"Medellín propunha-se vencer o torpor dos povos latino-americanos e caribenhos sob a pobreza, a injustiça e a opressão das ditaduras militares. A opressão e a fome não podiam esperar", escreve Pe. Alfredo J. Gonçalves.
Eis o artigo.
A “opção preferencial pelos pobres” constitui uma espécie de eixo central ou fio condutor dos documentos publicados pelas assembleias do episcopado da América Latina e Caribe. Mas esse eixo central ganha energia transformadora sobretudo a partir do Documento de Medellín, o qual, por sua vez, significava uma atualização neste continente das intuições e avanços do Concílio Vaticano II. Enquanto o Concílio procurava sacudir a poeira da Igreja como um todo, abrindo-se às novidades do mundo moderno, Medellín propunha-se vencer o torpor dos povos latino-americanos e caribenhos sob a pobreza, a injustiça e a opressão das ditaduras militares. A opressão e a fome não podiam esperar.
Além de inspirar-se nos textos do Concílio, de alguma forma Medellín retrata também o clima de revolução cultural dos anos 1960, com destaque justamente para o ano de 68. Ocupando as universidades dos Estados Unidos, as ruas de Paris e de outras cidades, com a música engajada de Liverpool, na Inglaterra ou da MPB, no Brasil, combatendo o racismo ao lado de Martin Luther King – os jovens viraram a mesa, exigiam mudanças, ao mesmo tempo que abriam novas encruzilhadas nos destinos da história. Não sem razão, no mesmo ano de 68 ocorre o assassinato do líder negro nos USA e o Ato Institucional nº 5 (AI5) no Brasil.
Voltando a Medellín, o documento tinha como título “A Igreja na atual transformação da América Latina à luz do Concílio”. Algumas expressões do texto são emblemáticas de um profetismo e de um engajamento sócio pastoral e político que em todo continente se fazia cada vez mais forte e vigoroso: “Injustiça que clama aos céus” (Cap. 1, n. 1); “frustrações crescentes” (cap. 1, n. 4); “situação de injustiça que pode ser chamada de violência institucionalizada” (cap. 2, n. 15); “um surdo clamor brota de milhões de homens” (cap. 14, n. 2): “vigência de estruturas inadequadas e injustas” (cap. 15, n, 1); “a miséria que marginaliza grandes grupos humanos” (cap.1, n. 1). Diante de tudo isso, os bispos ressaltam a necessidade de “levar a cabo uma autêntica e urgente reforma das estruturas e da política agrária” (cap. 2, n. 8).
Não será exagero afirmar que o tempero dessas expressões vem, ao mesmo tempo, do chão e do alto. No chão de muitos países, combate-se a opressão de regimes militares que tentam silenciar a voz dos pobres, marginalizados e indefesos. A riqueza e a renda concentram-se cada vez mais em poucas e poderosas mãos. No lado oposto, concentra-se igualmente a pobreza e a exclusão social. Por toda parte, o povo se mexe, levanta a cabeça, faz ouvir sua voz: reunidos em milhares de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) espalhadas por vários países, os pobres buscam na Palavra de Deus uma luz em meio à escuridão. Enquanto as palavras bíblicas iluminam a realidade de pobreza e injustiça, essa mesma realidade interpela a Palavra de Deus, conferindo-lhe significados novos, ocultos e dinâmicos. Volta-se a uma releitura da libertação no Livro do Êxodo e da Boa Nova de Jesus nos relatos evangélicos.
Instala-se assim o chamado círculo hermenêutico: as páginas da Bíblia ensinam a ler com fé e esperança a situação concreta em que vivem pessoas; semelhante leitura leva a uma nova prática evangélica, marcada pelo desejo de mudar a realidade socioeconômica e político-cultural; essa prática, por sua vez, reflete-se em uma leitura mais enriquecida da Palavra de Deus; esta volta a iluminar a realidade e a necessidade de novas transformações... E assim por diante. CEBs e Teologia da Libertação (TdL) realizam um casamento feliz, onde teoria e práxis se interpelam, se complementam, se entrelaçam e se enriquecem reciprocamente.
Semelhante modo de agir e de refletir sobre a ação, por outro lado, reforça a “opção preferencial pelos pobres”. Volta-se com insistência à prática do profeta itinerante da Galileia. Tal eixo central ganha ampla cidadania nos demais documentos do episcopado latino-americano e caribenho: Puebla, em 1979; Santo Domingo, em 1992; Aparecida, em 2007.
“Uma das tarefas em torno de Medellín, parece-me, é recuperar os artífices de Medellín, seu perfil, sua contribuição. Isso nos levará a tocar com a mão aqueles que viveram e foram significativos na Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano. Assim, entenderemos melhor a importância que Medellín teve como recepção crítica e criativa do Vaticano II em nosso continente”. A reflexão é de Juan Manuel Hurtado López, teólogo mexicano, em artigo publicado por Amerindia, 16-11-2017. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
"Dom Samuel, juntamente com bispos como dom Hélder Câmara... dom Leonidas Proaño... dom Paulo Evaristo Arns... dom Oscar Arnulfo Romero..., faz parte de uma brilhante página da Igreja Latino-Americana". [1]
Muitas são, sem dúvida, as maneiras de abordar a celebração dos 50 anos de Medellín que vamos realizar no próximo ano. Com esta motivação várias instituições, redes, universidades, coletivos e grupos planejam realizar atividades para comemorar tão fausto acontecimento. A Amerindia também está organizando um congresso teológico a ser realizado na pátria de dom Romero, ícone dos mártires da América Latina e do Caribe.
Uma das tarefas em torno de Medellín, parece-me, é recuperar os artífices de Medellín, seu perfil, sua contribuição. Isso nos levará a tocar com a mão aqueles que viveram e foram significativos na Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano. Assim, entenderemos melhor a importância que Medellín teve como recepção crítica e criativa do Vaticano II em nosso continente.
Quero, então, referir-me a dom Samuel Ruíz García, bispo de San Cristóbal de Las Casas, Chiapas, no sudeste do México, com quem tive a graça e a oportunidade de trabalhar um pouco mais de dois anos.
Quando dom Samuel chegou a Medellín, trazia em seu coração e em sua responsabilidade o cuidado pastoral de uma das dioceses com o maior número de indígenas do país. Além disso, dom Samuel teve o privilégio de ser padre conciliar nas quatro sessões do Concílio Vaticano II. De lá, trouxe ares frescos de renovação da Igreja que tinha começado com o Concílio.
Mas também durante o Concílio, dom Samuel conseguiu trocar experiências com os bispos africanos sobre o tema da evangelização dos povos, especialmente os indígenas. Como ele mesmo nos contava, isso mudou radicalmente a sua percepção do que significava evangelizar em terras de missão. Dom Samuel chegou a Medellín com a visão do Vaticano II e com a vontade, já nessa época, de aplicá-lo na vida da diocese.
Na Conferência de Medellín, de 26 de agosto a 7 de setembro de 1968, dom Samuel foi participante e palestrante. Mais tarde, mediante nomeação do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM), dom Samuel seria o responsável pelo Departamento de Missões – para a pastoral indígena – e também presidente desse departamento na Conferência dos Bispos do México.
Dom Samuel foi um pastor e um profeta. Acompanhou uma diocese muito grande, com poucas estradas, com vários grupos étnicos indígenas e várias línguas, com uma grande pobreza e marginalização, com muitos problemas de terra, saúde, educação e trabalho. É aqui que enraizou o seu ministério pastoral e profético.
São muitas as frentes de pastoral que ele abriu na diocese à luz do Concílio Vaticano II e de Medellín. Dom Samuel promoveu as escolas de catequese – até o presente, existem mais de 8 mil catequistas de adultos nas comunidades –, o ecumenismo, o estudo e a tradução da Bíblia para as línguas indígenas, o diaconado indígena permanente, os direitos humanos, a mulher, as vocações autóctones, o Povo Crente como um sujeito empenhado na luta pela justiça e a libertação do povo, o estudo das culturas maienses, o apoio a milhares de refugiados guatemaltecos que fugiam da guerra, a Teologia Índia, a construção de uma Igreja ministerial com serviços e ministérios autóctones, a abertura do Seminário Regional do Sudeste (SERESURE) com as dioceses vizinhas para a formação sacerdotal, a relação com as Igrejas da América Latina e do Caribe através da UMAE, a promoção de organizações em defesa dos povos indígenas da região, a mediação para a paz quando eclodiu o conflito armado em 1994 entre o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) e o governo mexicano. Em San Cristóbal de Las Casas, ele abriu uma casa para cuidar de mulheres indígenas abandonadas, que queriam ter seus bebês em condições seguras.
Em 1974, coube à diocese de San Cristóbal de Las Casas, com dom Samuel à frente, a organização do Congresso Indígena para comemorar os 500 anos do nascimento de Frei Bartolomé de Las Casas. Este congresso foi decisivo na história recente da diocese. Em 1975, na Assembleia Diocesana, dom Samuel assumiu publicamente a opção pelos pobres e convidou todos os agentes de pastoral presentes a fazerem o mesmo. E sua grande obra, o III Sínodo Diocesano de 1995 a 1999, que atualmente orienta a vida da diocese.
A isso se soma o seu grande contato com as Igrejas da América Latina, tornando-se presente em congressos, reuniões e estudos.
Como Amós e Isaías, dom Samuel mostrou sua vocação profética, fez grandes e fortes denúncias proféticas contra um sistema de morte que oprimia os indígenas através dos agricultores e dos pecuaristas e com a discriminação racial, sobretudo na cidade de San Cristóbal. É muito conhecida a sua excelente Carta Pastoral Nesta Hora de Graça, em que dom Samuel faz uma denúncia profética das graves injustiças que afligem a sociedade e, acima de tudo, os pobres, os indígenas, e qual é a vontade de Deus e a tarefa da Igreja nesta hora.
Isso lhe valeu ataques de todos os tipos: calúnias, acusações, perseguições e tentativas de assassinato. Mas a cruz que dom Samuel carregou não era apenas aquela promovida pelo governo ou pelos proprietários de terra, mas também por alguns de seus irmãos no episcopado mexicano que se prestavam às intrigas do governo e das classes ricas e abastadas do país. Eles chegaram inclusive a pedir a sua expulsão do país. Só que a notícia se espalhou rapidamente e a sociedade civil, nacional e internacional, pressionou tanto que o governo teve que desistir. Em várias ocasiões, eles queriam removê-lo da diocese, mas, graças ao apoio da sociedade civil e de alguns bispos, a medida nunca pôde avançar.
Dom Samuel tem frases chocantes. À pergunta, em uma situação delicada, de se sua vida estava em risco, ele disse aos indígenas: "Irmãos, vocês sofrem muito e por isso queremos acompanhá-los neste sofrimento; mas percebemos que vocês e nós estamos correndo um sério risco. Queremos correr todo o risco que vocês queiram correr...". [2]
A um padre espanhol, que insistiu em acompanhá-lo nessa situação, ele disse: "Não, pode ser que no trajeto nos matem, e por que você precisa acabar aqui quando não tem nada a ver com tudo isso...". [3]
Outra frase que reflete muito bem o seu pensamento é a seguinte. Eles lhe perguntaram muitas vezes se ele tinha inimigos. Dom Samuel respondeu: "Eu não tenho inimigos; são os pobres que têm inimigos, porque são os pobres que incomodam o sistema injusto". [4]
Termino com a afirmação feita por dom Raúl: "Dom Samuel, um Pai da Igreja Latino-Americana", um profeta e pastor que marcou a Segunda Conferência Episcopal Latino Americana em Medellín.
Notas:
[1] VERA LÓPEZ, Raúl. Don Samuel Ruíz García, uno de los padres de la Iglesia Latinoamericana. In: HURTADO LÓPEZ, Juan Manuel. Don Samuel profeta y pastor. México, D. F.: Razón y Raíz, S.C., 2016. Pág. 9.
[2] Idem, p. 19.
[3] Id, p. 21.
[4] Id, p. 27.
“O contexto da América Latina exige dos cristãos ‘clareza para ver, lucidez para diagnosticar e solidariedade para agir’. Com esse espírito, os bispos dão um passo transcendental: introduzem a noção de ‘sinais de nossos tempos’, o que significa que ‘as aspirações e clamores da América Latina’ são interpretados como ‘sinais que revelam a orientação do plano divino operante no amor redentor de Cristo que funda estas aspirações na consciência da solidariedade fraterna’”, escreve Luis Armando González, licenciado em Filosofia pela UCA e mestre em ciências sociais pela FLACSO, em artigo publicado por Alai, 20-04-2018. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
Para Jon Sobrino.
Há 50 anos, a América Latina viveu um dos acontecimentos mais extraordinários de sua história recente, quando os bispos da região se reuniram, em 1968, em Medellín, na Colômbia, para celebrar a Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano. Uma grande crise econômica estava às portas, uma vez que o projeto de industrialização por substituição de importações mostrava severas limitações, prejudicado pela inflação e pela pouca competitividade internacional já vislumbradas nos anos cinquenta (1).
A industrialização revelou-se como “incompleta ou truncada”, isto é, deixou “lacunas tanto grandes como pequenas nas estruturas industriais da América Latina. Algumas das lacunas, a menos que houvesse intenções de cobri-las a custos muito elevados por meio da fabricação local, tinham que ser preenchidas com importações conforme as exigências da demanda dessas estruturas” (2). Nos anos sessenta, a crise econômica agravou os problemas estruturais de sempre: a pobreza, a exclusão social e a marginalização atingiram amplos setores sociais, cujas demandas não podem mais ser atendidas pelo Estado, submetido ao poder dos militares (3).
Algo importante está acontecendo em meados da década de 1960: ditaduras militares foram implementadas, com um golpe de Estado no Brasil, em 1964, que, na sequência, vão tomando o poder em diversos países do Cone Sul. Não foi a primeira vez que os militares irrompiam na vida política latino-americana; na verdade, desde a época da anarquia, na segunda metade do século XIX, até os anos trinta do século XX, os militares tiveram uma presença política permanente. No entanto, sua participação direta no exercício do poder político foi considerada, em geral, como algo temporário que, por uma questão de legalidade constitucional, tinha que ser o mais breve possível (4).
A novidade nos golpes que começaram em meados dos anos sessenta é que desta vez os militares chegam com a intenção de ficar no poder por um longo tempo: o tempo que fosse necessário para colocar a economia sobre novas bases, reestruturar o Estado e “livrar” as sociedades da ameaça comunista. Ou seja, “a emergência de regimes autoritários parece ser uma resposta à crise política da sociedade e, ao mesmo tempo, representa a tentativa de materializar um projeto histórico-social... O elemento de crise política revela uma das características fundamentais desses regimes: eles são reacionários, de contenção, contra-revolucionários em alguns casos. Diante da ameaça que paira sobre a ordem em decorrência da mobilização popular acompanhada de crescente radicalização ideológica, polarização e, em alguns casos, de crise de funcionamento da sociedade, o que se busca é ordenar, desmobilizar, ‘normalizar’, ‘apaziguar’. Isso exige a ruptura do regime político, que, por sua vez, requer a presença do ator dotado da força e, para alguns, da legitimidade: as Forças Armadas” (5).
Os golpes militares – escreveu sobre a época Guillermo O'Donnell – “estavam estreitamente vinculados a um alto grau de ativação política do setor popular, que aparecia como portador de uma séria ameaça à preservação da ordem social estabelecida. Por outro lado, em íntima relação com essa ameaça, e com os consequentes temores da burguesia e não poucos setores médios, desencadeou-se uma crise econômica que pode ser sintetizada mencionando que, na época dos golpes do Chile em 1973 e da Argentina em 1976, a inflação excedia taxas anuais de 500%, parecia iminente a cessação internacional de pagamentos, o investimento externo tinha caído drasticamente e os fluxos de capitais no exterior, legais e ilegais, davam saldos maciçamente negativos”
A Revolução Cubana (1959), e sua crescente influência em setores significativos das sociedades latino-americanas – especialmente estudantes universitários e intelectuais –, dão sustentação à convicção militar de que a segurança nacional está em perigo e de que para salvaguardá-la é preciso agir sem pestanejar (7). O surgimento de grupos político-militares de esquerda (Tupamaros, Exército Revolucionário do Povo, Movimento Ao Socialismo) e, em 1970, a vitória eleitoral de Salvador Allende, no Chile, convence-os de que a “ameaça comunista” é algo real e de que, portanto, está em suas mãos a defesa do mundo livre, ocidental e cristão, como ensinado na Doutrina de Segurança Nacional (8). Assim, “a tomada do poder pelos militares, no Brasil, criou o primeiro do que viria a ser uma série de regimes com economia de mercado, não apenas eliminando o governo civil, mas também suprimindo líderes e organizações trabalhistas, fechando todos os canais estabelecidos de dissidência política e social e revertendo radicalmente a política econômica nacional” (9).
O final da década de sessenta e o início da década seguinte mostram a encruzilhada em que a região latino-americana se debateria a partir de então, e até o final dos anos oitenta. A violência política, que terá como um de seus focos os Estados autoritários e como outro a violência revolucionária de grupos de esquerda, começa a abrir passagem, somando-se a outras violências estruturais e institucionais.
Este é o contexto em que se realiza a Segunda Conferência dos Bispos em Medellín. Em 1968, a repressão ainda não era feita abertamente, e com a força com que o fará mais tarde, sobre um movimento popular – estudantil, sindical, camponês – que, de maneira organizada, reivindicava seus direitos não apenas econômicos e sociais, mas também políticos. Há um desejo de mudança em amplos setores sociais que, nessa época, se revela como incontornável para quem teme por seus privilégios (10). Há sofrimento material e exclusões políticas, mas também há esperança.
Os bispos latino-americanos reunidos em Medellín assumem esta situação crítica e esperançosa. Melhor preparados do que em 1955, eles não dão as costas aos desafios impostos pela realidade histórica latino-americana daquela época. E isso por duas razões: uma de caráter interno e outra de caráter externo. Internamente, houve não apenas a consolidação das suas estruturas por parte do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM), mas também surgiu uma geração (formada por sacerdotes, religiosas e religiosos) disposta a promover, inspirada em um pensamento teológico libertador (11), as transformações exigidas pelos setores populares da América Latina. No flanco externo, de Roma sente-se o influxo renovador do Concílio Vaticano II, cuja Constituição Pastoral Gaudium et Spes proclama que “as alegrias e as esperanças, as tristezas e angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo” (12).
Preocupar-se com as alegrias e as esperanças, as angústias e as tristezas dos seres humanos, especialmente dos pobres e aflitos, significa preocupar-se com as condições econômicas e sociais em que vivem. O Decreto Ad Gentes diz claramente:
“Trabalhem os cristãos e colaborem com todos os outros para estruturar com justiça a vida econômica e social... Além disso, associem-se aos esforços dos povos que procuram com afinco melhorar as condições de vida e firmar a paz no mundo, combatendo a fome, a ignorância e as doenças” (13).
Com os pés fincados na realidade que lhes cabe viver, os bispos reunidos em Medellín fazem seus os graves problemas do continente.
“A América Latina, afirmam, parece viver ainda sob o signo trágico do subdesenvolvimento, que não apenas afasta os nossos irmãos do gozo dos bens materiais, mas de sua própria realização humana. Apesar dos esforços realizados, conjugam-se a fome e a miséria, as doenças generalizadas e a mortalidade infantil, tensões entre as classes sociais, surtos de violência e escassa participação do povo na gestão do bem comum” (14).
Na mesma linha, fazem sua a principal novidade apresentada por essa realidade: a aspiração à emancipação e à libertação.
“Estamos no limiar de uma nova época histórica do nosso continente – dizem eles – cheia de anelo de emancipação total, de libertação diante de qualquer servidão, de amadurecimento pessoal e de integração coletiva. Percebemos aqui os prenúncios do parto doloroso de uma nova civilização... Não podemos deixar de descobrir nesta vontade, cada dia mais tenaz e apressada de transformação, os vestígios da imagem de Deus no homem, como um poderoso dinamismo” (15).
Ou, dito de outra forma: “nossos povos aspiram à sua libertação e crescimento na humanidade, mediante a incorporação e participação de todos na mesma gestão do processo personalizante” (16). Libertar-se e crescer em humanidade significa transitar de condições de vida menos humanas para condições de vida mais humanas. Aqui os bispos se referem a Paulo VI que, em sua Encíclica Populorum Progressio, defendia que o verdadeiro desenvolvimento.
“É, para todos e para cada um, a passagem de condições menos humanas de vida a condições mais humanas. Menos humanas: as carências materiais dos que são privados do mínimo vital, e as carências morais dos que são mutilados pelo egoísmo. Menos humanas: as estruturas opressivas, quer provenham dos abusos da posse ou do poder, da exploração dos trabalhadores... Mais humanas: a passagem da miséria à posse do necessário, a vitória sobre os flagelos sociais, o alargamento dos conhecimentos, a aquisição da cultura. Mais humanas também: a consideração crescente da dignidade dos outros, a orientação para o espírito de pobreza” (17).
O contexto da América Latina exige dos cristãos “clareza para ver, lucidez para diagnosticar e solidariedade para agir” (18). Com esse espírito, os bispos dão um passo transcendental: introduzem a noção de “sinais de nossos tempos”, o que significa que “as aspirações e clamores da América Latina” são interpretados como “sinais que revelam a orientação do plano divino operante no amor redentor de Cristo que funda estas aspirações na consciência da solidariedade fraterna” (19).
Assim, em Medellín, os bispos assumem que a libertação é a aspiração mais importante do Povo de Deus. E, diante dessa aspiração, especificam a contribuição que a Igreja é obrigada a oferecer pela fidelidade ao plano de Deus na história: a) oferecer uma visão global do homem e da humanidade e uma visão integral do homem latino-americano; b) ser solidária com as responsabilidades que surgiram nesta etapa de transformação na América Latina; e c) estimular os esforços, acelerar as realizações, aprofundar-lhes o conteúdo, penetrar todo o processo de mudanças com os valores evangélicos (20). Agora, como passo prévio, a Igreja latino-americana deve “purificar-se no espírito do Evangelho”, “viver uma verdadeira pobreza bíblica” para poder, entre outras coisas, “inspirar, estimular e urgir uma nova ordem de justiça, que incorpore todos os homens [e mulheres] na gestão das próprias comunidades” (21).
Em seu “Apelo Final”, os bispos reunidos em Medellín dizem o seguinte:
“Apelamos a todos os homens de boa vontade para que colaborem em verdade, justiça, amor e liberdade nesta tarefa transformadora de nossos povos, no alvorecer de uma nova era... Queremos também advertir, como dever de nossa consciência... aos que regem o destino da ordem pública. Em suas mãos está uma gestão administrativa, libertadora de injustiças e condutora de uma ordem em função do bem comum que chegue a criar o clima de confiança e ação que os homens latino-americanos necessitam para o desenvolvimento pleno de suas vidas. Por vocação própria, a América Latina tentará obter a sua libertação a custo de qualquer sacrifício, não para fechar-se sobre si mesma, mas para abrir-se à união com o resto do mundo, dando e recebendo em espírito de solidariedade” (22).
Talvez o maior significado de Medellín esteja em ter vinculado a Igreja aos processos de libertação que marcaram a América Latina naquela época e que, nas duas décadas seguintes, deram origem a uma espiral de violência estatal e paramilitar que atingiu duramente não apenas os leigos, mas também membros da Igreja. Essa Igreja que viveu a perseguição, a tortura e os assassinatos, vividos por camponeses, operários, estudantes e profissionais, soube ler os “sinais dos tempos” e soube ser uma Igreja dos pobres.
Transcorridas cinco décadas desde aqueles tempos memoráveis, muitas coisas mudaram na Igreja e na realidade latino-americana. O esquecimento e a desmemória são a pior ameaça que paira sobre o que foi feito por aqueles que contribuíram com compromisso e sacrifício no passado recente de nossas sociedades. Esta etapa da Igreja Latino-Americana – sem a qual não se entende a vida, o trabalho e a morte do beato Oscar Arnulfo Romero – corre o risco de ficar enterrada nos resquícios mais inertes do esquecimento.
Nós não devemos permitir isso. Devemos manter viva a memória, os compromissos e as práticas de inserção sociopolíticas suscitadas por Medellín – e cimentadas em Puebla em 1979 –, de modo que a Boa Nova de Jesus de Nazaré continue a chegar àqueles que são violentados em seus direitos e em sua dignidade por minorias que concentram o poder e a riqueza.
San Salvador, 19 de abril de 2018.
Notas.
1. Cf. González, L. A. “Estado, mercado y sociedad civil en América Latina”. ECA, n. 552, outubro 1994, pp. 1045-1056.
2. Urquidi, V. L. Otro siglo perdido. Las políticas de desarrollo en América Latina (1930-2005). México: El Colegio de México-FCE, 2005, p. 159.
3. Cf. Hirschman, A. O. De la economía a la política y más allá. México: FCE, 1984, capítulo V: “El paso al autoritarismo en América Latina y la búsqueda de sus determinantes económicos”, pp. 129-175.
4. Cf. González Casanova, P. Los militares y la política en América Latina. México: Océano, 1988.
"Percorrendo as duas obras, buscaremos recortar o que os diferentes autores disseram sobre o que significou Medellín para a vida da Igreja, localizando-o, primeiro, no contexto em que se realizou", escreve Eliseu Wisniewski, presbítero da Congregação da Missão Província do Sul (padres vicentinos), mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR) e doutorando em Teologia pela mesma Universidade.
Eis o artigo.
Jubileu de ouro. É a celebração dos 50 anos da II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano realizada em Medellín no ano de 1968. Medellín marcou decisivamente a vida e a caminhada da Igreja na América Latina. Não é um evento do passado... Celebrar este aniversário é, portanto, de fundamental relevância: para acordar em nós a memória para fatos passados, cujo significado, hoje, merece ser conservado, revisitado e transmitido.
Cinquenta anos depois de sua realização, na situação que vivemos hoje socialmente e eclesialmente, onde se levantam muitas interrogações, e nos deparamos com muitas perplexidades, somos convidados a três atitudes: a gratidão, a paixão e a esperança[1]. Em primeiro lugar olhamos com gratidão o evento Medellín, em segundo lugar buscaremos viver com paixão o presente e, em terceiro lugar buscaremos abraçar com esperança o futuro, trazendo para o tempo atual aquele grande evento de meio século atrás. Olhamos com gratidão o passado não “para fazer arqueologia nem de cultivar inúteis nostalgias, mas de repercorrer o caminho de gerações para nele captar a centelha inspiradora, os ideais, os projetos, os valores que as moveram”. Vivemos com paixão o tempo presente, pois, a “lembrança agradecida do passado impele-nos numa escuta daquilo que o Espírito diz hoje à Igreja” e abraçando com esperança o futuro “perscrutamos novos horizontes”.
Para isso, servimo-nos de duas obras recentemente publicadas no Brasil, as quais buscam revisitar Medellín. A primeira obra organizada por Manoel Godoy e Francisco de Aquino Júnior - e publicada pela Editora Paulinas é intitulada: 50 anos de Medellín. Revisitando os textos, retomando o caminho. A segunda obra foi organizada por Ney de Souza e Emerson Sbardelotti - e publicada por Editora Vozes traz como título: Medellín: memória, profetismo e esperança na América Latina. Godoy e Aquino Jr destacam na apresentação da obra: “queremos ter um livro guia que revisite o tom profético de Medellín no contexto do pontificado do Papa Francisco e lance luz para a resistência histórica dos crentes pobres do continente latino-americano e caribenho. Os dezesseis títulos do documento final de Medellín foram revistados por nossos autores com essa perspectiva de nos inspirar outra vez, antes os desafios dos tempos atuais”. Por sua vez, registram Souza e Sbardellotti: “uma forma de homenagear esse acontecimento é reunir os teólogos e as teólogas de vários estados do Brasil e de fora do país para apresentarem reflexões (a partir do texto de Medellín) e proporem discussões em que Medellín seja atualizada, criando-se perspectivas e prospectivas que estejam em sintonia com o pensamento e as ações do Papa Francisco”.
Percorrendo as duas obras, buscaremos recortar o que os diferentes autores disseram sobre o que significou Medellín para a vida da Igreja, localizando-o, primeiro, no contexto em que se realizou. Depois destacaremos as principais opções teológicas e pastorais decorrentes deste evento. E finalmente, olhando para a Igreja atual sob o pontificado do Papa Francisco, apontaremos algumas perspectivas de futuro, indicando caminhos a prosseguir.
a) Como evento e texto:
“É o maior evento eclesial do continente no século XX. Medellín foi o Vaticano II da América Latina. É o nosso Pentecostes” (Godoy e Aquino Jr). É “um divisor de águas na história do continente” (Lima). Esta conferência “instaura um marco fundamental na caminhada da Igreja Latino-Americana” (Teixeira). “Sela a ata de nascimento de uma Igreja com rosto latino-americano” (Beozzo). Foi a “consolidação de uma consciência de identidade eclesial latino-americana” (Domezi).
Realiza a “recepção criativa do Vaticano II para a América Latina e Caribe” (Ferraro). É a “releitura latino-americana do Concílio”(Taborda). Assumindo, portanto, a “tarefa de recepcionar o Concílio Vaticano II no continente latino-americano, e essa é, ainda hoje, uma das suas maiores características” (Kuzma). Tornou-se o “símbolo de uma recepção criativa do Vaticano II, levado a cabo pela Igreja na América Latina” (Brighenti). Tudo que “ai foi gestado, amadurecido, decidido e praticado tem como pano de fundo o Concílio Vaticano II. É comum dizer-se que o verdadeiro espírito e a recepcio mais autêntica deste Concílio, mais do que em outras partes da Igreja, deu-se aqui em nosso continente” (Lima).
Essa “recepção criativa e dinâmica do Vaticano II foi acontecendo a partir dos diversos níveis eclesiais. Em certos momentos, com dinamicidade maior; em outros, com passos lentos” (Souza). Significou para as “Igrejas da tradição católica no continente o surgimento de uma Igreja propriamente latino-americana, na qual ela começa um processo de inserção no continente que toma a cara e a cor dos nossos povos” (Barros). “Foi como que seu batismo de fogo e sangue” (Altemeyer Jr). Foi um “momento decisivo na história do catolicismo latino-americano” (Souza), a “consagração do novo que aqui surgiu” (Boff), “efetivamente, os anos que se seguiram à Conferência de Medellín foram muito especiais para a atuação e a presença da Igreja na América Latina” (Manzatto).
Desde a “liturgia até o ecumenismo, perpassado pela eclesiologia, pelo laicato, pelo episcopado e pela formação do clero não faltaram esforços para consumar o Concílio” (Souza). O “evento-Medellín ensina para além de sua textualidade canônica, como processo e tomada de consciência e de atuação da Igreja na história, de onde emergem experiências pastorais, reflexões e testemunhos que encarnaram o Evangelho na história. O projeto é mais amplo que o texto e efetivou-se de modo nem sempre idêntico nas diversas realidades. Se o texto reproduz uma objetividade, a prática é sempre mais ampla e flexível na medida em que seleciona, subtrai ou acrescenta algo ao texto” (Passos).
Por isso, é necessário distinguir entre o “evento (conferência, documento) e o processo gestado/desencadeado por este evento (imaginário e dinamismo eclesiais), o ‘Medellín histórico’ e o ‘Medellín simbólico’ ou ‘querigmático’, ou seja, o mais importante “não foram os textos, mas o significado e o símbolo que se tornou para a Igreja e para o continente latino-americano”. Por isso, “vale mais pelo que sugere e inspira do que pelo que diz materialmente” (Aquino Jr), “é um espírito, um ponto de partida, que continua fazendo caminho em nossas comunidades eclesiais” (Brighenti).
b) Como opções teológicas e pastorais:
A “herança de Medellín é uma Igreja em permanente busca e sua fidelidade a Jesus Cristo e à realidade que a desafia”(Passos). Este evento soube encarar “sem escamoteações a realidade da América Latina, tê-la devidamente expressado e corajosamente assumido opções condizentes com a mesma. Não teve em vista oferecer grandes exposições doutrinais, mas aplicando a este continente as conquistas do Vaticano II” (Miranda). “Medellín é como que o momento oficial do nascimento da teologia propriamente latino-americano” (Manzatto), “traduziu na prática a definição de Igreja como Povo de Deus” (Beozzo). O “método ver-julgar-agir, já ensaiado por João XXIII na Mater et Magistra e proposto na Gaudium et Spes, de se examinar os acontecimentos os sinais dos tempos, como ponto de partida para a reflexão teológica, foi integralmente abraçado por Medellín” (Beozzo).
Com Medellín, a Igreja na América Latina e no Caribe deixou de ser uma “igreja reflexo do milenar eurocentrismo para desencadear um processo e tessitura de um rosto próprio e de uma palavra própria” (Brighenti). A “atenção aos sinais dos tempos quanto à opção pelos pobres já vinham da época do Concílio e estão presentes em documentos como a Gaudium et Spes, mas receberam plena cidadania na Conferência de Medellín” (Barros). Distinguiu-se pela “opção pelos pobres, assumida sem adjetivos” (Taborda), “fez da denúncia das injustiças, da opção preferencial pelos pobres e de uma Igreja servidora e pobre, aliada dos pobres e de suas causas, o fio condutor do seu projeto eclesial” (Beozzo).
Firma “a opção pelos pobres, fortalece a nova reflexão teológica que se consolida na Teologia da Libertação, abre, a partir das Comunidades Eclesiais de Base, para um novo paradigma eclesiológico, onde os pobres são considerados novos sujeitos sociais e eclesiais. A centralidade do pobre torna-se uma marca característica da fisionomia da Igreja latino-americana e caribenha e a partir dela vai imprimindo esta nota para a Igreja do mundo todo”(Ferraro), “vindo à tona dois elementos fundamentais da configuração da Igreja, fruto da recepção criativa do Vaticano II: uma Igreja sacramento do Reino, em perspectiva de diálogo e serviço com as demais Igrejas, religiões e sociedade autônoma e pluralista; e uma Igreja pobre e dos pobres, para que a Igreja seja de todos, num Subcontinente marcado pela pobreza e a exclusão”(Bighenti). Foi, por isso, o “grande passo adiante representado por esta Conferência Episcopal” (Taborda).
Mais avançado que o “Vaticano II, porque no Vaticano II a opção pelos pobres foi de uma minoria, quase clandestina, comandada por Dom Helder Câmara. Medellín faz a opção pelos pobres, Medellín, faz a opção pelas comunidades, Medellín faz a opção pela militância, a partir da fé” (Godoy e Aquino Jr). Os “pobres são tratados como sujeitos, não reduzidos a objetos de cuidado, ou de prática assistencialistas” (Souza e Sbardelotti).
É a “expressão de uma presença da Igreja na América Latina, pontuada pela coragem profética de reagir contra a situação de miséria, injustiça e alienação que marcavam o continente naquela ocasião” (Teixeira). A “teologia dos sinais dos tempos fez Medellín refletir os problemas pastorais a partir da realidade social e política do continente” (Barros). Tendo essa “eclesiologia como base, desenvolveu-se robustamente um pensamento teológico original, como reflexão dessa prática libertadora de comunidades e cristãos engajados nas mais diversas frentes de defesa da vida” (Godoy e Aquino Jr). Impulsionou “um novo comportamento da Igreja Católica e no Caribe, mais integrada com a sociedade e com as diferentes Igrejas existentes no continente” (Wolff). “Traçaram uma rota que a Igreja seguiria nos anos seguintes em todo o continente, e que constituiu não apenas sua identidade específica, mas também sua contribuição mais contundente para a maneira de ser e compreender a Igreja em todo o mundo”(Manzatto).
A “Teologia da Libertação tornou-se um dos grandes legados dessa eclesiologia advinda do espírito de Medellín” (Godoy e Aquino Jr). A Teologia da Libertação “embora beba da referencialidade do texto, constitui um exemplo das possibilidades de fazer o paradigma avançar de modo crítico e construtivo na medida em que recorta novos objetos no ato e reflexão. O que fora lançado em Medellín e pensado pela Teologia da Libertação está, agora, suprassumido pelo magistério universal” (Passos).
Medellín deu os “primeiros passos na direção do sonho que caminhássemos não apenas para conferências episcopais, mas para assembleias do Povo de Deus, como forma mais acabada de realização do que está proposto na Lumen Gentium, ao definir a Igreja como Povo de Deus, ou seja, em que todos os batizados gozam de plena cidadania dentro da Igreja” (Beozzo).
c) Como desafios e perspectivas:
“Há um antes (o processo de preparação e os antecedentes), um durante (a realização da II Conferência Geral dos Bispos do Continente) e um depois (o processo de recepção) de Medellín. E tudo isso pertence a Medellín” (Brighenti). Da “cronologia da II Conferência recolhe-se a sua kairologia” (Passos).
Retomar Medellín “é resgatar a dimensão profética e pedagógica da Igreja como fonte de orientação para os caminhos da missão eclesial no mundo de hoje construindo respostas novas e emergentes que colaborem na construção de estruturas de humanização e vida digna para todos” (Costa). Retomar Medellín “após 50 anos e manter viva sua memória é um convite a refletir sobre o contexto que o gerou, para que se possa fazer sua atualização e apontar perspectivas e prospectivas que estejam em sintonia com os objetivos do Concílio Vaticano II, com também, não sem ambiguidades, retrocessos, avanços, com os objetivos presentes em Puebla (1979), Santo Domingo (1992), Aparecida (2007) e aproximando o texto de Medellín das palavras e ações presentes na vida e missão do Papa Francisco” (Ferraro).
Os 50 anos da Conferência de Medellín “provocam a memória, interrogam a consciência do presente e atiçam a expectativa para o futuro” (Passos). “Medellín deu seu fruto e, cinquenta anos depois, como no Ano do Jubileu, talvez tenha chegado o momento de começar a história de novo” (Manzatto). Isso porque “já não estamos no contexto da década de 1960 e os sinais dos tempos exigem fazermos uma segunda recepção tanto do Vaticano II como de Medellín. Na fidelidade a seu espírito, é preciso situá-los em relação aos desafios da modernidade tardia” (Bighenti).
Sua “recepção ainda permanece como uma realidade nova e aberta, mesmo depois de 50 anos ainda conclama e nos exorta a uma Igreja de diálogo e de constante renovação” (Kuzma). O “legado de Medellín se encontra hoje na Igreja universal como dom do Espírito oferecido a toda comunidade dos seguidores de Jesus Cristo no presente da história, expressando-se em doutrinas, em práticas simbólicas, em métodos e em sujeitos eclesiais concretos” (Passos).
“Revisitando Medellín, há belas iniciativas a resgatar, novos caminhos a trilhar, com a audácia dos que se deixam guiar pelo Espírito, e, sobretudo, novas respostas a dar aos desafios concretos de nosso tempo” (Brighenti). Neste “redescobrimento de Medellín, busca-se reafirmar e reassumir a opção pelos pobres, o Pacto das Catacumbas da Igreja pobre e servidora, o método ver-julgar-agir, acrescido do rever-celebrar-sonhar, que para muitas pessoas será a primeira experiência desse chamado do Espírito Santo que há cinco décadas ecoa por este chão continental semeado com o sangue dos mártires da caminhada no seguimento do Mártir Jesus de Nazaré. O Povo de Deus ainda continua andando no deserto, apesar dos ares primaveril trazidos por Francisco, o papa vindo do fim do mundo” (Souza e Sbardelotti)
“As intuições primeiras de Medellín já apontavam para uma Igreja em saída, pois Medellín é inteiramente fiel ao Vaticano II, e quer ser uma Igreja para fora, com cheiro das ovelhas como pede Papa Francisco” (Souza e Sbardelotti), a “substância da II Conferência se encontra viva e reafirmá-la de novo em nossos dias de mundo globalizado significa afirmar a fé na Igreja de Jesus Cristo pobre com os pobres contra todos os triunfalismos, a Igreja servidora contra os poderes sagrados que dominam em nome de Deus, a Igreja povo de Deus contra todo clericalismo, a Igreja em saída contra todas as fixações fundamentalistas e burocráticas, a Igreja da esperança contra todos os conformismos com a ordem reinante” (Passos).
d) Interpelações e caminhos a prosseguir:
Em relação à Justiça: “Colocando-a como apóstola da justiça distributiva ou social para além dos parâmetros tradicionais da justiça comutativa, os bispos da América Latina e Caribe inauguram um novo tempo na Igreja – um kairós – no qual o Reino de Deus anunciado e tornado presente em Jesus de Nazaré pode ser visto, porque presente nas práticas dos cristãos, em prol da defesa e promoção da vida, em especial dos pobres e excluídos”(Brighenti). “Cada momento histórico tem suas características e exigências próprias. Resta destacar a atualidade sócio-eclesial da problemática injustiça x justiça. Ela diz respeito tanto ao processo de aprofundamento e complexificação da injustiça no mundo quanto ao processo de auto-fechamento eclesial e de subjetivação da fé nas últimas décadas. Não há dúvidas de que o desafio maior de nosso contexto histórico é construção da justiça, entendida como garantia do direito dos pobres e marginalizados de nosso tempo. Não aconteça que, ocupada com coisas mais religiosas e sagradas, a Igreja passe à margem do Senhor, caia à beira do caminho (Lc 10,25-37) ou se recuse a serví-lo na humanidade sofredora que é, n'Ele, juíza e senhora de nossas vidas, de nossa sociedade, de nossa Igreja e de nossa teologia” (Aquino Jr).
Em relação à Paz: “O eixo de referência para a evangelização na América Latina na trilha de Medellín, foi o compromisso com a causa da justiça e do trabalho em favor da paz. O papa Francisco retoma esse itinerário de Medellín, centrando sua atenção na escuta e no clamor os pobres e no exercício evangélico da misericórdia. O desafio que ele lança para a Igreja é o de alongar mais o olhar e abrir os ouvidos ao clamor dos outros povos. O tema da paz volta a ganhar centralidade, e ela vem entendida como um processo artesanal, envolvida no processo amplo e complexo de abertura ao outro” (Teixeira). “Daí que a promoção da paz é parte integrante da missão da Igreja, colocada por Cristo como sinal e instrumento de paz no e para o mundo. Se não nos parece estranho o protagonismo da sociedade civil como sujeito de projetos morais em prol da paz, o discipulado cristão exercido na seara política promove uma espécie de ética cívica da paz, que é gérmen da cultura da paz e da solidariedade. A construção de uma cultura e paz, mediante a consolidação de políticas públicas e participação ativa na vida política e na defesa dos direitos civis, reclamam o enfrentamento de uma miríade de formas de violência. Se nos deparamos com a ausência de cristãos e lideranças que se dediquem a uma atuação mais criativa, ousada e cidadã, sobretudo nas esferas de governo, primeiras responsáveis pela consecução do bem comum, Medellín relembra que uma forte e viva fé em Cristo e uma decisão radical de segui-lo pelos caminhos da paz, como Ele a anunciou e a testemunhou com sua vida, sua morte e sua ressurreição, é impulso para assumir o amor preferencial pelo pobre”(Toneti).
Em relação à Família: “Medellín avança decididamente na busca de compreender quais transformações socioculturais mais impactam esta experiência e missão no campo familiar. Acentuam-se os contextos precários das famílias para desenvolverem seu protagonismo, e se vê nisto um mega-desafio pastoral, ou seja, a necessidade de se dotar a família atual de elementos que lhe restituam a capacidade evangelizadora. Em meio a essas transformações cada vez mais velozes se percebe como pode ser decisivo acentuar a importância à vocação às pessoas concretas, sujeitos individuais, comunitários e coletivos, e de suas respostas criativas serem dadas na atualidade dos contextos e situações” (Fabri dos Anjos). O “papel da Igreja, por sua vez, tem sido justamente o de promover a aproximação do diálogo, com generosidade e misericórdia no âmbito familiar. Inúmeras iniciativas nas pastorais, equipes e movimentos da Igreja realizam um serviço de escuta e acompanhamento às famílias nas suas mais diversas realidades. Certamente a pastoral familiar almejada por Francisco requer uma pastoral de conjunto, a saber, um esforço que integre a pastoral familiar, a pastoral da criança, a pastoral do idoso, a catequese, a pastoral do batismo, entre outras, assumindo com alegria o convite de sair para oferecer a vida de Jesus Cristo” (Soares de Souza).
Em relação à Educação: “A educação é definida como espaço e projeto libertador. É aquela que transforma e que nasce da base. Nasce das dos oprimidos e quer ser voz dos sem voz. Inspirados no Documento sobre a Educação proclamado por Medellín, pode-se desenhar um projeto de uma escola cristã alicerçada em cinco pilares: 1. Uma escola que contribua com a justiça social em atos de solidariedade concretos. 2. Uma escola que permita e valorize a expressão da liberdade. 3. Uma escola que se abra às questões da ecologia integral. 4. Uma escola que valorize as novas relações entre jovens, adultos, imigrantes e outros povos numa visão planetária. 5. Uma escola que estimule aos jovens a descoberta de sentido em suas vidas. E, enfim uma visão educativa que transforme cada pessoa humana em um educador e intelectual” (Altemeyer Jr).
Em relação à Juventude: A “juventude, em suas palavras e gestos, faz profecia hoje” (Fernandes da Costa). “Os jovens emergem hoje como tema, como categoria, como movimento, como organização, como política pública. O que precisa ficar da presença dos jovens no contato com a evangelização e da pastoral é a sua grande ênfase no seguimento de Jesus como metodologia para uma vida e identidades cristãs e como resultado desse seguimento, a continuação-construção do Reino de Deus com seus valores e práticas, numa síntese autêntica para uma vida mais humanizada” (Cardozo). A evangelização da juventude exige, ainda, “uma atualização permanente do conhecimento de sua subjetividade. A juventude latino-americana não quer mais ser invisível. Quer ser reconhecida no mundo em que todas as suas decisões importantes estão nas mãos das pessoas adultas”(Sbardelotti).
Em relação à Pastoral Popular: “a forma de universalidade cristã não está no aspecto quantitativo, realidade que, segundo Congar, a Bíblia olha com desdém. Sua essência é constituir o pequeno rebanho daqueles que por meio da qual Deus quer salvar a multidão. E isso supõe que sejam evitadas as tentações de reduzir a opção cristã à conversão individual, à mudança de coração; eleger as massas como minorias; aceitar a reciprocidade estrita entre conversão individual e não separação da função transcendente do Evangelho da sua função imanente (de caráter político, por exemplo). São formas de contentar-se com uma universalidade quantitativa. Mas sobra a pergunta: abolir as manifestações ‘quantitativas’ de massa, sobretudo as já consagradas pela tradição? Tendo em conta que as classes média e alta pouco participam, estas têm papel ‘pedagógico’: fazem os cristãos-católicos sentirem que não estão sozinhos ante os desafios que a vivência da fé enfrenta. Mas há que se ter presente que isso pouco muda em termos de participação à vida da Igreja, que cresce mesmo na vida dos cristãos confinados à graça, no tecido comum da vida cotidiana” (Benedetti). Frente a isso se destaca a caminhada das Comunidades Eclesiais de Base “nestas cinco décadas, podemos observar uma interação entre CEBs e a religiosidade do catolicismo popular, estabelecendo um intercâmbio ora solidário, ora conflitivo e que demonstra um potencial de influência mútua na medida em que as CEBs deitam suas raízes no catolicismo popular e, ao mesmo tempo, se distinguem dele como sua expressão comunitária e libertária, assumindo o protagonismo de um novo modelo eclesial, pautado pela consciência de ser Povo de Deus, na perspectiva do Vaticano II e fator de transformação no interior da sociedade. Se articulam por causa da ligação da fé com a vida, com outros setores libertários do movimento popular, da luta das mulheres, dos negros e dos povos indígenas, como também do movimento sindical e dos partidos políticos ligados às lutas populares, são desafiadas a cativar cada vez mais pessoas que vivem da religiosidade popular no catolicismo popular, como também as pessoas que estão nas Igrejas pentecostais e neopentecostais, para reforçar o projeto de uma sociedade justa, fraterna e igualitária. E, para que seja assegurado um futuro para este projeto, as CEBs são desafiadas a cativar jovens, que levarão adiante sua construção”(Ferraro).
Em relação à Pastoral das Elites: “Em Medellín, os bispos propuseram que se apresente cada vez mais nítido na América Latina o rosto da Igreja autenticamente pobre, missionária e pascal, desligada do poder temporal e corajosamente comprometida com a libertação de todo ser humano e de cada pessoa por inteiro. Esse critério fundamental com o qual se deve hoje rever a chamada pastoral das elites e a partir da qual podemos reler o Documento 7 de Medellín: como diz hoje o papa Francisco: uma Igreja em saída” (Barros). Antes de tudo, “é preciso reconhecer e insistir que a Igreja tem a missão de anunciar o Evangelho de Jesus Cristo a todas as pessoas. Não pode excluir ninguém nem se fechar a ninguém, independentemente de raça, cultura, sexo, orientação sexual, etc, e até mesmo de classe social. Nesse sentido, é legitima e necessária uma pastoral-evangelizadora entre as elites ou entre outros setores dominantes da sociedade. Mas se trata sempre do Evangelho de Jesus Cristo que é Boa-Notícia do Reinado de Deus. E isso tem consequências e exigências que não podem ser relativizadas e suavizadas de acordo com os gostos e interesses. Não se pode adocicar o Evangelho para agradar e agregar as elites nem adequá-lo a seus interesses. Nem se pode esquecer que o Evangelho provoca reação e oposição. O Evangelho é o mesmo para todos, ainda que com consequências e exigências diferenciadas. Daí por que esta pastoral das elites não deve ser separada da pastoral e toda a Igreja atento para o risco e a tentação de gueto elitista no trabalho pastoral evangelizador com setores dominantes da sociedade- grupos ou comunidades só de pessoas da elite, onde pessoas dos setores pobres e marginalizados não podem participar. Convém não criar a ilusão de conversão e de adesão de toda elite ao Evangelho. Sempre haverá resistência e oposição. E não se pode sacrificar o Evangelho para agradar e agregar as elites. Se a Igreja deve anunciar o Evangelho a todas as pessoas, não pode jamais sacrificar o Evangelho para ter a adesão de todas as pessoas. E, assim, a Igreja se abre e se dirige a todos para anunciar um Evangelho que é causa de alegria para uns e de tristeza para outros e que provoca adesão de uns e rejeição e perseguição de outros”(Aquino Jr).
Em relação à Catequese: “Temos uma nova realidade, mas os princípios básicos de Medellín continuam importantes e funcionais. Medellín nos chamou a adaptar a evangelização às reais necessidades dos destinatários. A informática mudou o comportamento das pessoas, crianças e jovens têm posturas diferentes, valores importantes foram deixados de lado na educação, e isso se reflete na cultura, nos ideais (ou na falta deles), no que se vê no cinema, na televisão, na conversa dos jovens e no que se passa no ambiente familiar. A questão da tradição cultural católica no meio do povo também se alterou e hoje a pluralidade de escolhas religiosas está muito disseminada entre a população. Medellín nos falou da importância de considerar as situações históricas e as aspirações humanas na catequese, e isso continua sendo cada vez mais fundamental- até com uma premência maior do que há 50 anos – mas, evidentemente, agora temos que aplicar esse princípio a um tipo de realidade diferente” (Cruz). Ressalta-se aqui a “dimensão bíblica a partir da renovação catequética impulsionada por Medellín, a Bíblia será cada vez mais devolvida às mãos dos catequizandos, e a Palavra de Deus se tornará o conteúdo principal catequético. Se o clássico catecismo cai em desuso e os novos textos e manuais ainda procuram o caminho da renovação, a Bíblia ocupa então um lugar central na educação da fé. É um resgate que se mostra muito eficaz e estimula a criatividade das comunidades e catequistas para tornarem sempre mais compreensível a Palavra de Deus, e compreendê-la a partir dos problemas da vida, iluminando assim o sentido da existência. Multiplicam-se os círculos bíblicos; na liturgia, ela é celebrada com criatividade, e começaram a aparecer os métodos de leitura popular ou orante da Bíblia” (Lima).
Em relação à Liturgia: “malgrado as dificuldades e os inúmeros desafios ainda a se vencer, é perceptível a influência que Medellín exerceu nas várias dimensões da liturgia na América Latina” (Santos Frade), e, “para levar adiante a reforma de uma liturgia com o espírito de Deus e a cara das nossas culturas, para um jeito renovado de ser Igreja pobre entre os pobres, podemos seriamente dar continuidade e renovar todo empenho quanto aos seguintes aspectos:
1) garantir a compreensão da liturgia como celebração do mistério libertador de cruz e ressurreição acontecendo no hoje concreto da história – liturgia conectada com a vida;
2) resgatar e garantir a consciência da presença real do Senhor na totalidade da ação litúrgica (nos sinais sacramentais, na Palavra que se proclama, na assembleia reunida, na pessoa de quem preside), sem esquecer tal presença, sobretudo no dia a dia dos pobres, das periferias existenciais;
3) garantir a ritualidade como linguagem própria de toda a liturgia;
4) garantir que a liturgia, assim entendida, seja de fato lugar privilegiado de evangelização, ou repetindo o que já dissemos, lugar privilegiado de encontro com Jesus Cristo e de formação de discípulos e missionários para que neles nossos povos tenham vida;
5) dar continuidade e promover uma acurada formação litúrgica em todos os níveis, privilegiando o seu caráter mistagógico;
6) dar continuidade na preparação e peritos para assessorar no processo de formação;
7) dar continuidade ao processo de adaptação e enculturação da liturgia;
8) promover e garantir a consciência de toda a assembleia como celebrante da liturgia”;
9) promover e garantir a participação consciente, ativa, plena e frutuosa da assembleia local com a sua cultura;
10) promover e garantir a experiência de Comunidades Eclesiais de Base, onde a liturgia pode com mais facilidade florescer com renovado vigor para um renovado modo de ser Igreja;
11) garantir a continuidade das celebrações da Palavra de Deus nas comunidades eclesiais;
12) promover e garantir para o povo em geral a celebração da Liturgia das Horas, especialmente do Ofício Divino das Comunidades (forma brasileira inculturada de celebração da presença do mistério no tempo que nos é dado viver);
13) manter-nos atentos e conscientes do nosso pessoal e coletivo inconsciente litúrgico medieval e pós-tridentino como padrão ainda dominante a ser pacientemente evangelizado por uma liturgia mais mistagógica”(Ariovaldo da Silva).
Em relação aos Movimentos de Leigos: “50 anos depois Medellín encontra a sua força. Sua proposta eclesial torna-se viva e atual e desafia todos os cristãos a uma nova postura. E aqui se enquadram de modo especial os leigos, pois esta saída deve ser encontrar com os problemas humanos e oferecer a cada pessoa e a cada realidade um novo sentido de ser e estar. Uma fé encarnada e comprometida com as realidades que nos cercam” (Kuzma). Infelizmente “no interior da Igreja Católica continua como desafio uma relação de gênero pautada na justiça, na fundamental igualdade e na fraternidade evangélica enquanto o patriarcalismo clericalista persiste e até avança, em um modo de Igreja ainda distante da eclesiologia do Vaticano II”. É oportuna e necessária a chamada do Papa Francisco para uma permanente reforma na Igreja que, atingindo sua própria estrutura, supere o clericalismo. Entre suas exortações e ações em favor das mulheres está o apelo para que e ampliem ‘os espaços para uma presença feminina mais incisiva na Igreja’. E o papa justifica isso com a eclesiologia conciliar: as reivindicações dos legítimos direitos das mulheres, a partir da firme convicção de que homens e mulheres têm a mesma dignidade, colocam à Igreja questões profundas que a desafiam e não se podem iludir superficialmente” (Domezi).
Em relação aos Sacerdotes: a Igreja em nosso continente “foi capaz de gerar um estilo próprio de ministros ordenado. Permanecem, contudo, os desafios de uma renovada identidade e missão em favor dos pobres e excluídos, um aprofundamento da inculturação da fé e da vivência do Evangelho, em uma Igreja de discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que neles nossos povos tenham a vida e a vida em abundância”(Nef Ulloa). Vejamos: “do ponto de vista do ‘ver’ a realidade, muitos aspectos do Documento 11 permanecem válidos, outros se transformaram, outros deveriam ser acrescentados. Grandes mudanças obviamente continuam a acontecer. Basta lembrar o que significou desde então a multiplicação de transmissões televisivas ditas católicas, seja de missas em múltiplos horários, seja de palestras de pessoas que precisariam, elas mesmas se adequar à teologia e ao espírito do Vaticano II. Tais transmissões influenciam os fiéis e – quer direta, quer indiretamente – os presbíteros se veem, por exemplo, constrangidos a imitar as celebrações televisivas de padres pop star, ou porque gostam, ou porque acham que assim vão agradar ao público e atrair o povo. Em decorrência, muitas vezes, a assembleia se transforma em platéia de auditório e apresenta pouca ou quase nenhuma consonância com a celebração do memorial da Páscoa do Senhor. A opção pelos pobres, apesar de evangélica e sublinhada com força pelo Papa Francisco, é posta sob suspeita e descartada por muitos como fruto de uma suposta teologia da libertação, considerada espúria e desviante. Se nos anos de Medellín o moto era ‘sair da sacristia’ e tomar posição no mundo circundante, hoje se vê com preocupação a ‘volta à sacristia’, o prazer pela renda e brocados de gosto mais que discutível. A celebração eucarística em que Cristo deveria ser o centro, como único mediador entre Cristo e o Pai, se torna missa do padre fulano, missa do padre sicrano. Se no tempo de Medellín poderia se falar de exacerbação do erotismo no meio ambiente, com mais razão deve repeti-lo atualmente, dada a facilitação do acesso a sites pornográficos e a filmes de temática erótica tanto heterossexual como homossexual, que podem ser vistos no recesso dos lares e das casas paroquiais. Sem dúvida agora vale muito mais que então que se abriu caminho a nova e variada problemática no tocante à vivência do celibato . Descura-se de uma fé encarnada, uma fé com poucos fundamentos críticos pela falta de formação séria e do hábito de leitura que mantenha o presbítero especialmente o jovem atualizado na discussão teológica vigente, capaz de refletir a fé e não simplesmente acolhê-la como um ‘pacote já pronto’ a ser engolido e passado adiante com furor dogmático. Neste ponto é crucial formação adequada, sólida, profunda, tanto intelectual como espiritual, dos futuros presbíteros, e a atualização continuada dos presbíteros veteranos. Na falta de uma espiritualidade sólida, os presbíteros recorrem ao devocionismo e se agarram e propagam devoções esdrúxulas. Uma espiritualidade alimentada por mensagem de videntes (supostos ou verdadeiros), por dulcificação da piedade, por exclusivismos elitistas está bem longe do que Medellín considerava um desafio e continua a sê-lo: uma forma de espiritualidade segundo as orientações o Vaticano II. No tocante ao celibato, observa-se, por um lado, casos de relacionamento conjugal estável entre os clérigos e mulheres e mesmo homens, jovens ou copresbíteros, e, por outro, um crescente número de vocações homoafetivas. O receio pela ‘ameaçadora’ presença do leigo, por vezes mais bem formado que a média do clero, talvez não traga dúvidas sobre a própria vocação sacerdotal, mas leve a atitudes autoritária por parte dos presbíteros. Neste contexto, volta-se à questão da escassez quantitativa e qualitativa de presbíteros. É um problema que continua candente. Entretanto não se resolve na forma tradicional” (Taborda).
Em relação à Vida Religiosa: “Medellín, no filão aberto pelo Vaticano II, descortinou para a Vida Religiosa Consagrada (VRC) um horizonte largo de renovação, apontando para a construção de nova figura história de um carisma eclesial milenar, tão importante para o serviço aos mais pobres e deserdados de nosso mundo. Embora tenham sido muitos os momentos gloriosos do testemunho de religiosos e de religiosas, ao longo dos séculos, seria fazer a política do avestruz desconhecer o momento dramático pelo qual a VRC está passando. Equivoca-se quem atribui ao Vaticano II ou às lições de Medellín o atual estado da Igreja e da VRC. Só uma leitura simplista da realidade, sem o devido senso crítico, pode desembocar nesse erro grosseiro de avaliação. Os meandros da história e do coração humano são demasiado complexos para permitirem que se identifique, com precisão cirúrgica, as causas do atual low profile da VRC, beirando à insignificância. A celebração do cinquentenário da II Conferência do Episcopado Latino-Americano em Medellín pode se constituir em momento oportuno para um exame de consciência, que possibilite aos religiosos escutarem, de novo, o que o Espírito falou ao religiosos e às religiosas de nosso continente. E se disponham retomar o caminho profético da opção preferencial pelos pobres, na trilha aberta por Jesus de Nazaré, e convida muitos a seu seguimento, como desdobramento da vocação batismal” (Vitório). A “proposta de Medellín para uma vida religiosa renovada e inserida deveria nos levar a um modo de viver nossa consagração que expresse uma profunda paixão pela vida marcada pela liberdade de ser, de viver e de viver a profecia de uma Igreja em saída, Igreja pobre e simples que dança e se mistura com a humanidade, especialmente com os povos empobrecidos, como uma barquinha frágil em meio às ondas no mar da ternura divina” (Barros).
Em relação à Formação do Clero: “Estamos diante de um momento oportuno para voltarmos a buscar experiências novas, mais leves em termos institucionais e mais abertas à realidade que nos cerca. É esse o espírito que nos tenta passar o papa Francisco, quando nos desafia a vencer as estruturas eclesiásticas ultrapassadas e nos lançarmos a uma Igreja em saída. Chegamos num ponto de saturação, sobretudo daqueles que privilegiam um grande seminário, nos moldes tridentinos. No século XVI, diante da situação em que a Igreja se encontrava, Trento foi muito eficaz para salvar a Instituição Católica do fosso e que ela havia se metido com problemas de toda a ordem. Hoje, ante aos problemas atuais, precisamos ser também bastante criativos na busca de respostas no campo do processo formativo. Porém, não basta reduzir o tamanho da casa, se nela se reproduz o espírito dos grandes seminários. É preciso ir mais longe que isso. A formação precisa estar atenta às demandas reais das juventudes vocacionadas de hoje, sobretudo às características dos jovens dessa sociedade da informação, profundamente dispersa e fragmentada. Teríamos a coragem de nos lançarmos em modelos novos, mais colados à realidade atual, e não simplesmente reproduzirmos tudo aquilo que já se tentou nos últimos anos. Buscarmos um estilo de formação que facilite aos jovens vocacionados uma vida normal de qualquer jovem que luta para manter no estudo e no trabalho e colabora ainda na manutenção de suas famílias. E, por fim, criarmos uma cultura de formação permanente, onde cada presbítero sabe que a cada estágio de sua vida ministerial existe uma exigência nova de aprofundamento do mistério da vida, pessoal e do povo, que lhe cobra enfrentar com coragem e mística, na certeza de que Deus caminha conosco, estendendo sempre os efeitos da graça recebida no sacramento da Ordem” (Godoy). “Nota-se ainda uma reviravolta na formação presbiteral com a diminuição do zelo apostólico e com o aumento de consumo e bem-estar em arte do clero mais jovem, embora tal afirmação não deva ser generalizada, devido ao testemunho de vida de muitos outros” (Miranda).
Em relação à Pobreza na Igreja: “No que toca à pobreza na Igreja, o documento 14 continua tendo orientações e valor e o comportamento do papa mostra como tais orientações, ainda, são atuais e sua encarnação, necessária nos dias de hoje. A preferência pelos pobres continua sendo a carta dos cristãos, e deveria assim permanecer. De um lado, isso se torna manifestação de solidariedade para com os sofredores e, de outro, fidelidade à revelação de Deus e ao ensinamento evangélico de Jesus” (Manzatto). Por assim ser, “a Igreja é chamada a responder aos anseios de libertação dos pobres que clamam por justiça e vida. Diante da situação de injustiça, afirma-se que não se há de abusar da paciência de um povo que suporta durante anos uma condição que dificilmente aceitaria quem tem uma maior consciência dos direitos humanos. Olhando para a realidade da maioria dos povos da América Latina e do Caribe, que sofrem em sua carne as marcas do abandono e da desolação, a Igreja se vê provocada a assumir sua causa e a colocar todas as energias na defesa da vida e na busca da justiça. Sente-se convocada a trabalhar junto com os pobres e a colocar seus bens a serviço deles, não a partir de uma posição de força e de poder, mas na perspectiva do serviço solidário e misericordioso como Igreja samaritana e servidora” (Ferraro).
Em relação à Pastoral de Conjunto/ Sinodalidade: “num mundo cada vez mais complexo, numa humanidade mais consciente do valor da pessoa, numa sociedade que deve abrigar a diversidade, só poderá haver paz e convivência realmente humana se houver escuta mútua e participação de todos em vista de um consenso, necessário e imprescindível, diante dos desafios e das problemáticas. E a Igreja deveria dar sua contribuição pelo testemunho e pela vivência desta sinodalidade entre seus membros. Trata-se de seguir a rota indicada pelo Concílio Vaticano II, por Medellín e urgida atualmente pelo papa Francisco: ‘o caminho da sinodalidade é justamente o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milênio. A Igreja não é senão outra coisa que o Povo de Deus que caminha junto pelas sendas da história ao encontro com Cristo Senhor” (Miranda). E “ao ser garantia do espírito de koinonia da Igreja, o Espirito Santo suscita, então, uma espiritualidade da colegialidade episcopal e eclesial, que possibilita implementar a pastoral de conjunto, denotativa de unidade apostólica de toda a Igreja, da inserção dessa Igreja na América Latina, cumprindo sua missão evangelizadora, que incide em termos de libertação social e pessoal, sendo libertação integral, e unindo a fé cristã com a perspectiva dos pobres, exibindo fidelidade a Cristo, que se fez pobre efetivamente no mistério da encarnação” (Lopes Gonçalves).
Em relação aos Meios de Comunicação Social: “Em plenos anos de 1960, os bispos latino-americanos já defendiam uma ‘necessária liberdade de expressão, indispensável na Igreja’. Até que ponto isso evoluiu? Será que os meios de comunicação católicos favorecem tal liberdade de expressão, dando espaço e voz a todas as diversidades, especialmente minoritárias? Ou privilegiam sempre a uniformidade do ‘mais do mesmo’? Os leigos ‘imensa maioria do povo de Deus’, têm voz e vez nas mídias católicas? Ou predomina certo clericalismo comunicacional, que esquece que a visibilidade e a sacramentalidade da Igreja pertencem a todo povo de Deus e não só a poucos eleitos e iluminados, gerando uma das maiores deformações que a América Latina deve enfrentar? Cinquenta anos depois de Medellín, o desafio eclesial continua sendo enfrentar a realidade da comunicação- hoje mais do que nunca ‘uma das principais dimensões da humanidade’ com responsabilidade pastoral critica, sem anacronismos nem deslumbramentos, percebendo, nos processos de midiatização e digitalização, um ‘sinal dos tempos’ que aponta para uma complexificação da práxis eclesial. Na ação pastoral da Igreja, o desafio é colocar em prática uma visão e uma experiência de fé que levem em conta a conectividade da própria experiência cristã, marcada por uma comunidade de comunidades evangelizadas e missionárias, cuja constituição se dá por meio de um processo intrinsecamente comunicacional, que nos liga ao irmão a que vemos e ao Deus a quem não vemos, para que também a comunicação eclesial seja, ontem, hoje e sempre, pobre e para os pobres” (Sbardelotto). Vivemos, portanto, o “desafio da continuidade (e certamente do avançar) de projetos iniciados em gestões anteriores, dificultando o trabalho e a linha de entendimento para certas visões e opções individuais de quem preside alguns setores. Enquanto a sociedade se organiza para o ‘trabalho colaborativo’ decorrente dos novos processos comunicativos, diferenciados, no exercício da comunicação com incidência nos seus métodos pastorais” (Puntel).
Concluindo
“Nos 50 anos de Medellín, depois de um longo ‘inverno eclesial’, estão dadas as condições para desencadear na Igreja uma ‘nova primavera’, tal como aconteceu nas décadas de 1970-1980. Revisitando Medellín, há belas iniciativas a resgatar, novos caminhos a trilhar, com a audácia dos que se deixam guiar pelo Espírito, e, sobretudo, novas respostas a dar aos desafios concretos de nosso tempo” (Brighenti).
Nota:
[1] Cf. FRANCISCO, Papa. Carta Apostólica Às Pessoas Consagradas (em ocasião do Ano da Vida Consagrada). São Paulo: Paulinas, 2014.