1ª CARTA DE JOÃO

INTRODUÇÃO À 1ª CARTA DE JOÃO

“Quem reconhece que Jesus Cristo veio na carne é de Deus” (1Jo 4,2).

Por Maria Antônia Marques

Certa vez, um bispo visitou uma turma que estava se preparando para a primeira comunhão. Em conversa com as crianças, ele perguntou: “Qual o sinal do cristão?” Ele esperava ouvir: “O sinal da cruz”. Uma criança respondeu: “É o amor!” O bispo ia dizer que a resposta estava errada, hesitou um pouco e depois sorriu e disse: “Sim, você acertou!”

Introdução

Qual é o sinal característico da pessoa cristã? A pergunta é muito antiga, mas a resposta continua a mesma: o amor. “Amem-se uns aos outros. Assim como eu amei vocês, que vocês se amem uns aos outros, todos vão reconhecer que vocês são meus discípulos” (Jo 13,34b.35b). Fé e amor são colunas fundamentais de todas as religiões. Na vida cristã, nosso vínculo fundamental é com Jesus Cristo, o Messias encarnado. Daí a importância de sempre voltarmos à vida e à prática de Jesus Cristo e das comunidades que deram continuidade à sua missão: o anúncio do Reino de Deus e o amor ao próximo.

Nas primeiras comunidades cristãs, surgiram muitas definições acerca da identidade de Jesus Cristo. No fim do século I, havia grupos que dissociavam o Jesus da história do Cristo da fé e separavam a fé da vida prática, provocando desentendimentos e conflitos nas comunidades. Uma das comunidades sofridas era a da primeira carta de João. A carta inicia-se assim:

O que existia desde o princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com nossos olhos, o que temos contemplado e nossas mãos têm apalpado: a Palavra (Verbo) da Vida – porque a Vida foi manifestada, nós a temos visto, e estamos dando testemunho e anunciando a vocês a vida eterna, que estava junto do Pai e foi manifestada a nós (1Jo 1,1-2).

Ouvir, ver com nossos olhos, contemplar, apalpar com nossas mãos o Cristo, a Palavra da Vida. Dar testemunho de Jesus feito carne (cf. 4,2) é o tema principal da primeira carta de João e, ao mesmo tempo, o ponto crucial de conflitos na comunidade, porque alguns de seus membros não reconhecem “Jesus encarnado”, o Jesus humano e histórico. Eles são chamados de “anticristos” (2,18; 4,2-3; 2Jo 7), “falsos profetas” (4,1), enganosos (cf. 2,26; 3,7), “mentirosos” (2,22).

Esse grupo propõe um ensinamento gnóstico (gnosis, em grego, significa “conhecimento”), afirmando que a pessoa se salva graças a um conhecimento religioso e pessoal de Cristo Jesus, que é Espírito e portador da gnose, o conhecimento que salva. Pelo conhecimento, sem a prática, eles afirmam estar em íntima comunhão com Deus, serem iluminados e livres do pecado. Por isso, não estão empenhados no amor ao próximo e na prática da justiça (cf. 4,20-21).

Conforme a primeira carta de João, não é possível amar a Deus (Pai) sem amar o próximo (os filhos de Deus). Os dissidentes “espirituais” são acusados de “anticristos” por não viverem como Jesus Cristo feito carne e por seguirem os valores do mundo, ou seja, do Império Romano: “Eles são do mundo e por isso falam a linguagem do mundo, e o mundo os ouve” (4,5). O autor da carta ainda faz o seguinte alerta: “Não amem o mundo nem o que há no mundo. Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele” (2,15).

A qual mundo eles pertencem e seguem? A primeira carta de João foi escrita provavelmente pouco depois do Evangelho de João, no final do século I ou início do século II, em Éfeso, na Ásia Menor, onde provavelmente havia uma comunidade cristã significativa. Esta era uma das maiores cidades do mundo greco-romano.

1. Um olhar para a cidade de Éfeso

A cidade de Éfeso atualmente se chama Selçuk, localizada na Turquia, perto da desembocadura do rio Caistro, na costa ocidental da Ásia Menor. A cidade tinha um porto artificial, mantido por meio de dragagem, que se localizava na extremidade leste do mar Egeu e servia de embarque em direção à Grécia e a Roma. Esse porto fazia de Éfeso um local estratégico, tanto militarmente como comercialmente falando, atraindo, assim, várias nações poderosas para a região.

Após os domínios imperiais persas, gregos e dos reis de Pérgamo, o Império Romano conquistou a cidade, estabelecendo-se aí. Em 129 a.C., a província romana na Ásia Menor teve como capital a cidade de Pérgamo. Éfeso, contudo, por sua posição geográfica, era a principal metrópole, pois ligava Grécia e Roma, por mar e por vias terrestres, com a maior parte da Ásia Menor. Muitas mercadorias e grande fluxo humano alimentavam o movimento e a riqueza dessa cidade. Na época do Novo Testamento, Éfeso, com cerca de 250 mil habitantes, era uma das cinco principais cidades no mundo greco-romano, estando entre as mais poderosas e prósperas.

Sua grandeza e prosperidade transpareciam nas construções e no movimento em seu interior. A metrópole ostentava muitos prédios e espaços importantes, como ginásios de esportes, templos, teatros, mercados, bibliotecas e um arco do triunfo. As escavações arqueológicas apontam monumentos esplêndidos das épocas grega e romana:

a) o templo de Ártemis, composto de mais de cem colunas de mármore, uma das sete maravilhas do mundo antigo;

b) um grande teatro, com capacidade para cerca de 24 mil pessoas em suas arquibancadas;

c) uma praça do mercado (ágora, do grego), com inúmeras lojas.

Uma cidade com uma população mista: egípcios, gregos, ítalos, sírios, judeus, entre outros. Essa diversidade se refletia também em sua multiplicidade cultural e religiosa. Além do templo de Ártemis, vários outros templos e santuários da era romana foram descobertos ali, como o santuário dedicado a Serápis, deus egípcio. As evidências indicam que em Éfeso havia grande variedade de cultos de diversas religiões, sem mencionar a presença de diferentes escolas filosóficas e de magos.

Prosperidade, grandeza, beleza, poder e diversidade faziam de Éfeso verdadeira cidade cosmopolita. Nela circulavam muitas pessoas e muitas mercadorias por via terrestre e marítima, em uma busca desenfreada de bens, poder, prazer e honra (helenização). Esse era o espírito do mundo greco-romano dos poderosos, chamado de Maligno em 1Jo 2,13. Ao mesmo tempo, a cidade apresentava os males da ganância, exploração, corrupção, violência, imoralidade, desigualdade, miséria, fome e morte em seu interior: “Pois tudo o que há no mundo – os maus desejos vindos da carne e dos olhos, a arrogância provocada pelo dinheiro – são coisas que não vêm do Pai, mas do mundo” (1Jo 2,16).

A grande massa de “imigrantes pobres e escravos” do Oriente Médio e das margens do Mediterrâneo chegou a Éfeso para ganhar a vida e sobreviver na cidade cosmopolita. Eram pessoas pobres e desenraizadas! Elas sofriam com a insegurança e a violência na periferia. Nessa cidade, a Boa-Nova de Jesus Cristo foi semeada e espalhada, enfatizando o amor ao próximo (cf. 1Jo 2,3-11).

2. Conhecendo a sociedade greco-romana e a comunidade cristã de 1Jo

Éfeso era uma típica sociedade escravagista. A riqueza era produzida pelo trabalho escravo. Cerca de dois terços da população eram constituídos por pessoas pobres e escravizadas, vivendo à margem da sociedade. Os escravos, considerados mercadoria e propriedade, sofriam muitas vezes injustiça, violência e crueldade. Nessa sociedade, pairavam sofrimento, desespero, revolta dos pobres!

Um dos meios de o Império Romano controlar os habitantes em uma cidade como Éfeso era a rede (sistema) de patronato ou clientelismo, caracterizada pela troca de favores entre as pessoas, criando verdadeira teia de submissão, dependência, influência e poder. A prática de um patrono rico favorecer o cliente pobre criava dependência e submissão, porque a pessoa pobre devia sentir-se grata e devedora de favores ao poderoso.

O Império Romano, tendo o imperador como “patrono supremo”, organizava a sociedade hierárquica pelo sistema patronal, para controlar e subjugar o povo. O patronato estava presente em todas as dimensões da sociedade, especialmente nas associações, um fenômeno muito comum no mundo greco-romano, e era quase impossível viver à sua margem. A hierarquia da sociedade de patronato e clientelismo dificultava o surgimento de movimentos de resistência e de protesto contra os poderosos patrocinadores. Abafava e engolia a exploração, a violência e humilhação, o sofrimento e desespero, dividia os pobres e dificultava a revolta dos explorados no mundo greco-romano opressor.

Nesse contexto, a “associação cristã” estava na contramão do patronato. No seguimento do evangelho de Jesus, o Messias encarnado, a associação cristã tentava promover a solidariedade com os pobres, buscando propiciar-lhes espaço de liberdade e dignidade, sem criar dependências, não se deixando corromper pelas estruturas injustas de patronato ou clientela. Procurava não fazer distinção de pessoas, à diferença do mundo greco-romano, que praticava a injustiça, privilegiando os ricos e os detentores do poder. Daí o princípio fundamental que orientava a ação cristã: o amor ao próximo, manifestado na vida concreta de Jesus, o Messias encarnado (cf. 1Jo 3,11-24).

Na comunidade cristã, com a rede de solidariedade, constatavam-se várias ações concretas: a) partilha de alimento com os pobres; b) acolhimento de forasteiros, estrangeiros e perseguidos; c) atendimento a viúvas e crianças órfãs; d) sepultamento digno para os pobres escravos. O grupo social menos favorecido recebia especial atenção da caridade praticada pela comunidade cristã, que agia de modo contrário ao mundo escravagista.

No entanto, como testemunham a carta de Judas e a segunda carta de Pedro, as comunidades cristãs da Ásia Menor (do século I ou do início do II) sofriam com divisões internas e conflitos, provocados pelos falsos profetas ou mestres (cf. Jd 8-19; 2Pd 2,1-3). Eles renegavam Jesus como o Messias encarnado, sua vida terrestre, morte, ressurreição e a promessa da sua volta gloriosa. Como não haveria “parusia” (a vinda do Senhor) nem julgamento, tudo era permitido; podiam realizar, até com extravagância, todos os desejos – “imundícies” (cf. Jd 16; 2Pd 2,13-14).

Esses ensinamentos e práticas se enquadravam no movimento gnóstico, que se desenvolveu mais fortemente no século II. Para os profetas e mestres gnósticos, a salvação estava no conhecimento, desligado da vida prática. Somente por meio da iluminação mental e espiritual a pessoa entrava em comunhão com o Deus verdadeiro. Dessa forma, a fé cristã era substituída pelas buscas espirituais sem o seguimento do evangelho de Jesus Cristo. Como se estava na pretensa união com Deus, na vida moral não havia pecado nem julgamento de Deus, o que abria espaço à libertinagem, corrupção e imundícies.

A segunda carta de Pedro e a carta de Judas mostram urgência em seus propósitos de advertir as comunidades cristãs contra os falsos profetas ou mestres. Repreendem e rejeitam os pensamentos e as práticas dos falsos profetas atuantes nas comunidades, os quais buscavam destruir a fé alimentada pela prática do evangelho de Jesus Cristo, transmitida pelos apóstolos (cf. Jd 3).

Assim como as duas cartas católicas (Jd e 2Pd), a primeira carta de João – uma carta católica do fim do século I ou começo do século II – enfrenta esse problema e assume o objetivo de advertir as comunidades contra os falsos profetas ou anticristos, que brotam do seio das comunidades (cf. 2,19):

a) Mundo e libertinagem: “Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele. Pois tudo o que há no mundo – os maus desejos vindos da carne e dos olhos, a arrogância provocada pelo dinheiro – são coisas que não vêm do Pai, mas do mundo” (1Jo 2,15b-16).

b) Renegar Jesus como o Messias: “Quem é o mentiroso, senão quem nega que Jesus é o Messias? Esse tal é o Anticristo, aquele que nega o Pai e o Filho” (1Jo 2,22);

c) Conhecer a Deus: “Quem diz que conhece a Deus, mas não trata de guardar os mandamentos dele, é mentiroso; nesse não está a verdade” (1Jo 2,4).

Alguns membros se afastam da comunidade porque pretendem viver a vida que vem do mundo do Maligno, gerador de desejos desenfreados de riqueza e de prazer. Por isso rejeitam Jesus Cristo, o Messias encarnado, e não praticam os mandamentos do amor ao próximo. Dizem ter o conhecimento de Deus e, por conseguinte, creem estar em comunhão com ele, sem pecado nem julgamento. Com seus pensamentos e práticas, provocam conflito e divisão na comunidade.

Diante do conflito desordenado com os inimigos ou rivais, o autor de 1Jo, o representante da comunidade, reage energicamente, condenando-os e identificando-os como “anticristos” que têm aparecido na comunidade. Alerta a comunidade para que fique atenta e saiba discernir quem são os anticristos ou os falsos profetas.

3. Organização da primeira carta de João

A comunhão com Deus e com seu Filho, Jesus Cristo, é o tema principal da primeira carta de João: “Quem confessar que Jesus é o Filho de Deus, Deus permanece nele e ele em Deus” (4,15). Essa confissão implica assumir o mandamento do amor: “Que acreditemos no nome do seu Filho, Jesus Cristo, e nos amemos uns aos outros, conforme o mandamento que ele nos deu” (1Jo 3,23b; cf. Jo 13,34; 15,17). É no amor fraterno que cada pessoa se torna morada de Deus e do seu Filho, Jesus Cristo.

A primeira carta de João evidencia a importância da encarnação de Jesus Cristo. É possível que as comunidades estivessem influenciadas por outras formas de compreender Jesus Cristo, acolhendo ensinamentos que faziam distinção entre Jesus, o homem, e o Cristo, o enviado de Deus, negando a dimensão e a importância da vida e da prática de Jesus bem como sua morte na cruz.

Como está estruturada a primeira carta de João? Alguns afirmam que essa carta é a junção de cinco a nove trechos de homilias, outros acreditam ser a reunião de duas cartas menores. Há também os que observam o fato de ela ter a mesma estrutura do Evangelho de João (prólogo, epílogo e duas partes). Aqui, vamos utilizar a proposta de estrutura que divide a carta em três partes (1,5-2,28; 2,29-4,6; 4,7-5,13), com um prólogo (1,1-4) e um epílogo (5,14-21).

Prólogo (1Jo 1,1-4): Vimos, escutamos, contemplamos e tocamos o Verbo da Vida! O prólogo apresenta uma síntese da carta, testemunhando, com todos os sentidos, a encarnação e reforçando a comunhão com o Pai, o Filho e a comunidade. Jesus Cristo é a Palavra encarnada!

Primeira parte (1Jo 1,5-2,28): Deus é luz. Luz é sinônimo de vida, de realidade do bem; trevas são tudo o que se opõe à vida, indicam as realidades contrárias ao projeto de Deus. Caminhar na luz é aceitar o projeto de Deus realizado na vida e morte de Jesus Cristo (cf. 1Jo 1,5-7). Esse caminho tem quatro condições: a) reconhecer-se pecador (cf. 1Jo 1,8-2,2); b) o amor (cf. 1Jo 2,3-11); c) não amar o mundo (cf. 1Jo 2,12-17); d) preservar-se dos anticristos (cf. 1Jo 2,18-28).

Para essa comunidade, pecado é adesão às realidades de injustiça. Caminhar na luz exige vivenciar o mandamento do amor, base das relações humanas: “Quem diz que permanece em Deus deve caminhar como Jesus caminhou” (1Jo 2,6). As pessoas são orientadas para não aceitar as realidades de injustiça, denominadas pelo autor de “mundo”. Finalizando esta parte, o autor faz um apelo para que a comunidade reconheça o Anticristo – aquele que nega que Jesus é o Messias (cf. 1Jo 2,22) – e dele saiba se preservar.

Segunda parte (1Jo 2,29-4,6): É a partir de Jesus que podemos ser chamados de filhas e filhos de Deus, e a exigência é viver a prática da justiça. Para caminhar na justiça, são necessárias três atitudes: a) romper com o pecado (cf. 1Jo 3,3-10); b) observar o mandamento do amor (cf. 1Jo 3,11-24); c) discernir o verdadeiro Espírito (cf. 1Jo 4,1-6). Nesta parte, há forte contraste entre a justiça e o pecado. O amor e a solidariedade comprovam nossa identidade de filhas e filhos de Deus. A marca da vida cristã é o amor fraterno: “Jesus entregou sua vida por nós; portanto, também nós devemos entregar a vida pelos irmãos” (1Jo 3,16b). A comunidade é desafiada a examinar os espíritos para ver se vêm de Deus, e o critério é acreditar que “Jesus Cristo veio na carne” (cf. 1Jo 4,2).

Terceira parte (1Jo 4,7-5,13): Amor e fé são os temas da terceira parte. Ao abordar o tema do amor, por duas vezes o autor afirma que Deus é amor (cf. 1Jo 4,8.16). Amar é fazer a experiência da essência divina presente em nós. O amor de Deus é concreto: “Deus enviou seu Filho único ao mundo, para podermos viver por meio dele” (1Jo 4,9). É o amor fraterno que nos possibilita conhecer a Deus. A única forma de permanecer em Deus é no amor, que nos liberta de todo temor: “No amor não existe medo” (1Jo 4,18a). A experiência de amar e ser amado ajuda a pessoa a vencer o mundo – as realidades de injustiça. Assim, o autor anuncia o último tema: a fé (cf. 1Jo 5,4-13). É capaz de vencer o mundo quem acredita que Jesus é o Filho de Deus, o Messias encarnado, o amor de Deus feito carne. Ele é a fonte da vida eterna (cf. 1Jo 5,11-12). A carta conclui reforçando que a comunidade que acredita no nome do Filho de Deus tem a vida eterna (cf. 1Jo 5,13).

Epílogo (1Jo 5,14-21): Oração pelos pecadores e a fé em Jesus Cristo. É a oração que nos põe em contato com o projeto de Deus e com as pessoas. A comunidade é chamada a rezar pelas pessoas sujeitas a fraquezas humanas, “o pecado que não leva à morte”. A rejeição do projeto que Deus realiza por meio de Jesus Cristo encarnado é um pecado que leva à morte. O texto finaliza com uma advertência: “Filhinhos, fiquem longe dos ídolos” (5,21). É preciso afastar-se de qualquer tipo de idolatria. Deus quer vida plena para todas e todos.

A leitura da primeira carta de João nos ajuda a retomar os ideais da vida cristã. A Palavra da Vida continua se encarnando entre nós para ser Caminho, Verdade e Vida, inspirando-nos novas práticas de amor ao próximo. É uma carta que lança o convite às suas leitoras e aos seus leitores para romper com o pecado, com o mundo e com os anticristos. Há um acento especial na observância do mandamento do amor, porque Deus é amor. Que novamente possamos ver, ouvir, contemplar, tocar e testemunhar a Palavra que se faz carne, atendendo ao apelo para dar continuidade à missão de Jesus: a implantação do Reino de Deus.

Conclusão: exigências para a vida cristã ontem e hoje

Vivemos em uma era na qual o real é substituído pelo virtual e a sociedade traz as marcas do individualismo, que prima pelo culto de si mesmo. O que vale é viver e ser feliz a todo custo, sem se importar com as pessoas ao redor. Uma das chagas do nosso tempo é a insensibilidade social. A primeira carta de João, escrita para as primeiras comunidades cristãs, enfrentava conflitos semelhantes. Por isso se verifica nela a insistência no amor fraterno, na comunhão com o irmão, com a irmã, como a base para o relacionamento com Deus: “Amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus. E todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece a Deus” (4,7).

É pelo amor que nos tornamos filhas e filhos de Deus. Ele nos amou primeiro e por isso envia seu Filho para nos livrar da realidade de injustiça. É muito oportuno e necessário reler e atualizar a primeira carta de João nos tempos atuais. É um convite permanente a vivenciar o amor fraterno, que se traduz em gestos concretos.

Na vida cristã, o amor fraterno não é opcional, mas atitude fundamental. Eis alguns pontos da primeira carta de João sobre os quais podemos refletir:

a) Jesus, o Messias encarnado, nos purifica de todo o pecado (1Jo 1,5-2,2). Em resposta a um grupo que afirma estar em comunhão com Deus e isento de pecado, o autor sustenta que a comunhão com Deus exige a prática concreta de amor ao próximo. Recorda aos que estão em via de dissidência que afirmar estar sem pecado é negar a ação de Jesus Cristo, o servo chamado para o serviço da justiça (cf. Is 42,1-9). Ele sofre com a perseguição e a violência por causa da sua luta contra o pecado, entendido como a prática da injustiça (cf. 1Jo 1,9; Is 50,4-11), e morre como “vítima expiatória” pelo amor ao próximo até o fim (cf. Is 53,10). O autor, inspirado nos cânticos do Servo, reforça que Jesus Cristo “é a vítima de expiação pelos nossos pecados” (1Jo 2,2a). O amor de Deus é universal: “e não só pelos nossos, mas pelos pecados do mundo inteiro” (1Jo 2,2b; cf. 1Jo 4,14). Jesus Cristo, fiel e justo, é nosso advogado (cf. 1Jo 2,2). Ele é o Messias encarnado, que entrega sua vida pela salvação do ser humano. Ele se faz pessoa! A única forma de entrar em comunhão com Deus é aceitar Jesus Cristo, o Messias, e amar o próximo. Jesus Cristo, o Servo de Deus, purifica-nos de todo o pecado – da realidade de injustiça – e nos convoca para assumirmos o projeto divino, por ele vivenciado: amar até o fim.

b) Não amar o mundo: a realidade do mal (1Jo 2,12-17). “Escrevo a vocês”; “Escrevi a vocês”: no presente e no passado, o autor exorta a comunidade, a qual carinhosamente chama de “filhinhos”, especificando dois grupos: os pais, as pessoas que aderiram ao projeto de Jesus Cristo há mais tempo – “desde o princípio” (1Jo 2,13) –, e os jovens, os recém-convertidos. Estes estão “vencendo o Maligno” – o mundo enquanto realidades de injustiça –, são fortes e a palavra de Deus permanece neles.

Em seguida, o autor da carta exorta: “Não amem o mundo nem o que há no mundo” (1Jo 2,15). O amor ao mundo e o amor do Pai são incompatíveis. Nesse texto, o mundo deve ser entendido como forças de oposição ao projeto do Deus amor. Jesus Cristo é o caminho que nos leva ao Pai. O que há no mundo? “Os maus desejos vindos da carne e dos olhos, a arrogância provocada pelo dinheiro” (1Jo 2,16).

Como podemos entender os maus desejos vindos da carne? São desejos desordenados que visam à própria satisfação, sem considerar as necessidades das outras pessoas. O desejo entra pelos olhos, refere-se ao mundo mental. Quantas coisas vemos e desejamos? Os desejos criados pelo mundo do Império Romano são semelhantes aos desejos do mundo em que vivemos. A sociedade incentiva o consumismo. A todo momento, somos estimuladas/os pela visão, e muitas pessoas se endividam para preencher necessidades criadas pela sociedade capitalista. A arrogância do dinheiro faz a pessoa querer mais e mais. O que há neste mundo é contrário ao projeto de Deus.

Com um olho no chão da vida das primeiras comunidades e outro em nossas comunidades do presente, enxergamos a mesma realidade: de um lado, luxo e riqueza; de outro, miséria, exploração, corrupção e morte. É nesse chão que as primeiras comunidades foram interpeladas a viver o seguimento de Jesus Cristo, e esse mesmo apelo continua nos convocando para vivermos o compromisso profético.

c) Discernir os sinais do verdadeiro Espírito (1Jo 4,1-6). O autor da primeira carta de João nos põe diante de dois grupos: de um lado, estão as comunidades, que ele chama de “amados”, “filhinhos”, os que são de Deus; de outro, “os que dizem ter o Espírito de Deus”, os “falsos profetas”, os “anticristos”, os que “falam a linguagem do mundo”.

Como distinguir o verdadeiro do falso profeta? O autor indica um critério claro: “Quem reconhece que Jesus Cristo veio na carne, esse vem da parte de Deus” (1Jo 4,2). E quem nega isso é o Anticristo (cf. 1Jo 4,3; 2,22). O principal critério é confessar que Deus se fez carne: “O que temos ouvido, o que temos visto com nossos olhos, o que temos contemplado e nossas mãos têm apalpado: a Palavra da Vida” (1Jo 1,1).

Quem é de Deus reconhece Jesus Cristo. Essa confissão implica ir além do assistencialismo e comprometer-se com a construção de uma sociedade justa e solidária, em oposição às realidades que negam a vida do ser humano. Negar Jesus Cristo é rejeitar o próprio Deus. Qual resposta podemos dar à pergunta sobre se somos de Deus? Nossa fala, escuta e ação revelam nossa origem. É preciso continuar vida afora o processo de discernimento para distinguir os verdadeiros dos falsos profetas. Nosso seguimento de Jesus Cristo deve nos levar a um compromisso profético com a justiça, especialmente para os empobrecidos, que continuamente têm os direitos pisoteados e roubados. Reconhecer Jesus Cristo na carne é dar continuidade à sua missão: “Como o Pai me enviou, eu também envio vocês” (Jo 20,21b).

d) O amor faz a vida ressurgir (1Jo 3,11-24). Um texto que começa e termina com o amor fraterno. O centro é o amor que gera a vida e o ódio que provoca a morte. Não existe uma forma de amar sem manifestar práticas concretas de amor ao próximo. O amor não é teoria, mas exige compromisso concreto com a vida digna de nossas irmãs e irmãos, e é o Mestre que nos aponta o caminho: “Porque Jesus entregou sua vida por nós; portanto, também nós devemos entregar a vida pelos irmãos” (1Jo 3,16).

O amor de Deus não está em quem é insensível ao sofrimento de seus semelhantes. O apelo ao amor fraterno é incisivo. Nesta carta, não se pede amor a Deus, mas sim ao irmão. Um amor concreto que nos move à compaixão e à solidariedade, especialmente para com as pessoas pobres e oprimidas. “Quem não ama permanece na morte” (3,14b). Somos chamadas e chamados a fortalecer nossa fé em Jesus encarnado e no amor mútuo.

Os anticristos acreditavam que passariam da morte para a vida sem julgamento, mesmo não amando suas irmãs e irmãos. O único elemento que pode tranquilizar nossa consciência é o amor. O critério é guardar o mandamento de Deus: “Que acreditemos no nome do seu Filho, Jesus Cristo, e nos amemos uns aos outros conforme o mandamento que ele nos deu” (1Jo 3,23). E o mandamento é: “amemo-nos uns aos outros” (1Jo 3,11; cf. Jo 13,34; 15,17). O amor é a condição para Deus se fazer morada em nosso meio (cf. Jo 14,23; 1Jo 3,24).

e) Deus é amor (1Jo 4,7-5,4). O verbo agapan, usado 34 vezes nesse texto, indica um amor incondicional, que se manifesta em gestos concretos. É amor que age, que sai ao encontro da outra, do outro: “o amor vem de Deus”, ele nos amou primeiro (1Jo 4,7.10.19). Deus é a origem e a essência do amor e o único caminho para chegarmos até ele, pois “Ele é amor” (1Jo 4,8.16). Nossa experiência de Deus passa pela vivência do amor: “Se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece conosco, e seu amor acontece em nós de forma perfeita” (1Jo 4,12).

Jesus Cristo é a manifestação concreta do amor de Deus: “Deus enviou seu Filho único ao mundo para podermos viver por meio dele” (1Jo 4,9.14). Não é possível separar amor a Deus de amor ao próximo. A condição para permanecer em Deus não é seguir um conjunto de regras ou cumprir alguns rituais, mas amar. “No amor não existe medo. Pelo contrário, o amor perfeito lança fora o medo” (1Jo 4,18a).

O amor a Deus se comprova com base em nossa capacidade de amar as irmãs e os irmãos. Nesse sentido, o autor da primeira carta de João afirma: “Se alguém disser: ‘Eu amo a Deus’, mas odeia seu irmão, esse tal é um mentiroso. Pois quem não ama seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê. E este mandamento nós o recebemos dele: quem ama a Deus, ame também o seu irmão” (1Jo 4,20-21). O texto é muito claro: a única forma de experimentar Deus é o amor fraterno.

É fundamental compreender a realidade do amor de Deus manifestado em Jesus Cristo encarnado. No centro da vida cristã está o amor, e nossa confissão de fé deve nos impulsionar para o serviço às pessoas necessitadas. Amar e ser amado nos torna participantes da essência divina. Não tem sentido uma religião centrada numa fé individualista e no cumprimento de rituais, desligada da vida. A ideologia que sustenta o poder e a opressão é contrária ao evangelho de Jesus, o Messias encarnado, que assume a causa da justiça até a entrega da própria vida e nos convoca a seguir o mesmo caminho.

Voltamos à pergunta inicial: que sinal identifica o cristão? É o sinal da cruz? A cruz, em si, é símbolo de tortura, mas, para a vida cristã, é a consequência de um amor que se entrega até o fim: “Ninguém tem amor maior do que alguém que dá a vida pelos amigos” (Jo 15,13). É o amor que gera a fé: “Todo aquele que nasceu de Deus vence o mundo” (1Jo 5,4). Portanto, o apelo feito às primeiras comunidades continua válido para as comunidades cristãs de todos os tempos: caminhar como Jesus caminhou (cf. 1Jo 2,6b).

A primeira carta de João tem como eixo central a confissão de que Jesus é o Filho de Deus: “Quem confessa que Jesus é o Filho de Deus, Deus permanece nele e ele em Deus” (4,15). Trata-se de carta para ser lida, rezada, meditada, contemplada, pois o amor é um processo permanente em nossa vida e sempre novo. Amor e conhecimento de Deus são inseparáveis. É amando que Deus permanece conosco! Amemo-nos: eis a condição para superar a realidade de morte.

Maria Antônia Marques

Maria Antônia Marques é assessora do Centro Bíblico Verbo e professora no Instituto São Paulo de Estudos Superiores – Itesp. Juntamente com o Centro Bíblico Verbo, tem publicado pela Paulus, todos os anos, um subsídio para reflexão e círculos bíblicos para o mês da Bíblia. O do ano de 2019 é Jesus Cristo veio na carne é de Deus (1Jo 4,2): entendendo a primeira carta de João. E-mail: ma.antoniacbv@yahoo.com.br


1ª CARTA DE JOÃO CAP. 3

“Todo aquele que odeia seu irmão é homicida” (1Jo 3,15) Uma leitura da primeira carta de João 3,11-24

Por Centro Bíblico Verbo

A destruição provocada pelo rompimento da Barragem Mina de Feijão, em Brumadinho, no dia 25/1/2019, foi imensa.

Cerca de 270 hectares foram devastados, entre mortos e desaparecidos houve 332 vítimas. No Brasil, 3,5 milhões de pessoas vivem em cidades com barragens em situação de risco.

Introdução

Diante da realidade mencionada na introdução deste artigo, como nos sentimos e nos posicionamos? Somos cristãos que confessamos: Jesus Cristo, Palavra de Deus feita carne humana, é o caminho e a manifestação do amor de Deus (cf. 1Jo 4,2). Ele assumiu o projeto da justiça e do amor até a entrega da própria vida. As pessoas cristãs são chamadas a vivenciar o amor de Deus e dar continuidade à missão do Jesus da história, rejeitando todas as realidades de injustiça que desfiguram a vida humana.

Tanto no século I como hoje, as realidades de injustiça continuam eliminando pessoas. No contexto de morte vivido na grande cidade de Éfeso, no fim do século I, o autor da primeira carta de João escreve: “Todo aquele que odeia seu irmão é homicida” (1Jo 3,15). É um grito em defesa da vida humana. O amor ao próximo é o primeiro e o último passo para respeitar e recuperar a vida de todos os seres humanos. Cada pessoa é digna somente pelo fato de existir, pois é uma forma única e irrepetível, é expressão do infinito amor de Deus: “Quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor” (1Jo 4,8). Lemos as mensagens da primeira carta de João e refletimos sobre elas para alimentar e fortalecer nossa humanidade na fé no Sagrado encarnado em nosso meio.

1. O patronato, a associação e a comunidade crista

A população de Éfeso era constituída por dois terços de escravos/as, que trabalhavam, por exemplo, como estivadores do porto que movimentava a economia da cidade. Eram trabalhadores braçais sem direito à cidadania que sofriam muito com a exploração, a violência e a humilhação. Sofrimento, desespero, revolta dos pobres pairavam na sociedade!

Um dos meios de o Império Romano controlar os habitantes de uma cidade cosmopolita como Éfeso era a rede (sistema) de patronato ou clientelismo, que se caracterizava pela “troca” de favores entre as pessoas e criava verdadeira teia de influência e poder. O patrono rico, ao favorecer o cliente pobre, gerava dependência e submissão, porque a pessoa pobre se sentia grata e devedora de favores ao poderoso.

Na sociedade patronal, a figura máxima era o imperador, denominado pater patriae. Ou seja, ele era considerado o pai e o patrono do império, distribuidor dos bens, defensor da pax romana, sendo até chamado de “Senhor”, kyrios, em grego. A imagem divinizada do senhor imperador era alimentada nas cidades conquistadas por meio de jogos, procissões, imagens, cultos, sacrifícios e dedicação de templos em sua homenagem.

Os funcionários romanos, os notáveis do local e os homens ricos e poderosos disputavam entre si a melhor forma de homenagear o imperador e sua família, em troca de “patrocínios” – benfeitorias. Os favores mais comuns eram a distribuição de cargos e honras, a assistência financeira, o direito de obter cidadania romana e até o de usar o sistema de suprimento de água.

O patronato era um fenômeno tão abrangente no mundo greco-romano que essa rede estava estabelecida na sociedade como um todo. A criação de associações, geralmente marcadas pelo patronato, por exemplo, era muito comum nos centros urbanos do Mediterrâneo, com um constante vaivém de pessoas de várias regiões. As inscrições descobertas nas grandes cidades atestam a existência de várias associações, como a dos comerciantes, a dos tintureiros de púrpura, a dos fabricantes de jugo etc.

Em geral, os homens mais destacados fundavam as associações, formadas por pessoas que se ocupavam do mesmo ofício para promover contatos sociais e proteger seus interesses particulares, incluindo distribuição de comida, organização de sepultura, atendimento a viúvas e crianças órfãs etc. Nas reuniões, os homens poderosos e ricos, que patrocinavam as associações, eram homenageados pelos membros menos favorecidos. Os pobres preferiam ter os homens influentes como patronos para serem protegidos e beneficiados por eles. Contudo, na política e na economia, ficavam amarrados aos interesses desses patronos ricos, que se tornavam cada vez mais ricos e poderosos.

A estrutura de base de muitas associações era uma hierarquia patronal. Por exemplo, os membros dessas associações se reuniam pelo menos uma vez por mês, geralmente em ocasiões de festas, sobretudo em honra da divindade protetora. O culto às suas divindades era uma forma de alimentar o senso de proteção e de unidade do grupo. A reunião costumava ser na forma de uma refeição comunitária: o banquete patronal (deipnon). Normalmente, esse banquete se realizava nas casas dos patronos poderosos e obedecia a certas normas. Os convidados, por exemplo, sentavam-se de acordo com sua posição social: de um lado, os ricos, os poderosos e os influentes; de outro, os libertos, os pobres e os escravos (cf. Lc 14,7-11).

Os ricos eram recebidos no refeitório – triclínio – com tapetes e assentos confortáveis, onde se acomodavam, em média, de oito a dez pessoas. Eram os primeiros a ser servidos, recebendo os melhores alimentos. Os pobres eram acomodados no átrio, uma espécie de pátio, parcialmente coberto e menos confortável que o triclínio. A maioria das pessoas ficava em pé, encostada em alguma parede ou pilastra, e recebia comida e bebida inferiores. A estratificação social estava bem presente!

Tudo isso fazia parte da estratégia de dominação. O sistema patronal estava presente em todas as dimensões da sociedade como também nas associações, e era quase impossível viver à sua margem. A hierarquia da sociedade de patronato e clientelismo dividia os pobres, atrelava-os aos interesses de seus patronos e dificultava o surgimento de um movimento de resistência e de protesto contra os poderosos patrocinadores. Abafava e engolia a exploração, a violência e a humilhação, o sofrimento, o desespero e a revolta dos pobres no mundo greco-romano opressor.

Todavia, uma das associações, denominada “cristã”, estava na contramão do patronato. Ela tentava promover a solidariedade com os pobres e não se deixar corromper pelas estruturas injustas de patronato e clientelismo. Procurava não fazer distinção entre as pessoas, diferentemente do mundo greco-romano, que praticava a injustiça, privilegiando os ricos e os detentores do poder. Daí o princípio fundamental que orientava a ação cristã: o amor ao próximo, manifestado na vida concreta de Jesus, o Messias encarnado. Tal ação era exercida sem esperar nada em troca, sem deixar quem recebia os benefícios desse amor em situação de dependência e submissão.

No seguimento de Jesus, a comunidade cristã identificava o próximo com os pobres, os oprimidos e os marginalizados do mundo do império, baseado na riqueza e no poder: “Pois tive fome e vocês me deram de comer, tive sede e me deram de beber, era estrangeiro e me acolheram, estava nu e me vestiram, estava doente e me visitaram, estava na cadeia e vieram me ver” (Mt 25,35-36). Segundo os evangelhos, a opção de Deus pelos pobres foi assumida pela comunidade cristã – associação que professava a fé em Jesus Cristo, o Filho de Deus encarnado.

Alguns relatos das cartas e dos documentos das comunidades sobre a ação cristã reforçam o atendimento às necessidades dos pobres: a) a partilha de alimento com os pobres nas ceias (cf. 1Cor 11,17-34); b) o acolhimento dos forasteiros sem direito algum (cf. 1Pd 1,1-2); c) o atendimento a viúvas e órfãos: “A religião pura e sem mancha diante de Deus, nosso Pai, consiste em socorrer os órfãos e viúvas em seu sofrimento e não se deixar corromper pelo mundo” (Tg 1,27). O grupo social desvalido recebia especial atenção da caridade praticada pela comunidade cristã, na contramão do mundo escravagista, que valorizava “o ouro e a prata” (At 3,1-10).

As mesmas cartas, entretanto, trazem informações sobre a ação de alguns membros da comunidade cristã que discriminavam, oprimiam e envergonhavam os pobres, como agem em geral os ricos e poderosos do mundo:

a) Discriminação e ostentação na ceia: “Então, quando vocês se reúnem, o que fazem não é comer a ceia do Senhor. Porque cada um se apressa em comer sua própria ceia. E assim, enquanto um passa fome, o outro fica embriagado. Vocês não têm suas casas onde comer e beber? Ou desprezam a igreja de Deus e querem envergonhar aqueles que nada têm?” (1Cor 11,20-22a).

b) Desprezar e humilhar os pobres: “Vocês desprezam o pobre. Não são os ricos que oprimem vocês e os arrastam aos tribunais? Não são eles que blasfemam contra o Nome sublime que foi invocado sobre vocês?” (Tg 2,6-7).

c) As imundícies do mundo: “Com discursos pomposos e vazios, e com a isca sensual da libertinagem, seduzem aqueles que acabaram de se afastar dos que vivem no erro. Prometem a eles liberdade, mas são escravos da corrupção, pois cada um se torna escravo daquele a quem se rende. Portanto, se pelo conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo alguém se afastou das imundícies do mundo, e novamente se deixa seduzir e se rende a elas, seu último estado torna-se pior que o primeiro” (2Pd 2,18-20).

O último relato revela o problema e o conflito vivido pela comunidade cristã no início do século II, na Ásia Menor: alguns membros, sobretudo os homens mais destacados e poderosos da comunidade, deixam de seguir o evangelho de Jesus Cristo, o Messias encarnado. Separando a fé da vida prática, eles cultivam e propagam as “imundícies do mundo”, alegando ainda que estão em comunhão com o Deus verdadeiro pelo conhecimento (gnosis) racional e espiritual dele.

O mesmo problema acontece com a comunidade da primeira carta de João, do fim do século I ou início do século II, na Ásia Menor: “Como pode o amor de Deus permanecer em quem possui os bens deste mundo, se esse tal vê seu irmão passando necessidade e lhe fecha o coração?” (1Jo 3,17). Com a práxis do patronato e da associação do mundo greco-romano, os homens destacados e poderosos da comunidade, que providenciam o recinto das reuniões e a alimentação para os pobres, deixam-se seduzir pelo mundo e agem segundo a estratificação da sociedade escravagista, desprezando e humilhando os pobres.

O autor da primeira carta de João condena a prática dos poderosos, chamados de anticristos em 1Jo 2,18, retoma e propõe o princípio fundamental que orienta a ação cristã: o amor ao próximo (cf. 1Jo 3,11-24).

2. O amor ao próximo

O autor inicia 1Jo 3,11-24 – a nova seção da carta, paralela a 1Jo 2,3-11 (que traz como tema o mandamento do amor fraterno) – com o princípio fundamental da ação cristã: “Porque esta é a mensagem que vocês ouviram desde o princípio: que nos amemos uns aos outros” (1Jo 3,11). O mandamento do amor ao próximo, vivido e transmitido por Cristo Jesus, o Messias encarnado, opõe-se à prática de patronato e de clientelismo. Esta prática usa os pobres e busca mantê-los na pobreza e na dependência, beneficiando de fato os poderosos, que agem geralmente impulsionados pela busca desenfreada de bens, poder, prazer e honra do mundo do Maligno (cf. 1Jo 2,12-17).

Para sublinhar a oposição entre o amor e o ódio, a história de Caim e Abel (cf. Gn 4,1-8) é lembrada: “Não façam como Caim, que pertencia ao Maligno e assassinou seu irmão. E por que o assassinou? Porque suas obras eram más, e as do seu irmão eram justas” (1Jo 3,12). O amor fraterno e o ódio homicida! Quanto mais o amor fraterno do Messias encarnado for acolhido e vivido, mais será combatido o mundo do Maligno. Isso poderá fazer surgir o ódio e a inimizade, uma vez que a vida segundo os desejos e a ganância do Maligno é irreconciliável com a prática cristã. Daí acontece a perseguição: “E não fiquem espantados, irmãos, se o mundo odeia vocês” (1Jo 3,13).

A perseguição contra os cristãos é frequentemente relatada pela comunidade joanina: “Se o mundo odeia vocês, saibam que primeiro odiou a mim. Se vocês fossem do mundo, o mundo amaria o que é dele. Mas porque vocês não são do mundo, pois o fato de eu os ter escolhido é que separou vocês do mundo, por isso é que o mundo os odeia” (Jo 15,18-19). Há uma oposição entre Jesus Cristo e o mundo, entre o amor fraterno e o ódio ganancioso. A sociedade escravagista do mundo greco-romano e seus promotores não podem aceitar o testemunho da comunidade seguidora de Jesus, o “servo de Deus” (cf. Is 42,1-9).

A oposição entre Jesus Cristo (amar) e o mundo (odiar) antes aparecia acompanhada da oposição “estar na luz” e “estar nas trevas”: “Deus é luz, e nele não há trevas” (1Jo 1,5); “Quem diz que está na luz, mas odeia seu irmão, está na escuridão até agora. Quem ama seu irmão permanece na luz, e nesse não há ocasião de tropeço” (1Jo 2,9-10). O autor especifica que o tempo presente, o agora, vem acompanhado da oposição entre “vida” e “morte”: “Nós sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos aos irmãos. Quem não ama permanece na morte” (1Jo 3,14). O amor gera “vida”, e o ódio, a vida sem solidariedade, com ganância e egoísmo, produz “morte”!

Ao descrever a antítese entre a vida e a morte, o autor insinua a gravidade dos desentendimentos e conflitos na comunidade. E o conflito provocado pelos anticristos na comunidade se acirra a ponto de eles serem acusados de ato homicida: “Todo aquele que odeia seu irmão é homicida, e vocês sabem que nenhum homicida tem a vida eterna dentro de si” (1Jo 3,15). O termo “homicida”, utilizado apenas três vezes no Novo Testamento, aparece duas vezes na primeira carta de João (cf. 1Jo 3,15) e uma vez no evangelho: “O pai de vocês é o diabo, e vocês querem realizar os desejos do pai de vocês. Ele era assassino (homicida) desde o princípio e não esteve do lado da verdade, porque nele não existe verdade” (Jo 8,44a).

Em Jo 8,31-59, os opositores de Jesus, que julgam ter a verdade, querem matá-lo por sua prática libertadora, que rompe com a ordem injusta dos poderosos. Após ter acusado os anticristos de rejeitar Jesus e de viver o projeto do mundo (cf. 1Jo 2,12-28), o autor da primeira carta de João afirma que quem odeia o irmão é “homicida”, porque o ódio está no princípio do pensamento e da ação do mundo do Maligno, que provo-

ca preconceito, discriminação, exploração, opressão e morte.

Ao contrário, o amor ao próximo está no princípio do sentimento, do pensamento e da ação do Deus da vida e de seu Filho, Jesus Cristo, que produz a liberdade, a vida nova e a vida eterna dos irmãos: “É nisto que conhecemos o que é o amor: porque Jesus entregou sua vida por nós; portanto, também nós devemos entregar a vida pelos irmãos” (1Jo 3,16). Jesus, capaz de dar testemunho do amor ao próximo até o fim, encoraja a pessoa e a liberta do medo da morte, provocada pelo poder dos opressores.

Em outras palavras, trata-se de acreditar na força do amor de Deus diante do poder do mundo do Maligno: “A palavra de Deus permanece em vocês, e vocês estão vencendo o Maligno. Não amem o mundo nem o que há no mundo. Se alguém ama o mundo, o amor de Deus não está nele” (1Jo 2,14b-15); “Neste mundo vocês terão aflições, mas tenham coragem: eu venci o mundo” (Jo 16,33b). A vida cristã sustenta-se na fé absoluta em Deus e na prática do seu amor!

Depois de apresentar a morte de Jesus como o amor ao próximo até o fim, o autor da primeira carta de João faz uma pergunta sobre a prática do amor e da solidariedade no cotidiano da comunidade: “Como pode o amor de Deus permanecer em quem possui os bens deste mundo, se esse tal vê seu irmão passando necessidade e lhe fecha o coração?” (1Jo 3,17). O amor fraterno tem de se mostrar concreto mediante o testemunho cotidiano: “Filhinhos, não amemos com palavras nem com a língua, mas com obras e na verdade” (1Jo 3,18).

Em seguida, o autor faz longa exortação à comunidade relativa à atitude de nosso “coração” diante de Deus:

Nisso sabemos que somos da verdade e podemos tranquilizar nosso coração diante de Deus. Porque, se nosso coração nos condenar, Deus é maior que nosso coração e conhece todas as coisas. Amados, se nosso coração não nos condena, temos confiança diante de Deus, e recebemos tudo o que lhe pedimos, porque guardamos seus mandamentos e fazemos o que lhe agrada (1Jo 3,19-22).

Na Bíblia, o termo “coração” refere-se ao centro de tomada de decisões – a consciência: “Quando guardei silêncio, meus ossos se consumiram, gemendo o dia todo, pois dia e noite pesava sobre mim a tua mão; minha seiva (coração) se transformou em mormaço de verão” (Sl 32,3-4); “Em Cristo, eu digo a verdade, não minto, e disso minha consciência me dá testemunho no Espírito Santo: é grande a minha tristeza e contínua a dor em meu coração” (Rm 9,1-2). Tomar a decisão (o agir do coração) implica a existência humana – a ação cristã, como já mencionado: “Filhinhos, não amemos com palavras nem com a língua, mas com obras e na verdade” (1Jo 3,18).

No confronto do coração diante de Deus, a comunidade cristã tem de assumir e praticar o mandamento principal de Jesus, escreve o autor: “E o seu mandamento é este: que acreditemos no nome do seu Filho, Jesus Cristo, e nos amemos uns aos outros, conforme o mandamento que ele nos deu” (1Jo 3,23; cf. Jo 15,12-13). Diante da antítese entre Deus e o Maligno, luz e trevas, Jesus e mundo, amar e odiar, vida e morte, o cristão e a comunidade cristã têm de tomar a decisão para produzir a vida nova e eterna, seja prestando assistência mais imediata a quem dela precisa, seja exprimindo sua solidariedade e seu amor também por meio de opções políticas.

Tomar decisão em favor da vida significa, sobretudo, permanecer em Deus: “Quem guarda os mandamentos dele permanece em Deus, e Deus nele. Nisso percebemos que Deus permanece em nós: pelo Espírito que ele nos deu” (1Jo 3,24). O termo “permanecer” também faz parte do vocabulário típico da literatura joanina e já apareceu diversas vezes no Evangelho de João: “Permaneçam em mim, e eu permanecerei em vocês” (Jo 15,4a); “Da forma que meu Pai me amou, eu também amei a vocês: permaneçam no meu amor” (Jo 15,9).

Em Jo 15, o termo “permanecer” aparece 11 vezes, o que deixa transparecer a gravidade da crise da comunidade, causada pela perseguição dos poderosos do mundo e traduzida na grande desistência dos seus membros. Uma década mais tarde, a comunidade da primeira carta de João sofre com a crise provocada pelos anticristos: desintegração, conflito, desprezo, humilhação e opressão contra os pobres. É preciso caminhar com Jesus Cristo encarnado, observando o mandamento do amor e criando uma rede de solidariedade concreta na sociedade marcada pelo Maligno. É o dever cristão!

Na caminhada cristã, o autor reafirma a presença do Espírito: “Deus permanece em nós: pelo Espírito que ele nos deu” (1Jo 3,24b). O dom do Espírito mantém sempre viva a memória de Jesus, ensina e renova seu ensinamento de ontem e de hoje. Queira Deus que os cristãos, ungidos pelo Espírito, saibam discernir e encarnar Jesus Cristo em suas práticas concretas em favor dos irmãos.

3. O retrato da comunidade da primeira carta de João

A primeira carta de João termina com um resumo conclusivo:

Nós sabemos que somos de Deus, mas o mundo inteiro está sob o poder do Maligno. Sabemos que o Filho de Deus veio e nos tem dado entendimento para conhecermos o Deus verdadeiro. E nós estamos no Verdadeiro, no Filho dele, Jesus Cristo. Este é o Deus verdadeiro e a vida eterna. Filhinhos, fiquem longe dos ídolos! (1Jo 5,19-21).

Jesus Cristo é o Deus verdadeiro! Eis a declaração de uma comunidade cristã que passa por grave crise interna e externa. Em seu interior, ela enfrenta o grupo de dissidentes – anticristos e falsos profetas (cf. 1Jo 4,1-3) – que nega o Jesus da história como o Filho de Deus (cf. 1Jo 2,22; 4,15), não pratica os mandamentos – o amor ao próximo (cf. 1Jo 2,3-11) – e seduz os fiéis para o mundo do Maligno (cf. 1Jo 4,5). Exteriormente, a comunidade sofre com a perseguição do mundo do Império Romano e, ao mesmo tempo, sente a forte sedução do mundo dos maus desejos e do dinheiro, simbolizados pelos “ídolos” (cf. 1Jo 2,15-16). Há desentendimentos e conflitos na comunidade.

O autor da primeira carta de João quer fortalecer a fé e o ensinamento tradicional dos cristãos (cf. 1Jo 1,3-4; 2,7), para não serem seduzidos pelos anticristos e falsos profetas. Para tanto, insiste no ensinamento e no projeto da comunidade, expressos pelos seguintes termos, que retratam a realidade comunitária, no resumo conclusivo da carta: o Verdadeiro, Jesus Cristo, os ídolos, os filhos de Deus e a vida eterna.

a) O Verdadeiro. Deus é o único verdadeiro, conhecido pelo que ele é: vida e amor. Desde o princípio, Deus é fonte da vida (cf. 1Jo 1,1). Ele, que é amor (cf. 1Jo 4,8), cria todo o universo para que todas as coisas tenham vida real, sólida e durável (cf. Gn 1,1-2,4a; Sb 1,13-14). Por isso, só no amor todos os seres vivos permanecem em comunhão com Ele: “Deus é amor: quem permanece no amor permanece em Deus, e Deus permanece nele” (1Jo 4,16). O amor de Deus e o amor ao próximo, assim, estão interligados: o amor de Deus se concretiza no amor ao próximo, para que todas as pessoas tenham a vida em plenitude (cf. Jo 10,10).

b) Jesus Cristo. “Nisto se tornou visível o amor de Deus entre nós: Deus enviou seu Filho único ao mundo, para podermos viver por meio dele. É nisto que está o amor: não é que nós tenhamos amado a Deus, mas foi ele que nos amou e enviou seu Filho para expiação de nossos pecados” (1Jo 4,9-10). O amor de Deus se revela e se concretiza na vida de Jesus feito carne (cf. 1Jo 4,2), no qual a manifestação do Deus amor se torna histórica, palpável e testemunhada (cf. 1Jo 1,1-4). Em sua vida, Jesus é verdadeiro ser humano que sofre e morre na cruz, por amor ao próximo, até o fim. A salvação de Deus, assim, realiza-se na carne e no sangue do Jesus da história, o Filho de Deus, o amor encarnado: “Se vocês não comem a carne do Filho do homem e não bebem o seu sangue, não têm a vida em vocês” (Jo 6,53).

c) Os filhos de Deus. “É assim que se manifesta quem são os filhos de Deus e quem são os filhos do diabo: todo aquele que não pratica a justiça, quem não ama seu irmão, não é de Deus” (1Jo 3,10). Os cristãos são chamados de “filhos de Deus”, pois praticam a obra do Deus do amor e da justiça, seguindo os passos de Jesus Cristo, que nos revela Deus como amor e testemunha que o amor é o caminho, a verdade e a vida. A obra do amor e da justiça dos cristãos se manifesta sobretudo na vida comunitária. Na primeira carta de João, não são mencionados termos como hierarquia, organização, autoridade, relação de senhor e de súdito, porém observam-se alusões à comunhão com Deus e à unidade da comunidade: “Deus é luz, e nele não há trevas. Se dizemos que estamos em comunhão com Deus, e no entanto andamos nas trevas, somos mentirosos e não praticamos a verdade. Mas, se caminhamos na luz, como Deus está na luz, então estamos em comunhão uns com os outros” (1Jo 1,5-7a).

d) Os ídolos. “Filhinhos, fiquem longe dos ídolos!” (1Jo 5,21). Para o livro do Apocalipse, escrito na mesma época e região de 1Jo, o termo “ídolo” (eídolon, em grego) é, antes de tudo, o mundo do Império Romano, com seus deuses e seduções: “Não deixaram de adorar os demônios, os ídolos de ouro, de prata, de bronze, de pedra e de madeira, não podem ver, nem ouvir, nem andar. E não se arrependeram de seus homicídios, feitiçarias, prostituições e roubos” (Ap 9,20b-21). Na primeira carta de João, há alertas para resistir ao mundo: “Não amem o mundo nem o que há no mundo. Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele” (1Jo 2,15); “E não fiquem espantados, irmãos, se o mundo odeia vocês” (1Jo 3,13); “Porque todo aquele que nasceu de Deus vence o mundo. E esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé” (1Jo 5,4). A fé ativa no Deus que é amor e age por amor, no Deus da vida e no amor de Jesus Cristo leva os cristãos a viver na comunhão com o próximo, assegurando a construção do Reino da vida, oposto ao mundo do Império Romano, o mundo do Maligno (cf. 1Jo 2,14).

e) A vida eterna. “E o testemunho é este: Deus nos deu a vida eterna, e esta vida está em seu Filho. Quem tem o Filho tem a vida; quem não tem o Filho de Deus não tem a vida. Escrevo essas coisas para vocês saberem que têm a vida eterna, vocês que acreditam no nome do Filho de Deus” (1Jo 5,11-13). A expressão “a vida eterna” aparece cinco vezes nesta carta (15 vezes no Evangelho de João) e significa a vida de Jesus Cristo, sobretudo a vida eterna do Ressuscitado, que continua presente no meio dos cristãos. O termo “eterno” significa a continuidade da ação de Jesus Cristo ressuscitado, que move e anima os cristãos a viver na fraternidade e na plenitude: “Eu sou a ressurreição. Quem acredita em mim, ainda que morra, viverá. E todo aquele que vive e acredita em mim não morrerá para sempre. Você acredita nisso?” (Jo 11,25-26). Ou seja: “E já não sou eu que vivo; é Cristo que vive em mim. E a vida que vivo agora na carne, eu a vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim” (Gl 2,20), diz Paulo.

O Verdadeiro, Jesus Cristo, os ídolos, os filhos de Deus e a vida eterna são termos que traçam o retrato da comunidade que acredita em Jesus feito carne como o Filho do Verdadeiro. Comunidade que pratica o mandamento do amor ao próximo não somente no dia a dia, mas também para além do assistencialismo, nas opções políticas mais amplas, na luta por um mundo sem injustiça e violência. Sem ter medo de perder a vida na perseguição do Império Romano, a comunidade da primeira carta de João pratica o evangelho do Jesus da história, amando o próximo e partilhando os bens deste mundo, e assim se torna, historicamente, uma luz da vida eterna do Sagrado no meio dos pobres sofredores.

Uma palavra final

A história se repete. O mundo do Império Romano dos tempos atuais continua a provocar muitos males, cometendo diversos atentados contra a vida humana, a natureza e a Terra:

a pobreza cresce e atinge 55 milhões de pessoas no Brasil;

conforme estimativas da ONU e da Secretaria de Direitos Humanos (SDH), uma mulher a cada 15 segundos, um idoso a cada 10 minutos e 18 mil crianças por dia são vítimas de algum tipo de violência no país;

até o mês de fevereiro, foram registrados 126 casos de feminicídio neste ano, que resultaram em 70 mortes, e esse número aumenta a cada dia. O Brasil responde pela quinta maior taxa de feminicídio no mundo;

a morte absurda de dez meninos num centro de treinamento de futebol;

tragédia em Brumadinho: número de mortos e desaparecidos em torno de 330 pessoas.

Após três anos do rompimento da barragem de Mariana, a história se repete em Brumadinho. A causa é a mesma: descaso com a segurança em benefício do lucro. Num desrespeito total com a vida humana, triunfa a lógica do lucro! O mundo, marcado pela busca ilimitada de bens, poder, prazer e honra, explora as pessoas, mata por qualquer motivo e não respeita o direito humano de viver em paz e fraternidade.

É preciso fomentar o amor, o respeito e o perdão na esfera social com a fé no Deus amor. É urgente recuperar a humanidade de todos os seres humanos para defender a vida, praticando a solidariedade e o amor, sobretudo com aquelas pessoas injustiçadas, exploradas e excluídas dos direitos de uma existência com dignidade: “Todo aquele que não pratica a justiça, quem não ama seu irmão, não é de Deus” (1Jo 3,10).

Centro Bíblico Verbo

1ª CARTA DE JOÃO CAP. 4

Falso profeta nega o Jesus da história, o Messias encarnado Uma leitura da primeira carta de João 4,1-6

Por Shigeyuki Nakanose

São Oscar Romero (1917-1980) foi um bispo comprometido com a caminhada do povo de El Salvador. Viveu seu ministério num período de grande repressão e mortes nesse país. Em suas homilias dominicais, manifestava sua solidariedade com as vítimas da violência política e socioeconômica. Foi assassinado durante a celebração eucarística, no dia 24 de março de 1980, por um atirador de elite do exército salvadorenho. Na véspera de sua morte, fez a seguinte exortação: “Em nome de Deus e desse povo sofredor, cujos lamentos sobem ao céu todos os dias, eu lhes peço, eu lhes suplico, eu lhes ordeno: cessem a repressão”.

Introdução

São Oscar Romero, com sua prática de vida, testemunhou a encarnação em 14 de outubro de 2018. Tal testemunho mostra seu seguimento cristão radical: embora fosse perseguido, caluniado, difamado, permaneceu fiel até o fim. Ele recebeu críticas, calúnias e violência até mesmo de pessoas cristãs no seio das comunidades. Eram cristãos que não seguiam o Jesus da história, o Messias encarnado, e seu mandamento do amor ao próximo.

Deus se encarna em Jesus de Nazaré, e a partir de Jesus Messias encarnado somos chamadas/os a viver o amor ao próximo, condição para Deus continuar se encarnando em nosso meio. No entanto, ontem como hoje, houve desentendimentos e conflitos nas primeiras comunidades cristãs por causa do grupo chamado de “falsos profetas” ou “anticristos”, que negou Jesus feito carne e sua existência humana. Esse grupo espiritualizava o seguimento de Jesus e sua relação com Deus, o que ocasionava o desprezo ao mandamento do amor ao próximo e a indiferença diante das injustiças e violências do mundo em que viviam.

1. Os falsos profetas

A segunda carta de Pedro (2Pd), uma das cartas católicas escritas no início do século II na Ásia Menor, descreve a presença de falsos profetas na comunidade:

Houve também falsos profetas no meio do povo. Assim também entre vocês vão aparecer falsos mestres, introduzindo seitas maléficas. Renegando o Senhor que os resgatou, trarão rápida destruição para si mesmos. Muitos vão seguir suas doutrinas dissolutas, e por causa deles o caminho da verdade será difamado. Por cobiça de dinheiro, com discursos enganadores, vão procurar que vocês se tornem objeto de negócios. Mas o julgamento deles já começou faz tempo, e a sua destruição não demorará (2Pd 2,1-3).

Renegar o Senhor, difamar o caminho da verdade, cobiçar dinheiro… Os falsos profetas não seguem o ensinamento de Jesus Cristo e até renegam sua autoridade como Salvador, criando divisões e conflitos nas comunidades. Eis aqui seus principais ensinamentos e práticas, conforme a segunda carta de Pedro:

a) Renegar o Senhor: “Portanto, se pelo conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo alguém se afastou das imundícies do mundo, e novamente se deixa seduzir e se rende a elas, seu último estado torna-se pior que o primeiro” (2Pd 2,20); “Especialmente os que se entregam ao próprio instinto e seus imundos apetites e desprezam a autoridade do Senhor” (2Pd 2,10a). Os falsos mestres, tendo experimentado o poder salvífico de Jesus Cristo, agora voltam às imundícies do mundo e rejeitam o ensinamento e os atos de Jesus feito carne, transmitidos pelos apóstolos (cf. 2Pd 3,2). Renegam o Salvador Jesus Cristo, sua vida terrestre, morte, ressurreição e a promessa da sua volta gloriosa (parusia).

b) Não haverá a vinda do Senhor: “Antes de tudo, vocês precisam saber que no fim dos tempos vão aparecer cínicos e zombadores, entregues a seus próprios desejos. Eles dirão: ‘O que aconteceu com a vinda dele que estava prometida? Desde que morreram nossos pais, tudo continua o mesmo desde o início do mundo’” (2Pd 3,3-4). Diante da demora da vinda do Senhor, os falsos mestres ridicularizam e rejeitam o anúncio profético do “poder e da vinda de nosso Senhor Jesus Cristo” (2Pd 1,16). Para eles, não haverá segunda vinda nem julgamento final do Senhor.

c) Libertinagem, corrupção e imundícies: “Sua ideia de prazer é a orgia em pleno dia. Sujos e nojentos, deliciam-se nos próprios enganos quando fazem banquete com vocês. Têm os olhos cheios de adultérios e nunca se cansam de pecar. Seduzem quem está inseguro, e a mente deles está treinada para a ambição” (2Pd 2,13-14). Como, a seu ver, não haverá parusia nem julgamento, é permitido realizar todos os desejos.

Os grupos chamados de “falsos profetas” e de “anticristos” provavelmente eram do cristianismo gnóstico, que se desenvolveu mais fortemente no século II. Para alguns deles, a salvação estava no conhecimento, ou gnosis, em grego. Bastava ter um esclarecimento espiritual para estar em comunhão com Deus. O gnosticismo cristão substituía a prática concreta do amor – a essência do seguimento de Jesus – por rituais e conhecimentos espirituais desligados da vida prática. Por terem tais conhecimentos e participarem dos rituais do grupo, achavam que estavam em união com Deus e assim não havia pecado nem o julgamento de Deus para eles. Por isso não buscavam viver de modo coerente com o evangelho na vida diária, entregando-se à libertinagem e despreocupando-se com a justiça e com a defesa da dignidade humana.

Na segunda carta de Pedro, o autor reage energicamente ao movimento gnóstico cristão, declarando que o conhecimento não é simplesmente a percepção intelectual e participação em rituais esotéricos:antes, é uma experiência concreta de Jesus, Deus encarnado, que resulta no seguimento do evangelho e na transformação moral: “Com seu poder divino, Deus nos deu tudo o que leva à vida e à piedade, por meio do conhecimento de Jesus, o qual nos chamou por sua própria glória e mérito” (2Pd 1,3).

A presença de falsos profetas ou mestres gnósticos não é um problema totalmente novo na vida das comunidades cristãs. A carta de Judas, outra carta católica, escrita um pouco antes da segunda carta de Pedro, já apresenta o conflito e a divisão por causa do pensamento e da prática dos falsos profetas:

a) Falsos mestres: “Nos últimos tempos aparecerão homens cínicos, que seguirão suas paixões ímpias. São eles que provocam divisões, são psíquicos e não possuem o Espírito” (Jd 18-19).

b) Renegar o Senhor Jesus Cristo: “Porque se infiltraram entre vocês alguns indivíduos há tempo marcados para esta sentença: homens sem piedade, que transformam a graça de nosso Deus em pretexto para a indecência e renegam o único mestre e Senhor Jesus Cristo” (Jd 4).

c) Conhecimento irracional: “Esses indivíduos, ao contrário, blasfemam tudo o que não conhecem, e as coisas que conhecem fisicamente, como animais irracionais, os levam à perdição” (Jd 10).

d) Libertinagem: “São uns murmuradores, revoltados contra o destino, que se deixam levar pelas próprias paixões. Sua boca profere palavras arrogantes e, se louvam as pessoas, é por interesse” (Jd 16).

e) Contaminar a refeição fraterna: “São eles que contaminam as refeições fraternas de vocês, regalando-se com irreverência e apascentando a si mesmos” (Jd 12a).

No fim do século I ou início do século II, a segunda carta de Pedro e a carta de Judas mostram urgência em seus propósitos: advertir as comunidades cristãs contra os falsos profetas ou mestres, que podem ser os precursores do movimento gnóstico. Tais cartas repreendem e rejeitam os pensamentos e as práticas deles, que atuam nas comunidades buscando destruir a fé alimentada pela prática do evangelho de Jesus Cristo, transmitido pelos apóstolos (cf. Jd 3).

Como as duas cartas católicas de Jd e 2Pd, a primeira carta de João, uma carta católica do fim do século I ou começo do século II, enfrenta o problema e assume o objetivo de advertir as comunidades contra os falsos profetas ou anticristos, que brotam do seio das comunidades:

a) Surgiram do seio da comunidade: “Eles saíram do meio de nós, mas não eram dos nossos. Se tivessem sido dos nossos, teriam permanecido conosco. Mas eles nos deixaram, para que ficasse claro que nem todos eram dos nossos” (1Jo 2,19).

b) Mundo e libertinagem: “Não amem o mundo nem o que há no mundo. Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele. Pois tudo o que há no mundo – os maus desejos vindos da carne e dos olhos, a arrogância provocada pelo dinheiro – são coisas que não vêm do Pai, mas do mundo” (1Jo 2,15-16).

c) Renegar Jesus como o Messias: “Quem é o mentiroso, senão quem nega que Jesus é o Messias? Esse tal é o Anticristo, aquele que nega o Pai e o Filho. Todo aquele que nega o Filho também não tem o Pai. Quem reconhece o Filho também tem o Pai” (1Jo 2,22-23).

d) Conhecer a Deus: “É assim que sabemos se conhecemos a Deus: se guardamos seus mandamentos. Quem diz que conhece a Deus, mas não trata de guardar os mandamentos dele, é mentiroso; nesse não está a verdade” (1Jo 2,3-4).

Alguns membros se afastam da comunidade porque pretendem viver a vida que vem do mundo do Maligno (cf. 1Jo 2,14-15): são dominados pelos desejos de riqueza e de prazer, por isso rejeitam Jesus como Cristo Messias e não praticam os mandamentos do amor ao próximo. No entanto, dizem ter o conhecimento (gnosis) de Deus e, por isso, creem estar em comunhão com ele e isentos de pecado e julgamento. Com seus pensamentos e prática, eles provocam conflito e divisão na comunidade. A terceira carta de João, por exemplo, lembra a presença do grupo, que não assume a prática da hospedagem, deixando de acolher os irmãos na comunidade.

Diante do conflito desordenado com os inimigos ou rivais, o autor da primeira carta de João reage energicamente, condenando-os e identificando-os como “anticristos” que têm aparecido na comunidade (cf. 1Jo 2,18). Alerta a comunidade para que fique atenta e saiba discernir quem são os anticristos ou os falsos profetas. Em 1Jo 4,1-6, o autor aprofunda e resume o critério de discernimento.

2. Preservar-se dos falsos profetas (1Jo 4,1-6)

Sempre houve aqueles que tentavam seduzir o povo e desviá-lo do caminho do Deus da vida, sejam eles profetas da corte de Judá (cf. Mq 3,9-12), falsos profetas ou ainda mestres no meio das comunidades cristãs (cf. Mt 7,15-17). Homens e mulheres do Deus da vida não deixam de discernir e combater os pensamentos e as práticas dos falsos profetas e advertir a comunidade para que não se envolva com tais pessoas. Esse também foi o trabalho do autor e seu grupo da comunidade cristã da primeira carta de João diante de seus adversários, chamados de anticristos ou falsos profetas.

Um dos pontos mais importantes de discernimento é saber: quem vem de Deus e quem vem do mundo do Maligno? Via de regra, os falsos profetas se consideram mais religiosos e mais perto de Deus. Alegam proclamar sob a inspiração do Espírito de Deus todo-poderoso. Na verdade, contudo, há vários espíritos, como alerta o autor de 1Jo: “Amados, não acreditem em todos os que dizem ter o Espírito. Ao contrário, examinem os espíritos, para ver se vêm de Deus, porque muitos falsos profetas têm saído pelo mundo afora” (1Jo 4,1).

Na comunidade de 1Jo, são muitos os anticristos que têm aparecido no meio dos seguidores de Jesus, alegando falar com o Espírito de Deus (cf. 1Jo 2,18). O autor, porém, exalta o fato de que os membros da comunidade possuem “a unção que vem do Santo e têm a sabedoria” para discernir entre o que vem de Deus e o que vem do mundo (cf. 1Jo 2,20). Ou seja, com a unção do Espírito Santo (batismo – crisma), os membros cristãos conhecem e experimentam a presença de Deus, sua Palavra, verdade e vida, em Jesus Cristo (cf. 1Jo 2,27).

Segundo a comunidade joanina, a ação do Espírito (paráclito, advogado, Espírito da verdade, Espírito Santo) é recordar, ensinar e completar o ensinamento de Jesus Cristo: “O Advogado, o Espírito Santo, que o Pai vai enviar em meu nome, ele ensinará a vocês todas as coisas e lembrará a vocês tudo o que eu lhes tenho dito” (Jo 14,26).

Não se trata, contudo, de qualquer Jesus Cristo. A fé alimentada e transmitida pelos evangelhos professa Jesus Cristo como Deus encarnado no meio da humanidade: “A Palavra (Verbo) se fez carne e armou sua tenda entre nós. E nós contemplamos sua glória, glória que ela tem como Filho único do Pai, cheio de graça e verdade” (Jo 1,14).

Jesus Cristo é verdadeiro ser humano (carne), manifestado, visto e tocado: “O que temos ouvido, o que temos visto com nossos olhos, o que temos contemplado e nossas mãos têm apalpado” (1Jo 1,1); não um Jesus Cristo de simples espírito, “conhecido” e pregado pelos anticristos gnósticos, mas Jesus, o Messias encarnado, que viveu, caminhou e trabalhou com seu povo sofrido para promover a justiça, a liberdade e a vida. É Jesus Cristo com sua prática libertadora, prisão, tortura, paixão, morte e ressurreição.

Portanto, o reconhecimento de Jesus Cristo como o Filho de Deus encarnado é ponto crucial na distinção de quem tem o Espírito de Deus: “É assim que vocês saberão se alguém tem o Espírito de Deus: quem reconhece que Jesus Cristo veio na carne, esse vem da parte de Deus” (1Jo 4,2). Jesus é o Cristo Salvador, encarnação de Deus: sua total humanidade como o Messias e sua total divindade como o Filho de Deus (cf. Fl 2,6-11).

Não é, porém, suficiente discernir e reconhecer Jesus Cristo encarnado; é necessário praticar sua Palavra para estar em comunhão com o Espírito de Deus: “Que acreditemos no nome do seu Filho, Jesus Cristo, e nos amemos uns aos outros, conforme o mandamento que ele nos deu. Quem guarda os mandamentos dele permanece em Deus, e Deus nele. Nisso percebemos que Deus permanece em nós: pelo Espírito que ele nos deu” (1Jo 3,23-24). Não existe comunhão com Deus sem amor!

Os anticristos são os que não agem assim; são os que dizem ter o Espírito de Deus, mas não amam seus irmãos porque negam que Jesus Cristo tenha vindo na carne para praticar a justiça e o amor e promover a vida. São falsos profetas que não falam sob a inspiração divina, mas sob o espírito do Anticristo: “Todo aquele que não reconhece a Jesus não vem de Deus. Esse é o espírito do Anticristo. Vocês têm ouvido dizer que o Anticristo está para vir; no entanto, ele já está no mundo” (1Jo 4,3); “Eles são do mundo e por isso falam a linguagem do mundo, e o mundo os ouve” (1Jo 4,5).

Essas duas frases resumem quem são os falsos profetas ou os anticristos. Eles foram da comunidade cristã, ungidos pelo Espírito Santo, e possuíam a sabedoria de discernir e ensinar quem é Jesus Cristo (cf. 1Jo 2,18-22). Entretanto se afastaram da comunidade, porque pretendiam viver à maneira do mundo possuído pelo Maligno: “Tudo o que há no mundo – os maus desejos vindos da carne e dos olhos, a arrogância provocada pelo dinheiro” (1Jo 2,16a). É o modo de viver da sociedade greco-romana: a busca ilimitada de bens, poder, prazer e honra, com a exploração dos pobres e escravos.

Não obstante, os falsos profetas continuam a dizer que são cristãos e que falam sob o Espírito de Deus, seduzindo os fiéis e provocando desentendimentos e conflitos na comunidade. Agora, como eles se justificam, dizendo ser cristãos? Nesse ponto está a mudança do ensinamento: a) não reconhecem Jesus Cristo como o Messias encarnado, ou seja, separam sua realidade humana da sua função messiânica; b) negam a prática libertadora de Jesus, sua prisão, morte e ressurreição; c) consideram Jesus Cristo como uma imagem ou aparência de Deus, porque a divindade jamais assumiria a carne humana – uma vez que a matéria seria essencialmente má, segundo a filosofia grega; d) pregam o conhecimento racional e espiritual de Deus como o único caminho para estar em comunhão com ele e com Jesus Cristo “espiritual”.

Com esse ensinamento ou doutrina, os falsos profetas pensam e afirmam estar em perfeita comunhão com Deus, ainda que sem comunhão com os irmãos – o amor ao próximo. Separam a fé e o ensinamento cristão da prática do evangelho de Jesus Cristo, abrindo e justificando o espaço para sua atuação no mundo: eles são do mundo.

No entanto, foi contra esse “mundo” do Maligno que o próprio Jesus lutou, sofrendo, morrendo, sendo ressuscitado e vencendo: “Neste mundo vocês terão aflições, mas tenham coragem: eu venci o mundo” (Jo 16,33b). O Espírito de Jesus vence o espírito do Anticristo! O Espírito de Deus está com quem segue Jesus Cristo, o Messias encarnado: “Filhinhos, vocês são de Deus e estão vencendo os falsos profetas, pois aquele que está em vocês é maior do que aquele que está no mundo” (1Jo 4,4).

Enfim, o autor não se cansa de alertar a comunidade de Deus contra os falsos profetas e seu “espírito de erro”: “Mas nós somos de Deus. Quem conhece a Deus nos ouve; quem não é de Deus não nos ouve. É assim que podemos separar o espírito da verdade do espírito do erro” (1Jo 4,6).

3. A encarnação do Verbo: o critério da fé, da ética e da missão profética

A primeira carta de João apresenta a encarnação do Verbo, o Filho de Deus, como critério fundamental para discernir os anticristos e os falsos profetas:

• “Quem é o mentiroso, senão quem nega que Jesus é o Messias? Esse tal é o Anticristo, aquele que nega o Pai e o Filho. Todo aquele que nega o Filho também não tem o Pai. Quem reconhece o Filho também tem o Pai” (1Jo 2,22-23).

• “É assim que vocês saberão se alguém tem o Espírito de Deus: quem reconhece que Jesus Cristo veio na carne, esse vem da parte de Deus. E todo aquele que não reconhece a Jesus não vem de Deus. Esse é o espírito do Anticristo. Vocês têm ouvido dizer que o Anticristo está para vir; no entanto, ele já está no mundo” (1Jo 4,2-3).

No interior da comunidade, surge um grupo de dissidentes, chamados de anticristos e falsos profetas (cf. 1Jo 2,18-19; 4,1), que nega o Jesus da história como o Cristo, o Filho de Deus. Eles tentam dissociar Jesus de Nazaré do Cristo da fé e separar a fé cristã da vida prática: “Quem diz que conhece a Deus, mas não trata de guardar os mandamentos dele, é mentiroso; nesse não está a verdade” (1Jo 2,4); “Quem diz que está na luz, mas odeia seu irmão, está na escuridão até agora” (1Jo 2,9). Os dissidentes provocam desentendimentos, conflitos e crise, seduzindo os fiéis para o mundo do Maligno (cf. 1Jo 2,12-17).

No confronto direto com esse problema gravíssimo, a primeira carta nasce para dar uma resposta adequada e assim retomar, orientar e fortalecer a fé cristã e a exigência ética e pastoral:

a) Fé em Jesus, o Messias encarnado: “Quem é que pode vencer o mundo, a não ser quem acredita que Jesus é o Filho de Deus? Este é aquele que veio através da água e do sangue: Jesus Cristo, que não veio só através da água, mas da água e do sangue. E o Espírito é quem dá testemunho, pois o Espírito é a verdade. Porque são três os que dão testemunho: o Espírito, a água e o sangue; e os três estão de acordo entre si” (1Jo 5,5-8). A afirmação fundamental de 1Jo é a fé no Jesus da história, o Filho de Deus que veio na carne e assumiu a condição humana: a encarnação do Verbo. Ao contrário, os dissidentes dissociam o Cristo glorioso, manifestado no batismo (água: cf. Jo 1,29-34), do homem Jesus, morto na cruz (sangue: cf. Jo 19,31-37) por causa da sua prática do amor ao próximo, até o fim.

b) Fé traduzida no amor ao próximo: “O seu mandamento é este: que acreditemos no nome do seu Filho, Jesus Cristo, e nos amemos uns aos outros, conforme o mandamento que ele nos deu. Quem guarda os mandamentos dele permanece em Deus, e Deus nele. Nisso percebemos que Deus permanece em nós: pelo Espírito que ele nos deu” (1Jo 3,23-24). O amor aos irmãos, no esforço para formar fraternidade, é fruto da fé cristã em Deus, que assumiu a trajetória humana e habitou no meio de seus “filhinhos”. E o Espírito é aquele que recorda e completa a trajetória humana e os ensinamentos do Messias encarnado, conduzindo os cristãos nos caminhos da verdade e da vida (cf. Jo 15,26).

c) Fé vivida e testemunhada: “Se aceitamos o testemunho humano, sabemos que o testemunho de Deus é maior. E este é o testemunho de Deus: ele deu testemunho a respeito do seu Filho. Quem acredita no Filho de Deus tem o testemunho dentro de si mesmo. Quem não acredita em Deus faz dele um mentiroso, porque não acredita no testemunho que ele deu em relação a seu Filho” (1Jo 5,9-10). Jesus Cristo encarnado é a grande testemunha do amor de Deus: “Quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor. Nisto se tornou visível o amor de Deus entre nós: Deus enviou seu Filho único ao mundo, para podermos viver por meio dele” (1Jo 4,8-9). Quem acredita em Jesus, o Messias encarnado, “tem o testemunho dentro de si mesmo” (cf. Jo 15,27): testemunha o amor de Deus e seu Filho na ação pastoral e missionária em vista da transformação pessoal e de toda a sociedade rumo ao Reino da fraternidade e da solidariedade.

Na recordação da fé, do amor e da missão, o autor da primeira carta de João ressalta as três virtudes fundamentais da vida cristã: a fé no Jesus da história, que há que traduzir-se em obras, o amor, que implica a partilha concreta com os irmãos, e a missão profética, que é a força nascida do amor e se projeta para a formação do Reino da fraternidade.

Historicamente, o movimento cristão enfrenta, em seu interior, vários grupos gnósticos, que ressaltam a salvação somente por meio da gnosis (conhecimento), negando o Jesus da história, o Messias encarnado. Na década de 50 d.C., Paulo escreve e reescreve, em várias passagens, as três virtudes da vida cristã nos desentendimentos e conflitos com seus opositores, que espiritualizavam o seguimento de Jesus:

• “Lembramos a obra da fé, o esforço do amor e a constância da esperança que vocês têm no Senhor nosso Jesus Cristo, diante de Deus nosso Pai” (1Ts 1,3);

• “Agora permanecem a fé, a esperança e o amor, essas três coisas. A maior delas é o amor” (1Cor 13,13);

• “Que o amor seja sem fingimento. Detestem o mal e apeguem-se ao bem. Amem-se uns aos outros com carinho de irmãos, cada um considerando os outros como mais dignos de estima. Sirvam ao Senhor, incansáveis no zelo, fervorosos no espírito, alegres na esperança, perseverantes na tribulação, constantes na oração, solidários com as necessidades dos santos, praticando a hospitalidade” (Rm 12,9-13).

Pregando Jesus crucificado, o Messias encarnado, com o poder e a graça de Deus (cf. 1Cor 1,17-31), Paulo fortalece a perseverança da comunidade na fé ativa, no amor fraterno e na teimosa esperança na missão profética, como motor na caminhada, rumo à realização do projeto de Jesus crucificado e ressuscitado.

Em torno do ano 100 d.C., a comunidade de João ressalta a fé na encarnação do Filho de Deus, com toda a força da palavra: “A Palavra se fez carne e armou sua tenda entre nós” (Jo 1,14). Num dos momentos importantes da comunidade, o mistério da encarnação é proclamado e vivenciado:

• “Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem comer deste pão viverá para sempre. E o pão que eu vou dar é a minha carne, para que o mundo tenha a vida. Eu lhes garanto: se vocês não comem a carne do Filho do homem e não bebem o seu sangue, não têm a vida em vocês” (Jo 6,51.53).

Na refeição comunitária, a comunidade joanina reitera a encarnação de Jesus Cristo como o critério da fé, da ética e da missão profética: carne (encarnação e vida/prática) e sangue (cruz/morte) equivalem à totalidade da vida do Jesus da história, o Messias encarnado. Ao comer a carne (corpo, em 1Cor 11,24) e beber o sangue de Jesus Cristo, os cristãos renovam seu compromisso com a vida em plenitude para o mundo todo: a obra da fé, o esforço do amor e a constância da missão profética.

Hoje, como ontem, há uma variedade de movimentos religiosos, dentro e fora da comunidade cristã, que ressalta a salvação somente por meio da gnosis (conhecimento), do exercício espiritual, ou da simples participação nos rituais e sacramentos, sem a prática coerente do amor ao próximo na vida diária e nas opções políticas mais amplas. Há também, contudo, o forte movimento cristão que caminha com a fé ativa em Jesus Cristo feito carne, com o amor fraterno, com a missão profética sem fronteiras e com a esperança teimosa para assegurar a construção do Reino da vida. Nesse movimento, algumas comunidades católicas cantam e expressam a fé ativa, o amor fraterno e a esperança teimosa de maneira singular:

• “Tomai, comei, tomai, bebei meu corpo e sangue que vos dou. O pão da vida sou eu mesmo em refeição. Pai de bondade, Deus de amor e do universo, sustentai os que se doam por um mundo irmão”;

• “Muito tempo não dura a verdade, nestas margens estreitas demais. Deus criou o infinito pra vida ser sempre mais. É Jesus este pão de igualdade, viemos pra comungar com a vida sofrida do povo que quer ter voz, ter vez, lugar. Comungar é tornar-se um perigo, viemos pra incomodar. Com a fé e a união, nossos passos um dia vão chegar”.

A fé ativa em Jesus de Nazaré como a encarnação do Verbo de Deus é o caminho no qual os cristãos experimentam o mais profundo que se pode conhecer de Deus e experimentar dele. Porque aí está a vida: “Deus é amor” (1Jo 4,8)!

Uma palavra final

Reconhecer que Jesus Cristo veio na carne é assumir o projeto de Deus, que nos convida a continuar a mesma missão profética de Jesus: comprometer-se com a justiça e a solidariedade, em contraposição às realidades que negam a vida do ser humano. Um dos homens do nosso tempo que denunciaram a injustiça e carregaram a cruz junto com o povo sofrido foi dom Oscar Romero, que nos deixou sua mensagem profética:

Há um critério para saber se Deus está perto de nós ou se está longe: todo aquele que se preocupa com o faminto, com o maltrapilho e o pobre, o desaparecido, o torturado, o prisioneiro, com todos esses corpos que sofrem, está perto de Deus. “Chamarás o Senhor e ele te escutará.” A religião não consiste em rezar muito. A religião consiste nessa garantia de ter meu Deus perto de mim porque faço o bem aos meus irmãos. A garantia de minha oração não está em dizer muitas palavras; a garantia de minha prece é muito fácil de conhecer: como me comporto com o pobre? Porque ali está Deus (5/2/1978).

É uma profecia que alerta, que denuncia a realidade injusta e, ao mesmo tempo, orienta nossa missão cristã. De modo especial, o “corpo” do empobrecido e injustiçado é o “critério” para seguir o Jesus da história, o Messias encarnado, e seu mandamento do amor ao próximo: “Deus enviou seu Filho único ao mundo, para podermos viver por meio dele. É nisto que está o amor”(1Jo 4,9b-10a).

Shigeyuki Nakanose

Shigeyuki Nakanose, svd, é assessor do Centro Bíblico Verbo e professor no Instituto São Paulo de Estudos Superiores – Itesp. Juntamente com o Centro Bíblico Verbo, tem publicado todos os anos pela Paulus um subsídio para reflexão e círculos bíblicos para o mês da Bíblia. O do ano de 2019 é Jesus Cristo veio na carne é de Deus (1Jo 4,2): entendendo a primeira carta de João. E-mail: shigenakanose@ig.com.br