BOLETIM 128-2007

Da Redação

 

Caros leitores, amigos e irmãos da Fraternidade. 

 

          Você está recebendo o último número deste ano do “Boletim das Fraternidades”. Nosso próximo encontro será em Hidrolândia - GO, no retiro anual. Vamos juntos viver uns dias de fraternidade, rezar, rever os amigos, reforçar o ideal. O retiro será orientado por nosso irmão Mario Fillipi, que virá da Itália. Talvez, nesses mesmos dias e no mesmo local, poderemos nos encontrar com alguns irmãos latino-americanos que virão para um encontro de coordenação continental. 

          Note os dois pequenos comunicados do Ceará e da Bahia. É bom sentir em toda parte o mesmo esforço para manter vivo o espírito do Irmão Carlos no seguimento de Jesus. Não somos movimento de massa nem uma organização complicada, mas é importante manter os meios que nos ajudam: dia de fraternidade, adoração, meditação do  Evangelho, leitura, revisão de vida. Muito interessantes também as notícias de Ouagadougou, no Burkina Faso. 

          Não haverá Mês de Nazaré em janeiro de 2008. Não há candidatos. Organize-se a tempo para poder participar desse período mais intenso de vida fraterna e recolhimento em 2009. 

          Temos neste número do Boletim das Fraternidades dois artigos, um sobre o Magnificat de Nossa Senhora, escrito pelo Edson Damian, e outro, do Geraldo Gereon sobre “Como viver hoje o carisma do Irmão Carlos”. Não deixe de lê-los. Podem ser também matéria para reflexão em comum no Dia de Fraternidade. 

Boa leitura.

 

1. MAGNIFICAT: MARIA TODA DE DEUS E TODA DOS IRMÃOS

 

Pe. Edson Damian

 

Na espiritualidade de Nazaré, Maria ocupa lugar de destaque com Jesus e a companhia de José. Além disso, o Ir Carlos adota a visitação de Maria à prima Isabel como modelo missionário, como geradora de alegria, mesmo que as pessoas ainda as recebam sem consciência disso. Aos seus olhos, não se trata apenas de uma visita de caridade para servir sua prima, na fase final da gravidez e no momento do parto, mas tem algo mais importante: “Maria parte para santificar João Batista, para lhe anunciar a boa nova, para o evangelizar e santificar, não com palavras, mas levando-lhe Jesus, em silêncio, na sua morada”.

No Magnificat está presente a tensão escatológica da Eucaristia. Cada vez que o Filho de Deus se torna presente entre nós na «pobreza» dos sinais sacramentais, pão e vinho, é lançado no mundo o germe daquela história nova, que verá os poderosos «derrubados dos seus tronos» e «exaltados os humildes». Maria canta aquele «novo céu» e aquela «nova terra», cuja antecipação e, em certa medida, a «síntese» programática se encontram na Eucaristia. Se o Magnificat exprime a espiritualidade de Maria, nada melhor do que esta espiritualidade para nos ajudar a viver o mistério eucarístico. Recebemos o dom da Eucaristia, para que a nossa vida, à semelhança da de Maria, seja toda ela um magnificat!” (n. 58).

O Magnificat é o espelho da alma de Maria. Neste poema, a espiritualidade dos pobres de Javé e o profetismo da Antiga Aliança alcançam o ponto culminante. É também o prelúdio das Bem-aventuranças e do Sermão da Montanha, pois contemplando a ação de Deus, Maria antecipa o Evangelho.

O cântico emerge das anunciações dos dois nascimentos - de João Batista e de Jesus - quando as duas mães (a estéril e a virgem) se encontram. Do encontro brota o canto. Tentemos compreender o clima psicológico desse encontro para intuir qual teria sido a experiência de Maria após a anunciação. Certamente uma grande alegria, como a que nos inunda quando sentimos a proximidade de Deus e nos abandonamos em suas mãos: “Faça-se em mim segundo a tua vontade”. Ou como a oração de Charles de Foucauld: “Pai, a vós me abandono!”.

Mas, depois Maria deve ter sentido também temores. Encontra-se sozinha, sem saber com precisão o que aconteceu, porque, como todas as mulheres, antes de um certo tempo, não tem certeza se está grávida. E está sem poder falar com ninguém, pois, como explicar essas coisas a um estranho? Ela não contou logo a José. Ele ficou sabendo mais tarde, com perturbação interior, e decidiu abandoná-la. Além de ver desmoronar seu casamento, dava-se conta também dos sofrimentos e humilhações que cairiam sobre Maria, sem que ela pudesse explicar nada a ninguém.

É difícil explicar certos acontecimentos extraordinários, pois quem os experimenta sente-se sozinho, com medo e até com tentações. Nesse contexto entendemos porque “Maria pôs-se a caminho, por uma região montanhosa, dirigindo-se apressadamente a uma cidade de Judá”. Perguntamo-nos: por que “apressadamente?” Porque deve ter passado pela mente de Maria que Isabel seria a única pessoa capaz de compreendê-la, pois estava vivendo um acontecimento divino semelhante ao seu. Tal é o sentimento de Maria e a razão da pressa do encontro. Costumamos explicar a pressa motivada pela sua caridade e desejo de servir a prima numa gravidez de alto risco. Mas existe também o aspecto de necessidade. Maria precisava falar com alguém, confidenciar seu segredo, sentir-se compreendida.

Após três dias de viagem, ao bater à porta de Isabel, seu coração palpita, como quando alguém não sabe como começar uma conversa complicada. Para sua surpresa ela ouve, em resposta à sua saudação, a prima exclamando: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre! Donde me vem que a mãe do meu Senhor me visite?” Nesse momento, todos os temores que Maria guardava dentro de si desaparecem. Sem precisar explicar nada, sente-se compreendida. Confirma-se que tudo aquilo que está acontecendo nela é verdadeiro e, por isso, explode num canto de louvor.

“Compreender” e “ser compreendida” isso é vital para Maria e, também para nós. Poder falar, expressar-se, sentir que há alguém que, com confiança, olha para nós e nos compreende profundamente, é uma das graças mais lindas. Esta categoria é fundamental no ser humano: não podemos viver sem sermos compreendidos por alguém, nem podemos ajudar os outros sem compreendê-los. Quando sentiu-se compreendida, Maria cantou os segredos e as maravilhas que guardava no coração, mas que não ousava desvendar, enquanto não encontrasse alguém que a pudesse compreender.

O sujeito da primeira parte é Maria e os dois verbos referem-se à sua pessoa: “A minha alma engrandece o Senhor e o meu espírito exulta em Deus meu Salvador”. Maria começa falando de si e, no mesmo instante se esquece de si para falar de Deus. Como se pode engrandecer o Senhor que já é grande, como enaltecê-lo mais ainda? O verbo expressa o desejo de querer Deus como “o maior possível”. É um aspecto emocional profundo, semelhante ao da mãe que ama a criança e lhe diz: “Gostaria de fazer de você a maior, a mais feliz das pessoas da terra”. Assim como o filho diz: “Quero que meu pai seja o maior, o mais forte, o mais poderoso”. Isto é engrandecer. Brota de um amor imenso e intenso.

Maria ama a Deus com todas as forças, com um amor elevado, que transborda de si mesmo: “O meu espírito exulta”. Para compreender o conteúdo desse verbo convém referi-lo a outras passagens do evangelho de Lucas. “Naquele momento, Jesus exultou de alegria sob a ação do Espírito e disse: Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste essas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos” (Lc 10,21). Este cântico é paralelo ao Magnificat, não somente porque nasce de uma exultação semelhante, mas também porque se estrutura na oposição sábios/humildes. A oposição aparece também na segunda parte do canto de Maria: orgulhosos/tementes a Deus, poderosos/humildes, ricos/pobres. Verifica-se igualmente, com facilidade, o paralelo com as Bem-aventuranças. Exultar significa dançar, pular. Idêntico termo é usado em relação à criança que pula no seio de Isabel. Trata-se de algo instintivo próprio de alguém que está fora de si de alegria. Como uma mãe que, ao perceber que o filho doente sarou, toma-o nos braços e grita de contentamento.

Esta é a alegria de Maria. Para ela Deus é uma pessoa, o seu Tu com o qual se sente em íntima e cordial familiaridade. Chama-o de Senhor, Deus, meu Salvador. O Senhor de quem ela é a serva, é Javé Senhor da história, Salvador do povo. Maria fala também como membro do seu povo. Não é só uma relação intimista, mas um relacionamento com o Senhor que tem nas mãos a história do povo.

Maria canta “meu Salvador” porque parte de uma experiência pessoal de salvação, possui uma motivação precisa que a atinge profundamente: “Ele olhou para a humilhação de sua serva”. Deus tão excelso olha do alto e percebe a minha existência, descobre que eu existo, envolve-se comigo, olha para a minha pequenez. “Humilhação” expressa também o temor e a ameaça real de ser rejeitada e marginalizada. Ela tinha colocado em perigo sua honra aceitando uma gravidez misteriosa e Deus a libertou, restituindo-lhe novamente segurança e honra. É uma dupla experiência de salvação, uma experiência plena dos dons de Deus e de ser libertada da vergonha e da humilhação, como estava para acontecer na relação com José. Fez dela uma criatura que já não consegue mais se dar conta dos dons recebidos porque são grandes demais: “O Todo poderoso fez em mim maravilhas... doravante todas as gerações me proclamarão bem-aventurada!”

Maria nos ensina a primazia do louvor, a personalização do louvor e a especificação do louvor.

Acima de tudo, Maria é a criatura que sabe se expandir no louvor. Nem sempre sabemos viver expandindo o louvor. É mais fácil extravasar sentimentos e ressentimentos pessoais, queixar-se do que se expor no louvor. Urge educar-nos para a primazia do louvor. Temos motivos de sobra para louvar a Deus, porque Ele é grande, bondoso, misericordioso e ama loucamente a humanidade! Todas as cartas de Paulo começam com agradecimentos: “Bendito seja Deus, o Pai de N. S. Jesus Cristo, Pai de toda a consolação”. “Bendito seja Deus pela paz que reina entre vós”. Sabemos que suas comunidades não eram diferentes das nossas. Apesar disso, tanto Paulo como Maria, tinham dentro de si a consciência da grandeza dos dons de Deus presentes nas pessoas, nas comunidades, na história humana. Às vezes tememos que o louvor seja como uma venda sobre os olhos, pois vivemos cercados de injustiças, violências, miséria, desemprego. No entanto, se começarmos a olhar o mundo com os olhos de Deus e a louvá-lo por tudo o que Ele faz de bom, teremos mais clareza para discernir o bem do mal, a verdade do erro. O sentido do louvor a Deus não é contrário à verdade, mas é o único verdadeiro. É a contemplação do mundo que provém da bondade, da misericórdia e do amor e Deus pelo pobre, pelo doente, pelo excluído. Da misericórdia brota a opção pelos pobres!

Maria nos ensina a personalização do louvor. Se não for personalizado, o louvor se torna vazio, palavra repetida com os lábios, enquanto o coração está longe. É preciso descobrir na minha experiência os motivos de louvor. Existem muitos, mas tantas vezes consideramos como normais os dons de Deus e não os apreciamos como presentes preciosos. O exame de consciência ou a revisão do dia deveriam começar sempre com o cordial agradecimento pelos dons que o Senhor me concede, pelas maravilhas que realiza em minha vida e na vida dos meus irmãos e irmãs.

Por fim, Maria entoa um louvor imenso que abarca o universo inteiro e a história da humanidade. O que ela viu de extraordinário? Um anjo por alguns minutos, Isabel e sua palavra. Entretanto, soube ler nesses fatos, passando pelo conhecimento de Deus, um desígnio universal. Para louvar basta perceber um real acontecimento em que Deus se manifesta e, através dele, chegar ao Deus Salvador, cujo nome é Santo e cuja misericórdia perdura de geração em geração. A especificação exemplar do louvor manifestado por Maria nos ensina a contemplar a vida, o universo e a história com louvor e gratidão. Às vezes, por causa de nossos problemas e angústias, ficamos com a visão desfocada da realidade. Convém, então, concentrar-se num pequeno fato e, através dele, chegar-se-á a entender os outros, evolvidos pela ação amorosa de Deus.

REVIRAVOLTA HISTÓRICO-SALVÍFICA

Passemos agora para a segunda parte do Magnificat (v 51-53), na qual a humilde mulher de Israel, depois de ter expressado sua alegria e gratidão, por quanto lhe acontecia, canta a ação libertadora de Deus na história. Maria, toda de Deus e toda dos irmãos, relê profeticamente a história da salvação como uma reviravolta histórico-salvífica: põe em baixo quem está em cima e em cima quem está em baixo. Maria proclama que Deus realiza uma tríplice inversão das falsas situações humanas, para restaurar o seu Plano. Ela dá nomes aos que são abaixados e aos que são elevados, e atribui tudo à ação de Deus através da libertação de Cristo.

 

          ABAIXADOS ELEVADOS  AÇÃO DE DEUS

aspecto ético-religioso      orgulhosos   aqueles que o temem       dispersou

aspecto sócio-político       poderosos    humildes          depôs - exaltou

aspecto econômico ricos   famintos       despediu - cumulou

 

No campo ético-religioso Deus derruba as auto-suficiências humanas, confunde os planos dos soberbos e orgulhosos que se erguem contra Deus e oprimem as pessoas.

No campo sócio-político Deus destrói os injustificáveis desníveis humanos, abate os poderosos dos tronos, repele aqueles que dominam os povos, e exalta os humildes, aprova os que promovem o bem das pessoas e da sociedade, sem discriminações, sem preconceitos, sem exclusões.

No campo sócio-econômico, Deus confunde os planos da aristocracia elitista, estabelecidos sobre o acúmulo dos meios de produção e do capital, despede os ricos de mãos vazias e cumula de bens os famintos, para instaurar a justiça e a verdadeira fraternidade na sociedade e entre os povos.

Por que essas palavras proféticas, que ficariam bem na boca de Isaias, de Ezequiel, de Daniel, são colocadas nos lábios de Maria? Porque ela é a primeira em quem acontece a reviravolta, a passagem, a elevação. A que se considerava humilde serva, indigna de qualquer favor, de repente é proclamada “cheia de graça” e “bendita entre as mulheres”. A reviravolta começa a se dar nela, através da presença do Espírito que a torna grávida de Jesus. O coração do mistério da elevação e do abaixamento encontra-se, por tanto, na Encarnação.

No mistério da Encarnação realiza-se a reviravolta, que começa em Maria e alcança e plenitude na vida e na prática de Jesus. Para entender como esse mistério se revela, é preciso examinar os acontecimentos históricos do Verbo Encarnado. Ocorre-nos logo seu nascimento: vem a nós como pobre e sem-teto, expulso de Belém, mas é celebrado pelos anjos como Deus: “Glória a Deus nas alturas”. Ao ser batizado, entra nas águas com os pecadores e é exaltado como “Filho Amado do Pai” pela ação do Espírito. Na parábola do bom samaritano, Jesus rebaixa o sacerdote e o levita e exalta o samaritano. Poderíamos lembrar também as bem-aventuranças, a parábola de Lázaro e do rico epulão, o fazendeiro rico, os convidados para o banquete... O Evangelho chama a atenção sobre este princípio: os pequenos, os famintos, os doentes, os pecadores, os pobres, os marginalizados são acolhidos e elevados, ao passo que os auto-suficientes, os ricos, os poderosos, Jesus os deixa de lado, ou então mostra que valem pouco. Essas atitudes de Jesus são apresentadas com tal delicadeza e a ação acontece com tal discrição que aqueles que não têm presente a chave do Magnificat quase nada percebem. Só quem entende o jeito de Jesus, entende também o Magnificat.

Na vida de Jesus, a reviravolta vai acontecendo de um modo sutil e gradativo. Não se trata de um princípio sociológico, nem de uma regra maniquéia que divide e opõe o bem e o mal. Expressa-se de infinitas maneiras, até resplandecer no mistério da Páscoa: “Aquele que eles mataram, Deus o exaltou” (Lc 24; Fl 2). Os que acreditavam prevalecer foram derrubados. A morte e a ressurreição de Jesus constituem o momento culminante do jeito de agir de Deus, cantado por Maria. Jesus realiza a reviravolta ao preço de seu próprio sangue, vivendo em sua carne o abaixamento pela mão dos poderosos e a elevação (glorificação) pela mão do Pai.

Jesus nos deixou o sinal permanente dessa reviravolta na Eucaristia. O sacramento da Eucaristia é sinal permanente do aniquilamento (quénose) de Jesus, que se entrega até à exaustão, elevado e glorificado pela Igreja também sacia e eleva toda a humanidade. O Pão consagrado é o último modo com o qual Jesus se entrega no dom de si mesmo. O cântico de Maria torna-se assim uma interpretação de toda a vida de Cristo, da Eucaristia, da Igreja. Eleita entre os pobres de Javé, a humilde serva do Senhor, Maria pode ser incluída entre as três pequenezas escolhidas por Jesus para revelar o rosto e o coração de Deus: o presépio, a cruz e a Eucaristia.

Por fim, na terceira parte (v. 54-55), com as últimas palavras do Magnificat, Maria se situa dentro da história do seu povo: “Socorreu Israel seu servo, lembrado de sua misericórdia; conforme prometera a nossos pais, em favor de Abraão e de sua descendência para sempre”. Maria se insere na descendência de Abraão e assume a história de Israel com seus patriarcas e profetas, com o êxodo, com o exílio e o retorno à terra prometida. Assim também nos recorda que a Igreja de hoje deve manter sua relação com Israel, com os pobres e tementes a Javé, com os obedientes e fiéis à sua Aliança, renovada pelo sangue do Cordeiro, o Filho de Deus e Filho de Maria. Em Cristo e em Maria o Magnificat também se torna nosso canto. E da mesma forma que Maria se refere a Abraão, ao povo de Israel, às promessas da antiga aliança, assim também nós fazemos referência ao Cristo, ao Evangelho, à Páscoa, à Igreja. E, se juntarmos os três valores fundamentais do cristianismo, teremos a Eucaristia onde o Cristo se faz Palavra, Pão, Aliança com o novo povo de Deus. 

Antes de concluir, convém mencionar uma pergunta que certamente se encontra entalada em nossa garganta: Quando se concretizarão no Brasil, na América Latina, na África as profecias cantadas por Maria? “Os poderosos são derrubados de seus tronos e os humildes elevados”. Olhando ao nosso redor, sejamos sinceros, é difícil ler a história com esta chave de leitura. A realidade mostra que “os ricos se tornam cada vez mais ricos às custas dos pobres que ficam cada vez mais pobres”. Ou como afirmou Frei Betto em recente artigo: “Essa é a característica intrínseca ao sistema capitalista, que enriquece uns poucos à custa da pobreza de muitos, sobretudo nessa etapa neoliberal, em que a especulação financeira predomina sobre o investimento produtivo”. De vez em quando, invertem-se os papéis, mas depois, quem assume o poder, esquece as origens e, na maioria dos casos, acaba se tornando também dominador. Novamente Maria ajuda a manter viva a esperança e a coragem na luta. Nossa crença nas transformações sócio-históricas e nosso compromisso na ação libertadora com os oprimidos e os excluídos devem ser assumidos também no horizonte escatológico. No olhar profético de Maria que canta, refulge a ação salvífica e escatológica de Deus. Só assim podemos entender as profecias do Magnificat. Elas começam a se realizar na vida de Maria, no seu ventre, em suas experiências, na vida e na prática de Jesus, têm sua culminância histórica na cruz e na ressurreição de Cristo; latejam na Igreja e na Eucaristia, mas como início da restauração escatológica definitiva à qual tende toda a historia e toda a criação “que gemem e sofrem as dores de parto até o presente” (Cf Rm 8, 22).

 

Oração á Nossa Senhora da Libertação

 

Maria, mãe de Cristo e mãe da Igreja,

em nossa missão evangelizadora

que nos cabe continuar, alargar e aprimorar, pensamos em ti.

Mas, de modo especial, pensamos em ti

pelo modelo perfeito de ação de graças que é o hino que cantaste,

quando tua prima, Santa Isabel, mãe de João Batista,

te proclamou a mais feliz dentre as mulheres.

Não paraste em tua felicidade, pensaste na humanidade inteira.

Pensaste em todos. Mas assumiste uma clara opção pelos pobres,

como teu Filho Jesus faria depois.

Que há em ti, em tuas palavras, em tua voz, que anuncias no Magnificat,

a deposição dos poderosos e a elevação dos humildes, 

o saciamento dos que têm fome e o esvaziamento dos ricos, 

e ninguém ousa julgar-te subversiva ou olhar-te com suspeição?...

Empresta-nos a tua voz, canta conosco! Pede ao teu Filho que em todos nós

se realizem, plenamente, os planos do Pai! (Dom Helder Câmara)

 

2. “COMO VIVER HOJE O CARISMA DO IRMÃO CARLOS”

 

Pe. Geraldo Gereon

 

          “Pergunta-me se estou disposto a ir mais longe do que Beni-Abbés para difundir o santo Evangelho; para isso, estou disposto a ir ao fim do mundo e a viver até o Juízo final”.

 

          Essa palavra do Irmão Carlos, muitas vezes citada, encontra o seu reflexo na abertura do diretório da nossa “Fraternidade Sacerdotal Jesus+Caritas”: “Na realidade, é por causa de Jesus e de seu evangelho que nós nos encontramos”. “Sacerdotes diocesanos... somos responsáveis pelo anúncio do Evangelho... somos impelidos pelo Evangelho”. Toda reflexão sobre a nossa espiritualidade característica a ser avaliada, redefinida, novamente assumida com alegria e dinamismo recarregado, tem essa única razão: nós somos apaixonados pelo evangelho: por aquele que fez da sua experiência com Deus uma Boa Nova anunciada e queria depender de seguidores que lhe abrem os caminhos e as porteiras para a sua eterna busca de todos os pequenos e perdidos deste mundo.

 

          As duas palavras “Jesus+Caritas” desenhadas em torno do coração, no qual é implantada a cruz -

ou não seria antes a cruz que nasce deste coração? – identificam a nossa Fraternidade. Charles de Foucauld, o nosso irmão Carlos, expressou nesse conjunto de duas palavras com o esboço simbólico da cruz, o conjunto das suas inspirações, experiências e programações. Jesus e seu evangelho fazem ele exclamar: “Não posso suportar viver outra vida que não seja a sua”.

 

          Irmão Carlos foi beatificado no ano passado. Mais razão, ainda, teríamos nós de olhar esta vida de um santo tão rico em exemplos inspiradores, como também ouvir as suas mensagens transmitidas numa verdadeira biblioteca de escritos deixados para os que querem acompanhá-lo no seu caminho evangelizador. Mas o mesmo Irmão Carlos diz: “Olhemos os santos não para imitá-los, mas para imitar Jesus”. Então, querido Irmão Carlos: como poderíamos enxergar na longa e enleada trajetória da sua vida aquilo que nos remete ao seu Bem-Amado? 

 

          Irmão Carlos, talvez, apontaria para um texto que ele lia, relia e, sem cessar, encontrava coisas novas: “O Espírito Santo... fez aparecer Jesus Cristo no mundo... Ele já não escreve evangelhos senão nos corações: todas as ações, todas as vivências dos santos são o evangelho do Espírito Santo... Ele escreve um evangelho vivo no presente, saído das impressoras da vida”.

 

          Com outras palavras: Irmão Carlos convida-nos a descobrir, também nele, o impulso do Espírito Santo, o carisma gratuitamente recebido: esse carisma recebido “o leva a imitação de Jesus, seu Bem-amado Senhor e Irmão, nele se dirige ao Pai, e a partir dele se dirige aos irmãos”. O carisma, o dom do Espírito Santo que Irmão Carlos recebeu, é este evangelho vivo para nós, que como dele fez, de nós fará amigos de Jesus, discípulos amados e evangelizadores. Estamos aqui, convocados pelo Espírito Santo. “Quem tem ouvidos, escute o que o Espírito Santo diz às igrejas” (Ap. 2).

 

          Irmão Carlos não agregou, como São Francisco, dentro de pouco tempo, uma multidão de companheiros/irmãos que seguiram às regras do “santo fundador”, devidamente aprovadas pela autoridade romana. Irmão Carlos era como um viajante noturno procurando, no deserto, acertar o rumo da caminhada por onde não havia  caminhos bitolados e nem companheiros de viagem. Mas ele deixou rastros nessa corajosa travessia. Nós da família do Irmão Carlos e, como ele, sacerdotes diocesanos, deixando-nos orientar por estes rastros, percebemos que não somos multidão que arrasta. Somos alguns poucos que, às vezes, duvidamos se somos pioneiros da linha de frente, ou aventureiros atrasados em estradas laterais. Mas temos uma alegre certeza: esse caminho com Irmão Carlos é o caminho do Filho de Deus feito homem em busca de seus irmãos amados pelo Pai. O carisma, dom do Espírito Santo, adquire, em cada um de nós, contornos inconfundíveis para alcançar essa única finalidade: andar, á frente de Jesus “para todos os lugares para onde pensava ir” (Lc.10,1)

 

          À luz do carisma de Irmão Carlos, eu gostaria de tentar um testemunho sobre os carismas do Espírito Santo que se manifestaram na minha própria trajetória sacerdotal, durante as quatro décadas nas veredas do grande sertão nordestino brasileiro. Vivo no meio de um povo carente, sofredor, abandonado, sem perspectiva de transformação, enganado e manipulado pelos seus líderes, mal compreendido no seu estágio cultural e sociológico, vítima de vícios seculares, no entanto, corajoso e resistente, mais conscientizado do que se pensa, com grande percepção do que se revela nas entrelinhas, submetendo-se à lógica da pobreza e, ao mesmo tempo, capaz de esperança e otimismo. A sua prática de fé cristã parece bastante ambígua: muitas vezes é pura e autêntica, muito mais do que a minha; mas, às vezes, também parece pouco iluminada, desvirtuada, mutilada, resistente à proposta de sair do mundo das crenças para a prática libertadora da intimidade com o Pai amoroso de Jesus Cristo.

 

          Cheguei, nestes longos anos, no meio do povo sertanejo, a um recuo reverencial cada vez mais acentuado: diante da realidade, que ainda não entendi; diante da minha incapacidade de perceber a ação do Espírito de Deus lá onde, nos moldes oficiais da religião, não é admitida; diante da multiforme cadeia de causas para hábitos e posturas facilmente interpretadas por preconceitos superficiais. Quanto mais conheço o meu povo, mais percebo que não o conheço, mais o devo conhecer. Descobri que é preciso conhecer para poder amar, um conhecimento que não é nenhum levantamento científico, mas uma humilde aproximação de amor e compaixão.

 

          Nunca teria avançado nesta direção sem o que a nossa Fraternidade chama “a regular e prolongada adoração eucarística”. Na mais agitada vida paroquial consigo passar sempre os primeiros momentos do dia diante do sacrário. O pároco das nossas grandes paróquias onde a maioria dos paroquianos não tem a oportunidade da eucaristia semanal, celebra a missa freqüentemente, com as diversas comunidades e em inúmeras comemorações. Ele faz todo esforço de celebrar dentro do sentido litúrgico e na dinâmica popular e participativa. Ele chama e envolve a comunidade. Mas a silenciosa, solitária e prolongada presença diante da hóstia consagrada no sacrário, fora do momento da celebração, é um aspecto complementar no mesmo e único objetivo da eucaristia: Jesus se torna o nosso alimento. Persistindo na meditação, contemplativos nas atividades envolventes do nosso dia a dia, nós evangelizadores somos evangelizados pela boa nova do Deus encarnado.

 

          Na meditação silenciosa diante do pão eucarístico acontece a revelação do mistério dos longos anos de Jesus em Nazaré: o Deus feito homem, o Deus pequeno, o Deus do nosso tamanho, o Deus ao  nosso alcance, o Deus ainda menor do que nós.

 

          A biografia do Irmão Carlos tem como ponto central a mística da vida do Deus encarnado em Nazaré. A sua ansiedade de expressar o seu amor a Jesus o levou a “procurar a mais perfeita imitação de Jesus”. Não a encontrou na vida monástica duma ordem contemplativa. Ele afirma: “Não me sentia pronto para imitar sua vida pública na pregação; devia, portanto, imitar a vida oculta do humilde e pobre operário de Nazaré... voltava-me para Nazaré para viver desconhecido como operário, do meu trabalho diário. Estive quatro anos num... recolhimento abençoado gozando dessa pobreza e dessa abjeção que Deus me tinha feito desejar, tão ardentemente, para imitá-lo... Faz um ano que fui ordenado sacerdote e estou tomando medidas para poder continuar no Saara a vida oculta de Jesus de Nazaré, não para pregar, mas para viver, na solidão, a pobreza, o humilde trabalho de Jesus procurando o bem das almas, não por meio da palavra, mas pela oração, a oferenda do Santo Sacrifício, a penitência, a prática da caridade.” Você  me pergunta como é minha vida: é uma vida de monge missionário baseada neste princípio: imitação da vida oculta de Jesus, em Nazaré.”

 

          “O verbo se fez carne e habitou entre nós” – professamos essa verdade muitas vezes – é o dogma que cremos sem nenhuma restrição. Mas dizer: “imitar a vida oculta de Jesus em Nazaré” parece uma opção particular feita por alguns, mas não necessária para todos. Eu passei por uma lenta transformação na minha própria biografia de sacerdote, que partiu desta afirmação dogmática para uma clareza, descoberta e vivenciada, quase que exclusiva, na sua conseqüência para o meu serviço à igreja, o povo de Deus: por seu Filho Jesus, com sua face humana, Deus me envolveu a mim e os meus irmãos, no mistério da sua encarnação. Não tem alternativa: o seguimento de Jesus tem que começar em Nazaré e voltar sempre a Galiléia.

 

          Na prolongada presença diária diante da eucaristia revela-se, para mim, menos o poder milagroso de Deus na transformação do pão no corpo de Jesus, mas antes o despojamento de Deus na transformação do corpo de Jesus no pão. Muitas vezes fico recolhido no silêncio da madrugada, na igreja vazia, olhando para o pequeno sacrário, no coração a pergunta quase angustiante: Como é possível Deus ser tão pequeno, calado, atrás duma portinha, guardado debaixo duma tampa, um pedacinho de pão, esperando ser comido, ainda mais, às vezes, indignamente? Será possível Deus deixar de ser Deus, Deus ser ”apenas” humano, escondido, discreto, capaz de ser despercebido até pelos que o consomem? 

 

          Nazaré e a eucaristia só permitem uma única interpretação: “...ele esvaziou-se e tomou a condição de escravo...”. Nenhum carisma podia ser mais precioso, abrangente e dinâmico do que o mistério de Nazaré assumido por quem quer imitar Jesus. Jesus começou a sua vida na casa de Maria, em Nazaré, e terminou morrendo sendo chamado Nazareno, nome que identificava esta origem e justificava a sua condenação à morte. Irmão Carlos reencontrou o Deus que desaparecera da sua vida, em Nazaré, na sua pequenez, na sua vida insignificante. A conclusão dele não era: este Jesus não pode ser Deus – mas pelo contrário: descobriu que este carpinteiro simples e comum como todos os seus conterrâneos de Nazaré, revela o Deus que nos amou primeiro, apaixonadamente. O carismático Padre Huvelin tinha lhe explicado: “Jesus, em toda sua vida, nunca fez outra coisa senão descer” e também: “Meu Jesus, de tal modo assumistes o último lugar que ninguém pôde jamais arrebatá-lo.” O carisma de Irmão Carlos vem dessas raízes e tornou-se concreto no meio dos Tuaregs, na vida no último lugar, no trabalho com as próprias mãos, na identificação com os pobres num pequeno oásis do Saara, na vontade de ficar desconhecido, no apostolado da vida retalhada em trabalhos e gestos que são os mesmos de todas as pessoas do mundo. Acompanhando Irmão Carlos neste seguimento de Jesus de Nazaré teremos, como ele, as nossas visões cada vez mais claras sobre o único caminho possível para o nosso sacerdócio.

 

          A vida do Padre com os seus paroquianos, que ele chama “o seu rebanho”, aparentemente não suporta os traços da vida escondida de Nazaré. Nessas nossas grandes paróquias do vasto sertão – e não é diferente nas paróquias urbanas gigantescas – desenvolvem-se as mais diversificadas pastorais, prega-se um Deus das verdades reveladas e dos mandamentos a serem observados. Os grandes eventos, a liturgia, a catequese, a chamada “administração” dos sacramentos, com rubricas que tudo determinam para que sejam válidos e lícitos, são organizados dentro da dinâmica duma grande comunidade com seus diversos ministérios, sem falar da administração burocraticamente organizada, com formulários, carimbos, expediente e envolvimento financeiro. Passei longos anos numa das maiores paróquias da diocese. O carisma de Irmão Carlos que me envolveu cada vez mais, nunca me levou a sofrer algum dilema entre realidades irreconciliáveis, nem a angústias e perplexidades. A longa e lenta meditação do mistério do Deus encarnado, pequeno e limitado, nazareno do nascimento até a cruz e ressurreição, pão na mesa dos nossos altares, presente no meio de pobres e fracassados, fez com que o meu sacerdócio e a atuação na minha igreja cada vez mais se adaptassem a este mistério de Nazaré. Ao lado do Irmão Carlos e dos irmãos da Fraternidade, Nazaré apagou bitolas enganosas da minha teologia e da minha ação eclesial. Nazaré com sua radicalidade me chamou a voltar de Jerusalém onde já estava instalado. O Deus ordinário e leigo, mergulhado no mais profano da humanidade, me fez entender o que é libertação que eu mesmo tinha que experimentar antes de testemunhá-la aos irmãos. A descoberta desta radicalidade de Nazaré tornou-se uma luz serena que ilumina sem cessar o meu caminho. Todo dia acrescento aos mistérios comuns do rosário mais um: meditando como Jesus “descia com José e Maria para Nazaré e era lhes submisso”. “Anseio por Nazaré”, dizia Irmão Carlos. Nazaré que significa uma espiritualidade, leva a experiências e evidências surpreendentes. 

 

          A visão tradicional do sacerdote-pároco, apesar das transformações das últimas décadas, atribui à sua pessoa destaque, estado social elevado, prestígio, privilégios, liderança. A tentação que isto significa, não dá trégua, desde os tempos dos filhos de Zebedeu. No meio do clero mais novo há muitos exemplos de uma volta a atitudes clericais aparentemente superados. Convivi por alguns tempos com um clérigo jovem que se recusava a viajar no banco de trás do carro, pior em cima da caçamba da camionete, esperando sempre que o assento da frente fosse desocupado para ele. Conheço colegas novos que só viajam com motorista. Muitos fiéis nas paróquias querem o sacerdote que representa o sagrado e sabe ativar os mecanismos do sagrado, que domine e aplique o poder sobrenatural, proporcione até milagres, faça a religião ser eficiente para o proveito deles. Querem um sacerdote que não seja como eles. Querem submeter-se às normas e regras da religião. Não admitem flexibilidade que acolhe os afastados ou mesmo os fora-da-lei. Simplificam para poder classificar e desclassificar. Não saem da sinagoga de Nazaré nem do templo de Jerusalém. Deus só pode ser como essas pessoas imaginam. Elas não acreditam no padre-nazareno que procura seguir Jesus na obscuridade, na humildade, na obediência, pequeno e escondido. Um padre que varre a sua casa, conserta o seu carro, carrega baldes d’água para a sua casa a fim de banhar e lavar o sua louça, é uma pessoa esquisita, não sabe qual é o seu lugar.

 

O padre que chega a adotar Nazaré como carisma do evangelho por ele anunciado, cada vez mais renuncia ao poder, não o usa mais, nem mesmo quando os melhores da sua comunidade o reclamam “para o bem do povo”. Eu vi a posse de um bispo transferido para uma outra diocese. Na cerimônia, uma criança lhe entregou o báculo, mas antes deitou este báculo, por alguns momentos, no chão e pediu que o bispo viesse, às vezes, sem ele para ser criança com eles. Parece que, até hoje, o bispo não perdoou ao que inventou este gesto incomum. Eu desconfio que toda a nossa mística de sermos pastores, mesmo bons pastores, não considere a palavra de Jesus de precisar apenas de porteiros que abrem a cancela para ele, o único Pastor. Eu me pergunto se Jesus queria pastores-substitutos. Será que estes, fatalmente, não vão usar poder, em nome dele? Nazaré questiona todo poder, mesmo na minha igreja com sua teologia dogmatizada e suas instituições seculares. A permanente celebração e meditação eucarística me dão esta certeza. Nela surge, cada vez mais nítida, a motivação para todas essas atitudes: “O amor imita e obedece” como dizia Irmão Carlos. Os políticos ruins, quando questionados, dizem: você é do contra, só quer me combater. Se nós, em nome do mistério de Nazaré, questionamos as nossas estruturas de poder, não somos “do contra”, mas descobrimos o carisma da paixão de Jesus por Nazaré. 

 

Quando a minha grande paróquia chegou a ser dividida em três, pedi que pudesse ir a uma das novas a ser desmembrada, bem longe, sertão-a-dentro, lugar do “tudo falta” ou “nunca teve”, bem pequeno, extremamente seco, com uma estrutura eclesial que se resumia em raras visitas do sacerdote, com apenas algumas comunidades de base. Uma outra cidade, bem maior, teria que fazer parte desta nova paróquia de periferia. Houve uma revolta grande, nesta cidade, que não aceitava a sede da paróquia ser aquele povoado pequeno. O próprio bispo queria que eu morasse naquele lugar maior. Na minha discussão com ele citei uma palavra do famoso missionário nordestino do século 19, que deixou a sede da arquidiocese de Recife para viver e pregar no meio do povo abandonado do interior, castigado pela seca, explorado pelos políticos corruptos e desclassificado pelas autoridades eclesiais. Dizia o Padre Ibiapina; “Risquei um pequeno círculo, dentro dele me meti, para escapar ser lembrado, com cuidado me escondi – No centro da caridade coloquei minha existência, no meu ministério ocupado, cercado pela inocência”.

 

Consegui mudar-me para este “fim do mundo” que outros chamam “o começo do mundo”. As pessoas perguntaram: “O Senhor agora vai ser eremita?” – outros: “O Senhor vai se aposentar?” Como poderiam entender que eu saía em busca “do último lugar?” Eu acho importante que as opções e posturas que assumimos revelem as motivações que nos levam a essas atitudes. Seria pena, se para o nosso povo fôssemos apenas uns “esquisitões”. Teremos de inspirar-nos novamente no carisma do Irmão Carlos que disse; “Toda a nossa vida, por mais silenciosa que seja,... deve ser uma pregação do evangelho pelo exemplo... deve gritar o evangelho pelos telhados, deve transparecer Jesus”.

 

No entanto, o próprio Irmão Carlos não tem o evangelho  a ser anunciado como uma doutrina de verdades eternas. O mesmo mistério de Nazaré mostra que o evangelho vivo de Jesus é a sua presença solidária no meio do seu povo, a causa assumida dos oprimidos e desclassificados da Galiléia. Irmão Carlos, na sua ansiedade por Nazaré, conclui: “...devemos nos voltar especialmente para os miseráveis, para todos os que o mundo esquece, despreza, exclui: os pobres, os pequenos, os sofredores, os ignorantes, porque tem mais necessidade e menos recursos”.

 

Na minha longa vida no sertão nordestino, sempre experimentei as calamidades deste povo, seu eterno sofrimento, sua pobreza crônica, o seu abandono. Desde o começo fiz da minha missão evangelizadora um compromisso com os mais pobres. Achei sempre que a famosa “opção preferencial pelos pobres” não nos deixaria livres para fazermos ou não esta opção. Na verdade, foi Deus que fez esta opção. Para nós, não tem mais opção, a opção de Deus tem que ser a nossa. Essa nossa opção claramente é conseqüência da opção de Deus por Nazaré. O Filho de Deus feito homem não criou um grandioso sistema de assistência social para os pobres de todos os tempos ou, como dizem os políticos, “para erradicar a pobreza do mundo”. Ele se fez pobre para, com os pobres, iniciar o caminho da libertação deles. Irmão Carlos, na sua percepção segura, a partir da permanente contemplação do mistério de Nazaré e do mistério da eucaristia, chegou a esta dupla intuição a respeito dos pobres: primeiro, toda a sua ternura para com os pobres que ele acolhia e assistia com bondade – atitude que ele queria que fosse um sinal da infinita bondade de Deus para com os seus filhos. Essa intimidade com os pobres nascia da sua intimidade com Jesus. Dele os pobres são irmãos, bem-amados como o próprio Jesus. Irmão Carlos fez desta sua identificação com os pobres uma preocupação muito concreta: usou toda a sua criatividade para encaminhar estes pobres a processos de transformação capazes de superar a pobreza: instrução básica sistemática, valorização do trabalho, incentivos para  agricultura, pecuária e pequenas atividades industriais, comercialização eficiente dos produtos locais, enfim uma promoção de nômades totalmente vulneráveis pelas intempéries geográficas, climáticas e sócio-políticas.

 

          O carisma de Irmão Carlos tornou-se, mais uma vez, inspirador para nós. Somos da igreja de todos os tempos que nunca deixou de amar com ternura e compaixão os pobres, irmãos de Jesus, e sempre desenvolveu intensa atividade caritativa. Essa longa experiência, porém, deve levar-nos a uma conclusão esclarecedora: não é suficiente trabalhar para os pobres, por mais volumoso que seja este trabalho. É preciso chegar a trabalhar com os pobres, por mais lento que seja este trabalho. Não há chance para uma evolução transformadora, sem que o pobre, como hoje se diz, seja o sujeito da sua história. No nosso trabalho no nordeste brasileiro fizemos muitas experiências dolorosas como também felizes. Aprendemos que não se deve simplesmente implantar projetos. Tentamos sempre perguntar primeiro pelas causas e razões das condições ou práticas existentes, da resistência a propostas aparentemente vantajosas, da lentidão dos resultados que aponta para fatores muito mais complexos do que percebemos à primeira vista. Não é possível chegar a essa sensibilidade no trabalho com os pobres sem beber constantemente na fonte do mistério de Nazaré e da eucaristia. Pode-se adquirir habilidade de análise e pesquisa. Mas o coração compadecido identifica-se com o irmão e sofre as suas dores, carrega consigo o carisma de Nazaré. 

 

          É por isso que tenho uma profunda desconfiança das chamadas “parcerias” que governos e repartições oferecem a instituições de ação social da igreja. São recursos canalizados para estas entidades na sistemática burocrática de orçamentos, requerimentos, parcelamentos, decisões deliberativas e prestação de contas. Essa sistemática é necessária na administração pública, mas torna-se perigosa para apagar a chama da generosidade e gratuidade. A “Misereor” da Alemanha, por exemplo, trabalha com apenas 30 por cento dos seus recursos provenientes das doações dos católicos, o resto vem do Governo daquele país. Eu conheço casos de funcionários de entidades mantidas pela “Misereor” no Nordeste do Brasil que tiveram os seus salários atrasados por quatro meses por causa dessas verbas não liberadas. Sem o carisma de Nazaré a igreja vira uma ONG (NGO), mas não evangeliza.

 

          Não podemos deixar de voltar a nossa atenção a uma atitude evangelizadora de Irmão Carlos que é um carisma precioso adquirido num longo e doloroso processo. Irmão Carlos partiu para o Saara e os Tuaregs com uma enorme vontade de converter estes muçulmanos. Não teve êxito. Não converteu nem batizou ninguém. Antes de entregar-se ao sentimento de frustração ou mesmo de acusar os infiéis, ele questionou-se a si mesmo, desconfiando da sua pouca santidade. O seu fracasso apostólico, porém, o levou a uma atitude missionária, que, mais uma vez, é fundamentada na sua convicção de que a longa vida oculta de Jesus em Nazaré é a atitude de Deus que se rebaixou para assumir tudo o que é humano. Vivendo este mistério de Nazaré dentro de si, chegou a descobrir e praticar a virtude mais sutil de quem quer evangelizar: o respeito para com os chamados infiéis ou, nas categorias eclesiais atuais: os afastados e não-praticantes. Considerava todos eles que queria converter “...pessoas inteligentes e que de maneira alguma dever-se-ia atentar contra a sua liberdade; para fazer um muçulmano mudar de religião seria necessário que um cristão lhe inspirasse mais confiança que seus pais, seus amigos, os representantes  da religião, tudo o que amou, respeitou e acreditou.” Irmão Carlos tornou-se, lentamente, mais realista e mais humilde, procurou não só constatar as razões da não-conversão. Entendeu que os modelos culturais que sustentam as pessoas não se substitui senão por bondade, amor e prudência. A sua percepção da encarnação de Deus em Nazaré o levou a descobrir o caminho da evangelização: a inculturação. É urgente que nós, no nosso mundo secularizado, das igrejas esvaziadas e das migrações dos neo-pagãos descomprometidos descubramos essa indispensável condição para evangelizar. Podia até acontecer que substituímos estes termos de “secularização”, “neo-pagãos”, “igrejas esvaziadas”.

 

          Pessoalmente vejo neste carisma do Irmão Carlos um estímulo para o meu esforço pastoral, no meu lugar duma quase-paróquia nos confins do sertão nordestino. As pessoas não atendem às propostas duma vida paroquial que nunca tiveram, nem conheceram o seu sentido. Se não tiveram oportunidade para criar as tradições que nós do centro praticamos há gerações, como vão, de repente, mudar comportamentos só porque um sacerdote chegou a conviver com eles, que nem pergunta pelas tradições que também este povo tem. São, por assim dizer, os meus “Tuaregs” que devo conhecer, atrair, compreender na sua cultura e respeitar nas suas capacidades. 

 

           As intuições e carismas de Irmão Carlos assimilados na minha realidade, talvez podem, mesmo tarde, fazer de mim um companheiro dele, que tanto desejava ter, que com ele “vai ao fim do mundo para difundir o Santo Evangelho”.

 

 

Obs.: Os textos entre aspas são palavras do Irmão Carlos encontradas nos documentos biográficos dele. Como aqui não se trata de um trabalho científico, dispensamos das indicações bibliográficos detalhadas.

 

 

3. NOTÍCIAS DOS IRMÃOS E DAS FRATERNIDADES

 

Da Bahia

 

O nosso encontro foi modesto, com poucos participantes, porém significativo pela presença de irmãos de diferentes Fraternidades do Nordeste, um do Piauí, um de Alagoas e cinco da Bahia; foram dois dias de verdadeiro retiro no Mosteiro do Salvador, das Monjas Beneditinas de Couto no Subúrbio Operário, um lugar encantador, não só pela paisagem com vista para a Baia de Todos Santos, mas pela beleza dos cantos e das orações das monjas, sem falar da comida, sob a liderança da Abadessa Madre Vera Lúcia, que foi uma das delegada na Conferência de Aparecida; falou para nós sobre o desenrolar da Conferência, as comissões, as emendas, plenárias, discussões e polêmicas, não houve muitas. Que sem dúvidas foi um retomar do impulso da vida e da missão da Igreja em nível de América Latina, não deixou de lado os métodos de Medellín e Puebla, Ver-Julgar-Agir da Ação Católica, as Ceb's e a opção pelos pobres, com uma preocupação especial pelos jovens; lança-se uma discussão com os problemas sociais, como: ecologia, meio ambiente, pastoral urbana, família, economia, política, etc... Sem mais encerramos o encontro com o almoço e nos despedimos.

Pe. Silvano

 

Do Ceará

 

Conseguimos fazer os encontros planejados. No último meditamos um texto sobre a Conferência de Aparecida. Realizamos no eremitério do Centro Diocesano. Três religiosas ligadas às Fraternidades estiveram conosco. Foi bom o clima de oração - adoração, estudo, celebração da Eucaristia e Revisão de Vida, que realizamos em grupos separados: padres e religiosas. Vamos participar agora em novembro de um encontro que vai reunir vários ramos da Fraternidade de Foucauld em Fortaleza. Confirmo minha presença no retiro da Fraternidade em Janeiro. Nossa Fraternidade local somos 4 padres: Pe Eliésio, Pe Aldenor, Pe Xavier e eu. Algumas vezes Pe Ernesto do Piaui participa com a gente. Do Irmão de Fraternidade 

Pe. Zacarias 

 

De Ouagadougou, Burkina Faso

 

Bendito seja Nosso Irmão e Senhor Jesus de Nazaré!

Bendito seja o Bem-aventurado Irmão Carlos pelo Mês de Nazaré e pelo Retiro/Encontro que aconteceu em Ouagadougou, no Burkina Faso.

 

As fraternidades e os irmãos da África se reuniram, depois de mais de 10 anos, para viver um tempo forte de fraternidade.

Temos o dever de fazer chegar a vocês o eco desse tempo de graça vivido, graça de reencontro de mais de vinte irmãos vindo de paises diferentes, sendo 7 da África, alguns da Europa (França, Bélgica, Suíça) e nosso Responsável Internacional, Abraham Apolinario.

Cada participante pôde apreciar a presença fraterna e discreta de Dom Philippe Ouedraogo, Bispo de Ouahigouya, membro da Fraternidade. A graça dos lugares: o seminário maior São Pedro e São Paulo no Bairro Kossoghen ofereceu um espaço apropriado aos participantes que tiveram a ocasião de ir visitar o Mosteiro de Honda de inspiração foucauldiana e encontrar o irmãozinho Emmanuel Kalmogo, e seus oito postulantes. A graça do apoio da família do irmão Carlos no Burkina-Faso (Irmãzinhas de Jesus, Fraternidade Secular e Leigos consagrados) foi manifesta com a missa de encerramento do retiro (19 de Agosto de 2007) na capela do seminário maior e o ágape fraterno que se viveu.

Para a maioria de nós, foi o primeiro mês de Nazaré, cheio de descobertas: fraternidade vivida, aprofundamento do conhecimento do irmão Carlos, prática dos meios que oferece a Fraternidade Sacerdotal Jesus+Caritas para melhor servir o Bem Amado Jesus de Nazaré. A ajuda preciosa de Jacques Midy edificou cada um de nós nesse sentido. O retiro espiritual, conduzido por mãos de professor por Jean-Marie Pasquier e centrado sobre Nazaré, foi intensamente vivido num clima de recolhimento e de partilha fraterna.

O grupo de participantes se manteve, apesar dos fluxos e refluxos das chegadas e das partidas dos irmãos vindos seja para o mês de Nazaré e o Retiro Espiritual (22 de julho a 19 de agosto) seja para o retiro/encontro (11 a 23 de agosto). O retiro, apêndice indispensável deste grande encontro que reuniu uma quinzena de irmãos, dentre eles, dois vindos da região da África do Norte (Marrocos e Argélia), doze irmãos de cinco paises da África Subsariana (Madagascar, Rwanda, República Democrática do Congo – RDC, República Centro Africana, Burkina Faso) e o Responsável Internacional.

Em oração, nós refletimos o futuro das Fraternidades da África. Depois de termos visto a nossa realidade e definido as orientações a serem seguidas, elegemos um delegado para a África Subsariana na pessoa de Evariste Ouedraogo, do Burkina Faso, que escolheu como colaborador Paul Lushombo, da RDC. De acordo com o desejo de todos, Dom Philippe Ouedraogo será seu conselheiro. Com o delegado da Região do Magrebh/Masresch, Marc Boucrot, eles formarão uma coordenação a fim de acompanhar e de animar nossas fraternidades, em comunhão com a Equipe Internacional e os outros continentes.

Que todos aqueles e aquelas (irmãzinhas de Jesus...) que contribuíram de uma maneira ou de outra para o êxito deste tempo forte, sintam aqui a expressão da profunda gratidão dos irmãos da África.

Irmãos, contamos com suas orações e apoio para que se enraíze e se abra a fraternidade na África, com os carismas do Beato Carlos, a fim de conduzir os homens e as mulheres ao Cristo Nazareno, para a glória de Deus e a salvação do mundo.

 

Viva a Fraternidade!

 

Ouagadougou, Burkina Faso, 23 de Agosto de 2007

Paul Lushombo, Marc Boucrot, Evariste Ouedraogo, Abraham Apolinario

 

4. Um Livro Um Amigo

 

DAMIAN, Pe. Edson T, Uma espiritualidade para o nosso tempo, Carlos de Foucauld, Paulinas, São Paulo, 2007

 

LAFON, Michel, 15 Dias de oração com Charles de Foucauld, Paulinas, São Paulo, 2005.

 

MARCHESI, Pe. José, Em busca do último lugar, Loyola, São Paulo, 2004.

 

SILVA, Celso Pedro da e BIZON, J. (Orgs.) Meios para uma espiritualidade presbiteral, Loyola, São Paulo, 2005.

 

ZUBIZARRETA, Ion Etxezzarreta, Irmão Carlos de Foucauld, ao encontro dos mais abandonados, São Paulo, Loyola, 1999.

 

Publicações das Irmãzinhas:

- Deus é Amor

- Irz. Madalena de Jesus – Jesus é o Senhor do impossível

- Caminho na Oração... Com o Ir. Carlos de Jesus

(para adquirir os livrinhos entre em contato com as Irmãzinhas de Jesus)

 

 

Ver com o Godoy V Conferência de Aparecida

 

5. AGENDA

 

Retiro Anual

03 a 10 de janeiro de 2008

Casa de Retiros São Frei Leopoldo

Hidrolândia, GO

Tel: (62) 3553-1115 

Assessor: Pe. Mario Filippi

Diária: R$ 40,00 (quarenta reais) por pessoa.

Favor levar roupas de cama e banho

Resp. Pe. José Bizon

 

Região Sudeste

12 e 13 de novembro de 2007

Bauru, SP

Resp. Pe. Valdo Bartolomeu de Santana

 

Região Norte

26 a 29 de novembro de 2007

Canavallén – Vicaría Apostólica del Caroni

Venezuela

Resp. Pe. Edson Damian

 

6. PRESTAÇÃO DE CONTAS

 

Resumo Geral de Pagamentos e Recebimentos até 26/09/2007

 

Histórico

Entradas

Saídas

Contribuições e Doações

R$ 6.420,03

 

Correios

 

R$ 1.493,30

Impressão de Boletins

 

R$ 2.567,00

Xerox

 

R$ 117,50

Tarifas Bancárias

 

R$ 165,10

Total

R$ 6.420,03

R$ 4.342,90

Aplicações

R$ 844,08

xxxxxxxxxx

Saldo Atual

R$ 2.921,21

xxxxxxxxxx 

São Paulo, 30 de setembro de 2007 

Pe. João Batista Dinamarques


Responsáveis da Fraternidade  (CLIQUE PARA ACESSAR OS NOMES DOS RESPONSÁVEIS)

CONSELHO  (CLIQUE PARA ACESSAR A LISTA DO CONSELHO)


SERVIÇOS (CLIQUE PARA ACESSAR A LISTA DE SERVIÇOS)


FAMÍLIA ESPIRITUAL DO IRMÃO CARLOS DE FOUCAULD NO BRASIL  (CLIQUE PARA ACESSAR A LISTA DA FAMÍLIA C.F.)