O PRESBÍTERO HOJE

Prezados leitores do site:

Este foi o número especial do Boletim das Fraternidades de 2005, que traz um conteúdo importante para a vida dos presbíteros e é um trabalho do então Pe. Edson, atualmente bispo de S. Gabriel da Cachoeira, no Amazonas.

Vocês têm em mãos os temas desenvolvidos por D. Edson (na época ainda sacerdote) no dia de espiritualidade dos Bispos na 42ª Assembléia Geral da CNBB (21 a 30 de abril de 2004).

D.Edson, como ainda era presbítero, fora convidado a pregar o retiro dos Bispos por ser o presbítero o tema principal da Assembléia.

Como sempre, ele se desempenhou muito bem de sua tarefa. Poderíamos ler e refletir um tema de cada vez nos dias de fraternidade e, mesmo os que não são da fraternidade, fazer meditações pessoais sobre os assuntos aqui comentados.

Convém lembrar que os temas do retiro dos Bispos são propriedade de D. Edson Damian e que foram publicados pelo Boletim das Fraternidades “pro manuscriptu”, sem interesse financeiro, com as devidas licenças do autor e aqui no blog e site “Gritar o Evangelho com a Vida” com as devidas licenças do Boletim das Fraternidades.

1-PERFIL EMERGENTE DO PRESBÍTERO DO NOVO MILÊNIO

D. EdsonTasquetto Damian (Bispo de S. Gabriel da Cachoeira, AM)

Assembléia da CNBB de 2004

Abertura do Dia de Espiritualidade

Com o tema “Novo Milênio: Novo Presbítero?!” e o sugestivo lema “Eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21,5), realizou-se de 02 a 06 de fevereiro de 2000, o 8° ENP. Acabamos de olhar o vídeo deste evento e certamente cada um está se perguntando: Afinal qual será o perfil do presbítero do novo milênio?

A “Pastores dabo Vobis” já nos alertava para este tema: “Há uma fisionomia essencial do presbítero que não muda: o padre de amanhã, não menos que o de hoje, deverá assemelhar-se a Cristo, que ofereceu em si mesmo o rosto definitivo do presbítero, realizando um sacerdócio ministerial do qual os apóstolos foram os primeiros a ser investidos; aquele é destinado a perdurar, a reproduzir-se incessantemente em todos os períodos da história. O presbítero do terceiro milênio será, neste sentido, o continuador dos irmãos que, nos precedentes milênios, animaram a vida da Igreja (...), mas, é igualmente certo que a vida e o ministério do presbítero se deve adaptar a cada época e a cada ambiente de vida” (PDV 5).

Com muita sabedoria, Dom Helder nos diz: “Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para permanecer sempre o mesmo”.

O Pe Edênio Valle, lúcido articulador dos últimos ENPs, tentou esboçar o perfil emergente do novo presbítero numa reflexão publicada na Vida Pastoral: “embora bem consciente de que a figura do padre continuará sendo plural, resumirei nos seguintes pontos o novo modo-de-ser que está emergindo (ao menos idealmente), mas que precisa ser ainda cultivado”.

Num encontro de presbíteros do Norte 1 aprofundamos e completamos o perfil que partilho agora. Sonhamos alto com a consciência de que, como o Profeta Elias, “temos longo caminho a percorrer” (1 Rs 19,7).

· O presbítero do século XXI será alguém que (re)descobre e sente o apelo do Deus vivo. Somente sobre a base de uma experiência pessoal de seguimento de Jesus e de comunhão com Ele, com o

Pai e o Espírito, o padre será alguém capaz de entusiasmar homens e mulheres na mesma mística do seguimento e de ajudar o povo de Deus a viver a testemunhar a fé na plenitude de sua vocação. “O presbítero é um homem de Deus. Todavia, só lhe é dado ser profeta na medida em que tenha feito a experiência do Deus vivo. Só esta experiência o fará portador duma Palavra poderosa para transformar a vida pessoal e social das pessoas, de conformidade com o desígnio do Pai” (Puebla, 693).

· A caridade pastoral, vivida em sua dupla vertente: amor ao Bom Pastor e amor às pessoas que ele confia ao nosso ministério, será a marca da espiritualidade do presbítero e o eixo integrador entre vida interior e ação evangelizadora.

· Em meio a tantas solicitações e urgências, o presbítero precisa liberar-se para, nos termos de hoje, dedicar-se mais à oração e à pregação da Palavra (cf. At 6,4) como sendo as dimensões fundamentais de seu ministério. Ele precisa voltar a ser um mistagogo e um discípulo da Palavra. São traços que precisam atravessar todas as dimensões do serviço presbiteral: a celebração dos sacramentos, a coordenação da comunidade, o compromisso sócio-transformador.

· De maneira simples e direta, o presbítero será um “homem de oração”. Sem isso, não passará de um mero propagandista de doutrinas ou de um negociante de coisas sagradas. O encontro pessoal com Cristo e a prática do ministério pastoral com “os olhos fixos n’Ele” (Lc 4,20) constituem a identidade profunda do presbítero. Ora, só à força de olhá-lo, é que se acaba amando a Jesus Cristo; mas só olhamos bem de joelhos.

“Rezar é freqüentar Jesus” (Charles de Foucauld). “Só ao rezar, está o homem inteiro imediatamente presente diante de Deus. A fé do presbítero de hoje é a fé de um presbítero que reza, de presbítero misticamente contemplativo, ou não é fé nenhuma.

O presbítero há de ser orante, se quiser ser crente e profeta da Boa Nova. Temos que ser presbíteros que rezam. Que suportam rezando as trevas da vida.

Mesmo se sua prece for participação na agonia do Horto ou no grito do Abandonado pelo Pai na cruz” (Karl Rahner).

· A mística do presbítero será sempre uma mística profundamente eucarística. Uma mística que tenha sua “fonte” e seu “cume” na Eucaristia celebrada com o povo e adorada em silêncio. Como ensina Tomás de Aquino, ela contém “todo o bem espiritual da Igreja”.

É efetivamente na Eucaristia que encontramos tudo:

Cristo com o Pai e o Espírito, a comunidade com os seus pastores, a oração da comunidade e toda a sua vida, trazida como matéria da oferenda, da intercessão e da ação de graças. A Eucaristia como sacramento da comunhão, realiza a síntese da Igreja e do Mundo, da ação e da contemplação, do ministério ordenado e dos leigos, de Deus e do gênero humano.

· Um traço cada vez mais imprescindível para a vida e o ministério do padre será o de uma efetiva comunhão-participação com seus irmãos presbíteros e com seu bispo. Os desafios e chances, as alegrias e tristezas, os fracassos e os êxitos de um padre pertencem ao presbitério do qual faz parte e no qual recebe seu mandato da Igreja. O trabalho pastoral em equipe, a revisão de vida, o senso eclesial, o apoio mútuo, o cultivo da amizade, as fraternidades de presbíteros são traços a serem permanentemente trabalhados no futuro. Não se concebe mais um presbítero sem presbitério, assim como não se pode conceber um presbitério sem o povo de Deus.

· Numa Igreja missionária, ministerial e profética caberá ao presbítero ser o traço de união da comunidade e dos movimentos reunindo-os, para além de suas diferenças, em função de um só e mesmo compromisso com a pastoral de conjunto.

Até recentemente o padre concentrava em si “a síntese dos ministérios”. Compete-lhe agora “o ministério da síntese”. O presbítero de amanhã, mantendo sua função essencial de coordenação, deverá apoiar e suscitar os carismas, serviços e ministérios necessários à construção da comunidade em seu testemunho ao mundo. Para conseguir essas metas, o presbítero deve seriamente rever as prioridades de seu ministério, evitando a sobrecarga com tarefas burocráticas ou secundárias, descentralizando as atividades e confiando aos leigos e leigas os serviços, os ministérios que lhes convém, respeitando a iniciativa e a justa autonomia de todos os que se entregam ao serviço do Evangelho.

· A vizinhança do pobre e sua realidade é uma condição para manter o espírito evangélico numa sociedade narcisista, alienada e excludente como a nossa. “Assumimos nosso compromisso evangélico de honrar os pobres do Brasil inteiro, confirmando nossa opção por eles: são a menina dos nossos olhos, o afeto de nossos corações! Voltamos a anunciar-lhes, com Jesus: “Felizes vocês que têm fome, porque serão saciados! Felizes vocês que agora choram, porque haverão de rir” (Lc 6,21-22 - Carta de Compromisso do 10º ENP 2004). “Os pobres nos evangelizam” (Puebla, 1147), quando assumimos sua ótica, fazendo nossas suas esperanças e comprometendo-nos com suas lutas e movimentos de libertação.

· O simples fato de colocar-se ao lado dos pobres, já provoca reações da parte dos opressores. Anunciar valores evangélicos que estão na contramão do capitalismo neoliberal, concentrador de bens e excludente da maioria do povo, inevitavelmente provocará conflitos e perseguições. “Se o mundo vos odeia, sabei que, primeiro, me odiou a mim. Se fôsseis do mundo, o mundo amaria o que era seu...

O servo não é maior que o seu Senhor. Se me perseguiram, também vos perseguirão” (Jo 15, 18-20). Neste contexto, seria pecaminoso tentar esquecer ou esconder o testemunho dos mártires e confessores da Igreja latino-americana que, nas últimas décadas, deram a vida em defesa dos direitos humanos e da justiça aos oprimidos. Três bispos (Mons Angelelli, Mons Oscar Romero e Mons Juan Gerardi), numerosos presbíteros (Pe Antônio Henrique Pereira Neto, Pe João Bosco Penido Burnier, Pe Rodolfo Lukembein, Pe Ezequiel Ramin, Pe Josimo Morais Tavares), religiosos de ambos os sexos e uma multidão de leigos/as anônimos ou conhecidos somente em nível mais local, constitui uma novidade inaudita na história da Igreja recente. Como não lembrar aqui a pobre, perseguida e pascal

Igreja de Roraima? Porque assume a defesa dos direitos dos Povos Indígenas recaem sobre ela os mesmos preconceitos, desprezo e perseguições de que os Índios são vítimas desde o descobrimento.

· Sobre a base dessa experiência pessoal de amor a Deus e ao próximo, o presbítero será alguém consciente de suas fragilidades e de suas potencialidades. Ao entregar-se a Deus e aos irmãos ousará consagrar-se por inteiro ao serviço do Reino, tornando o celibato uma opção pessoal e livre. Por experiência própria ele descobrirá que a caridade pastoral (em sua dupla face: paixão por Jesus e compaixão pelo povo) pode preencher suas necessidades e carências enquanto ser humano que precisa amar e ser amado.

· O padre de amanhã aprenderá a melhor “cuidar de si” (cf At 20.28), a amar-se e respeitar-se, a confiar em si e nos outros, a ter tempo para o lazer, de modo a sentir-se equilibrado em todas as dimensões que nos realizam como seres humanos. Assim ele será e se sentirá um homem adulto realizado e feliz, capaz de ser ele mesmo no trato pessoal com as mulheres. Vale lembrar o testemunho de irmãos queridos que nos entusiasmam porque souberam ser profundamente humanos porque radicalmente cristãos. Quem mais alegre que o humaníssimo Francisco de Assis, meigo para com todas as criaturas, suas irmãs queridas? Não foi por acaso que uma comissão internacional o escolheu como o homem que mais marcou o segundo milênio! Quem mais feliz que o bom Papa João, que a terna e misericordiosa Madre Teresa de Calcutá, que o suave e ao mesmo tempo vigoroso Dom Helder Câmara?

· O presbítero do futuro cultivará o senso crítico em relação à cultura, e à sua participação ativa no campo propriamente social e político. Sabendo que numa sociedade desigual e pluralista como a do Brasil ele não tem o direito de renunciar ao exercício da cidadania, buscará viver sua responsabilidade sociopolítica na perspectiva de seu serviço específico à comunidade e em comunhão com seus irmãos presbíteros.

· A tentação do autoritarismo e do poder continuará sendo uma ameaça permanente se não existir uma ativa fraternidade presbiteral e sólidas amizades com os leigos e leigas. Estas relações são o melhor antídoto à tentação do poder, do isolamento e do individualismo clericais. Devem ser cobradas por nós mesmos durante a formação e ao longo de toda a vida, incluídos os anos de aposentadoria. A amizade, a reciprocidade e a co-responsabilidade fazem parte de uma vivência plena do sacramento recebido (“intima fraternidade sacramental” PO 8).

· Persistem na Igreja certas estruturas que são inadequadas à proposta de evangelização que o povo espera dos presbíteros no limiar do novo milênio. Além disso, é flagrante a contradição entre a clareza dos documentos eclesiais e o arcaísmo de estruturas que os inviabilizam. Também em relação a certos hábitos sedimentados, zelos ou receios devemos exercer uma critica paciente, objetiva e contínua, para rejuvenescer a Igreja e as comunidades que o Senhor confia ao nosso amor pastoral.

Mantenhamo-nos firmes no testemunho do amor de Deus e na esperança confiante de que, um dia, seja-nos dado ver concretizado o sonho que os bispos latino-americanos expressaram em Medellin: “Que se apresente cada vez mais nítido o rosto de uma Igreja autenticamente pobre, missionária e pascal, despojada do poder e corajosamente comprometida com a libertação do homem todo e de todos os homens” (Medellin 5,15).

· Nossa cultura é uma cultura da imagem e da comunicação rápida e extensiva. Somos envolvidos de todos os lados pelos meios de comunicação. Não podemos ignorar essa realidade, sem dúvida, ambígua. Mas, da mesma forma, não se pode reduzir a Igreja a uma realidade virtual, centrada em algumas figuras midiáticas. A atuação pessoal e direta do padre em comunidades de pessoas é ainda mais indispensável numa sociedade e cultura domesticadas pela informação massificada. Os presbíteros “de mídia” e “na mídia” – expressões do Pe. Zezinho – necessitam do acompanhamento e do discernimento do conjunto da Igreja e de cada presbitério. A mídia pode ser uma via válida para a evangelização, contanto que não a vejamos ingenuamente, ou como publicidade religiosa no contexto de disputa de um mercado em expansão. Educar à leitura crítica da mídia é outra tarefa que se faz prioritária.

-O padre do século XXI será um aprendiz, em permanente processo de atualização e formação. Precisará adquirir o hábito do estudo e da reflexão, como condição para o preenchimento digno de suas funções. O que um presbitério pode oferecer de melhor ao povo – ao lado da caridade pastoral – é a competência de seus membros e o saber especializado posto a serviço do bem de todos.

Para fechar este “perfil emergente” lembremos uma frase do Pe. Josimo, nosso irmão-mártir. Pouco antes de ser assassinado, ao falar de seu compromisso de presbítero no meio do povo abandonado do Bico do Papagaio, ele escreveu assim: “Desistir da justiça? Não!... Amedrontar a esperança? Jamais! Não abaixarei os olhos da linha do horizonte!”.

Josimo relembra aqui e aplica a si mesmo algo essencial na vida do presbítero, ontem como amanhã. Nessa frase pode-se reconhecer a mesma diretriz irrenunciável contida em uma palavra eminentemente pessoal de Jesus: “Não há maior amor do que dar a vida pelos irmãos” (Jo15,13).

Oxalá os presbíteros do século XXI tenhamos a graça de viver essa palavra do Amado Irmão e Senhor, confirmada pela entrega radical de tantos e selada pelo martírio de muitos irmãos no ministério do amor pastoral. O que esperamos de nosso Mestre e Senhor é a graça da gratuidade benfazeja, isto é, depois de termos feito tudo o que deveríamos fazer, consideramo-nos como “simples servos” (Lc 17,10).

Sonhamos muito alto? Tudo isto será apenas uma utopia? Temos “longo caminho a percorrer” (1 Rs 19,7), mas é preciso “avançar para águas mais profundas” (Lc 5, 4). Mais do que saber onde estamos, importante é ter clareza de onde queremos chegar. E ter a coragem de buscar e dar passos novos. Somos conduzidos pelo Espírito do Ressuscitado que “faz novas todas as coisas!” (Ap 21,5).

RETRATO DO PRESBÍTERO

(de um manuscrito medieval)

O presbítero deve ser, ao mesmo tempo:

pequeno e grande,

de espírito nobre, como de sangue real,

simples e espontâneo como um lavrador,

herói no domínio de si, homem que lutou com Deus, fonte de santificação, pecador que Deus perdoou,

senhor de seus desejos,

servidor humilde para os tímidos e fracos,

que não se rebaixa diante dos poderosos

mas se curva diante dos pobres,

discípulo de seu Senhor, chefe de seu rebanho,

mendigo de mãos largamente abertas,

portador de inumeráveis dons,

homem no campo de batalha,

mãe para confortar os doentes,

com a sabedoria da idade e a confiança de um menino,

voltado para o alto, os pés na terra,

feito para a alegria, experimentado no sofrimento,

imune a toda a inveja, que vê longe, que fala com franqueza,

um inimigo da preguiça,

uma pessoa que se mantém sempre fiel.

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Cf Pe Edênio Valle, “Carta a Teófilo – Um relato do 8° Encontro Nacional de Presbíteros”,

in Vida Pastoral 213, julho/agosto 2000, p 29-30. Os acréscimos foram introduzidos pelos participantes do Encontro de Presbíteros do Regional 1, em Manaus, de 11 a 15 de setembro de 2000.

2- PRESBÍTERO: SACRAMENTO DE CRISTO PASTOR DA IGREJA

Bondoso Pai, pelo teu amado Filho Jesus, dá-nos o Espírito Santo, para guardar no coração e gritar com a vida o evangelho do Bom Pastor - Jo 10, 11-16 .

A imagem do pastor, sem dúvida alguma, é a mais adequada para entender a vida e o ministério do presbítero e chegar ao núcleo identificador da pessoa do presbítero. A proposta, lançada pelo Vaticano II, foi-se clareando e solidificando no decurso dos últimos anos. O Pe Alberto Antoniazzi ao descrever os vários modelos de padre no Brasil hoje, afirma que o primeiro modelo, o que mais freqüentemente se encontra nos Encontros Nacionais de Presbíteros é o padre pastor.

A “Pastores dabo Vobis”, finalmente, apresenta-nos uma elaboração amadurecida e acompanhada de sólida fundamentação bíblico-teológica da nova configuração do presbítero. O título e as palavras iniciais extraídas do profeta Jeremias indicam a centralidade da imagem do pastor: “Dar-vos-ei pastores segundo o meu coração”(Jr 3,15). Embora ainda empregue muitas vezes a terminologia sacerdotal, que o Concílio não conseguiu superar, a imagem que se impõe e perpassa todo documento é a do pastor. Trata-se de um símbolo inspirador mais sugestivo que as descrições anteriores.

A identidade específica do presbítero encontra-se, portanto, condensada e expressa na caridade pastoral. “Os presbíteros são chamados a prolongar a presença de Cristo, único e sumo Pastor, atualizando o seu estilo de vida e tornando-se como que a sua transparência no meio do rebanho a eles confiado” (PDV 15). Esta tônica perpassa toda a “Pastores dabo Vobis” e se traduz com uma imagem viva e real na conclusão: “Vós, caríssimos presbíteros, fazeis isto porque o próprio Senhor, com a força do seu Espírito, vos chamou para levar, nos vasos de barro de vossa vida simples o tesouro inestimável de seu amor de bom Pastor” (PDV 82).

Ser epifania, transparência, ícone e sacramento do Cristo Pastor constitui o cerne da identidade e espiritualidade presbiteral (cf. PDV 15, 21, 25, 49, 72). É este o tesouro que carregamos em vasos de barro. Por isso nunca é demais alertar que o representante não ocupa o lugar do representado, na ausência visível dele. Cristo é quem se faz presente na pessoa e no ministério do presbítero.

Quem dele se aproxima deve encontrar o rosto, o coração, as atitudes, e os gestos do Bom Pastor. Ajuda-nos aqui um fato contado pelo o Pe José Comblin. Certo dia, visitando uma comunidade do sertão, Dom Helder viu uma velhinha que carregava com muito carinho uma imagem do Pe Cícero e perguntou-lhe: “O que significa o Pe Cícero para você? Para responder-lhe, colocou uma condição: “E se eu lhe disser, o senhor não vai contar ao meu vigário?” Do Helder assegurou-lhe: “Não minha senhora, diga aqui no meu ouvido”. Ela respondeu: “O Pe Cícero é o próprio Sagrado Coração de Jesus”. Diante desta aparente heresia, Dom Helder comentou: “Para aquela velhinha não existe nada de mais sublime que o Coração de Jesus. O próprio Deus nos amando com o coração humano! Porém, ele está invisível e se manifesta no Pe Cícero que ama, acolhe, perdoa, ajuda as pessoas a se reconciliarem e junto com o povo busca saídas para superar a fome e a miséria”.

Segue uma síntese da riqueza que a PDV (21 – 23) apresenta sobre a identidade do presbítero sob o prisma da caridade pastoral:

1. Referência primeira: Jesus Bom Pastor

A identidade do presbítero fica assinalada e plasmada por aquelas atitudes e comportamentos que são próprios de Cristo, Pastor e Servo da Igreja e se expressam através da caridade pastoral. A imagem do Pastor perpassa toda a Bíblia e traduz elementos da experiência de Deus feita pelo povo de Israel.

Pastor é autoridade e solicitude, firmeza e carinho, ternura e vigor. Javé é aquele que caminha à frente do seu povo, guia, conduz, providencia alimentos, vigia, defende, liberta do perigo, faz aliança. A alegoria do pastor chega ao ponto mais alto em Ezequiel 34 e no Salmo 23. Jesus se insere nesta tradição, mas nos reserva uma surpresa. Ele próprio se proclamou “o Bom Pastor”(ho poimên ho kalós: o “belo Pastor” Jo 10,11), não só de Israel, mas de todos os povos (Jo 10,16). Pedro declara Cristo o “Pastor e supervisor (épíscopon)” de nossas almas (1Pd 2,25).

Mais: ele é o “Pastor Supremo” (archipóimenos) de todos os presbíteros pastores (1 Pd 5,4). A carta aos hebreus chama Cristo de “o Grande Pastor das ovelhas”( Hb 13,20).

Os textos do N T explicitam com clareza que, assim como só há um Senhor e uma Cabeça, na Igreja só há um Pastor: Cristo. Os presbíteros são escolhidos para tomarem parte do pastoreio de Jesus. Esses são pastores apenas por delegação e, portanto, por participação. Assim Pedro, a quem Jesus ordena: “Apascenta os meus cordeiros...apascenta as minhas ovelhas” (Jo 21,15-17).

Assim também os presbíteros do NT em geral, segundo as palavras que lhes dirige o Apóstolo Paulo: “Cuidai de vós mesmos e de todo o rebanho sobre o qual o Espírito Santo vos estabeleceu como guardiães, como pastores da Igreja de Deus que ele adquiriu com o seu sangue” (At 20,28).

Isso tudo faz ver que o presbítero é um homem todo relativo a Cristo. Está a seu serviço e à sua disposição. Sua vida é toda subordinada a Cristo-Pastor e voltada à imitação do Bom Pastor.

Imbuído do mesmo espírito da Cristo, com quem vive numa ralação profunda de amizade, o presbítero deve traduzir os sentimentos, as atitudes, os gestos e as palavras de Jesus, através de sua vida e ministério.

Fonte última: a Santíssima Trindade

O presbítero é “sacramento” e “epifania” do Bom Pastor. Mas, justamente por causa do mesmo Cristo, devemos remontar mais para o alto, e buscar a fonte última dessa identidade no Mistério Trinitário. Pois o próprio Cristo só encontra sua identidade no contexto da Trindade. E é para dentro desse Mistério que Ele nos leva como a nosso destino ultimíssimo.

É, com efeito, o amor do Pai que envia seu Filho ao mundo e esse, por sua vez, envia os Apóstolos: “Como o Pai me enviou, eu também vos envio” (Jo 20,21). Ora, esse envio salvífico se prolonga na ordenação presbiteral. O presbítero é um enviado do Pai, como Cristo, na força do Espírito Santo (cf. PDV 12; 18,5; 82,3).

Portanto, antes ainda de o presbítero olhar para Cristo, ele é “olhado” pelo Pai e por seu Filho Jesus Cristo. Efetivamente, os relatos de vocação têm esta estrutura: Jesus “viu” e então chamou (cf. Mc 1,16.19; 2,14), especialmente em relação ao rico: “Fitando-o, Jesus o amou...” (Mc 10,21).Tudo isso significa que o presbítero é um “apóstolo do Pai”, um “servo de Cristo”, um “consagrado do Espírito Santo”.

“É no interior do mistério da Igreja como comunhão trinitária em tensão missionária, que se revela a identidade cristã de cada um e, portanto, a específica identidade do presbítero e do seu ministério. O presbítero, de fato, em virtude da consagração que recebe do sacramento da Ordem, é enviado pelo Pai, através de Jesus Cristo, ao qual como pastor do seu povo é configurado, de modo especial para viver e atuar, na força do Espírito Santo, ao serviço da Igreja e para a salvação do mundo”(PDV 12).

As comunidades que o presbítero ajuda a construir carregam o selo da Trindade: elas devem refletir o mistério de comunhão de vida, de amor e de alegria que circula no seio da Trindade. Na Santíssima Trindade a Igreja possui a sua fonte de origem, o seu modelo de vida e organização, a sua meta final ou pátria definitiva: é o povo reunido a partir da unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo (cf LG 4). Não por uma exigência sociológica ou para agradar os contemporâneos, mas para se fiel à sua essência e à sua missão, a Igreja deve – também em suas estruturas e práticas – ser “casa e escola de comunhão” (Novo Millennio Ineunte, 43).

Fonte específica: Sacramento da Ordem

Em virtude de sua consagração especial os presbíteros são configurados a Cristo Pastor e são chamados a imitar e a reviver sua própria caridade pastoral. Consagrados de modo particular a Deus pela recepção da Ordem tornam-se instrumentos vivos do sacerdócio de Cristo, a fim de prosseguirem no tempo a sua obra admirável que restaurou com a divina eficácia a humanidade inteira.

Em virtude do ligame ontológico a Cristo Sacerdote e Pastor, os presbíteros agem em nome e na pessoa do próprio Cristo: proclamam a sua Palavra, repetem os seus gestos de perdão e oferta de salvação, exercitam a sua admirável solicitude, até o dom total de si mesmos por aqueles que lhes são confiados, reúnem na unidade o povo de Deus e o conduzem ao Pai, por meio de Cristo no Espírito (cf. PDV 15 e 20).

O Sacramento da Ordem torna a existência presbiteral “ungida” pelo Espírito. Desse modo, o presbítero não “administra” simplesmente os sacramentos: ele os vive. Não faz pastoral, mas é pastor. Não está presbítero; ele é presbítero. A unção sacramental o atinge em seu ser e não apenas em seu fazer. Por isso, tudo nele é “sacerdotal”. A pastoral por inteiro adquire uma dimensão como que litúrgica: é uma oferenda a Deus. Assim via Paulo sua missão. Em seu próprio apostolado, entendia-se como um “oficiante de Cristo Jesus, junto aos pagãos, sacerdote do Evangelho de Deus, a fim de que os pagãos se tornem uma oferenda agradável, santificada no Espírito” (Rm 15,16).

O ministério presbiteral por inteiro, também em suas expressões aparentemente mais seculares, é em si mesmo um “ministério do Espírito” (2Cor 3,8) na medida em que move os corações, produz a vida da graça e revela o rosto glorioso de Deus (cf. 2Cor 3,6-11).

Por conseguinte, o próprio trabalho sócio-libertador há de ser realizado com a unção do Espírito, ou seja, com sua marca espiritual. Assim foi com o Messias, que veio “para anunciar o evangelho aos pobres e libertar os cativos”, sempre a partir do Espírito. Como Jesus mesmo testemunhou:

“o Espírito está sobre mim, me ungiu e me enviou” (cf. Lc 4,18). Portanto, também no serviço aos pobres e nas atividades que abarcam a dimensão sócio-transformadora, o presbítero é um homem “espiritual”.

Âmbito imediato: Igreja Local

É no interior da comunidade eclesial, confiada ao seu ministério e em comunhão profunda com o presbitério unido ao bispo que o presbítero vive concretamente a caridade pastoral. O Vaticano II assim explicitou: “A caridade pastoral exige que os presbíteros, para que não corram em vão, trabalhem sempre em união com os bispos e os outros irmãos no sacerdócio”(PO 14).

O Concílio recuperou o valor da Igreja local. A Igreja universal “subsiste nas Igrejas particulares e a partir delas existe a una e única Igreja Católica (LG 23). A Igreja Católica universal é todo o Povo de Deus, comungando entre si sob a guia do Papa e do Colégio dos Bispos, e se estende por toda a terra, ao passo que a Igreja local é uma porção do povo de Deus confiada ao pastoreio de um Bispo, com a cooperação do presbitério. Na Igreja local convocada pela Palavra de Deus, santificada pelos Sacramentos, conduzida pelo Espírito, presidida pelo Bispo e seu presbitério está verdadeiramente presente e operante a una, santa, católica e apostólica Igreja de Cristo (CD 11).

Com a Igreja local o Concílio recuperou a colegialidade. O cargo de bispo e de presbítero é sempre colegial: ninguém é bispo sozinho, mas num colégio episcopal; ninguém é presbítero sozinho, mas num presbitério. Todo presbítero é um “co-presbítero”.

O colégio dos presbíteros ou o presbitério é mais que um órgão meramente instrumental. É uma realidade que pertence à ontologia da graça sacramental, precisamente ao sacramento da Ordem. Por isso, o presbítero, mais que “trabalhar em equipe”, é essencialmente um “homem de equipe”. Não está no presbitério; é ou constitui o presbitério. A “colegialidade sacramental” ou ontológica é a base da “colegialidade pastoral” ou operativa. Isso significa que toda pastoral tem uma essencial forma comunitária; é uma “obra coletiva” (PDV 17,1).A pastoral de conjunto não se impõe apenas por injunções do momento histórico e da busca de eficácia, mas por exigências intrínsecas do próprio ser Igreja (que é communio teologal) e da essência do presbiterado (que é uma ordo sacramental).

Numa eclesiologia de comunhão, os cristãos e seus pastores são irmãos iguais em dignidade (cf. Mt 23,8-12; Mc 3,31-35; LG 32); diferentes quanto aos carismas, serviços e ministérios, entre os quais e à frente dos quais está o ministério pastoral, responsável pela unidade, santidade, catolicidade e apostolicidade da Igreja; solidários na responsabilidade de evangelizar o mundo e de edificar a Igreja sobre o único fundamento que é Jesus Cristo (cf. 1 Cor 3,11).

Cabe aqui lembrar que o espírito colegial deverá levar o presbítero a valorizar as Coordenações, os Conselhos, as Assembléias e todas as outras “estruturas de comunhão e participação”, onde a presença dos Leigos, Consagrados e de Vida Apostólica, ao lado dos Religiosas e Religiosos, se faz sentir como parte integrante da Ekklesia de Deus, reunida em assembléia, inclusive deliberante.

Esta 42ª Assembléia acolheu o testemunho da teóloga Maria Clara L.Bingemer que nos fez vários questionamentos: “Gostaria de fazer um destaque para a questão da relação do presbítero com a mulher... Temos que admitir que a presença da mulher ainda é, em certos meios clericais, um elemento perturbador. Trata-se da tentação presente, provocadora e ameaçadora da castidade do clero e da pureza do culto. Trata-se de algo ou melhor de alguém cuja sintonia com o sagrado ainda é parcial e defeituosa, não podendo jamais ser total. Isso acarreta que o tratamento por alguns presbíteros dispensado à mulher muitas vezes seja de suspeita, distância que fere e magoa. Ou então de uso e abuso – perdoem a franqueza – como mão de obra barata, simpática e sempre disponível para todas as tarefas. sobretudo as mais modestas, que ninguém quer assumir.

Creio que aqui está um grave desafio à vida e ministério do presbítero. O desafio de abrir as portas do coração a suas irmãs e companheiras mulheres e ajudá-las a tomar consciência da unção que também receberam no seu Batismo e que lhes dá o direito de participar no anúncio do Evangelho e no serviço alegre e disponível, carinhoso e amoroso, de todo o povo de Deus.

Se Deus criou a humanidade homem e mulher, excluir a mulher de tantos setores da vida da Igreja é cruel com a própria humanidade, além de profundamente desumanizador. A fraternidade eclesial, pela qual o presbítero é grandemente responsável, não se fará sem a presença desta que, com seu cuidado e jeito de ser, certamente abrirá para muitos as portas do Evangelho, e poderá chegar ali onde outros que não têm sua intuição, seu coração, sua experiência vital, não conseguem chegar”.

O Vaticano II, privilegiando a imagem de Igreja–Povo de Deus, não coloca o presbítero acima ao além do povo cristão. Embora revestido de uma missão específica, ele está dentro, faz parte do povo e com ele caminha na história. Antes de ser presbítero, ele é cristão, conforme nos ensina Santo Agostinho: “Atemoriza-me o que sou para vós; consola-me o que sou conosco. Pois para vós sou bispo (presbítero), convosco sou cristão. Aquilo é um dever, isto uma graça. O primeiro é um perigo, o segundo salvação” (Sermo 340, 1:Pl 38,1483; LG 32).

Destinação: doação de si à Igreja e à Humanidade A caridade pastoral é a virtude pela qual imitamos Cristo na entrega de si mesmo e no serviço do Reino. Não é apenas aquilo que fazemos, mas o dom de nós mesmos que manifesta o amor de Cristo pela humanidade. O ministério presbiteral é “amoris officium”, doação de si mesmo à Igreja como Cristo que “amou a sua Igreja e se entregou por ela” (Ef 5,25). A caridade pastoral determina nosso modo de pensar e de agir, o modo de nos relacionar com as pessoas. O dom de si mesmo não tem fronteira, porque é marcado pelo mesmo dinamismo apostólico e missionário do Bom Pastor que disse: “Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil: devo conduzi-las também; elas ouvirão a minha voz; então haverá um só rebanho e um só Pastor” (Jo 10, 16).

O presbítero, como Cristo, não pode reduzir seu raio de ação à Igreja apenas. Tem um olhar para fora, para o mundo. A esse o envia o Espírito, para levar-lhe a Palavra do evangelho da graça e da salvação. O presbítero, portanto, não é somente “homem de Deus” e “homem da Igreja”, mas é também “homem do mundo”, no sentido de que está a serviço de todos os homens e mulheres de hoje. Ora, para o presbítero, o mundo de hoje se apresenta como imenso campo de trabalho, trabalho de evangelização.

O Vaticano II, na constituição “Gaudium et Spes”, o primeiro documento conciliar a fazer uma ampla reflexão sobre a presença da Igreja no mundo, levou a sério a advertência de Jesus:

“Quando vedes uma nuvem vinda do ocidente, logo dizeis que vem chuva. E assim acontece. Quando sentis soprar o vento sul, logo dizeis que vai fazer calor. E assim acontece. Hipócritas! Sabeis avaliar o aspecto da terra e do céu. Como é que não sabeis avaliar o tempo presente?Por que não julgais por vós mesmos o que é justo?” (Lc 12, 54-57).

“Para desempenhar sua missão, a Igreja, a todo momento, tem o dever de perscrutar os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho; para que assim possa responder, de modo adaptado a cada geração, às eternas perguntas dos homens a cerca do sentido da vida presente e futura, e da relação entre ambas. É, por isso, necessário conhecer e compreender o mundo em que vivemos, as suas esperanças e aspirações, e o seu caráter tantas vezes dramático” (GS 4 a)

Para por fim a todas as espécies de dualismos reducionistas, segue um dos textos mais lúcidos da GS: “Afastam-se da verdade os que , sabendo que não temos aqui na terra uma cidade permanente, mas que vamos em demanda da futura, pensam que podem por isso descuidar de seus deveres terrenos, sem atentarem a que a própria fé os obriga ainda mais a cumpri-los, segundo a vocação própria de cada um.(...) Não se oponham, pois, infundadamente, as atividades profissionais e sociais, por um lado, e a vida religiosa, por outro. O cristão que descuida os seus deveres temporais, falta aos seus deveres para com o próximo e até para com o próprio Deus, e põe em risco a sua salvação eterna”(GS 43) Vale a pena lembrar o que nos disse o Pe Alberto Antoniazzi nesta assembléia:

“As pesquisas recentes sobre os presbíteros e a observação ao redor de nós nos mostram que um grande número de padres presta pouca ou nenhuma atenção aos “sinais dos tempos”, ou seja, aos acontecimentos históricos e à realidade da vida cotidiana, que são - para os cristãos – sinais da presença atuante de Deus na história. Entre as causas deste descuido, está a sobrecarga de trabalho pastoral, mas muitas vezes está também uma visão essencialista, quase atemporal, da realidade (o presbítero “fora do tempo”). É paradoxal que isto aconteça hoje, na sociedade atual, marcada pela “reflexividade”, ou seja, pela produção de sempre novos eventos, conhecimentos e informações, que induzem as pessoas e instituições a repensar continuamente suas decisões e seus rumos, para levar em consideração o dinamismo da sociedade ou... ficar atrasadas e desaparecer.

Traduzido em termos positivos, isto significa a necessidade de envolver efetivamente os presbíteros num processo de “formação permanente”, que o mantenha sintonizado com sua época, torne-o mais atento e capaz de ouvir e compreender os anseios do povo e de sua comunidade, torne mais agudo seu espírito crítico e mais pertinente a formulação de sua pregação da palavra evangélica”.

Preferidos: Os pobres e os excluídos

Cristo veio evangelizar a todos e, por isso, teve como preferência específica: evangelizar os pobres. “Os primeiros destinatários da missão são os pobres, sendo a sua evangelização sinal e prova, por excelência, da missão de Jesus” (DP 1142). A opção pelos pobres impulsiona a Igreja a descobrir, sempre de novo, a exigência radical do Evangelho, libertando-a da acomodação e do conformismo aos “esquemas deste mundo” (cf. Rm 12,2).

A evangélica opção pelos pobres precisa ser assumida como valor inquestionável da espiritualidade cristã, assim como é a Palavra, a Eucaristia, a veneração a Maria. Por isso, esta opção deve ser elemento integrador e unificador de toda a ação evangelizadora e pastoral da Igreja.

A solidária opção pelos pobres, que se constitui na grande diretriz pastoral, não vem a se outra coisa que uma opção pela vida do povo. A mudança do lugar social torna-se uma exigência para a nossa espiritualidade e ação de presbíteros. O nosso problema não é o ateísmo, mas a negação que se faz do plano de Deus e do direito que a Igreja possui de anunciá-lo, denunciando todas as formas de injustiças e violação dos direitos humanos de que são vítimas milhares de excluídos.

Misericórdia e justiça são os dois fios condutores sempre presentes na pregação e na prática de Jesus, manifestações da sua caridade pastoral. A “terna misericórdia do coração de nosso Deus” (Lc 1,78), o “amor materno” de Javé revelam-se de modo pleno e definitivo naquele que se auto-intitulou Bom Pastor e devem iluminar a prática daqueles que são chamados a apascentar, em seu nome, as multidões que vagueiam errantes pelos vales e montanhas, periferias miseráveis das cidades e sertões esquecidos da nossa terra.

A relação de Jesus com as multidões, que concretamente são as maiorias empobrecidas e esvaziadas de sua memória e de suas utopias, testemunha a fome e a sede de justiça que Ele mesmo experimenta na medida em que se aproxima, comove-se e se compadece (cf Mc 6,36).

Não são duas realidades distintas, a misericórdia e a fome e sede de justiça. Antes, a ambas o Senhor vai chamar de bem-aventuranças, isto é, qualidades precípuas e inseparáveis dos discípulos do Reino. Nesta chave, o amor pastoral aparece cheio de afeto, ternura, comunhão interpessoal ao mesmo que pleno de solidariedade, e compromisso social e político na direção dos marginalizados e excluídos, abandonados à própria sorte pelas elites egoístas, avarentas e insaciáveis de ontem e de hoje.

Suprema expressão e alimento: A Eucaristia

A caridade pastoral encontra a sua plena expressão e supremo alimento na Eucaristia. “Esta caridade pastoral, diz-nos o Concílio, brota sobretudo do sacrifício eucarístico, o qual constitui o centro e a raiz da vida do presbítero, de modo que a alma sacerdotal se esforçará por espelhar o que é realizado sobre o altar do sacrifício”(PO 14).

“Na Eucaristia é representado, ou seja, de novo tornado presente o sacrifício da Cruz, o dom total de Cristo à sua Igreja, o dom do seu Corpo entregue e do seu Sangue derramado, testemunho supremo do seu ser Cabeça e Pastor, Servo e Esposo da Igreja”(PDV 23). O rito da Ordenação Presbiteral expressa esta profunda verdade em forma de compromisso que o ordinando assume: “Recebe a oferenda do povo para apresentá-la a Deus. Toma consciência do que fazes e põe em prática o que vais celebrar, conformando tua vida ao mistério da cruz do Senhor”.

Precisamente por isso, a caridade pastoral do presbítero não brota apenas da Eucaristia, mas encontra na celebração desta a sua mais alta realização. Da mesma forma que recebe dela a graça e a responsabilidade de tornar eucarística a sua vida inteira e o exercício do seu ministério.

Como não lembrar agradecidos o que nos escreveu Papa na última Quinta-feira Santa?

“Nós nascemos da Eucaristia. O que dizemos de toda a Igreja, ou seja, que «de Eucharistia vivit», como quis reiterar na recente Encíclica, podemos perfeitamente afirmá-lo do sacerdócio ministerial: este tem origem, vive, opera e frutifica « de Eucharistia ». Não existe Eucaristia sem sacerdócio, como não existe sacerdócio sem Eucaristia” (n.2).

« Mysterium fidei: » proclama o sacerdote depois da consagração. Mistério da fé é a Eucaristia, mas, conseqüentemente, é-o também o próprio sacerdócio (cf. Dom e Mistério, ob. Cit. pg. 89). O mesmo mistério de santificação e de amor, obra do Espírito Santo, pelo qual o pão e o vinho se tornam o Corpo e o Sangue de Cristo, age na pessoa do ministro no momento da Ordenação Sacerdotal. Há, portanto, uma específica reciprocidade entre a Eucaristia e o sacerdócio, reciprocidade que tem origem no Cenáculo: trata-se de dois sacramentos que nasceram juntos e cujas sortes estão indissoluvelmente ligadas até ao fim do mundo”(n.3).

Contra toda tentação de pensar a liturgia eucarística como evasão ou fuga do mundo, o Papa reafirma “com força” o empenho nas realidades terrestres: “Desejo reafirmá-lo com vigor ao início do novo milênio, para que os cristãos se sintam ainda mais decididos a não descuidar dos seus deveres de cidadãos da terra. (...) Muitos são os problemas que obscurecem o horizonte do nosso tempo. Basta pensar quanto seja urgente trabalhar pela paz, colocar sólidas premissas de justiça e solidariedade nas relações entre os povos, defender a vida humana desde a concepção até ao seu termo natural. E também que dizer das mil contradições dum mundo « globalizado », onde parece que os mais débeis, os mais pequenos e os mais pobres pouco podem esperar? É neste mundo que tem de brilhar a esperança cristã! Foi também para isto que o Senhor quis ficar conosco na Eucaristia, inserindo nesta sua presença sacrificial e comensal a promessa duma humanidade renovada pelo seu amor. É significativo que, no lugar onde os Sinóticos narram a instituição da Eucaristia, o evangelho de João proponha, ilustrando assim o seu profundo significado, a narração do « lava-pés », gesto este que faz de Jesus mestre de comunhão e de serviço (cf. Jo 13, 1-20). O apóstolo Paulo, por sua vez, qualifica como « indigna » duma comunidade cristã a participação na Ceia do Senhor que se verifique num contexto de discórdia e de indiferença pelos pobres (cf. 1 Cor 11, 17-22.27-34). Anunciar a morte do Senhor « até que Ele venha » (1 Cor 11, 26) inclui, para os que participam na Eucaristia, o compromisso de transformarem a vida, de tal forma que esta se torne, de certo modo, toda « eucarística » (n.20).

Caridade Pastoral: eixo integrador da vida e do ministério

Todo o exposto até aqui demonstra que a caridade pastoral é o princípio interior e dinâmico capaz de unificar as múltiplas e diversas atividades do presbítero. É o eixo integrador da sua espiritualidade, o cerne que unifica a vida e o ministério presbiteral. “A unidade de vida, recorda o Concilio, pode ser conseguida pelos presbíteros seguindo, no desempenho do próprio ministério, o exemplo do Cristo Senhor, cujo alimento era o cumprimento da vontade daquele que o tinha enviado a realizar sua obra (...) Assim, representando o Bom Pastor, no próprio exercício pastoral da caridade, encontrará o vínculo da perfeição sacerdotal que tornará efetiva a unidade entre a sua vida e atividade”(PO 14).

Trata-se aqui de aprender a beber no poço do nosso ministério como nos ensina o Vaticano II: “Caminho de santificação para o presbítero é o próprio exercício do seu ministério, de modo a tirar dele todo proveito espiritual” (PO 13). Colocando em prática essa lúcida intuição superaremos falsos dualismos que opõem contemplação e ação, oração e pastoral, pois ensinando, o presbítero também escuta e aprende com os fiéis; pregando a Palavra é também evangelizado; celebrando e santificando, o presbítero também ora e se santifica; servindo e coordenando a comunidade, torna-se epifania e sacramento do Bom Pastor.

Vivido desse modo, o ministério torna-se fonte de espiritualidade, já que seu centro é o amor ao Deus do Reino e a caridade pastoral para os irmãos. Assim, a santidade do presbítero irradia sem dúvida sobre a comunidade e ele se torna para o povo o que João XXIII queria ser: uma “fonte na praça”.

O testemunho e a fidelidade dos bispos e presbíteros, pastores-mártires do passado e do presente, incentivam-nos a sermos autênticos continuadores, epifania e sacramento da caridade pastoral de Jesus que irrompeu no discurso inaugural da sinagoga de Nazaré, concretizou-se em todos os seus gestos, atitudes, palavras, e alcançou a plenitude na hora da Paixão. Presbíteros consagrados e enviados pelo mesmo Espírito que ungiu e conduziu o Bom Pastor, viveremos nossa espiritualidade e ministério a serviço da libertação integral dos irmãos que ele confia à nossa caridade pastoral.

“Anunciar a Boa Nova aos pobres”, é a caridade evangelizadora. “Proclamar a libertação aos presos”, é a caridade social. “Recuperar a vista aos cegos”, é a caridade existencial. “Restituir a liberdade aos oprimidos”, é a caridade política (cf Lc 4,16s).

Nenhuma necessidade humana pode passar descuidada pelo zelo do presbítero, discípulo e testemunha do Bom Pastor Ressuscitado no serviço à Igreja e aos homens e mulheres de hoje.


3-FRATERNIDADE E PASTORAL PRESBITERAL

Celebração da Penitência

Os Encontros Nacionais dos Presbíteros (ENPs) são verdadeiros presentes do Espírito para a Igreja do Brasil. Estão ajudando a moldar a identidade presbiteral na perspectiva do Concílio Vaticano II e da caminhada da Igreja na América Latina. Através dos ENPs começamos a concretizar a colegialidade presbiteral, a saborear a alegria da “íntima fraternidade sacramental” e a construir a pastoral presbiteral que brotam do sacramento da Ordem.

Particularmente o 7° ENP (1998) com o tema “Presbíteros rumo ao Novo Milênio” abordou com profundidade a necessidade da Pastoral Presbiteral.

“Cresce em algumas dioceses a consciência de que é preciso dar um acompanhamento especial aos presbíteros. É louvável o esforço da Igreja em oferecer sua presença, apoio e assistência a grupos de pessoas em situações difíceis, criando pastorais específicas, tais como as várias pastorais sociais.

Por que não criar uma pastoral específica para acompanhar os presbíteros? Sendo pessoas que se doam tanto pelo povo, muitas vezes não têm tempo nem condições de cuidar de si. A comunidade eclesial deverá despertar para cuidar daqueles que entregaram todo seu coração, seu afeto e sua vida a serviço de Deus e de seu povo. Compete ao bispo diocesano e ao conselho presbiteral organizar a Pastoral Presbiteral para zelar pela vida e ministério dos presbíteros” (Texto Base do 7º ENP, p 28-29).

O principal agente da Pastoral Presbiteral deve ser o bispo, que, como o bom Pastor, se empenha em valorizar os seus irmãos presbíteros; conhecê-los com o coração, para compreender sua história de vida, seus desejos e anseios, bloqueios e limitações. Espera-se do bispo que seja amável e acolhedor, que promova a unidade do presbitério em torno de si, como sinal do próprio Cristo. Por outro lado, os presbíteros procurem ser a presença do pastor junto ao povo, na pregação e na ação pastoral. É necessário que o bispo saiba onde mora cada presbítero, como vive, quais as carências e necessidades, para que possa oferecer uma presença de consolo, uma palavra firme e aponte objetivos claros.

Um bispo, relatando as conclusões de um trabalho em grupo, dizia nesta assembléia: “Mais que pai, o bispo precisa se irmão dos presbíteros”. Um eco do evangelho que escutamos: “Não chameis a ninguém na terra de pai, pois um só é vosso Pai... e vós sois todos irmãos. Pelo contrário, o maior dentre vós deve ser aquele que vos serve” (Mt 23, 9-11)

O bispo com os presbíteros, e esses com o bispo promovam um ambiente saudável, de unidade e amizade, na própria Igreja local, na plena consciência de serem juntos sacramento do Corpo de Cristo. Com sabedoria e realismo, assim expressou-se o Pe Alberto Antoniazzi nesta assembléia:

“Não devemos ter medo de fazer propostas exigentes, contra a correnteza, contra a tendência individualista e hedonista. Podemos apostar num presbitério como verdadeira comunidade fraterna. E se não o fizermos, veremos os padres da diocese procurar solidariedade, fraternidade e entusiasmo em outros ambientes”.

À luz do evangelho que escutamos, (Mt 20, 20-28) vamos refletir sobre o valor da fraternidade. Vamos contemplar nosso Mestre e Senhor Jesus como irmão de todos. Esse é um dos aspectos da sua personalidade que mais transparece nos evangelhos. “Para salvar-nos, Jesus veio a nós, misturou-se conosco, viveu entre nós no contato mais familiar e mais estreito. Para a salvação dos irmãos, nós também precisamos ir até eles, misturar-nos com eles, viver em íntimo contato familiar” (Charles de Foucauld). Através de suas ações e palavras, Jesus nos ensina que a fraternidade que nasce da paternidade divina é uma urgente necessidade, um sonho, uma humilde experiência, um precioso dom de Deus.

A fraternidade é uma urgente necessidade Ninguém vive sem amor. Amar e ser amado constitui a dupla via do amor. Nossa formação, de um modo geral, acentuou a dimensão oblativa do amor: sair de si mesmo, servir os outros. Por isso, temos certa dificuldade para nos deixar amar, para acolher o amor dos outros. Damos a impressão de que gastamos tanto tempo para nos tornar cultos, superiores, juízes dos outros. E que temos a tendência de controlar nosso tempo, os agentes de pastoral, as finanças.

Quando alguém aceita ser amado, perde um pouco o poder que possui, pois se deixa influenciar e, de certa forma, conduzir pelo outro. O medo de perder o controle explica as resistências de muitos para partilhar os sentimentos, as crises, os fracassos. Por causa disso e em função da organização hierárquica da Igreja, nossas relações vão se tornando demasiado verticais e funcionais. Estamos prensados entre o bispo e o povo, que nos cobram de diferentes maneiras.

Deste modo, é difícil estabelecer relações horizontais. E acabamos sendo privados das relações de igualdade e reciprocidade, essenciais para a amizade, e que realmente nos humanizam e personalizam.

A identidade pessoal não pode ser descoberta apenas com a pergunta: “Quem sou eu?” Correríamos o risco de encontrar uma identidade individualista, fechada em si mesma. Urge também perguntar: “Com quem ando? Com quem sou? De quem sou? Para quem sou?” As respostas a estas perguntas configuram relação, totalidade, busca de plenitude.

O coração fraterno possui muitas manifestações: dar, receber, pedir, agradecer... Aprender a dar, receber, pedir idéias, tempo, coisas, atenção, consolo... Quando meditamos a parábola do bom samaritano, geralmente nos identificamos com aquele que socorre, nunca com o caído, o necessitado. É preciso sentir-se livre para conseguir pedir, receber gratuitamente e saber dizer: “gracias”! Saber receber sem se intrometer na vida dos outros. Receber uma criança, um mendigo, um aidético, um casal divorciado, uma prostituta... Amar com transparência, sem controlar, sem possuir. Na homilia de ação de graças pela recuperação de Dom Luciano Mendes de Almeida, após aquele grave acidente, em 1990, Dom Serafim

Fernandes pronunciou estas tocantes palavras: “Dom Luciano ama a cada pessoa com a mesma naturalidade com que toma um copo d’água”.

“Em nosso coração existe mais amor do que somos capazes de expressar”, afirmou Segundo Galilea durante um retiro. Há em nós bloqueios afetivos, desconfianças, preconceitos, medo de sermos incompreendidos ou mal interpretados. No entanto, as pessoas que nos cercam, principalmente aquelas que trabalham e convivem conosco precisam saber e sentir que nós as amamos. Relacionando-nos assim, daremos sentido também para a opção do celibato.

Esta deve possibilitar maior liberdade e abertura para amar a todos, vencendo a tentação de controlar, possuir, dominar. Na opção celibatária, a relação homem/mulher exerce um papel importante, pois a castidade por causa do Reino imprime no presbítero a capacidade de estabelecer relações maduras com outras pessoas, tanto homens como mulheres. Este relacionamento em nível de igualdade e reciprocidade da amizade é indispensável para o nosso crescimento e amadurecimento humano, afetivo e espiritual.

A fraternidade é um sonho

A fraternidade universal é o maior sonho de Deus. Coincide também com o sonho do coração de cada pessoa humana: ser e viver como irmãos, superando toda espécie de preconceitos e divisões!

Um dos pecados dos cristãos de hoje é a incapacidade de sonhar. Nossos sonhos vão se tornando pequenos, mesquinhos, rasteiros, insignificantes. Com a desculpa de sermos realistas, concretos, práticos, eficientes, acabamos presos ao convencional, ao jurídico, ao institucional, às rubricas, ao imposto. Não será por este motivo que tantos jovens abandonam a Igreja? No entanto, foi Jesus quem nos revelou o sonho que nenhuma religião descobriu: Deus é Pai que nos ama com coração de mãe! O Deus que estava longe como Senhor Altíssimo, chegou perto de nós como Abba, Papai!

No retiro que orientou para os bispos na 35ª Assembléia da CNBB, em 1996, Frei Carlos Mesters lembrava: ”No Primeiro Testamento, Deus é chamado de Pai só 15 vezes. No Segundo Testamento, que é três vezes menor que o Primeiro, Deus é chamado de Pai 245 vezes! É a explosão de uma experiência nova de Deus e da vida! Deus é Pai com coração de mãe! Esta é a grande boa notícia que Jesus nos trouxe”.

O abismo que separa povos desenvolvidos e subdesenvolvidos, brancos e negros, homens e mulheres, prova que não reconhecemos a paternidade de Deus e estamos longe de viver a fraternidade universal. A sociedade piramidal, classista e excludente é antítese do cristianismo. Na fraternidade nos esforçamos para sermos continuadores da primeira comunidade dos discípulos e discípulas de Jesus. “Quanto a vós, não permitais que vos chamem ‘Rabi’, pois um só é o vosso Mestre e todos vós sois irmãos. A ninguém chameis de Pai sobre a terra, pois tendes um só Pai que está no céu. Nem permitais que vos chamem ‘Guias’, pois um só é vosso guia, Cristo. Antes, o maior entre vós será aquele que vos serve” (Mt 23,8- 10).

O novo céu e a nova terra que sonhamos é mesa redonda com espaço igual para todos, com pão repartido entre todos, conforme o sagrado direito da necessidade de cada um. Se o neo-liberalismo é, em sua própria essência, excludente, o cristianismo é visceralmente acolhedor e includente, a partir dos últimos que na ótica do Reino são os primeiros.

Vivendo entre os nômades do deserto, entre os tuaregues e os muçulmanos, Charles de Foucauld relata que um dos dias mais felizes de sua vida foi quando estes pobres chamaram sua choupana de “fraternidade” e a ele de “irmão universal”! Na Divina Comédia, Dante Alighieri descreve Francisco de Assis e os seus companheiros na glória do paraíso e diz que “eles encantaram o mundo com a sua concórdia (fraternura: fraternidade+ternura, dizem hoje os franciscanos) e com o seu rosto alegre”.

Os sonhos cristãos são sociais, coletivos, envolvem homens e mulheres de todas as classes e nações, de todas as raças e línguas, de todas as culturas e religiões.

Nos últimos anos, quem mais encarnou este sonho entre nós, foi o Betinho, o militante da utopia. Revelou o rosto de 32 milhões de brasileiros excluídos, despertou a indignação ética e congregou pessoas e entidades na luta por pão, emprego e terra para todos. Um amigo que o conhecia bem, assim concluiu o comentário sobre a sua morte: “Se houver céu, Herbert de Souza é uma das presenças improváveis. É do tipo que sentará na porta e só entrará quando todos os outros chegarem”.

A fraternidade é uma humilde experiência. A fraternidade é algo concreto que vai se tecendo no dia a dia de nossa existência. É uma história de criaturas carentes e frágeis, mas que sabem repartir o riso e as lágrimas, os êxitos e os fracassos, os sonhos e as esperanças.

Na fraternidade aprendemos a respeitar os outros em suas diferenças. ‘Se pensas diferente, tu me enriqueces”, diz Dom Helder Câmara. Em todas as relações humanas (não só entre os casais), cedo ou tarde, aparecem as diferenças. Numa fraternidade onde não surgem confrontos, dificilmente se cresce no amor, dificilmente se constroem sólidas amizades. É preciso ter a coragem de interrogar-se mutuamente, com suavidade e franqueza, sem ter medo das tensões e dos possíveis confrontos. A falsa amizade vai minando e destruindo as relações fraternas.

Não seremos humanos enquanto, de modo consciente, não nos sentirmos fracos e carentes para necessitar de ajuda, compreensão e consolo de nossos irmãos. Ser fraterno é permanecer aberto e vulnerável para criar vínculos. Transcrevo aqui o testemunho sobre um bispo, narrado por um presbítero, meu amigo:

“Certa ocasião, conhecendo D. Valter Bini, sem saber que já era a despedida (porque ele partiu, logo depois, num acidente), perguntamos, um amigo e eu, como ele vivia sua vida de bispo em Lins, quais os maiores desafios etc. Ele respondeu-nos que procurava aproximar-se muito das pessoas, ouvi-las, dialogar, participar de sua vida. Buscava reduzir ao máximo suas horas de “burocracia eclesiástica” para ir ao encontro das pessoas.

Neste quadro, o maior desafio, o maior sofrimento, disse-nos ele, era o de não conseguir muitas vezes, por diversos fatores, ser bem achegado, colocando-se bem perto mesmo. E então contou-nos um fato que agora, na luz do Ressuscitado, não deve mais provocar-lhe a tristeza que vimos no seu rosto, porque ali toda a lágrima será enxugada...Tratava-se de uma jovem, colaboradora na Cúria e na pastoral, muito próxima do bispo no cotidiano, que um dia viajou inesperadamente para uma cidade vizinha, e lá, no hospital, veio a falecer. Causa mortis: complicação no parto de uma criança não-desejada. Ambas morreram. D. Valter, ao falar, transmite toda a dor sincera que o invadia: ‘Como é possível que uma pessoa que está sofrendo ao nosso lado não tenha a coragem de abrir o coração?’ Sua interrogação se desdobrava em lamento ante o irremediável” (Pe Antonio Reges Brasil, Cadernos Vocacionais 26, Loyola, 1991, p 66).

“Todos nós precisamos de um ombro para chorar, para partilhar nossos fracassos, crises e sofrimentos”, costuma afirmar o Pe Dalton Barros.

E quem é que compreende melhor o padre se não o outro padre? Dom Eduardo Koaik disse-nos nesta assembléia que “formadores dos presbíteros são os próprios presbíteros, pois se conhecem mutuamente e conhecem também suas potencialidades e fragilidades”.

Aprendemos a ser presbíteros uns com os outros. Aprendemos a ser presbíteros olhando também para o testemunho de nossos bispos, nossos irmãos mais velhos, mais experientes, com a plenitude do sacramento da Ordem para serem modelos no amor e no serviço. Sob este aspecto considero-me privilegiado, pois tive a graça de viver perto e aprender de três bispos que amo e admiro muito: Dom Ivo Lorcheiter, Dom Jayme Chemello e Dom Paulo Moretto.

Bom presbítero, não é aquele que se julga sempre forte, vencedor, bem sucedido em tudo o que faz. Pelo contrário, tem melhores condições de crescer aquele que faz a experiência de suas carências e fragilidades e se deixa amar, ajudar e conduzir por Deus e pelos irmãos. “Quando eras jovem, tu mesmo te cingias e andavas por onde querias; quando fores velho, estenderás as mãos e outro te cingirá e te conduzirá aonde não queres” (Jo 21,18).

Fraternidade é um intercâmbio de vida para continuar peregrinando, pois também o amor se cansa. E quantos presbíteros caminham feridos, amargurados, cansados, quase mortos! A fraternidade possibilita uma humilde experiência que nos ajuda a caminhar com alegria e esperança, apesar das dificuldades e crises. Constitui, em última instância, uma comunidade de Igreja, espaço que viabiliza “as intimas relações interpessoais na fé” (cf. Puebla 641) e a experiência do encontro com Jesus.

Como os discípulos de Emaús, através da partilha das preocupações, da Palavra e da Eucaristia, descobrimos a presença de Jesus, o Bom Pastor Ressuscitado que caminha à nossa frente.

A fraternidade é um precioso dom do Senhor A fraternidade é difícil. Exige mansidão, humildade, paciência, perseverança. Podemos completar a lista lendo 1Cor 13. Só o amor de Deus, derramado em nossos corações pelo seu Espírito, pode nos revestir da graça da fraternidade e do dom da amizade.

Francisco e Clara de Assis, Carlos de Foucauld, Mahatma Gandhi, João XXIII, Martin Luther King, Teresa de Calcutá, Oscar Romero, Helder Camara, santos e santas de ontem e de hoje, tinham uma idéia fixa: chegar a ser irmãos universais de cada pessoa, acima de qualquer cor, idade, raça, sexo, cultura, religião.

Na fraternidade pretendemos viver esta mesma aventura através da acolhida, do encontro, do serviço, do diálogo. Hoje, muitos buscam a felicidade apenas no acúmulo dos bens, no consumismo, no hedonismo. Nunca irão achá-la, pois ela só existe no encontro amoroso, respeitoso, cordial. “Abrir-se para uma atitude de acolhida do outro, em especial de quem pertence a tradições religiosas e culturais diferentes.

A acolhida se refere especialmente às suas experiências espirituais mais profundas. Esta atitude está alicerçada num espírito de tolerância e respeito e se realiza mediante o diálogo aberto, que valoriza a experiência do outro e o ajuda na sua busca, sem julgar, nem condenar, nem impor” (DGAE 1995-1998, n.346). E completa Charles de Foucauld: “Dar-se a todos para dá-los a Jesus – tendo para com todos bondade e afeição fraterna, prestando todos os serviços possíveis, afetuoso nos contatos, terno irmão para todos, a fim de conduzir pouco a pouco as almas a Jesus, praticando a sua mansidão”.

Para ser cristão é indispensável aprender a ser amigo, tornar-se especialista em amizade. Creio que sem trair o sentido radical de Jo 15,13, podemos traduzir “amor maior” por amizade. Jesus, Irmão de todos, Mestre na arte de amar, nos ensina que a amizade é a forma mais concreta, visível, universal e credível de viver o novo mandamento. Todas as outras formas de amor, se não forem acompanhadas pela a amizade, acabam se diluindo e morrendo.

Acerta em cheio o poeta gaúcho Mário Quintana quando diz: “A amizade é uma espécie de amor que não morre nunca”! Para enfrentar a avassaladora onda de individualismo e exclusão de nossa época, começa a crescer, em toda a parte, o sentimento de solidariedade e a busca de integração e de unidade. “Outro mundo é possível” e nós cristãos temos contribuição imprescindível a dar! Para os presbíteros, o fundamento teológico desta busca, além do mandamento novo, é “a íntima fraternidade sacramental” gerada pela ordenação. “Os presbíteros, estabelecidos na Ordem através da Ordenação, estão ligados entre si por uma íntima fraternidade sacramental; de modo especial formam um só presbitério na diocese para cujo serviço estão escalados sob a direção do Bispo. Com os demais membros deste presbitério, cada qual está unido por laços especiais de caridade apostólica, de ministério e fraternidade” (PO 8).

A fraternidade, decorrência e fruto do Sacramento da Ordem, precisa descobrir muitas formas para ser vivida e testemunhada entre os presbíteros e com o povo. “O ministério ordenado necessita recuperar sua vivência colegial. O Vaticano II redescobriu a natureza comunitária do ministério ordenado. Essa comunhão precisa ser vivenciada afetiva e efetivamente em todos os graus do ministério: na colegialidade episcopal e na corresponsabilidade presbiteral no interior de cada Igreja Particular. A forma individualista do ministério ordenado, além de ser uma traição à sua própria essência, é um dos principais entraves à realização de uma Igreja toda ela responsável pela missão” (DGEV 1995-1998, n.327).

Um cristão-presbítero isolado não descobriu a essência do cristianismo e nem do sacramento da Ordem. O individualismo nos isola, corta relações. A fraternidade cria laços gerados pela graça do encontro e da amizade. O Pe. Nildo Júnior, da Arquidiocese de São Paulo (Região de São Miguel), morto num acidente automobilístico com apenas dois anos de ministério, costumava repetir aos irmãos do seu presbitério: “Somos tão poucos, precisamos nos amar muito”!

A fraternidade é um precioso dom que devemos suplicar ao Senhor todos os dias. Na intimidade com o Bem Amado Irmão e Senhor Jesus e na graça da amizade aprenderemos a olhar o mundo com os olhos de Deus e a amar as pessoas com o coração de Deus Pai e Mãe. Permitiremos, assim, que o Amor do Bom Pastor passe aos irmãos e às irmãs através do nosso amor e da nossa caridade pastoral.

Jo 15,9-17; 1 Jo 3,13–24 e 4, 7-21; Rm 12,8-18; Cl 3,12-171; Cor 13, 1-13

4“FAZEI TUDO O QUE ELE VOS DISSER” (Jo 2,5)

Eucaristia do Dia de Espiritualidade

Nosso dia de espiritualidade ficaria incompleto sem a presença materna da Santa Maria de Nazaré – Nossa Senhora Aparecida do Brasil, a humilde serva do Senhor que entre nós quis aparecer pequenina, pobre e negra, com o rosto da maioria do povo brasileiro.

Nas bodas de Caná ela não se encontrava entre as damas de honra, mas entre os serventes. Percebeu logo quando serviram a última garrafa de vinho e recorreu a Jesus. Dirigindo-se aos serventes, deixou-nos o seu testamento porque também nós somos servidores do povo: “Fazei tudo o que Ele vos disser” (Jo 2,5).

A água transformada em vinho nos remete à Ceia do

Senhor como nos diz o Papa João Paulo II:

“Todas as vezes que repetimos o gesto de Cristo na Última Ceia, dando cumprimento ao seu mandato: “Fazei isto em memória de mim”, ao mesmo tempo acolhemos o convite que Maria nos faz para obedecermos a seu Filho sem hesitação: “Fazei tudo o que ele vos disser”. Com a solicitude materna manifestada nas bodas de Caná, ela parece dizer-nos: “Não hesitai,confiai na palavra do meu Filho. Se ele pôde mudar a água em vinho, também é capaz de fazer do pão e do vinho o seu corpo e sangue, memorial vivo da sua Páscoa” (EE, 54).

O primeiro sinal de Jesus aguça nossa expectativa para o melhor que ainda está por acontecer, pois vivendo de esperança em esperança acreditamos que o melhor sempre vem depois. “Vinho melhor foi guardado pra hora que já soou! Novo céu e nova terra, primavera já chegou!”, canta o poeta Zé Vicente.

Inspiro-me agora na Carta de Compromisso dos presbíteros que participaram do 10º ENP. Esta carta nos ajuda a identificar quais são os maiores desafios à ação evangelizadora de hoje e qual é o “vinho melhor” que os presbíteros somos convidados a servir através de nossa vida e ministério.

“Eles não têm mais vinho”

Como discípulos que procuram seguir Jesus hoje, vimos em sua companhia as multidões que nas cidades e nos campos, nos rios e matas de nosso país andam errantes, cansadas e abatidas como ovelhas sem pastor (Mt 9, 36). Ouvimos seu grito (Ex 3, 7), que clama desde todos os porões da exclusão social que caracteriza o atual processo de globalização da economia mundial. Atentos ao que nos pede a Mãe – “Fazei tudo o que ele vos disser”- com Jesus, nossos corações encheram-se de compaixão. Na força de sua Palavra e na unção do Espírito (Mt 3, 16), anunciamos o Reino de Deus que se aproxima (Mc 1, 15).

Atentos ao clamor dos pobres, comprometemos-nos a servir “o vinho melhor” das atuais Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil: promover a dignidade da pessoa, renovar a comunidade, e continuar contribuindo para a construção de uma sociedade solidária, onde Justiça e Paz possam abraçar-se (cf. Sl 84).

Promover a dignidade da pessoa

Afirmamos a grandeza do homem e da mulher, imagem e semelhança do Criador (Gn 1, 27; Sl 8, 5-7). A vocação humana está inscrita no horizonte de Deus, não no individualismo egocêntrico nem na liberdade que, sem Deus, desemboca em sua própria negação. Esta ameaça de frustração do humano, presente na sociedade pós-moderna, pode atingir também, por paradoxal que seja, nossa pessoa de presbíteros. A dimensão profética da vida cristã e do próprio ministério exigem uma palavra clara e corajosa sobre esta realidade.

Às vezes, por exemplo, pensamos e agimos como quem não conta realmente com Deus, fechando-nos num ativismo voluntarista e prometéico.

Ocorre, na prática, como se o secularismo da cultura ocidental fosse a referência de nossas vidas, sem refletirmos sobre as conseqüências do grande impasse de um mundo que se recusa a crer.

A frustração, o vazio que essa atitude acaba gerando, tem levado alguns à busca de segurança no status clerical ou nos sinais exteriores de autoridade. Não raro aparecem também, correlatas, atitudes narcisistas, disfarçadas na exagerada preocupação consigo mesmo, com a própria saúde, ou bem-estar.

Um presbítero assim torna-se incapaz de relações adultas e saudáveis, e por isso alterna subserviência, geralmente diante de autoridades, com prepotência, diante de colegas padres e/ou leigos e leigas com quem trabalha e a quem, não raro, atrapalha. Celibato, vida afetiva e o próprio ministério esvaziam-se, restando apenas o traço externo, contraditório e superficial do funcionário do sagrado.

Diante destes desafios, qual é o “vinho melhor” que desejamos oferecer?

Movidos pela caridade pastoral, centro de irradiação de nossa vida afetiva e espiritual, queremos oferecer ao Povo de Deus “o vinho melhor” do compromisso de buscar a sua felicidade e a nossa numa vivência profunda e adulta da Fé batismal que todos recebemos.

Esta Fé nos levará ao testemunho capaz de gritar o Evangelho com a vida, permanecendo abertos às pessoas e aos questionamentos e desafios de nosso tempo. Como presbíteros, fomos constituídos “administradores dos mistérios de Deus” (1Cor 4, 2). “Não nos apresentamos com o prestígio da palavra ou da sabedoria (...) Estamos no meio de nosso povo cheios de fraqueza, receio e tremor (1Cor 2, 1-3). É de dentro desta condição que “proclamamos a Cristo Jesus, não a nós mesmos” (2Cor 4,5).

Promovendo nossa própria dignidade em chave de serviço evangélico, no húmus de nossa verdadeira condição, ou seja, na humildade dos discípulos do Reino, acreditamos que estaremos sendo instrumentos de valor para a promoção da dignidade do povo brasileiro. O que esperamos de nosso Mestre e Senhor é a graça da gratuidade benfazeja, isto é, depois de termos feito tudo o que devíamos fazer, considerar-nos sinceramente como “simples servos” (Lc 17, 10).

Renovar a comunidade

Em meio aos grandes problemas e desafios de hoje, aparece um ponto luminoso e cheio de promessas em nossas reflexões e partilha de experiências: as comunidades de Igreja! Nelas, a participação generosa dos leigos e leigas que assumem sua vocação batismal brilha como um grande sinal e testemunho do Evangelho. Como não recordar com alegria, olhando nosso povo reunido e ativo, o ministério dos Apóstolos e seus colaboradores e colaboradoras, e as primeiras comunidades por eles fundadas, nos inícios do crescimento da Igreja? (cf. At 16,5; Cl 1, 3-8).

Vimos quanto é importante voltar às raízes do cristianismo, vivendo novas experiências de vida comunitária, de mútuo enriquecimento. É este o espaço propício para combinar o objetivo com o subjetivo, nossa preocupação com a sociedade e a promoção da pessoa.

O mercado não dá conta do amor, da paixão. Por isso, é preciso valorizar os aspectos de nossa identidade que nos levam à solidariedade, à partilha, à comunicação.

Face às demandas das comunidades que querem “ver Jesus, caminho, verdade e vida”, qual é o “vinho melhor” que pretendemos oferecer? Para oferecer “o vinho melhor”, assumimos o compromisso de renovar a comunidade, levando adiante o projeto missionário que visa maior presença da Igreja na Amazônia brasileira, ao mesmo tempo em que procuraremos suscitar vocações para o ministério ordenado, para a vida religiosa e para todos os serviços eclesiais nos centros urbanos e periferias.

Buscaremos incentivar nos seminários especial atenção às dimensões humano-afetiva, comunitária, espiritual e pastoral, ao lado da necessária qualidade da formação intelectual. A alegria da missão há de ser o sinal distintivo de nossas vidas, marcadas pela alegria do Evangelho!

Construir a sociedade solidária

Vimos as imensas possibilidades que o fenômeno da globalização abre para as pessoas em termos de acesso aos bens da cultura e da pesquisa científica, aos frutos do trabalho, à riqueza das nações, a formas cada vez mais perfeitas e imediatas de comunicação. Tudo aquilo, enfim, que proporcionaria mais liberdade, maior participação e autonomia ao ser humano nunca esteve tão perto de tantos, na história.

Vimos e ouvimos, porém, que o modelo econômico neo-liberal globaliza as desigualdades sociais em vez da solidariedade. Ao mesmo tempo em que cria empregos, oportunidades e salários fabulosos para poucos, gera desemprego e exclusão social de contingentes cada vez maiores de condenados à fome e a toda sorte de insegurança.

Enquanto exacerba o individualismo e o consumismo insaciável nas ilhas de prosperidade que inventa, condena à frustração verdadeiros continentes de miséria, obrigados a sobreviver abaixo da linha da pobreza.

Diante desta realidade injusta e geradora de violência, “o vinho melhor” que desejamos oferecer é o anúncio do Evangelho da Paz que é fruto da Justiça. Não podemos ser como cães mudos, ou sentinelas que dormem. Rejeitamos tanto o individualismo como o subjetivismo de uma pós-modernidade que leva à morte do homem. Por isso, assumimos o compromisso de apoiar as milhares de iniciativas populares, em toda a parte, que expressam a luta por um modelo de desenvolvimento sustentável, gerador de equilíbrio e justiça social, na consciência de que um outro mundo é possível.

Neste horizonte, queremos reassumir nosso compromisso evangélico de honrar os pobres do Brasil inteiro, confirmando nossa opção por eles: são as meninas dos nossos olhos, o afeto de nossos corações! Voltamos a anunciar-lhes, com Jesus: “Felizes vocês que têm fome, porque serão saciados! Felizes vocês que agora choram, porque haverão de rir!” (Lc 6, 21- 22).

À Santa Mãe de Deus e nossa, que nos ensina a “fazer tudo o que o Filho nos disser”, permita-nos também entoar o Magnificat em sua amável companhia, em “atitude eucarística”:

“De fato, como o cântico de Maria, também a Eucaristia é primariamente louvor e ação de graças. Quando exclama: « A minha alma glorifica ao Senhor e o meu espírito exulta de alegria em Deus meu Salvador », Maria traz no seu ventre Jesus. Louva o Pai « por » Jesus, mas louva-O também « em » Jesus e « com » Jesus. É nisto precisamente que consiste a verdadeira« atitude eucarística ».

Ao mesmo tempo, Maria recorda as maravilhas operadas por Deus ao longo da história da salvação. Enfim, no Magnificat está presente a tensão escatológica da Eucaristia. Cada vez que o Filho de Deus Se torna presente entre nós na « pobreza » dos sinais sacramentais, pão e vinho, é lançado no mundo o germe daquela história nova, que verá os poderosos «derrubados dos seus tronos» e «exaltados os humildes» (cf. Lc 1, 52). Maria canta aquele «novo céu» e aquela «nova terra», cuja antecipação e em certa medida a síntese programática se encontram na Eucaristia.

Se o Magnificat exprime a espiritualidade de Maria, nada melhor do que esta espiritualidade nos pode ajudar a viver o mistério eucarístico. Recebemos o dom da Eucaristia, para que a nossa vida, à semelhança da de Maria, seja toda ela um magnificat! (EE, 58)

E agora, fiéis ao testamento da Mãe: “Fazei tudo o que Ele vos disser”, vamos celebrar com intenso júbilo e imensa gratidão o mandato do Filho amado do Pai, nosso divino e adorável Redentor: “Fazei isto em memória de mim”. Alimentados pelo “vinho melhor” prosseguiremos entregando nossa vida a serviço dos irmãos e irmãs que o Bom Pastor confia ao nosso ministério diaconal, presbiteral e episcopal.

Um Livro Um Amigo

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