva dentro de nós quando ela incomoda. Uma palavra morta não incomoda, mas uma palavra viva nos desperta, nos queima na hora exata. É muito importante compreender que viver sob o olhar de Deus é tentar acolher sua vontade no momento presente, é ter uma consciência profunda dessa possibilidade tão simples de encontrá-Lo a cada instante, nos acontecimentos.

Quando Jesus diz: “Aquele que me enviou está comigo e não me deixa só porque sempre faço o que Lhe agrada” (Jo 8,29), percebe-se bem que não está só porque “seu alimento é a vontade do Pai” (Jo 4,34).

Muitas vezes no Evangelho, falando da vontade do Pai, Jesus diz: “é preciso”, mas não se trata da obrigação imposta de fora. É uma necessidade de amor, como ele diz a Zaqueu: “desce depressa! Hoje é preciso que eu fique em tua casa”. Isso quer dizer que o amor que arde em seu coração e que é seu próprio ser – Deus é Amor – o arrasta irresistivelmente a buscar e a salvar Zaqueu (Lc 19,1-10).

Nos últimos anos de vida em Tamanrasset, o Irmão Carlos escreve: “É preciso rezar nossas fraquezas e nossa pobreza, porque elas são a ocasião de dizermos e de provarmos a Deus o nosso amor”. Nessa ocasião ele vive uma etapa muito rude em todos os planos. Tem muitas vezes o sentimento do fracasso, a oração é árida. Então, é toda a vida que ele oferece a Deus, uma vida de pobre. Seu amigo Moussa dirá, depois de sua morte: “Ele vivia aqui no nosso meio como pobre”.

E nessa situação de extrema pobreza e incapacidade, tudo o que poderia parecer obstáculo a uma vida contemplativa torna-se oração: a falta de tempo, de lugar, a disponibilidade constante e sua consequência, a dispersão, o cansaço, a doença, o desânimo. Ele oferece tudo com um coração humilde.

Nessa simplicidade extrema há uma orientação fundamental para nossa oração. Não é assim que os pobres rezam espontaneamente?

Basta pensar no Santuário da Virgem de Guadalupe, no México, onde tantos pobres vêm rezar trazendo “sua vida nas mãos”: o bebê que acaba de escapar de uma doença grave, uma deficiência física que e coloca sob o olhar da Virgem, um sofrimento moral que se confia a ela, ou também a alegria de viver que se dança diante dela.

Aqueles para quem Deus é o único recurso na tristeza e no sofrimento são os que podem ensinar-nos a rezar, porque Deus nunca fecha os ouvidos aos seus apelos: “um pobre clama, o Senhor o escuta e o atende”.

Uma tradição hebraica diz que, quando todas as portas da oração parecem fechadas, há sempre uma que nos dá acesso a Deus: a do sangue e a das lágrimas.

É importante familiarizar-se devagarinho com a oração dos pobres na Bíblia. Temos a bela oração de Ana, no começo do livro de Samuel, modelo de confiança daquela que conheceu a humilhação, e que Deus não pode decepcionar. Temos os salmos, os quais ecoam os gritos de sofrimento da humanidade, o lamento de Jó, e, enfim, a Virgem Maria, em quem Deus acumula a espera e a esperança de todos os pobres: o Magníficat anuncia as bem-aventuranças.

O terço faz parte da oração dos pobres e seria pena não habituar-se a olhar os mistérios da vida de Jesus com os olhos de nossa Senhora, que viveu tão Profundamente o mistério de Nazaré e que foi associada, de um modo tão próximo, ao destino do Servo Sofredor.

Não devemos também rejeitar ou desprezar certas devoções populares, que muitas vezes brotaram da vida e do coração dos pobres e, por isso mesmo, chegam até o Coração de Deus.


SÉTIMA ETAPA: A ORAÇÃO DE COMPAIXÃO NAS PEGADAS DO SERVO SOFREDOR.

A maioria das fraternidades está mergulhada em situações de violência e de opressão e muitas vezes nos confrontamos com o problema terrível do sofrimento e do mal, tendo a impressão, como no livro de Jó, que o mal sempre triunfa.

A oração, nessa situação, não será simplesmente assumir o grito daqueles que sofrem, assumir a pergunta angustiada dos que são esmagados pelo mal e que não compreendem e se revoltam?

Não há palavras diante do sofrimento. Talvez seja por isso, aliás, que Deus parece deixar sem resposta a queixa angustiada de Jó, sua sede de justiça. Com efeito, Deus se reserva uma resposta não por palavras, mas por Seu Filho, Aquele que realiza o destino do Servo Sofredor de Isaías. Não encontrei no Irmão Carlos nenhuma meditação propriamente dita sobre os cânticos do Servo, mas sente-se bem que cada vez que medita sobre a vida e a paixão de Jesus refere-se implicitamente a eles, porque a figura de Jesus de Nazaré é inseparável da do Servo Sofredor. Esse servo misterioso cujo rosto parece confundir-se com o do povo esmagado pelo sofrimento, no fundo do exílio.

Vocês conhecem os Cânticos do Servo, no segundo livro de Isaías. O povo eleito perdera tudo: a terra, a acidade, o templo, morada de Deus. Foi deportado para viver na escravidão. E eis que, de repente, aparece um profeta, cujo nome nem mesmo se sabe. Ele pressente que esse sofrimento não é em vão e, pouco a pouco, no coração mesmo dessa situação desesperadora, ele revela a figura de um misterioso Servo: o Justo, o Inocente, que tomará sobre si o castigo e assumirá todo esse sofrimento até a morte. Ele oferecerá a vida em intercessão pelos pecadores. Deus, então, o exaltará, fazendo dele “a luz das nações” (Is 42,6).

Jesus de Nazaré teve plena consciência de ter sido enviado ao mundo para realizar em sua vida o destino do Servo de Isaías? “ O Filho do Homem ão veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate pela multidão” (Mc 10,45).

Hoje tantos países e tantos povos parecem misteriosamente associados, em sua carne e nesta Paixão do Servo, que permanece tragicamente atual e nós sentimos bem que a lógica de Nazaré nos arrasta a partilhar com Jesus a angústia e o desprezo que marcam a vida dos pobres nessas situações de violência e de opressão.

Toda a vida do Irmão Carlos foi dominada pelo desejo apaixonado de imitar Jesus de Nazaré e de segui-lo em seu caminho de Servo, até o fim.

“Pensa que deves morrer mártir, de uma morte violenta, dolorosa… e deseja que seja hoje”!

Na cruz, a oração de Jesus é a vida oferecida em resgate pela multidão e em intercessão pelos pecadores. Estamos, então, no âmago da oração. Nessa hora, oração e oferecimento de toda a vida são uma só coisa.

O Irmão Carlos nos legou uma oração que nada mais é que a expressão do seu desejo de unir toda a sua vida a este oferecimento de Jesus: a oração do abandono.

Essa oração, realmente, é somente o eco da oração de Jesus: a oração do Filho aceitando do Pai, em suas mãos, seu destino de Servo.

Ela evoca primeiramente o salmo 40, ao qual se refere a Epístola aos Hebreus: “Tu não quiseste sacrifícios nem oferendas, mas me fizeste um corpo. Não aceitaste os holocaustos nem as expiações pelos pecados. Então eu disse: Estou aqui, meu Deus, vim para fazer tua vontade, pois é de mim que as Escrituras falam” (Hb 10,5).

Depois, a oração do Getsêmani, no meio da angústia: “Pai, que tua Vontade seja feita” (Mt 26,42).

E, enfim, a última palavra de Jesus na cruz: “Pai, em tuas mãos entrego meu espírito” (Lc 23,46).

Na Igreja do Oriente insiste-se muito sobre a “oração de Jesus”, a oração do coração. A repetição incansável do nome de Jesus, que se torna a expressão de um único desejo: “Senhor Jesus Cristo, tende piedade de mim, pecador”.

A oração do abandono devia ser, para o Irmão Carlos, uma espécie de respiração… Se aos poucos, para nós também, ela se tornar como nossa respiração, talvez nossa vida se torne oração.