Dom Edson Damian, 2004- Palestra para um encontro da Fraternidade Leiga.
Charles de Foucauld descobriu que a centralidade da vida de todo cristão é o absoluto de Deus. Ao abraçar a aventura da fé, descobre que Deus está acima de tudo e deseja responder ao amor de Deus com a maior generosidade possível. No caminho de Jesus, na leitura dos evangelhos, na oração contemplativa, ele descobre o absoluto de Deus.
Todos os que salientam a novidade do testemunho do Ir. Carlos, desde René Bazin até Jacques Maritain, passando por Paul Claudel e muitos outros, insistem sobre o caráter radical de sua experiência de Deus. Fazem o mesmo também aqueles que assumem sua espiritualidade missionária: desde Madeleine Delbrel e Jacques Loew, e de um modo especial os Irmãozinhos e as Irmãzinhas de Jesus, que vivem no coração das massas seguindo as orientações de Ir René Voillaume e da Irmãzinha Madalena. Desde o momento em que o Ir. Carlos foi laçado e conquistado por Jesus, sua vida permaneceu centrada no mistério de Deus em quem abandonou-se perdidamente. Esta entrega a Deus não inclui somente a obediência e o esforço permanente de conversão, mas inspira também o louvor e o agradecimento. Alguns exemplos:
Em 1897, onze anos depois de sua conversão, no pequeno eremitério de Nazaré, como Santo Agostinho e Santa Teresinha de Lisieux, recorda o seu passado e canta a misericórdia de Deus par com ele: “Meu Deus! Temos que cantar tuas misericórdias, todos nós criados para tua eterna glória e resgatados pelo sangue de Jesus, por teu sangue Jesus, que estás aqui ao meu lado no sacrário. Se todos devemos fazê-lo, muito mais eu, que desde minha infância fui cercado de tantas graças. Meu Deus, a que ponto tuas mãos me seguravam e eu nem sequer as percebia! Como és bondoso, e quanto me protegias! Tu me cobrias com tuas asas quando eu nem mesmo acreditava em tua existência. No entanto me guardavas assim, o tempo passava e julgaste que se aproximava a hora de me fazer retornar ao teu redil”.
Em 1904, quando já estava no Saara e continuava buscando o seu caminho, escreve ao amigo Henri de Castries evocando sua confiança absoluta em Deus que conduz sua vida: “É tão doce sentir-se nas mãos de Deus, ser levado pelo Criador, bondade suprema, — Deus caritas est’ — Ele é o Amor, o amante, o Esposo de nossas almas no tempo e para toda a eternidade. É tão doce sentir-se conduzido por esta mão no decurso desta breve vida até à eternidade de luz e de amor para a qual nos criou”.
Todos os escritos do Ir. Carlos estão impregnados por um sentido quase imediato da grandeza e da providência de Deus. A experiência do deserto aprofunda nele ainda mais esta abertura à presença de Deus: “É preciso ir ao deserto e nele permanecer para receber a graça de Deus”. Sobre este fundo de espiritualidade teocêntrica estabelecida no absoluto de Deus é que se expande nele o amor apaixonado por Jesus, pelo mistério de sua Encarnação, pela sua humanidade, pela sua vida oculta, pela sua cruz.
O Ir. Carlos torna-se o enamorado de Jesus Caritas. Quer ser imagem viva do Senhor que lhe diz: “Quero que tu sejas como eu, viva escondido em Nazaré, escolha o último lugar...” O Ir. Carlos leva essas intuições quase ao absurdo: a imitação de Jesus em tudo. Nisto se parece com São Francisco de Assis que, diante do espírito medieval árido e frio, cria o presépio, contempla Jesus Crucificado, vive como irmão menor, recebe os estigmas. Todos os santos que mergulham no evangelho, como fez o Ir. Carlos, não têm outra opção senão caminhar na busca da identificação com o Irmão e Senhor Jesus, tornar-se parecido com o Mestre. “Assemelhar-se, imitar, é necessidade violenta do amor, é uma das graças dessa unificação para a qual tende natural e necessariamente o amor. A semelhança e a medida do amor”. É o próprio Jesus que não o deixa por menos: “O discípulo nunca será superior ao mestre, mas o discípulo autêntico será parecido com o mestre” (Mc 6,40). Este convite de Jesus ressoa assim no Ir. Carlos: “Amo a Jesus Cristo, embora com um coração que gostaria de amar mais e melhor. Apesar disso, eu o amo e não posso suportar viver outra vida que não seja a sua”.
Apenas convertido, Ir. Carlos ficou marcado para sempre por uma afirmação pronunciada pelo Pe. Huvelin numa homilia: “‘Jesus escolheu de tal modo o último lugar que ninguém lhe poderá tirar’. Esta frase do Pe. Huvelin ficou gravada de forma indelével em meu espírito. Eu desejava uma vida de conformidade com tua, Senhor, na qual me fosse dado partilhar tua abjeção, tua pobreza, teu trabalho humilde, teu esvaziamento. E a isso me determinei resolutamente”. A partir daí, tentou com todos os meios partilhar com Jesus o último lugar. Para ele não se trata apenas de uma descoberta espiritual, mas de uma orientação de vida que jamais o deixará acomodado. Decide viver como Jesus, partilhando concretamente sua condição, como intuiu intensamente no retiro de novembro de 1897, em Nazaré: “Meu Senhor Jesus, como não se fará prontamente pobre aquele que, amando-te de todo o coração, não pode suportar ser mais rico que o seu Bem-Amado... Não posso conceber o amor sem uma imperiosa necessidade de conformação, de semelhança, e sobretudo de partilhar toas as penas, todas as dificuldades, todas as durezas da vida”.
Ir. Carlos levou muito longe este realismo espiritual unido ao mistério de Jesus. Decidiu viver em Nazaré, isto é, seguir Jesus ali onde realizou-se o mistério e os acontecimentos da Encarnação. Ele quis dar uma forma quase sensível às profundas afirmações teológicas transmitidas pelo Pe. Huvelin, discípulo da escola de espiritualidade de Bérulle, sobre o tema do Verbo Encarnado.
Devemos, porém, ir mais longe. Sobretudo se levarmos em conta que a caminhada espiritual do Ir. Carlos não terminou em Nazaré, mas no deserto do Saara, entre os nômades tuaregues. Ajuda-nos aqui uma reflexão sobre o Deus escondido. O ermitão de Nazaré e, logo em seguida, do Saara, ficou fascinado pelo mistério do Deus escondido que de forma surpreendente e paradoxal se revela através dos acontecimentos da Encarnação, de Belém a Jerusalém, passando por Nazaré. Pois em Jesus, que descende de nossa humanidade, Deus se revela e, ao mesmo tempo, se oculta. Esta espécie de esvaziamento da glória de Deus, de rebaixamento até à cruz, é o que vamos descobrindo, passo a passo, no coração da espiritualidade e do carisma missionário do Ir. Carlos.
Trata-se de imitar com a vida o mistério do Deus humilhado e escondido por amor de nós. Desde sua primeira peregrinação à Terra Santa, quando visitou o Santo Sepulcro, o recém-convertido havia compreendido isto: a paixão de Jesus o remete imediatamente aos anos da vida oculta em Nazaré e antecipará em sua vida a realização de seu carisma. E quanto mais avançar na caminhada e na prática do carisma missionário, mais entrará em comunhão com o mistério do Deus escondido em Jesus: “Desceu com eles e veio a Nazaré. Em toda a sua vida não fez mais que descer: descer ao encarnar-se, descer fazendo-se um menino pequenino, descer obedecendo, descer fazendo-se pobre, abandonado, exilado, perseguido, injustiçado, colocando-se sempre no último lugar”. Volta sempre a palavra da pregação do Pe. Huvelin. D. Valfredo Tepe diz que Jesus veio viver entre nós para fazer pós-graduação em pequenez!
Esta descoberta apaixonada do Deus escondido e humilhado em Jesus fundamenta o carisma missionário do Ir. Carlos e, ao mesmo tempo, sua opção por estar junto aos que estão no último lugar: os humilhados e marginalizados deste mundo, indivíduos e povos. Esta experiência de Deus o conduz a uma nova forma de presença entre os irmãos.
Aqui tocamos na intuição mais original que o Ir. Carlos trouxe para a espiritualidade cristã. Fascinado pelo Evangelho que nos revela Deus que se faz pequeno, pobre, trabalhador no Filho Jesus, intui que a Encarnação e a vida de Nazaré são as manifestações mais comprometidas e radicais da inserção e inculturação de Deus em todas as criaturas humanas. Em Nazaré, Deus aprendeu a ser humano no seio de uma família, dentro de uma cultura e de uma religião, vivendo com o trabalho de suas mãos. O Ir. Carlos era nobre e ficou impactado quando visitou Nazaré e foi descobrindo que Jesus, em toda a sua vida, não fez outra coisa senão descer, rebaixar-se. Nazaré é o lugar onde Deus escolheu o último lugar e permaneceu escondido e em silêncio para “gritar o Evangelho com a vida”. Jesus em Nazaré (Lc 2,52) nos desconcerta. Esconde um mistério sobre o qual costumamos dar explicações sumárias e superficiais: foram anos de preparação para a vida pública... aí ele nos ensinou a humildade, a obediência e as virtudes ocultas... Tudo isso não deixa de ser verdade, mas não explica o que a nossos olhos aparece como um tempo excessivo e improdutivo; um desperdício dos talentos de Jesus em uma aldeia semi-pagã e sem prestígio (Jo1,46); sob todos os aspectos, uma perda de tempo.
Por que Nazaré na vida de Jesus? Em Nazaré, sua encarnação se radicaliza e alcança a máxima intensidade. Em Nazaré, se constrói a personalidade humana do Filho de Deus que se fez homem no ventre de Maria. Como qualquer criança, ele recebe de sua mãe as características físicas e os elementos psicológicos, o caráter e o temperamento. Aprende de Maria e José na rotina cotidiana da vida familiar através da observação, da escuta silenciosa, do diálogo, do trabalho e das relações humanas. Deveríamos pensar mais naquilo que Jesus não diz, meditar no silêncio de Nazaré para entender a vida pública. Amar o longo silêncio em que Jesus soube calar-se.
Jesus se insere na realidade crua da condição humana, compartilhando a sorte das pessoas comuns de seu tempo. Jesus revela a predileção de Deus pela vida simples, pelas relações familiares e fraternas, pelo trabalho braçal rotineiro de cada dia. A partir de Nazaré, Jesus se faz irmão dos operários, dos pobres, e coloca-se a serviço deles. Nazaré é o cultivo da sensibilidade pelo outro, da atenção, da acolhida, da amizade, do conhecimento da língua, da cultura e da religião do outro, do diferente. Nazaré é a inculturação de Deus dentro da vida humana corriqueira e ordinária. Situa-se no lugar dos pobres, assume a rotina monótona e cansativa do trabalho, não como “experiência” ou atitude pedagógica, mas como opção de vida que se prolongará na atividade pública e na paixão. Se na vida pública resplandece a misericórdia libertadora, na paixão “o amor até o fim”, em Nazaré brilha a caridade fraterna no que há de mais ordinário e cinzento no dia a dia. Foi o extraordinário no ordinário.
Que significa Nazaré para nossa vida e ministério? Não é espaço de tempo e lugar, que corresponda ao tempo ou lugar de formação ou de preparação para a Missão. Nazaré é uma dimensão da vida em todo o seu transcurso, inclusive da vida mais ativa. Podemos ter o trabalho mais diversificado, nossa ação poderá ser ampla e influente. No entanto, a curto ou médio prazo, em qualquer missão, impõe-se lentamente a rotina, a repetição, o ordinário, as tarefas simples de cada dia. O espírito de Nazaré nos ajudará a viver tudo isto com plenitude, pois o amor que nos anima torna extraordinárias as coisas ordinárias de aparente ineficácia, a sensação de “perda de tempo”. Nazaré, na missão, consiste em valorizar o testemunho simples, a presença cordial da amizade, a caridade aberta e acolhedora aos que repetidamente encontramos, ou que o Senhor colocou em nossos caminhos.
Nazaré é vida escondida, simplicidade, humildade, testemunho, jeito de viver sem alarme, sensacionalismo, sem badalação. Nazaré é a tenda de Deus no meio dos homens e mulheres, presença do Espírito que age silenciosa e eficazmente, presença amorosa do Pai no meio dos homens e das mulheres, presença do Espírito que age silenciosa e eficazmente, presença amorosa do Pai no meio da comunidade fraterna convocada pela Palavra. Isso serve para o mundo e para a Igreja de hoje? Nossa vida fraterna deve revelar o rosto do Pai e criar relações fraternas.
A espiritualidade do Ir. Carlos é das mais atuais e revolucionárias para o nosso tempo e nossa Igreja. Viver e revelar o absoluto de Deus jamais combina com o carreirismo eclesiástico, a busca dos primeiros lugares, a influência entre os grandes e deixando de lado os pobres e excluídos. Para justificar o descaminho, passa-se a citar mais os documentos e as leis do que o próprio Evangelho. Isso é retrocesso à teologia do passado. Urge revelar o absoluto de Deus e a Palavra que os homens e as mulheres de hoje mais necessitam. A Igreja não pode acomodar-se, pois é “semper reformanda”: nunca é fiel, nem perfeita. Santa e pecadora, precisa continuamente revestir-se do Evangelho.
O Ir. Carlos coloca a eucaristia em linha direta com a Encarnação, com a vida de Nazaré e especialmente com a Paixão de Jesus: “Beijar os lugares que santificaste com tua vida mortal, as pedras do Getsêmani e do Calvário, o chão da via sacra, é doce e piedoso, meu Deus, mas preferir isto ao teu Sacrário, é deixar Jesus que vive ao meu lado, deixá-lo só, e caminhar sozinho pra venerar as pedras mortas onde Ele não está”. Pois “onde quer que esteja a Hóstia Sagrada encontra-se o Deus vivo, estás tu, meu Salvador, tão vivo e real como quando vivias e falavas na Galileia e na Judeia, e o estás agora no céu!” (Retiro de Nazaré, novembro de 1897).
O Ir. Carlos ficava fascinado no deserto do Hoggar contemplando a grandeza do universo, onde refulge a beleza envolvente do céu estrelado, o brilho da lua refletido na brancura da areia. “As noites são claras e serenas. O céu azul, os horizontes largos iluminados pelos astros são quietos e cantam silenciosamente o eterno, o infinito. É algo tão fascinante que me sinto tentado a passar a noite inteira em contemplação”. Mas logo acrescenta: “A Eucaristia é maior. Ela é o sinal sacramental do amor de Deus que está presente na natureza. Ela contém a terra e a água, o sol e o vento, o trabalho do homem, a ida e a morte, o amor de Deus Criador e o Filho que entregou a vida por nós”. Entremos também nós na adoração eucarística com atitude de gratidão por este divino sinal onde Deus se faz carne e sangue para nossa vida e salvação de todos.
Desde que foi ordenado presbítero, vive a Eucaristia não somente a partir do mistério pascal, mas talvez mais ainda a partir do que havia aprendido do seu diretor espiritual: “Neste mistério o Senhor entrega-se inteiramente a si mesmo. A Eucaristia é o mistério da entrega, do dom de Deus. Por isso temos que aprender a partilhar, dar-nos a nós mesmos, visto que não há verdadeiro dom enquanto não nos entregarmos a nós mesmos” (Echos des entretiens de l’abbé Huvelin).
Convém ressaltar que, numa época em que a relação entre o pão da palavra e o pão da Eucaristia era apenas percebido, o Ir. Carlos prescreve em sua regra que o Evangelho seja sempre colocado ao lado do Santíssimo Sacramento. Esta descoberta ele a deve ao Pe. Huvelin que, contrariando as orientações do seu tempo, entregou-lhe a Bíblia e o ajudou a lê-la diariamente. Esa intuição foi resgatada de forma plena pelo Concílio Vaticano II que nos ensina que, na Ceia Eucarística, Deus nos alimenta com o pão da Palavra e o pão da Eucaristia. Ambas as mesas têm idêntico valor. “A Igreja sempre venerou as divinas Escrituras da mesma forma como o próprio Corpo do Senhor, já que, principalmente na Sagrada Liturgia, sem cessar, toma da mesa da Palavra de Deus quanto do Corpo de Cristo o pão da vida e o distribui aos fiéis (DV nº 21).
O Ir. Carlos nos ensina “a ler, reler, sem cessar, o Santo Evangelho para ter sempre presente os atos, as palavras e pensamentos de Jesus a fim de pensar e agir como Jesus”. A Palavra como caminho de relação com Deus e com a vida: “Precisamos voltar sempre ao evangelho, porque, se não o vivermos, Jesus não viverá em nós”. Lemos tantos livros, citamos tantos documentos e o Evangelho corre o risco de ficar esquecido. A Palavra é pão diário que nos alimenta não apenas durante as celebrações, mas também através da leitura orante de cada dia, da partilha nos encontros e reuniões pastorais. Como os discípulos de Emaús, partilhando nossas preocupações e esperanças, a Palavra e a Eucaristia, descobrimos a presença sempre atual do Jesus Ressuscitado e Salvador do Mundo.
O absoluto de Deus na Palavra e na Eucaristia é alimento indispensável para o mundo de hoje, onde a palavra é distorcida, falseada, não cria mais comunicação. Somos bombardeados por enxurradas de palavras que acabam truncando a comunicação. É preciso descobrir a Palavra frágil, pois não é transcrição literal das palavras de Jesus, que não escreveu nada, mas as deixou semeadas no coração e na memória dos discípulos que as redigiram com a precariedade dos meios de que dispunham. Mas é esta Palavra que cria a comunicação verdadeira, gera conversão e santidade.
Eucaristia é simplicidade, pobreza, partilha de Deus que ama a todos, pois todos recebem um pedacinho igual. Hoje busca-se o consumo desenfreado de bens com a ilusão de que saciarão a sede de infinito. A sociedade consumista está tão empanturrada que não aguenta mais o que come. A Eucaristia é profecia contestadora da exclusão do neoliberalismo.
Muitas vezes o Ir. Carlos descreve a Eucaristia se propagando por irradiação no meio dos povos muçulmanos. Sonha em reunir em torno dela alguns discípulos que se formarão para a entrega de si mesmos à causa da evangelização contemplando a Eucaristia. Para ele, o tempo que dedica à celebração e à adoração da Eucaristia é parte essencial de sua missão. Deste modo une-se a Jesus em seu mistério e dom de sua vida oculta: Nazaré, Eucaristia. Mesmo assim, em seus últimos anos, por toda uma evolução interior, ele se pergunta se, às vezes, não poderia renunciar a celebração da Eucaristia para conseguir mergulhar mais livremente no deserto do Hogar.
O Ir. Carlos explica assim sua meditação, seu discernimento: “Antes inclinava-me a ver de um lado o infinito, o santo sacrifício, e do outro o finito, tudo o que não é Ele, e sacrificar tudo por causa da celebração eucarística. Este raciocínio, porém, deve falhar em alguma coisa, porque desde os Apóstolos, os maiores santos sacrificaram em certas circunstâncias a possibilidade de celebrar a Eucaristia diante da urgência da caridade, de viagens e outras” (Carta a Mons. Guerin, julho de 1907). Em certo momento, ele renuncia a celebrar a Eucaristia, como se o cumprimento de sua missão, isto é, sua decisão de ir ao encontro de povoações a evangelizar já não se opusesse, mas estivesse direta e intimamente concatenada com sua espiritualidade eucarística.
O “sacramento do altar” e o “sacramento do irmão” são inseparáveis. Jesus está realmente presente em ambos. É o mesmo movimento de amor o que nos faz contemplar a Jesus ali onde está hoje e sempre em seu único mistério de paixão e glória, na Eucaristia e nos pobres. Então nossa vida encontrará sua unidade interior e a contemplação jamais será fuga ou evasão da realidade. Alguns meses antes do martírio, o Ir. Carlos escreve uma espécie de testamento: “A passagem do Evangelho que mais mudou minha vida foi esta: ‘Tudo o que fizerdes ao menor dos meus irmãos é a mim que fazeis’. E quando pensamos que Ele mesmo disse: ‘Isto é meu corpo, este é o meu sangue’, de que modo cada um é levado a procurar e amar Jesus nos pequeninos” ...
Aqui o Ir. Carlos revela-se herdeiro dos Santos Padres, principalmente de São João Crisóstomo, de que era leitor assíduo. “Queres honrar o Corpo de Cristo? Não permitas que seja desprezado nos seus membros, isto é, nos pobres que não têm o que vestir, nem o honres aqui no templo com vestes de seda, enquanto lá fora o abandonas ao frio e à nudez. Aquele que disse: ‘Isto é o meu Corpo”, ... também afirmou: ‘Tu me viste com fome e não me deste de comer’, e ainda, ‘tudo o que não fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, foi a mim que não o fizestes’. De que serviria, afinal, adornar a mesa de Cristo com vasos de ouro, se Ele morre de fome na pessoa dos pobres? Primeiro dá de comer a quem tem fome, e depois ornamenta a sua mesa com o que sobra” (S. João Crisóstomo, Homilias sobre o Evangelho de Mateus).
A Eucaristia, enfim, vai construindo a fraternidade sacramental. Um pobre eremitério em lugar de um grande mosteiro, onde a Eucaristia se converte num pedaço de pão para todos. O Pão que se adora conduz ao pão que se partilha. A irradiação eucarística tem o sabor do pão partilhado. Se a adoração não impulsiona à partilha entre os pobres — mesmo quando os irmãos/ãs são ainda mais pobres que os outros —, a luz se apaga e voltam a reinar as trevas. A vida se distribui pela caridade. Assim, a celebração eucarística vem a ser uma aprendizagem de novas relações entre as pessoas, entre a humanidade e os bens da terra, que não possuem outra destinação a não ser a partilha. Por isso, a Eucaristia é verdadeiramente profética. Num mundo cúmplice de tantas forças de morte, ela é sinal de vitória da vida.
Num mundo de opressão, ela é força de libertação. Num mundo de exclusão, ela é fermento de inclusão a partir dos últimos que, na ótica do Reino, devem ser sempre os primeiros. Assim viveu o mistério da Eucaristia entregando-se a todos, nunca fazendo esperar aqueles que vinham procurá-lo. René Voillaume escreveu: “Viver a Eucaristia, conforme o testemunho do Ir. Carlos, é entregar-se às pessoas, convertendo-se para elas em algo devorável utilmente”. E sua morte, ao entardecer do dia 1º de dezembro, terá algo de Eucarístico: o sangue derramado unido ao sacrifício de Jesus. Algo inexplicável aconteceu também em seu martírio. A custódia com a Eucaristia, que estava na capela, foi misteriosamente encontrada junto ao corpo assassinado do Irmão Carlos. O Bem-Amado Irmão e Senhor que ele procurou e seguiu a vida inteira colocou-se ao lado do corpo de seu discípulo amado ferido de morte.
O itinerário espiritual do Ir. Carlos é marcado por uma característica que deve acompanhar também a nossa vida: nunca se acomodar, nem dizer que já alcançou tudo que se buscava ou que chegou a hora de parar. Ele é um nômade do espírito como os beduínos do deserto. Está sempre a caminho, pronto para partir, não para buscar o que lhe agrada, mas o que contribui para sua conversão pessoal e para um serviço maior aos mais abandonados. Segue o Espírito que o empurra para frente e para mais dento de si. Para frente, porque Deus é maior que nossa inteligência e nosso coração. Para dentro, para descobrir e viver com maior profundidade o mistério abissal de Deus. O Senhor que o seduziu e conquistou também o fascinou para ir sempre mais além na intimidade e na comunhão com Ele. O Irmão Carlos deixou tudo para encontrar tudo. Mesmo assim, vive inquieto, porque a relação com Deus permanece imperfeita e suspirando pelo face-a-face com Ele.
Um pensamento de Dom Hélder aplica-se perfeitamente ao itinerário do Ir. Carlos: “É preciso mudar muito para permanecer sempre o mesmo”. Um dos traços marcantes da caminhada do Ir. Carlos foi sua incansável capacidade de mudar. Sua vida foi um peregrinar constante. Viveu com radicalidade e inteireza as várias etapas de sua conversão. E, a bem da verdade, há que se reconhecer que ele viva cada etapa como se fosse definitiva. Assim, cada ponto de chegada se convertia em plataforma para uma nova busca de maior entrega a Jesus e aos pobres: da França para a Síria, da Trapa para Nazaré, da Terra Santa para a África, dos privilégios de uma vida acomodada e institucionalizada para a simplicidade de uma vida pobre e desinstalada, de uma concepção de evangelização doutrinária e impositiva para outra mais dialógica, de inserção e testemunho.
O signo do imprevisível caracteriza toda a vida do Ir. Carlos e seu carisma. Não há nada de calculado, nada de programado e nem organizado com antecedência, até esta impressão final de fracasso que se pode ter, ou ao menos de inacabado, como constata o próprio Ir. Carlos.
Há coisas que somente podem ser ditas depois de um tempo de espera da memória, de um tempo de oração. A vocação deste convertido foi viver sob o signo do imprevisível, numa atitude de constante desapego de si mesmo, de incontida generosidade. O antigo oficial de Saint-Cyr que havia lutado no sul da Argélia, que era hábil estrategista, renuncia totalmente a qualquer cálculo. Por opção e carisma missionário renunciou as estratégias humanas e especialmente as militares. Esta renúncia foi objeto de um aprendizado permanente. Alguns marcos: em 1890 está em Nazaré. Havia deixado a Trapa há três anos. Há um ano regressara de Jerusalém. Escreve ao Pe. Huvelin: “Espero. Deus me trouxe aqui. Por conselho seu, permaneço aqui. Deixo que Ele conduza minha vida. Quando Ele quiser que eu parta, se por acaso quiser, o que me parece certo, Ele me mostrará claramente por sua voz, querido padre, ou pelos acontecimentos.
Assim espero e me deixo conduzir”.
Ano após ano, mês após mês, desde sua entrada na Trapa Nossa Senhora das Neves, em 1890, até seus últimos anos, o Ir. Carlos aceitou que sua vida fosse inteiramente uma resposta aos chamados de Deus, através da obediência aos superiores e, de maneira especial, ao Pe. Huvelin. Quando, em 1897, foi enviado a Roma para estudar filosofia e teologia, sofre muito e espera a decisão dos superiores para saber se pode deixar de ser trapista. Em janeiro de 1897, escreve a Marie de Bondy: “No dia em que minha vocação estiver clara para meu padre geral e para meu mestre espiritual e lhes parecer evidente que Deus já não me quer na Trapa (pelo menos como sacerdote), eles me avisarão e me aconselharão a retirar-me. São extremamente delicados de consciência para me deterem, nem sequer um dia, quando perceberem que a vontade de Deus é outra”.
Alguns dias depois, quando o Ir. Maria Alberico recebeu autorização para deixar a Trapa, partiu para Nazaré após aconselhar-se com seu diretor, sem dizer-lhe antecipadamente o que devia fazer. Contrariamente ao que às vezes se tem afirmado, não dita ao Pe. Huvelin o que este deve dizer-lhe. Há cartas extraordinárias em que o Pe. Huvelin reconhece que se encontra permanentemente desorientado com seu dirigido desde que o conheceu em 1886. Teve que reconhecer, com o decorrer dos anos, que esta atitude de radical abandono nas mãos de Deus era parte integrante do carisma do seu dirigido.
Em 1901, escreve uma carta a Mons. Guérin, vigário apostólico do Saara, medindo cada palavra, recomendando os projetos do Ir. Carlos: “Nada de extravagante (Mons. Guérin em breve dirá: “sem dúvida, é um pouco extravagante”) nem de extraordinário. No entanto, uma força irresistível o impele, um instrumento talhado para uma tarefa exigente, é o que o senhor encontrará em Carlos de Foucauld. Todas as objeções que lhe possam ocorrer, já ocorreram comigo muitas vezes. Acabei cedendo somente depois de provas evidentes. Firmeza, desejo de ir até o fim no amor e na entrega, de tirar todas as consequências, sem nenhum desânimo, às vezes com um pouquinho de presunção, mas que tem se suavizado bastante”.
À luz deste discernimento, não basta dizer que a vida do Ir. Carlos está sob o signo do imprevisível. Faz-se necessário esclarecer que o abandono em Deus através da obediência é parte integrante do seu carisma missionário, Mais precisamente, a própria missão evangelizadora da qual ele é promotor está colocada sob o signo do abandono em Deus. Portanto, não pode, sob hipótese alguma, ser uma estratégia, um cálculo humano, pois este carisma é uma entrega absoluta nas mãos do Pai, expressa sem subterfúgios na Oração do Abandono: “Meu Pai, a vós me abandono. Fazei de mim o que quiserdes...”
E nós, que nos inspiramos na espiritualidade do Ir. Carlos, o que devemos fazer? Ele jamais cogitou dizer: “Sejam meus imitadores como eu sou de Cristo”, como afirmou São Paulo. Tampouco podemos imitar o Ir. Carlos da maneira como ele imitou Jesus. O que podemos fazer é assumir os valores do evangelho que ele descobriu e viveu de forma radical, sem jamais perder o rumo que ele sempre indica: “Admiramos os santos para seguir Jesus”.