PE. MÁRIO FILIPPI- 2008

1ª MEDITAÇÃO “Ir ao deserto e nele permanecer” – (19.05.1898).

(RETIRO PREGADO EM 2008, do boletim 129)

Quando fui pregar um retiro em Rio Branco, Dom Moacyr Grechi que era então bispo daquela Diocese, deu abertura ao retiro com estas palavras: “Nós não precisamos de alguém que nos cutuque, mas de tomar folego”.

Palavras de sabedoria e humanidade que lembram uma reflexão do Irmão Carlos, comentando Mc 6,31: “Vinde a parte para algum lugar deserto e descansai um pouco”.

“Na nossa vida, seja escondida, seja, sobretudo na pública (é necessário em qualquer tipo de vida, mas, mais na pública) que tenhamos alguns períodos de descanso e períodos de solidão, para transcorrer em companhia de Jesus... Isto é, que façamos retiros que tenham estas três características que Jesus nos mostra aqui”.

Sejam períodos de descanso, não períodos de cansaço, de atividade, de trabalho penoso para o espírito, mas períodos de distensão, dos quais possamos sair não com o espírito exausto e esgotado, causa de um trabalho extraordinário, mas renovados e reanimados por um doce descanso aos pés de Jesus.

Sejam períodos de solidão: mais ficaremos a sós com Jesus, mais dele gostaremos. O amor gosta de um diálogo a dois; menos estaremos com as criaturas e mais poderemos consagrar todos os momentos, todos os pensamentos, todo o nosso coração ao único amor e à única contemplação de Jesus, mais docilmente, mais plenamente e seremos felizes com o Bem Amado.

Sejam períodos de solidão em companhia de Jesus, sempre com ele, não nos preocupando, ficando alegremente aos seus pés, olhando-o sem dizer nada, interrogando-o, sempre cheios de felicidade, como faziam os apóstolos, a santa Virgem Maria e Santa Madalena, quando estavam a sós com o Divino Mestre” (M.S.E.201).

Assim, se o retiro tiver sido um bom descanso e se dormi bem... terá sido um bom retiro. Voltaremos para casa descansados! Um retiro que respira a espiritualidade de Charles de Foucauld só pode ser um retiro que valoriza muito o deserto, como Moisés, Elias, os profetas, João Batista, Jesus, Francisco e o povo Hebreu.

Para o povo Hebreu o tempo do deserto foi visto como o tempo ideal durante o qual o povo se purificou e preparou para entrar na terra prometida. Foi o tempo da Aliança, dos prodígios, quase um tempo de namoro, noivado e núpcias. Por isso, - após as crises, o esfriamento, a infidelidade do povo que esquecia o amor e os favores do Esposo, - os profetas, Oséias especialmente, propõem novamente um retorno ao deserto.

Os 2,16-22: “Por isso a atrairei, conduzi-la-ei ao deserto e falar-lhe-ei ao coração... Aí ela se tornará como no tempo da juventude, como nos dias em que subiu da terra do Egito”.

Esse tempo em que o povo Hebreu permaneceu no deserto, após sua saída do Egito, é visto pelo profeta como um tempo ideal, uma experiência singular, um momento fecundo, abençoado, rico.

- O maná, a água da rocha, a aliança, os mandamentos... tudo isso é visto como o tempo da juventude, do entusiasmo, do ardor, da paixão, do idealismo, dos sonhos,

projetos, vibração, enamoramento. Com todas as crises (como acontece entre namorados e noivos). Por isso Deus quer reconduzir o povo ao Deserto para falar-lhe ao coração, refazer a experiência de então. É isto que também nós queremos fazer, no retiro. É isto que Jesus espera de nós neste retiro.

O Apocalipse retoma o tema de Oséias, e o que o Apocalipse diz da Igreja de Éfeso pode ser aplicado ao presbítero, a nós.

“Conheço a conduta de você, seu esforço e sua perseverança, você é perseverante... Sofreu por causa de meu nome e não desanimou. Mas há uma coisa que eu reprovo. Você abandonou o seu primeiro amor. Preste atenção: repare onde você caiu. Converta-se e retome o caminho de antes” Ap 2,1ss.

Deus se queixa como os namorados: parece que você não gosta mais de mim. Houve um tempo ideal de generosidade, perseverança, amor, fidelidade, entusiasmo, sonhos e projetos. Mas, as pessoas assim como os grupos, as congregações, as instituições, a Igreja, sofrem um desgaste, desencanto, cansaço, rotina, apatia. Só o Espírito Santo não se desgasta.

Deus diz: Converta-se e retorne ao caminho de antes”. Precisamos reinventar nossa vida, a Igreja, com a força do Espírito para:

experimentar novamente a paixão por Jesus, pelo Reino, por seu Projeto;

fazer memória das motivações que foram a base das nossas decisões;

fazer memória das maravilhas que Deus realizou em nós;

resgatar a nossa resposta generosa e um tanto presunçosa (como a de Pedro: – mesmo que todos te abandonem eu não te abandonarei).

É para isso que vamos a este deserto, retiro. Queremos entrar e permanecer no DESERTO, aproximar-nos da SARÇA que arde e não se consome. Ex.3,1-6: Moisés levou o rebanho de Jetro além do deserto, Deus lá o estava

esperando. Não era Moisés que esperava Deus no deserto, era Deus que procurava Moisés e esperava por ele. Não somos nós, não sou eu que procuro Deus, Ele está a minha procura, esperando por mim.

Precisamos aproximar-nos da Sarça com os pés descalços (tira as sandálias).

-O calçado significa segurança (particularmente as botas), autossuficiência; arrogância (militares), superioridade, pretensão. Quem anda descalço machuca o pé, é picado pelos escorpiões, suja os pés, pega doenças (leptospirose).

O calçado significa aparência, status, dignidade (o filho pródigo: coloquem calçados nos seus pés - lembro o vexame que passei no aeroporto de Manaus porque estava de havaianas, ou na prefeitura de Recife).

Tira as sandálias = tira tua autossuficiência, tua arrogância; tira tuas máscaras, a fantasia, as aparências (títulos). Fica nu perante Deus, pois Ele vê além das aparências.

Quando saí da paróquia onde trabalhei na Itália, os jovens me presentearam com uma imagem de Nossa Senhora com as mãos abertas. Nós dizemos: Nossa Senhora das Graças. Mas um pastor luterano que a viu me disse: “Assim também eu gosto de Maria: Maria com as mãos vazias”. E’ isso mesmo! Vamos a Deus com os pés descalços e as mãos vazias.

O deserto seja tempo de silêncio e solidão, enquanto for possível para poder escutar.

Zc 2,17: Silêncio diante de Javé, criaturas todas, pois ele se levanta em sua morada santa.

Sf. 1,7: Silêncio diante do Senhor Javé, pois está próximo o Dia de Javé.

Hab. 2,20: Javé mora no seu santo templo: que a terra inteira fique em silêncio diante dele.

Lm. 3,26: Bom é esperar em silêncio o socorro do Senhor.

Irmão Carlos, 02.02.1892, à sua prima Maria de Bondy: “Encontro-me numa situação que nunca experimentei antes, senão um pouco quando voltei de Jerusalém. É uma necessidade de recolhimento, de silêncio, de estar aos pés do Bom Jesus, de olhá-lo quase em silêncio. A gente sente e gostaria de ficar sentindo, sem nem mesmo falar que pertencemos totalmente ao Bom Deus e que ele nos pertence totalmente”.

Ir. Carlos ao Pe. Huvelin, 19.05.1898:

“É necessário ir ao deserto e nele permanecer para receber a graça de Deus; é ali que nos esvaziamos, que jogamos pra fora de nós tudo o que não é de Deus e que esvaziamos completamente esta pequena casa de nossa alma para deixar todo lugar unicamente para Deus”.

O Deserto é:

Lugar de Experiência de Deus: - (Jesus vai ao deserto após o Batismo para prolongar a doçura da experiência do Abbá como a criança que chupa uma bala devagar). O essencial é que o missionário reencontre sempre Aquele que o envia” COMLA 5,3,2.

Lugar de Tentação:

-Povo hebreu tentado no deserto.

Elias tentado no deserto.

- Jesus tentado 40 dias.

Deus, Sl 95,8-9 – “Onde vossos pais nos provocaram e tentaram...”

Lugar do Discernimento e da Decisão:

- Moisés, frente à Sarça, compreende, toma consciência, discute com Deus, decide-se.

- Jesus toma consciência de sua missão de servo de Javé, não um milagreiro que dá um show, um poderoso, um rei.


2ª MEDITAÇÃO: “Meu Deus, se você existir, faça que eu o conheça”.

“Enquanto me encontrava em Paris, e fazia imprimir minha viagem no Marrocos, encontrei pessoas inteligentes, virtuosas e cristãs: falei para mim mesmo que talvez aquela religião não era absurda e, ao mesmo tempo, uma graça interior muito forte me empurrava”. Comecei a ir à Igreja, sem acreditar; sentia-me bem, somente lá, e ficava longas

horas repetindo esta estranha oração: “Meu Deus, se você existir, faça que eu o conheça”. (Carta a Henri de Castries – 14.08.1901)

A conversão de Charles de Foucauld acontece nos últimos dias de outubro de 1886, na Igreja de Santo Agostinho, em Paris.

No mundo, a maioria das pessoas se contenta com uma vida rotineira, comum. Mas há outras que gostam de aventuras: atravessar os mares; subir as montanhas; atravessar a floresta, o deserto; ir à lua...

A aventura mais empolgante, entusiasmante, sedutora, importante, inesgotável é a experiência de Deus. Em todos os tempos os místicos, profetas, gurus, contemplativos, santos foram seduzidos pelo mistério de Deus.

Sl 27,79: Minha face vos busca; é vossa face Senhor que eu procuro. Não escondais de mim o vosso semblante.

Sl 42,3: A minha alma tem sede de Deus; quando irei contemplar a face de Deus?

Sl 68, 18: Não escondais de mim a vossa face.

Sl 63, 2-9: A minha alma está sedenta de vós como terra árida e sequiosa, sem água.

Os pagãos não têm este problema, não buscam a face de Jesus. Eles têm o seu deus, o fabricam a sua imagem e semelhança. Podem ver, carregar, manipular seus deuses.

Os ídolos foram uma contínua tentação para o povo hebreu.

Jr. 2,11-13: “Troca uma nação os seus deuses? – os quais não são deuses!

Meu povo cometeu uma dupla perversidade: Abandonaram a mim água viva e cavaram para si cisternas fendidas que não retém água”.

Sl 115,12-16. 135,15: Os ídolos têm olhos e não veem, ouvidos e não ouvem, mãos e não apalpam, pés e não andam. Tornem-se como eles os que os fabricam, os que põem neles sua confiança.

Nós não somos tão insensatos a ponto de adorar ídolos de pau ou de pedra.

Mas, o nosso problema não é muito diferente. Pensar que já conhecemos Deus, já sabemos tudo dele, não precisamos mais buscar sua face, não ter mais sede de Deus, ficar satisfeitos com o que dele sabemos. Isto é reduzir a ídolo aquele que “habita em luz inacessível” (1Tm 6,16).

Deus que é sempre o OUTRO, o desconhecido, surpreendente, invisível, imprevisível, incomparável. Deus habita no mistério, cercado por abismos de silêncio.

A dificuldade de conhecer o mistério de Deus não é só dos novatos, inexperientes como Samuel que “ainda não conhecia o Senhor” (1Sm 3,7), mas é também dos grandes teólogos, como Tomás de Aquino que chegando ao fim de sua vida, na “Questio Disputata” afirma: “Eis o último ponto de chegada do conhecimento de Deus: saber que não conhecemos Deus”.

Inácio Larrañaga, nos seus retiros e escolas de oração, insistia continuamente na necessidade de buscar o rosto de Deus e ser sempre insatisfeitos com o que dele conhecemos.

Cada um de nós tem uma IDEIA de Deus.

Que imagem eu me faço de Deus?

O pintor pinta o seu deus com tinta; o escultor, com o cinzel, na madeira, na pedra; o poeta, com seus versos; o cantor, com sua música; o filósofo, com seus raciocínios; o teólogo, com suas teorias teológicas. Mas, tudo isto é construção humana e leva à idolatria.

Precisamos desconfiar sempre de nossas construções teológicas a respeito de Deus, assim como Salomão desconfiou de poder construir uma habitação para Deus.

“O templo que vou construir deve ser grande, pois nosso Deus é maior que todos os deuses. Mas quem será capaz de construir-lhe uma casa, uma vez que o céu e o mais alto do céu não o podem conter? Quem sou eu para fazer isso?” (2Cr 2,5-6).

Quando o templo foi dedicado e consagrado, a nuvem de glória o encheu, então Salomão concluiu: “O Senhor deseja habitar na escuridão” (2 Cr.5,13).

Deus não cabe em nenhum sistema eclesiológico, filosófico, teológico, espiritual e em nenhum movimento, instituição ou partido.

Ninguém tem o monopólio de Deus, nem os católicos, nem os cristãos, nem os muçulmanos. Deus não é manipulável, é transcendente.

Por isso é preciso buscar a Deus, o Rosto, a Face, com humildade, paciência, perseverança, coragem. Não se contentar com os sinais de Deus. Tudo fala de Deus,

é sinal de Deus, mas Deus está além.

As pegadas na areia são sinal de que alguém passou, mas não é a pessoa que passou. Precisamos buscar a Deus além dos sinais e palavras, até mesmo as palavras da Bíblia.

Não se come o CARDÁPIO, ele é só um sinal. Podemos ler a Bíblia toda e não nos alimentarmos. Infelizmente na nossa busca do Rosto de Deus quase sempre e quase todos nós nos contentamos em ficar na superfície, não vamos além da casca.

Se alguém pega uma vara de cana de açúcar, e só lambe a casca, nunca encontra a doçura. É preciso descascar e morder.

Os místicos ficaram deslumbrados com o pouco que perceberam do mistério de Deus.

Moisés, com o qual “Deus se entretinha face a face, como um amigo com o amigo” (Ex 33) se prostra até o chão e quando desce do monte “o seu rosto se tornara brilhante, durante a sua conversa com Deus” (34,28-30) e por isso colocou um véu na cabeça para falar com o povo.

Isaias ficou atordoado vendo “as franjas do Manto de Deus” que enchiam o templo (Is 6,1). “Ai de mim, estou perdido porque sou um homem de lábios impuros e habito com um povo de lábios impuros e, entretanto meus olhos viram o Rei, o Senhor dos exércitos” (6).

Na busca do rosto de Deus não podemos contentar-nos com o que disseram, escreveram, experimentaram os outros. Precisamos encontrá-lo pessoalmente, fazer uma experiência pessoal.

Jó 42,5: “Eu te conhecia só de ouvir, mas agora os meus olhos te viram”.

Precisamos buscar a Deus além dos sinais, ritos, templos, das mesmas Palavras da Bíblia, e dos sacramentos.

Os hebreus precisavam buscar a Deus além de Jesus. Jesus era um sinal – SACRAMENTO. Aqueles que não foram além do sinal, não acreditaram em Jesus, e acabaram matando Jesus.

Jó 4,20-24. “Virá o tempo em que os verdadeiros adoradores não adorarão nem no templo, nem no monte (sinais), mas em ESPÍRITO e VERDADE” (= além dos sinais do templo e do monte).

A experiência de Deus, a busca da Face é uma aventura sedutora, fascinante; mas arriscada, perigosa. Mais que subir o Everest ou penetrar na floresta Amazônica ou ir à lua.

Mas qual o caminho que leva a Deus? Quem nos guiará nesta aventura da experiência de Deus? Quem nos conduzirá às profundezas do mistério de Deus? Não um mestre, um guru ou um santo, mas o próprio Espírito Santo.

1Cor 2,6: “Pregamos a sabedoria de Deus, misteriosa e secreta... sabedoria que nenhuma autoridade deste mundo conheceu, pois se a houvesse conhecido não teriam matado o Senhor da Glória... Coisas que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram, nem o coração humano imagina, Deus no-lo revelou pelo seu Espírito, porque o Espírito penetra tudo, mesmo as profundezas de Deus...

Assim também as coisas de Deus ninguém as conhece, senão o Espírito de Deus”. Por isto o Espírito é o GUIA.

Gl 4, 6: “A prova de que sois filhos é que Deus enviou aos vossos corações o Espírito do seu Filho que clama: ”Abba” Pai. O Espírito Santo nos introduz na intimidade do Pai.

Nossa busca de Deus acontece no meio de tantos tropeços (idolatrias), como povo hebreu, mas, também, com tanta esperança e na certeza de que Deus mesmo vem ao encontro daqueles que o buscam com coração sincero.

Dt 4,29: “Então buscarás o Senhor teu Deus e o encontrarás contanto que o procures de todo o teu coração e de toda a tua alma”.



3ª MEDITAÇÃO- “Tudo é nada em comparação com o Bem-amado”

(Carta a Maria de Bondy – 12.09.1902) “Entre as dez da manhã e as três da tarde, no verão, há um silêncio comparável ao da noite. Nestas horas vem à Fraternidade, de vez em quando, só algum viajante atrasado, algum escravo que naquele dia ainda não comeu”. O que há de maravilhoso aqui, são o pôr do sol, as tardezinhas e as noites. Lembro-me, vendo o pôr de sol, que você o ama, porque lembra a grande paz que seguirá à tempestade dos nossos dias. As tardezinhas são tão tranqüilas, tão limpas,

este grande céu e estes amplos horizontes, um pouco iluminados pelas estrelas, são tão quietos e cantam silenciosamente o Eterno, o Infinito, o além, de uma maneira tão penetrante que ficaríamos a noite inteira nesta contemplação; todavia eu encurto estas contemplações e volto, após breves instantes, diante do Sacrário, porque no humilde Sacrário há mais. Tudo é nada em comparação com o Bem-amado” (Carta a Maria de Bondy – 12.09.1902).

O DEUS A QUEM BUSCAMOS

Quem é este Deus a quem procuramos? Temos condições de encontrá-lo, conhecê-lo? Pe. Marcelo Barros, no Retiro de Goiás dizia: Nosso Deus parece como crianças que brincam de se esconder (pata cega): revela-se – esconde-se. É preciso não desistir de procurá-lo. Um velho rabino foi procurado pelo netinho, em prantos.

Brincava com o amiguinho de se esconder: ficou esperando um tempão, mas o amigo não o procurou mais e ele estava desesperado.

Sl 14,2 e Sl 3,3 – “O Senhor do alto do céu observa os filhos dos homens, para ver se, acaso, existe alguém sensato que busque a Deus, mas todos eles se extraviam eles se perverteram, não há mais ninguém que faça o bem, nem um, nem mesmo um só”. Nós buscamos a Deus no meio de tantas ambiguidades, desvios, pecados.

At 17,27 (Paulo no Areópago de Atenas) – “Homens de Atenas, em tudo vos vejo muito religiosos... encontrei um altar com esta inscrição: A um Deus desconhecido... O Deus que fez o mundo... e não habita em templos feitos por mãos humanas. Nem é servido por mãos de homens...

Tudo isso para que procurem o Deus e se esforcem para encontrá-lo, como que às apalpadelas, pois na verdade ele não está longe de cada um de nós”.

Procuramos às apalpadelas. Não temos fórmulas mágicas, ritos ou objetos para obrigar Deus a se revelar. Precisamos madrugar para ir ao seu encontro.

Sl 108,2 – “Desperta-te, ó minha alma, despertai-vos, harpa e cítara, quero acordar a aurora”.

É preciso sofrer as demoras de Deus, pacientes, despretensiosos. Deus cumpre as promessas, mas não quando nós queremos. Abrão tinha 75 anos quando Deus lhe prometeu um filho. Tinha 100, quando Isaac nasceu. Deus prometeu a terra de Canaã a Abrão e seus descendentes. Passaram 430 anos.

Procurar Deus mesmo que nos encontremos sozinhos nesta aventura, e todos os outros fiquem satisfeitos com seus ídolos, ou com o Deus que lhes foi apresentado.

Dn 3 – Todo mundo se prostrou diante da estátua de Nabucodonosor. Sidrac, Misac e Abdênago não. O Deus verdadeiro não aceita ser comparado a outros ídolos. O Deus desconhecido que Paulo prega em Atenas não é um ídolo a mais no Panteon dos Atenienses, mas é o único, o verdadeiro, o absoluto.

1Sm 5,1-5: Não podemos adorar ao mesmo tempo o Deus da Aliança e os ídolos, servir a Deus e a Mamona: Quando os Filisteus colocaram a Arca da Aliança no templo de Dagon, o idolo apareceu destronado e quebrado.

Como buscar a Deus? Como reconhecê-lo? Como ter a certeza de que é Ele mesmo e não fruto-produto da nossa fantasia, interesses, alucinações?

Buscamos às apalpadelas. Todavia, abrindo as Escrituras, descobrimos uma grande verdade que nos dá segurança, certeza. Deus se revela aos poucos, progressivamente, mas sempre da mesma maneira, como o Deus da vida. Deus que defende, promove, protege e ampara a Vida. Assim não é somente o homem que procura Deus, mas é muito mais Deus que procura o homem e o procura para dar-lhe Vida.

Esta é a identidade do Deus verdadeiro. O critério para reconhecer o Deus verdadeiro é a Vida. Temos uma primeira revelação de Deus aos Patriarcas: Deus se revela como El Shaddai.

Gn 17,1-2 – Quando Abrão completou 99 anos, Javé lhe apareceu e disse: “Eu sou El Shaddai”. Anda na minha presença e sê perfeito, Eu instituo minha aliança entre ti e mim e te multiplicarei extremamente”.

Gn 28,3 – “Isaac chamou Jacó...”Que El Shaddai te abençoe, que ele te faça frutificar e multiplicar”.

Gn 35,11 – A Jacó em Betel “Eu sou El Shaddai, sê fecundo e multiplica-te”.

Gn 43,14 – “Que El Shaddai nos faça encontrar misericórdia junto a esse homem (José)”.

Ex 6,2-4 – Deus falou a Moisés e lhe disse: “Eu sou Javé. Apareci a Abrão, Isaac e Jacó como El Shaddai, mas pelo meu nome de Javé não lhes fui conhecido”.

Quem é El Shaddai? (Os crentes dão este nome às padarias, farmácias, sorveterias...) A Bíblia de Jerusalém no comentário a Gn 17,1 diz que a tradução comum que se dá “todo poderoso” é inexata; da raiz de uma palavra “acádica”

deveríamos traduzir: o Deus da montanha, ou melhor: o Deus da estepe. Isto é, o Deus dos pastores, nômades, Hebreus que viviam nas montanhas. Na planície moravam os cananeus agricultores, lá havia as cidades, água em abundância, conforto, fartura. Os cananeus tinham seus deuses protetores e os deuses da planície. Assim os hebreus têm seu Deus, o Deus da montanha. Cananeus e Hebreus estavam sempre em brigas (Caim e Abel).

El Shaddai – o Deus da montanha defende, protege, abençoa os pequenos (Hebreus), nômades e sem terra. Deus protege Abel. El Shaddai é o excelso, todo poderoso que olha para baixo. Nasce uma espiritualidade que canta El Shaddai:

Is 57,15 “Assim diz Aquele que está nas alturas em lugar excelso, que habita a eternidade e cujo nome é santo: Eu habito em lugar alto e santo, mas estou junto ao abatido e ao humilde”.

Sl 138,6 – “Sim excelso é o Senhor, mas olha os pequeninos”.

Sl 113,7 – “O Senhor é excelso... ele levanta do pó o indigente, e tira o pobre do monturo”.

Magnificat – Abate os poderosos de seus tronos e exalta os humildes.

Interessante ver como Deus não escolhe o primogênito (privilegiado), mas o segundo, Caim – Abel; Ismael – Isaac; Esaú – Jacó; Rubem – Judá; Manasses – Efraim; Eliab – Davi. Deus protege e fornece a Vida, defende o pequeno, fraco e pobre.

Após ter se revelado aos Patriarcas como o Deus que defende a Vida dos pequenos, Deus se revela a Moisés como Javé. É um dos momentos mais altos de toda a teologia e espiritualidade do Antigo Testamento e no momento da pior escravidão quando a vida é esmagada e humilhada.

Ex 3,6-15 – Deus revela sua identidade em três momentos sucessivos e progressivos.

1) V 6 – “Eu sou o Deus de teus pais, o Deus de Abrão, Isaac e Jacó”. Moisés não está diante de outro deus, mas de El Shaddai, o Deus de seus pais, o Deus que é presente, que acompanha os acontecimentos, o Deus da história.

V 7-8 – Eu vi, ouvi, conheço, desci e vi. Enquanto os deuses do Faraó são deuses mortos e que dão morte, o Deus de Moisés é vivo e dá vida.

Sl. 115,59 – Quanto a seus ídolos de ouro e prata... Têm boca, mas não falam. Olhos e não podem ver. Têm ouvidos, mas não ouvem. Nariz e não podem cheirar. Têm mãos, mas não apalpam, pés e não podem andar. Sua garganta não emite som algum. Semelhantes a ele sejam os que os fabricam e quantos neles põem sua confiança.

Os adoradores dos ídolos tornam-se como ídolos; insensíveis como os ídolos, paralisados como os ídolos, incapazes como os ídolos, frios e cruéis como os ídolos.

Incapazes de ver, ouvir e sentir. A idolatria destrói a solidariedade, acaba com a fraternidade. Os ídolos do ter, poder, prazer se alimentam de vítimas humanas. A idolatria nos torna cegos, surdos. São os ídolos instalados no coração (Ez 14 3, 4,7) o ídolo do meu EU.

V 14 – “Eu sou aquele que sou”, e ajuntou. Eis como responderás aos israelitas: Aquele que se chama “Eu sou”, envia-me junto de vós... Este é o meu nome para sempre, e é assim que me chamarão de geração em geração.

Javé é aquele que é, o único, o absoluto, o verdadeiro. Os outros deuses não são. São vaidades, inexistentes, são mortos e causa da morte para seu adorador.

2 Reis 17,15 “Os Israelitas seguiram as vaidades e tornaram-se eles mesmos vaidades. Esta revelação do Deus Libertador, que dá a vida, suscita toda uma espiritualidade que canta o Deus da Vida o Deus Libertador (Salmos).

Mas não basta que Deus seja o Deus Libertador. Porque o povo esquecendo o Deus da vida, se volta continuamente para os ídolos que dão morte. Como uma adúltera, o povo esquece e abandona Deus e a aliança. Deus, para ser o Deus da vida, precisa ser o Deus misericórdia, fiel, solidário que perdoa e conserva a vida.

Ex 32 – A idolatria, o bezerro de ouro. Deus ameaça destruir o povo. Moisés intervém em favor do povo. (Moisés parece mais misericordioso que Deus).

32,14 – “O Senhor se arrependeu das ameaças que tinha proferido contra o seu povo”. Mas, Moisés não entendeu que Deus tinha perdoado e, vinga Deus em 5 momentos.

32,19 – Moisés... sua cólera se inflamou, arremessou das suas mãos as tábuas e quebrou-as.

32, 20 – Reduziu a pó o bezerro de ouro, lançou o pó na água e o fez beber ao povo.

32, 21 – Xingou o irmão Aarão.

32, 27 – “Cada um meta a espada sobre a coxa”. (mataram 3.000 homens).

33, 7 – “Moisés foi levantar a tenda a alguma distância, fora do acampamento.”

Satisfeito de ter realizado a vingança e ter dado uma lição ao povo, Moisés espera uma recompensa:

33, 18 – “Moisés disse: mostrai-me vossa glória”.

34, 6 – “Javé, Javé, Deus compassivo e misericordioso, lento para a cólera, rico em bondade e fidelidade que conserva a sua graça até mil gerações, que perdoa a iniquidade, a rebeldia e o pecado...”.

Deus perdoa porque é o Deus da vida. Perdão é vida, vingança é morte.

Misericórdia é vida, castigo é morte.

Ez 18,23 – “Terei prazer com a morte do malvado? Oráculo do Senhor Javé. Não desejo eu antes que ele muda de proceder a vida”?

18,32 – “Não sinto prazer com a morte de quem quer que seja, oráculo do Senhor Javé! Convertei-vos e vivereis”. Também esta revelação de Deus suscitou toda uma espiritualidade que canta o Deus fiel e misericordioso especialmente nos salmos.

Mas a grande e definitiva revelação do Deus da vida é Jesus, o Bem-amado Senhor Jesus. “Nele era a vida e a vida era a luz dos homens”



4ª MEDITAÇÃO: "Eu suspiro por Nazaré"

“Eu suspiro por Nazaré”(Carta a Maria de Bondy – 10.04.1894) “Como Jesus em Nazaré” (de um escrito do dia 22.07.1905)

“Vim morar em Nazaré... o Bom Deus me fez encontrar aqui, por quanto perfeitamente possível, aquilo que procurava: pobreza, solidão, abjeção, trabalho humilde, escuridão total, imitação perfeita, na medida do possível, do que foi a vida de Nosso Senhor Jesus nesta mesma Nazaré... Abracei aqui a existência humilde e obscura de Deus, operário de Nazaré” (Carta a Luiz de Foucauld – 12.04.1897).

“Jesus te estabeleceu para sempre na vida de Nazaré... Toma como objetivo a vida de Nazaré, em tudo e por tudo, na sua simplicidade e na sua amplidão. Nada de vestido especial – como Jesus em Nazaré... Não menos de oito horas de trabalho por dia – como Jesus em Nazaré. Numa palavra, em tudo: Jesus em Nazaré”. A tua vida de Nazaré pode ser vivida em qualquer lugar: vive-a no lugar mais útil ao próximo” (De um escrito do dia 22.07.1905).

Jo 1,18. Ninguém nunca viu a Deus. O Filho único, que está no seio do Pai, foi quem o revelou.

Jo 14,9. Quem me vê, vê o Pai.

Cl 1,15. Ele é a imagem do Deus invisível.

Hb 1,3. Ele é a irradiação de sua glória, a imagem do seu ser.

Vamos então contemplar Jesus. “Precisamos impregnar-nos do Espírito de Jesus, lendo e relendo, meditando e voltando a meditar sem parar, suas palavras e seus exemplos. Que eles façam na nossa alma como a gota d’água que cai e recai sobre uma pedra sempre no mesmo lugar” (A Luiz Massignon, 22.07.1914).

Olhar para Jesus é um contínuo apelo à conversão. Alguém poderia pensar de já conhecer Jesus, mas é uma ilusão. Jo 1,26. No meio de vocês está alguém que vocês não conhecem.

Importa fazer uma experiência pessoal de Jesus.

1Jo 1,1-4. O que os nossos olhos viram, o que as nossas mãos apalparam isto anunciamos...

Ef 3,8-9.17-19. Paulo fala da “inexplorável riqueza de Cristo... mistério oculto desde a eternidade... (e convida a) compreender a largura, o comprimento, a altura e a profundidade, isto é, conhecer a caridade de Cristo que desafia todo conhecimento”.

Desde o começo Jesus foi um desafio para o conhecimento dos mesmos apóstolos. Jo 14,9 “Há tanto tempo estou com vocês e você ainda não me conhece, Felipe”? O mistério não pode ser banalizado, jogado na praça, aos não interessados.

Jesus proibia aos demônios espalhar quem Ele era. O mistério de Jesus é uma descoberta pessoal, não de massa, como a conversão. Não podemos ter pressa. No Antigo Testamento Deus se revela aos poucos. Assim, Jesus se revela aos poucos.

Mc 4,33. Jesus ensinava em parábolas conforme sua capacidade de entender. Conhecer Jesus é uma aventura fascinante, empolgante, mas também exigente.

Fl 3,7-12. “Tudo isso que, para mim, eram vantagens, considerei perda por Cristo. Na verdade, julgo como perda as coisas em comparação com este bem supremo: o conhecimento de Jesus Cristo nosso Senhor. Por ele, tudo desprezei, e tenho em conta de esterco, a fim de ganhar Cristo e estar com Ele... Anseio pelo conhecimento de Cristo”.

Irmão Carlos vibrava e queimava da mesma paixão pelo Bem Amado.

“Pensa dia e noite no teu Bem Amado e no meio de servi-lo, pensa nele com o coração queimando de amor, e os anos te parecerão, como a Jacó, mais curtos do que se fossem dias” (Comentário a Gn.29,20).

1Cor 2,2 “Julguei não dever saber coisa alguma, entre vós, senão Jesus Cristo e Jesus Cristo crucificado”.

Como Paulo, os jovens de hoje parecem ser muito atraídos e sensíveis ao tema: Jesus Cristo. Sem constrangimento usam camisetas com retrato de Jesus ou frases sobre Jesus, levam crucifixos ou terços no pescoço. Mas, se repararmos no conteúdo das frases, o Cristo que eles admiram é o Cristo Vitorioso, o Rei dos reis, o maior, o 100%, o superstar, o máximo, o vencedor.

Há uma insistência no poder, na força, vitória, glória, grandeza, divindade. Jesus, no entanto, tomou o caminho oposto, e aqui está o mistério. O mistério da encarnação e da cruz. Este é o Jesus real, histórico, e não de fantasia, romântico.

Jo 1,14. “O Verbo se fez carne e a habitou entre nós”.

Hb 4,15. “Não temos nele um pontífice incapaz de compadecer-se de nossa fraqueza, ao contrário, passou pelas mesmas provações que nós, menos o pecado”. “Aquele que não conheceu o pecado, Deus o fez pecado por nós”.

Gl 3,13. “Ele se fez maldição por nós”.

Fl. 2,5-11. O itinerário percorrido por Jesus.

“Sendo de condição divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo, e assemelhando-se aos

homens. E sendo reconhecido exteriormente como simples homem, humilhou-se ainda mais, tornando-se obediente até a morte e morte de cruz”.

COMLA 5 (p.31.2-4-6). “A encarnação deve ser vista dentro de um longo processo histórico em que Deus se aproxima repetidamente e de muitas formas do seu povo, para ser o Deus-Conosco... A encarnação realiza-se em toda a vida de Jesus, particularmente na sua entrega e morte de cruz”.

É significativa a experiência de Moisés. Filho de escravos, mas criado na corte de Faraó. Sua conversão começa no dia em que toma consciência da situação terrível de seu povo.

Ex 2,11. “Moisés cresceu. Um dia em que saíra por acaso para ir ter com seus irmãos, foi testemunha de seus duros trabalhos. E viu um egípcio ferindo um hebreu”.

A conversão de Moisés começa com o VER. Mas Moisés não é aceito pelos seus irmãos, não é um deles, não se criou com eles e como eles. Moisés precisa passar pela experiência da rejeição, fuga, deserto, sarça, para voltar não como herói, super herói, que faz tudo sozinho (agitador terrorista). Começará sua ação libertadora em forma democrática, humilde, com os anciãos.

Nós, geralmente nascidos em famílias humildes, mas criados em seminários – conventos, longe do povo (como Moisés na corte) precisamos voltar ao povo e VER, tomar consciência, conhecer a realidade, encarnar-nos. Toda encarnação é limitada e comporta um risco; é um empobrecimento; automarginalização; deixar uma cultura, gastos, status; tornar-se um estranho.

A mulher do ditador de El Salvador dizia a Dom Oscar Romero: “Você não é mais dos nossos. Você nos traiu”. Jesus, ao encarnar-se, limitou-se no tempo, espaço, cultura, religiosidade. Sua encarnação é um desafio para nós. Ao encarnar-nos precisamos ter consciência do limite de toda encarnação. Assim como Deus é sempre o outro, também os pobres são sempre os outros.

Gustavo Gutierrez, em “Beber do próprio poço”, traz o exemplo de Oscar Romero. “Nem o martírio nos identifica com os pobres” afirma Gutierres. Mas isto não nos dispensa de um esforço real, de uma encarnação sincera e amorosa, no meio dos pobres e excluídos, como o Mestre.

COMLA 5: “Não se deve pensar que o europeu possa tornar-se africano ou americano, asiático. No entanto uma solidariedade radical e profunda se torna exigência da espiritualidade”.

Solidariedade, encanação, não significa absolutizar a cultura de um povo como se tudo naquela cultura fosse valor. Se alguém for a Itália não precisa começar a blasfemar porque os italianos blasfemam.

Jesus ao encarnar-se não se identificou com os Nazarenos, nem mesmo com seus parentes, mas só com a Vontade do Pai.

Ir. Carlos ao Mons Guérin que lhe perguntou a respeito da conveniência de permanecer no Hoggar, mesmo sem poder celebrar a missa ou não ir ao Hoggar para poder celebrar, respondeu: “Ficar no lugar mesmo sozinho é coisa boa, há possibilidade de agir, mesmo sem fazer muito, porque a gente se torna “do lugar”; a gente se torna tão acessível, tão “mínimo”... Além disso, a Tamanrasset, embora sem a Missa diária, há o Santíssimo Sacramento, a reza regular, as longas adorações, grande silêncio e grande recolhimento para mim” 02.07.1907.

Para nós vale sempre o testemunho - desafio de Jesus. Apesar de ser de condição divina não achou isto um obstáculo insuperável, mas conseguiu ser em tudo como nós, menos no pecado, sem privilégios, mordomias, distinções.

Assumiu toda ambiguidade, precariedade, provisoriedade, tornando-se simples homem.


5ª MEDITAÇÃO: "Imitar Jesus"

“Imitar perfeitamente o nosso único modelo Jesus” (Comentário a Lc 18,23-30 – M.S.E. 398)

“Olhemos para os santos unicamente para ter ajuda numa ou noutra palavra, num ou noutro exemplo, para imitar perfeitamente o nosso único modelo Jesus” (Comentário a Lc 18,23-30 – M.S.E. 398).

“Os primeiros atos, os primeiros efeitos do amor, como também os últimos, que são inseparáveis do amor, são a imitação e a contemplação. Desde o primeiro instante no qual amamos, imitamos e contemplamos... Imitação e contemplação fazem parte necessariamente de qualquer amor” (Comentário a Lc 2,21 – M.S.E.264).

Contemplamos a humanidade de Jesus para podê-lo imitar. Jesus é o modelo único. Redemptoris Missio 89 – “O missionário é impelido pelo “zelo das almas” que o impôs na própria caridade de Cristo, feita de atenção, ternura, compaixão, acolhimento, disponibilidade e empenho pelos problemas da gente. O amor de Jesus envolve mais íntimo da pessoa”.

Hb 4,15-16 – “Não temos nele um pontífice incapaz de compadecer-se das nossas fraquezas. Ao contrário, passou pelas mesmas provações, com exceção do pecado”.

A primeira característica de personalidade humana de Jesus, que salta aos olhos é a sua sensibilidade, humanidade, compaixão, carinho.

Redemptoris Missio 14- “Dois gestos caracterizam a missão de Jesus: curar e perdoar. As múltiplas curas provam sua grande compaixão diante das misérias humanas”.

Lc 7,22 – “Ide anunciai a João o que vistes e ouvistes”. Os cegos veem, os surdos ouvem...

Temos aqui os grandes gestos-sinais libertadores de Jesus, que deixavam as multidões admiradas: “Deus visitou o seu povo”.

Mt 9,1-8 – Cura do paralítico.

Mc 5,25-34 – A mulher com hemorragia

Mc 10,46-52 – O cego Bartimeu.

Lc 7,11-17 – A viúva de Naim

Jo 11,33-34 - Lázaro

Mc 6,30-44 e 8,1-9 – A multiplicação dos pães.

São os grandes sinais libertadores de Jesus. Mas precisamos reparar mais nos pequenos gestos que acompanham os grandes sinais, porque são reveladores e

passam desapercebidos. Gestos pequenos, mas que foram lembrados quando o Evangelho foi escrito, 40-50 anos mais tarde.

Mt 9.2 – “Meu filho, coragem; teus pecados te são perdoados”.

Mc 5,30 – “Quem tocou as minhas vestes”?

Mc 1,41 – “Estendeu a mão, tocou-o e disse-lhe: eu quero, sê curado”.

Lc 7,13 – “Vendo-a, o Senhor movido de compaixão, disse-lhe ‘Não chores’. E aproximando-se tocou no esquife”

.Mc 8,2ss – “Tenho compaixão deste povo. Já há três dias perseveram comigo e não tem o que comer. Se os despedir em jejum para suas casas, desfalecerão no caminho; e alguns deles vieram de longe”.

Mc 8,23 – O cego – “Jesus tomou o cego pela mão, levou-o para fora da aldeia, pôs-lhe” saliva nos olhos e impondo-lhe as mãos e perguntou-lhe... Em seguida lhe impôs as mãos nos olhos”.

Mc 6,45 – “...enquanto ele mesmo despedia o povo. E depois de despedir o povo retirou-se ao monte“ (enquanto nós, terminada a Missa dizemos: “La messa è finita: andate in pace”, viramos as costas e entramos na sacristia).

Mc 7,33 – Surdo-mudo – “Tomou-o à parte do povo, pôs-lhe os dedos nos ouvidos, tocou-lhe a língua com a saliva, levantou os olhos aos céus deu um suspiro e disse: ’Efatá’”.

Mc 9,36 – “Tomando um menino, colocou-o no meio, abraçou-o e disse-lhes...”

Mc 10,13,16 – As crianças – “abraçava e abençoava impondo-lhes as mãos”.

Mc 10,21 – O jovem rico – “Fixando nele o olhar, o amou”.

Jo 11,3 – “Jesus ficou internamente comovido em espírito, E sob o impulso de profunda emoção, perguntou-lhes: ‘Onde o pusestes?’ Responderam-lhe: ‘Senhor, vinde ver.’ Jesus pôs-se a chorar... Tomado novamente de profunda emoção Jesus foi ao sepulcro”.

Jo 21, 9-12 - “Moços, tem algo para comer?”- Parece alguém que está com fome, e no entanto ele preparou na praia o fogo, o peixe, o pão.

Nós perguntamos: qual o sentido dos gestos de Jesus? Jesus tinha superado a tentação do poder e prestigio na luta com o demônio no deserto.

Jesus não fazia milagres para demonstrar autoridade, força, poder. Não queria ser um milagreiro.(os crentes ainda não o compreenderam).

Jo 4,48 – “Jesus se queixa com os judeus (o filho do oficial do rei estava doente) “Se não vêem milagres e prodígios, vocês não creem”.

Era a compaixão, ternura, afeto que arrancava de Jesus o milagre, o SINAL. Jesus é o Filho do Pai que se revelou a Moisés como “Javé, Javé, Deus compassivo, misericordioso, lento na cólera, rico em bondade e fidelidade, que conserva a sua graça até mil gerações, que perdoa”, Ex 34,6.

Jo 5,19 – Jesus age como o PAI – “Em verdade vos digo, o Filho de si mesmo não pode fazer alguma coisa: ele só faz o que vê fazer o Pai; e tudo o que o Pai fê-lo também semelhantemente o Filho. Pai ama o Filho e mostra-lhe tudo o que faz”.

Perguntei para um meninote: “O que você vai fazer quando for grande?” – “O motorista de caminhão” – Mas por que? – “Porque meu pai é motorista de caminhão”.

Jesus age pela compaixão, amor, ternura, porque viu o Pai agir assim.

Mc 1,41 – “Jesus compadeceu-se dele”. Por este amor, compaixão, misericórdia Jesus é o sacramento do Pai. Revela o Pai e sua bondade. Jesus é realmente o Bom Samaritano (Lc 10,25-37) que movido de compaixão se debruça sobre a humanidade caída e decaída.

Jesus não é somente o líder revolucionário dos grandes fatos, dos grandes gestos libertadores das grandes manifestações. Jesus não só fazia o bem, ele queria o bem.

Quando as crianças vinham no meu barraco, a primeira coisa que reparavam era o saquinho do pão, para certificar-se que estivesse cheio. Enquanto não abria o saquinho, as crianças não iam embora: então quando tinha algo para fazer, logo abria o saquinho. Um dia Vilma, uma menina de 11 anos, me diz: você nos dá pão para mandar-nos embora. Mas eu não quero ir embora agora, eu gosto de estar aqui”.

Certa vez, preguei o retiro para os seminaristas num certo seminário; falei da humanidade e sensibilidade de Jesus, no fim da meditação achei um papelzinho amarrotado no qual estava escrito mais ou menos assim: “Para mim este Jesus tem uma personalidade melosa, edulcorada, adocicada... cadê o Jesus revolucionário, libertador?” Sem dizer nada escrevi no quadro: “Hay que endurecer-se, pero sin perder la ternura jamás” (Ché Guevara).

Característica desta compaixão deste amor humano de Jesus é a simplicidade.

Nós gostamos de contar, fazer relatórios que os outros vejam e aplaudam. Se ninguém nota, ficamos mal humorados, magoados.

Mt 6,3 – “Não saiba a mão esquerda o que deu a direita”.

A simplicidade de Jesus.

Mc 1,43-44 – Ao leproso – “Não digas isto pra ninguém”.

Mc 5,43 – Filha de Jairo – “Ordenou-lhes severamente que ninguém o soubesse”.

Mt 9,30 – 2 cegos – “Vede que ninguém o saiba”.

Mc 7,36 – surdo mudo – “Proibiu-lhe que o dissesse a alguém”.

Mc 8,26 - cego – “Vai para casa e não entre nem na aldeia”.

Jo 5,12-23 – paralítico – “Quem é o homem que te disse: Toma o teu leito e anda? O que havia sido curado porem não sabia quem era”.

Jo 9,35-37 – O cego – “Crês no filho do homem?” Quem é ele senhor, para que eu creia nele?

Ligada à simplicidade está a gratuidade. O amor verdadeiro é gratuito, não faz chantagem, não cobra nada do outro. O amor gratuito é divino, é sacramento do amor do Pai.

Mt 5,45 – “O Pai faz nascer o sol tanto sobre os maus como sobre os bons e faz chover sobre os justos e sobre os injustos”. Jesus, como o Pai, ama gratuitamente com um amor infinito, mas que deixa o outro perfeitamente livre.

Mc 10, 21-22 – O jovem rico – “Fixou nele o olhar e o amou...” o outro foi-se embora. O amor liberta, o egoísmo escraviza. (CF) O amor é gratuito ou não é amor.

1Cor 13,5 - “O amor não busca seus próprios interesses, não quer nada em troca”.

“Sejamos infinitamente delicados na nossa caridade; não limitemo-nos aos grandes serviços, mas tenhamos a ternura que desce nos detalhes e sabe, com coisas muito simples, por muito balsamo nos corações. “Dai-lhes vocês mesmos de comer”, disse Jesus. Desçamos também nós, com os que estão perto de nós, nos pequenos detalhes da saúde, da consolação, das preces, das necessidades. Consolemos, confortemos com as mais pequenas atenções. Tenhamos para com aqueles que Deus coloca ao nosso lado aquelas pequenas, delicadas atenções que irmãos carinhosos teriam entre si, que mães carinhosas teriam para os filhos, para assim consolar, na medida do possível, todos que nos cercam, e ser para eles motivo de consolação e bálsamo, assim como sempre foi Nosso Senhor para todos que dele se aproximavam” (Coment. A Mc 5,35-43- A ressurreição da filha de Jairo).


6ª MEDITAÇÃO: "PENSA QUE DEVES MORRER MÁRTIR"

“Pensa que deves morrer mártir, despojado de tudo

... e deseja que isto aconteça hoje”.

“Pensa que deves morrer mártir, despojado de tudo, estendido ao chão, nu, irreconhecível, coberto de sangue e feridas, matado com violência e dor... e deseja que isto aconteça hoje!... para que eu te faça esta graça infinita, se fiel em vigiar e carregar a cruz” (Nazaré – 6/06/1897).

“O amor maior está em dar a vida para quem amamos, você falou ontem à noite, ó Bem-amado. E eis que poucas horas depois de ter dito estas coisas você deu sua vida por mim, ó meu Esposo! Concede-me a graça de eu também dar minha vida por você, eu o suplico com todas as minhas forças; eu sei que eu sou medroso demais para fazê-lo, e indigno desta honra, porem você disse que eu posso tudo naquele que me fortalece e você disse: pedi e recebereis. Eu te peço, em teu nome, ó meu Bem-amado, a graça de derramar com amor, com coragem, em maneira de glorificar-te o mais possível, o meu sangue por você, ó meu Esposo...” (Comentário a Jo 19,30 – M.S.E. 519).

“Não posso dizer que desejo a morte; desejei-a em outros tempos; agora enxergo tanto bem a ser feito, tantas almas sem pastor, que preferia, sobretudo, fazer um pouco de bem para a salvação destas pobres almas. Mas o Bom Deus as ama mais do que eu, e não tem necessidade de mim. Seja feita a sua vontade” (Tamanrasset – 20.07.1914).

“A encarnação de Jesus realiza-se em toda a vida de Jesus, particularmente na sua entrega e morte na cruz”. Essa entrega e essa cruz atestam que em Jesus havia consciência e coerência.

Lembro meu tempo do Seminário – Cada ano, no final do retiro, propósitos diferentes, prova de muita indefinição, falta de unidade interior de um eixo fundamental.

Não é suficiente fazer o bem. Encontramos pessoas zelosíssimas, fanáticas, mas totalmente inconscientes, alienadas. Quanto atrapalham! Há movimentos, grupos zelosos, fanáticos, mas alienados que só atrapalham. Não são sò de hoje, já havia no passado.

Rm 10,2 – “Dou-lhes testemunho que eles (os judeus) têm zelo por Deus, mas um zelo sem discernimento. Paulo ao contrário sabe o que quer e onde quer chegar”.

1Cor 9,26 – “Assim corro, mas não sem rumo. Dou golpes, mas não no ar”.

Pensando em Jesus, não basta pensar que foi um homem maravilhoso, de grande sensibilidade de grandes qualidades humanas, de extraordinários milagres. Lendo o Evangelho, descobrimos em Jesus uma clareza de objetivo, consciência profunda, unidade interior, coerência do começo ao fim. Não basta encantar-se com as qualidades humanas de Jesus, é preciso captar esta consciência, coerência que lhe faz dizer: “É necessário ir a Jerusalém sofrer, morrer e ressuscitar” Mt 16,21.

Na vida de Jesus há coerência, sem contradições, no seu SER no seu AGIR e nas suas PALAVRAS, do nascimento à morte. Seguindo Lucas:

Lc 2,1-20 – Nascimento de Jesus: estrebaria, perseguição, exílio. (é o ìndice de todo o Evangelho, antecipação de tudo que acontecerá).

Vida de Nazaré – Jesus não é sacerdote, levita, fariseu, escriba. Jesus é um leigo, carpinteiro.

Lc 4,1-13 – As tentações no deserto. Jesus na plenitude de sua idade, força, capacidade percebe em si poderes extraordinários, divinos. Jesus é tentado, (não é teatro, dramatização), de servir-se dos talentos, qualidades, poderes e sabedoria para si. Jesus decide-se como usar estes poderes.

Lc 4,14-22: Jesus em Nazaré. Saindo da tentação - deserto (lugar do discernimento) Jesus tem clareza daquilo que o Pai espera dele. Jesus escolhe (Is 61,1-2) uma proposta nova, revolucionária, subversiva, provocadora, chocante - como os profetas.

Todo o poder divino que há em Jesus será para abrir os olhos aos cegos, libertar os oprimidos, curar os leprosos, saciar os famintos, anunciar a boa nova aos pobres, confortar os excluídos, marginalizados, perdoar os pecadores. Todo o poder de Deus a favor dos últimos, os excluídos da história.

Lc 6, 20-26 – As Bem-aventuranças. Herdeiros do Reino são os pobres, famintos, perseguidos, aflitos. Jesus inaugura o Reino do Pai com palavra e ação. Sua mensagem è clara:

Deus é Pai, - Todos somos irmãos, - Os bens que Deus criou são para todos.

Jesus age, fala, convive com os últimos, assume suas aspirações, ama e cura os marginalizados, come com os pecadores e os acolhe, coloca a pessoa no centro, acima do sábado, tradições, leis, estruturas. Denuncia a hipocrisia dos grandes, os abusos das autoridades, a idolatria das riquezas; expulsa os vendilhões do templo, proclama-se mais que o sábado e faz tudo isto conscientemente, não empurrado pelos acontecimentos.

Este proceder de Jesus é desconcertante, provocador, escandaloso, questionador. O povo vibra, exulta. As autoridades religiosas ficam irritadas, os parentes ficam confusos desconcertados.

Mc 3,20-21- “Havia de novo tanta gente que não podiam tomar alimento”.

Mc 3,21 – “Quando os seus o souberam, saíram para o reter, pois diziam ‘Está fora de si’”.

Lc 7,18-23 – O Batista – “É você o que deve vir, ou devemos esperar outro?”

Maria e os irmãos de Jesus e o Batista não compreendem, caminham no escuro (noite da fé). Jesus é um mistério que desafia, também eles. ”Ide e anunciai a João o que ouvistes e vistes. Os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, aos pobres é anunciado o Evangelho e feliz aquele que não se escandalizar de mim”.

Feliz quem não se escandalizar vendo que todo poder, sabedoria, força, amor, milagres são colocados a serviço de pobres, miseráveis, excluídos, últimos. Estes são os sinais do Reino! Não esperem por outros.

Mc 8,11-12 – Logo após a multiplicação dos pães – “Vieram os fariseus e puseram-se a disputar com ele e pediram-lhe um sinal para pô-lo à prova. Jesus porém, suspirando no seu coração, disse: “Por que pede esta geração um sinal? Em verdade vos digo: jamais lhes será dado um sinal”. Jesus não está a fim de fazer sinais para matar a curiosidade de burgueses que estão de barriga cheia. Ele recém tinha feito o sinal enchendo a barriga de quem estava com fome.

Mt 16,4 – Jesus assegura que àquela geração perversa e adúltera não lhe será dado outro sinal que o sinal de Jonas. O sinal de Jonas é Jesus mesmo (mistério Pascal, morte e ressurreição).

De fato esta práxis de Jesus ao lado dos pequenos, excluídos, fracos, pecadores ao mesmo tempo em que suscita alegria, esperança, exultação do povo humilde e sofrido, suscita raiva, inveja, irritação, ódio, desprezo dos poderosos, privilegiados que detém o poder religioso, cultural, político, social. Sacerdotes, escribas, fariseus, saduceus e anciãos.

O movimento de Jesus é um movimento leigo que começa e se desenvolve fora e à margem do Templo e da Sinagoga e mesmo em conflito com a Sinagoga, sábado, tradições, alimentos, purificações. Jesus não se coloca como um pelego entre o povo e as autoridades, entre os pobres e os ricos, para tenta apaziguar.

Lembro quando trabalhava na fábrica: o patrão tentou colocar-me entre ele e os operários como pelego para amortizar. Jesus não foi um pelego. Jesus veio para salvar

a todos, ama todos, quer libertar todos, mas a partir dos que foram sempre excluídos,dos pobres. Por isso tornou-se a pedra rejeitada pelos construtores (Sl 118,22).

A práxis de Jesus o levou à morte. Jesus tem consciência, anuncia aos discípulos, assume coerentemente a morte.

Por que Jesus morreu na cruz? Podemos dar três interpretações:

1- Interpretação teológica: Jesus morreu para perdoar os nossos pecados.

Lc 18,31-33 – Jesus decide ir a Jerusalém sofrer o destino dos profetas. “Eis que subimos a Jerusalém; tudo que foi escrito pelos profetas será cumprido”.

Mc 14,48-49 – “Viestes me prender com espadas e paus como se eu fosse um bandido. Entretanto, todos os dias, estava convosco ensinando no Templo e não me prendestes, mas, isto acontece para que se cumpram as Escrituras”.

Jo 10,18 – “Ninguém tira a minha vida, mas eu a dou de mim mesmo. Tenho o poder de a dar e tenho o poder de retomá-la”.

Mt 26,28 – “Isto é o meu sangue, o sangue da nova aliança, derramado por muitos homens em remissão dos pecados”.

1Cor 15,3 – “Eu vos transmiti o que primeiramente havia recebido: que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras”.

Ef 1,7 – “Nesse Filho, pelo seu sangue, temos o perdão, a remissão dos pecados”.

Is 53 – O servo sofredor carregou nossa iniquidade.

2 – Interpretação humana: Jesus morreu em solidariedade com as vítimas da história. Jesus morreu por amor, como a mãe que dá a vida para pôr no mundo o filho ou um amigo que morre para salvar o amigo.

Jo 15,13 – “Prova de amor maior não há que doar a vida por seus amigos”.

Jo 10,15 – “Dou a minha vida pelas minhas ovelhas”.

Jon Sobrino: Os princípios de misericórdia (pág 23-24) “Descer da cruz os povos crucificados”. “O fato de Deus deixar as vitimas morrerem, é um escândalo irrecuperável, e a fé em Deus tem de passar por este escândalo. Nessa situação, a única coisa que o crente pode fazer é acreditar que Deus está na cruz impotente como as vítimas, e interpretar essa impotência como o máximo de solidariedade com elas. A cruz na qual está o próprio Deus é a forma mais clara de dizer que Deus ama as vítimas deste mundo. Nele o seu amor é impotente, mas é crível. E a partir daí é preciso reformular o mistério de Deus. Sempre foi dito que Deus é o “Deus maior”. A partir da cruz é preciso acrescentar que é também o “Deus menor”.

3- Interpretação histórica: Jesus foi morto em consequência de sua práxis. Jesus atrapalhou os interesses da máfia do templo. E quem atrapalha os interesses da máfia deve morrer. Para condenar Jesus perante Pilatos, a máfia do templo trouxe motivações políticas.

Lc 23,2 – “Encontramos este homem excitando o povo à revolta”. (5) – “Ele revoluciona o povo”. (14) “Apresentastes-me este homem como agitador do povo”.

Jo 11, 47-48 – “Que faremos? Este homem multiplica os milagres. Se o deixarmos proceder assim, todos crerão nele, e os Romanos virão e arruinarão a nossa cidade e toda a nação”. Jesus tornara-se um perigo para Segurança Nacional.

Do testamento do Pe. Josimo Tavares: “Nem o medo me detém. É a hora de assumir. Morro por uma justa causa. Agora quero que vocês entendam o seguinte: Tudo isto que está acontecendo é uma consequência lógica resultante do meu trabalho, na luta e defesa pelos pobres, em prol do evangelho que levou a assumir até as últimas conseqüências”.

Mas a história não acaba aqui.

Fl 2,9 “Por isso Deus o exaltou”.

Oscar Romero: “Se me matarem ressuscitarei no meu povo”.

Ir. Carlos: “Pense que deves morrer mártir...”


7ª MEDITAÇÃO: “Contemplar Deus em si mesmo é a vida interior de Nosso Senhor”

“As três maneiras de contemplar Nosso Senhor, de contemplar Deus, são boas e perfeitas e as três devem encontrar espaço na nossa vida”.

Contemplar Deus em si mesmo é a vida interior de Nosso Senhor em todos os seus dias e em todos os seus instantes. Para imitá-lo é preciso que pratiquemos muito e, por assim dizer, não percamos nunca de vista esta maneira de contemplar.

Contemplar Nosso Senhor na Santa Eucaristia é também este um dever, porque ele se oferece a nós, para que o contemplemos nela.

Contemplar Jesus nos mistérios de sua vida também é um dever, porque, se ele viveu estes mistérios e os fez conhecer através das Escrituras inspiradas pelo Espírito

Santo, é para que as conhecêssemos, meditássemos e contemplássemos neles Ele mesmo” (Comentário a Jo 15,28-33 – M.S.E. 500).

“A verdadeira perfeição, porém está em fazer a vontade de Deus... Quem ousaria afirmar que a vida contemplativa é mais perfeita que a ativa ou o contrário, sendo que Jesus viveu seja uma que outra? Uma única coisa é realmente perfeita e é fazer a vontade de Deus” (M.S.E. 194).

“Aridez e trevas: tudo me é causativo: a Santa Comunhão, a oração, a reza, tudo, tudo, também dizer a Jesus que o amo... Preciso agarrar-me à vida da fé. Se ao menos sentisse que Jesus me ama. Mas ele não mo diz nunca” (Nazaré 1897).

“Quanto às distrações, vocês nem imaginam quantas eu tenha, é uma miséria. E vejam que eu sou verdadeiramente sozinho: entre a igreja e o galpão da lenha, onde trabalho sozinho, não há nada que me atrapalhe: é do interior que me vem as mais inesperadas e ridículas distrações. Mas não destroem a paz e este doce e carinhoso pensamento por Nosso Senhor... porém estorvam e atrapalham... minha reza do Ofício às vezes não é outra coisa que uma longa distração, é uma coisa mesquinha”. (29.09.1892)

Karl Max – “A religião é o ópio do povo”. Antes dele os profetas já afirmavam isso.

Is 1,10-20 – “De que serve a mim a multidão de vossas vítimas? Já estou farto de holocaustos... Quando multiplicais vossas preces não as ouço... Quando estendeis vossas mãos, eu desvio de vós os meus olhos. Vossas mãos estão cheias de sangue...”

Is 29,13 - “Este povo vem a mim apenas com palavras e me louva só com os lábios enquanto seu coração está longe de mim e o temor que ele me testemunha é convencional e rotineiro”.

Am 5,21-25 – “Aborreço vossas festas, elas me desgostam, não sinto nenhum gosto em vossos cultos... Longe de mim o ruído de vossos cânticos, não quero mais ouvir a música de vossas harpas, mas antes que jorre a justiça”.

Os 6,6 – “Eu quero o amor mais que os sacrifícios e o conhecimento de Deus mais que os holocaustos”.

Miq 6,6-8 – “Com que me apresentarei diante do Senhor? Holocaustos... carneiros... primogênitos? Já te foi dito, ó homem... que pratique a justiça”.

Sl 51,18-19 – “Vós não vos aplacais com sacrifícios, rituais...”.

Na mesma linha dos profetas, Jesus é muito desconfiado e critico a respeito de oração.

Mt 7,21 – “Nem todo aquele que diz ‘Senhor, Senhor’, entrará no Reino dos céus”.

Mt 9,13 – 12,7 – “ Eu quero misericórdia e não sacrifício.

Mt 15,7 – “É bem de vós que o profeta Isaias diz: “Este povo me louva com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. Vão é o culto que me prestam”.

Mt 23,14 – “Ai de vós escribas e fariseus hipócritas: devorais as casas das viúvas, fingindo longas orações”.

Jesus desmitificou com seus atos e palavras, templo, sábado, culto. Culto, oração, sacrifício, desligado da história, da vida, da justiça é vazio, ilusão, alienação, hipocrisia, ambiguidade: pode dar prestigio, privilégios, poder aos poderosos e opressores, mas não dá glória de Deus.

Os opressores fazem e ensinam a fazer uma oração alienante, dualista, desligada da vida. Bom padre para os opressores é aquele que reza bastante, celebra uma missa bonita, piedosa, sentimental, só fala de religião, não fala em reforma agrária, demarcação das terras dos índios, não faz política não mistura religião e luta popular.

Mas uma oração acrítica, ingênua, desligada da vida, faz mal seja aos oprimidos que se tornam fatalistas e se acomodam, seja aos opressores que rezam e tranquilizam a sua consciência. Não é assim que Jesus rezava e ensinou a rezar. Porque Jesus rezava mesmo. Vamos olhar para Jesus – Olhar para Jesus é um contínuo apelo à conversão.

A vida de Jesus e sua coerência até a cruz se tornam incompreensíveis sem a oração, sem uma contínua comunhão com o Pai. Sem a experiência do ABBÁ a vida de Jesus é inexplicável.

Jesus era homem, não super homem. Como é que ele conseguiu doar-se totalmente ao povo, doentes, pobres, apóstolos, pecadores, não tendo nem tempo para comer, enfrentando inimizades, incompreensões, calúnias, hipocrisias? Como é que não se desintegrou, esvaziou, não desanimou como acontece conosco?

Dizia o frei Artur – “O povo vem a nós, como tantas sanguessugas, que ficamos anêmicos”.

Como é que Jesus não ficou anêmico? Como é que ele conseguiu tirar tanta água do seu poço, sem que o poço secasse? É que o Pai sempre de novo enchia o poço e isto acontecia nas horas de oração.

Podemos considerar 3 maneiras de Jesus rezar.

1–Jesus rezava com o povo e como o povo (religião popular): na sinagoga, templo, sábado, romarias. Lc 2,42 – 4,16 – 6,6 – Dt 16,13: Festa dos Tabernáculos; Jo 10,22: da dedicação.

2– Jesus não se limitou à oração com o povo, esta oração é insuficiente para alimentar uma comunhão mais profunda e vital com o Pai e para sustentar e dar força para a missão. Jesus fazia longas vigílias e madrugadas de oração no deserto e nas montanhas.

Lc 3,21 – Enquanto orava, abriu-se o céu.

4,1-13 – 40 dias no deserto;

4,42 – ao amanhecer;

5,16 – mas ele costumava retirar-se;

6,12-13 – Escolha dos apóstolos;

9,18 – Jesus está em oração – quem dizes estes que eu sou?

9,28 – Transfiguração.

10,21 – Exultou no Espírito.

11,1 – Ensina-nos a rezar.

22, 39-42 – No Jardim das Oliveiras.

3) – As longas vigílias de oração é que alimentavam uma íntima, profunda e contínua comunhão de Jesus com o Pai. Esta é a oração de Jesus mais verdadeira.

Jesus não dava ao Pai retalhos de tempo, mas toda sua vida era oração. Uma vida emoldurada entre 2 orações significativas.

Hebr – 10,5 – “Eis porque, ao entrar no mundo, Cristo diz: Não quiseste sacrifício nem oblação, mas me formaste um corpo. Holocaustos e sacrifícios pelo pecado não te agradam. Então eu disse: Eis que venho... ó Deus para fazer a tua vontade”.

Lc 23,46 – Pai em tuas mãos entrego o meu espírito.

Esta comunhão intima e profunda de Jesus com o Pai, constitui o mistério de Jesus: Algo que não se banaliza, não se joga na rua, mas que Jesus deixa transparecer especialmente com os discípulos.

Jo-10,30 – “Eu e o Pai somos um”.

Jo – 14,11 – “Crede-me, estou no Pai e o Pai em mim”.

Jo – 6,57 – “O Pai que me enviou vive, e eu vivo pelo Pai”.

Jo – 10,38 – “Não estou só: o Pai está comigo”.

Esta comunhão amorosa contínua com o Pai vitaliza, sustenta, alimenta, o ser, a vida, a missão de Jesus.

A respeito desta oração amorosa, íntima, profunda, permanente de Jesus, não temos muito a dizer. Constitui o mistério da vida pessoal do relacionamento de Jesus com o Pai. Mas podemos tomar em consideração o conteúdo da oração de Jesus no deserto, nas madrugadas, nas vigílias. Jesus rezava a vida, a história, os acontecimentos. A sua não era oração alienada, dualista. As grandes decisões existenciais e pastorais de Jesus foram amadurecidas, antecipadas, na oração, no diálogo com o Pai. A oração de Jesus é granvida de História. Na oração, Jesus anticipa, prepara, amadurece, assume conscientemente as decisões, a história.

Lc 4,1-13 – As tentações no deserto. Jesus na plenitude de suas forças vitais, sentindo em si forças divinas.

O que fazer com a força e poder que possui? - Jesus toma consciência e define sua missão. - Jesus toma a decisão e ao sair do deserto vai a Nazaré (Lc 4,14-21) e diz claramente e com firmeza qual a sua missão.

A opção pelos pobres foi amadurecida no deserto.

Lc 6,12-13 – “A escolha dos 12 e o discurso da planície”. “Jesus retirou-se a uma montanha para rezar e passou aí toda a noite orando a Deus. Ao amanhecer, chamou a si os discípulos e escolheu 12 entre eles que chamou apóstolos”.

Uma decisão pastoral tomada na oração, assim farão os Apóstolos.(At 1,24,At 13,2-3)

Lc 9,28-36 – A Transfiguração.

Enquanto ora, Jesus se transfigura (como no Batismo). Transfiguração é um momento personalizante. Jesus toma consciência da própria identidade como filho de Deus. Momento conscientizador, a respeito da missão. Jesus, Moises e Elias falam do seu Êxodo”.

Lc 22,39-42 – No Jardim das Oliveiras.

Hebr 5,7 – “Dirigiu preces e súplicas entre clamores e lágrimas”. “O espírito está pronto, mas carne é fraca”. Jesus não é um super-herói. Ele chora, clama, Na vigília, Jesus toma consciência, aceita livremente, participa plenamente, antecipa os fatos (suor de sangue) prepara o espírito. Jesus não é surpreendido, atropelado pelos acontecimentos. Os discípulos não rezavam e foram atropelados. Jesus os manda para casa.

A oração torna a ação consciente, coerente, criativa, fecunda, destemida, teimosa. Devemos desconfiar de uma ação não amadurecida na oração. E desconfiar de uma oração que não leva à ação. É preciso precaver-se contra o ativismo e contra o espiritualismo.

O ativismo não é evangélico.

Jesus não se cercou de empregados ou eficientes funcionarios, mas de amigos “Não vos chamo servos, mas amigos” - Jo 15,15.

Lc 10,32-42 Marta age sem escutar, Maria escuta para poder agir corretamente.

Rom 8,15-17 – O Espirito não é dado primeiramente para a missão, mas para clamar: Abba, Pai.

Também o espiritualismo è evangélico.

Mt 7,21 “Não aquele que diz Senhor, Senhor, entrará no Reino dos céus, mas aquele que faz a vontade do Pai que está no céu”.

“Se você estiver arrebatado ao sétimo céu e um doente lhe pedir um copo de agua fresca, não duvides em descer do sétimo céu para lhe alcançar a água” (Bernanos em: Diário de um pároco de aldeia).


8ª MEDITAÇÃO: “Não cessemos nunca de ser completamente pobres”

(M.S.E. 263)

“Meu Deus, não sei como seja possível a algumas pessoas continuarem voluntariamente ricas, vendo-vos tão pobre... Não posso conceber o amor sem uma necessidade, uma imperiosa necessidade de conformidade, de semelhança e,

sobretudo uma necessidade de compartilhar todos os sofrimentos, todas as dificuldades, todas as durezas da vida...” Ó meu Senhor Jesus, como se tornará rapidamente pobre aquele que, amando-vos com todo o coração, não poderá suportar de ser mais rico do que seu Bem-amado” (Retiro em Nazaré 1897).

“Jesus não afasta os ricos, morreu por eles, os chama a todos, os ama, mas não aceita partilhar suas riquezas e chama primeiramente os pobres... Não cessemos nunca de ser completamente pobres, irmãos dos pobres, companheiros dos pobres. Sejamos os mais pobres dos pobres, como Jesus, e como ele amemos os pobres e cerquemo-nos deles”. (M.S.E.263)

No Antigo Testamento desde o inicio Deus se revelou como o Deus dos pobres, ao lado dos oprimidos. El Shaddai é o Deus da estepe, da montanha, que acompanha a vida dura dos nômades Hebreus. Não é o deus da planície, da cidade, onde há água, comércio, rei. Javé é o Deus que vê a opressão, escuta o clamor, conhece o sofrimento, tem um

plano libertador, e liberta seu povo oprimido. Mas este povo não compreendeu a lição.

Uma vez libertado, entrando na terra, torna-se opressor. Os fortes exploram os fracos, espertos exploram os simples, ricos exploram os pobres, grandes exploram os pequenos.

A pobreza de Jesus e sua opção pelos pobres são duas coisas distintas, mas complementares. Sua pobreza revela o Rosto do Pai. Sua opção pelos pobres revela o Projeto do Pai. Inspiram a nossa evangélica pobreza e a Evangélica opção pelos pobres. A pobreza nos identifica com os pobres. A opção nos torna solidários com eles. Pobreza sem opção não passa de enfeite espiritual. Opção sem pobreza é contraditório.

Após um período de entusiasmo inicial (época do tribalismo-juízes) no qual o povo viveu fraternalmente, sem rei e sem exército, os gananciosos, de olhos grandes, apareceram em toda parte.

Interessante notar como no Antigo Testamento encontramos uma certa, ambiguidade, contradição, na maneira de encarar a riqueza.

Duas correntes teológicas:

1 - a da retribuição (ou da prosperidade)

2 - a da gratuidade.

A corrente da retribuição, muito forte no Antigo Testamento, onde falta a fé na Ressurreição, afirma que Deus recompensa os bons dando saúde, vida longa, bons negócios, prosperidade.

A riqueza é sinal da bênção de Deus para os bons, os que lhe são fiéis. Enquanto a pobreza (e a doença) comprova a presença do pecado, falta a bênção. (conforme Igreja Universal do Reino de Deus). Ver o Sl 37,25. Mas esta maneira de ver e julgar entra em choque com a realidade. Sl 73: E’ o mistério da prosperidade dos maus, que tormenta também Jó.

Aos poucos porém aparece uma nova reflexão teológica, profética: os ricos são ricos porque gananciosos, inescrupulosos, espertalhões, ímpios, orgulhosos. Os pobres são pobres porque são roubados, enganados, explorados, oprimidos.

Sl 9 – Passa-se de uma visão sociológica para uma visão ética. (Ricos = ímpios, orgulhosos, gananciosos. Pobres = humildes, fiéis, os pobres de Javé).

Os pobres então colocam sua esperança em Deus.

Sl 68, 6-7 – É o Pai dos órfãos e o protetor das viúvas este Deus que mora num templo santo.

O Deuteronômio tenta repropor o projeto de Deus, o ideal. Que haja pobres nao està no Projeto de Deus.

Dt 15,4 – não haverá pobres no meio dei ti, se você obedecer as minhas leis.

Dt 15,7 – se por acaso houver um pobre, não endureça o coração para com ele.

Dt 15,11- sempre haverá pobres, infelizmente, porque o povo é desobediente...

Lv 25 – Com o jubileu e o ano sabático tenta-se retomar o projeto de Deus. A terra volta aos antigos proprietários, os escravos libertados, as dívidas perdoadas. Mas o jubileu quando aconteceu?

Os profetas, que buscam a face de Deus, reconhecem o projeto de Deus e denunciam o contraste entre o projeto de Deus e a realidade de injustiças, corrupção, ganância, roubo.

Is 5,8 – “Ai de vós que ajuntais casa a casa e campo a campo até que não haja mais lugar e sejais os únicos proprietários da terra”.

Am 2,6 – “Oráculo do Senhor: por causa do triplo e quádruplo crime de Israel,não mudarei o meu decreto, porque vendem o justo por dinheiro e o pobre por um par de sandálias”.

Am 6,1-7 – “Ai daqueles que vivem comodamente em Sião...”

Am 8,4-7 – “Ouvi isto, vós que engolis o pobre...”

Mq 2,1-2 – “Ai dos maquinadores de iniquidades... cobiçam as terras e apoderam-se delas, cobiçam as casas e roubam-nas”.

1Reis 21 – O caso da vinha de Nabot e o rei Acab e o profeta Elias.

Mas se no Antigo Testamento encontramos esta ambiguidade (teologia da prosperidade e da gratuidade), no Evangelho e no N.T. ela é totalmente e definitivamente superada. Em Jesus, o Pai está, claramente, abertamente, definitivamente, do lado dos pobres e excluídos. Jesus liquida com a teologia da retribuição, prosperidade.

Mt 5-45 o Pai manda o sol e a chuva para os bons e maus.

Jo 9,3 – “Quem pecou?” - “Nem ele, nem seus pais”.

OLHEMOS PARA JESUS

Jesus se fez pobre e fez a opção pelos pobres, demonstrando que esta é a opção do Pai. É necessário esclarecer que, quando Jesus diz “pobre” entende “pobre mesmo”, ou seja, materialmente pobre, sem dinheiro. Jacques Dupont em “Jesus Mestre dos Pobres” faz um estudo sobre o termo “Pobre” no Evangelho. Vinte e quatro

vezes aparece o termo “pobre” nos Evangelhos. Dezenove vezes sem sombra de dúvida e cinco vezes pelo contexto deve-se concluir que Jesus usa a palavra “pobre” come a entende o povo e não num sentido ético (humilde, simples).

JESUS POBRE

1- Jesus mostra a preferência do Pai pelos pobres, já no seu nascimento, sendo ele mesmo um pobre. O nascimento de Jesus é momento de glória, festa, mas não no palácio de Herodes, ou de Pilatos, ou na suntuosidade do templo, mas na estrebaria de Belém, onde não havia lugar, conforto, limpeza, água, luz.

Jesus foi pobre (= pobreza evangélica)

A) - Pobre perante o Pai (= pobre em espírito)

Jo 6,38 – Não vim para fazer a minha vontade, mas...

Mc 10,18 – Por que me chamas bom? Só Deus é bom.

Jo 14,28 – Se me amásseis vos alegraríeis que vou ao Pai, porque o Pai é maior do que eu.

Mc 13,32 – Quanto ao dia e a hora, ninguém sabe, nem os anjos, nem o Filho, só o Pai.

Mc 14,36 – Pai se é possível afasta de mim este cálice, porém, não a minha, mas a tua vontade.

Mt 27,46 – Eli, Eli, lamá Sabactâni ?!

B) – Jesus materialmente pobre.

Lc 2,7 – Reclinou-o na manjedoura.

Mc 6,3 – Não é ele o carpinteiro?

Mt 8,20 – O filho do homem não tem onde deitar a cabeça.

Mt 27,35 – Dividiram suas vestes entre si.

2Cor 8,9 – “Vós conheceis a bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo, sendo rico se fez pobre a fim de vos enriquecer com sua pobreza”.


– JESUS OPTOU PELOS POBRES

A)- Jesus procurou os pobres viveu rodeado de pobres, doentes, excluídos (lugar social).

Lc 4,18 – Ungido para anunciar a Boa Nova aos pobres

B) – Jesus valorizou os pobres.

Lc 8,26-39 – o possesso e os porcos (o louco possuído pelo demônio vale mais que um capital de 2000 porcos).

Lc 21,2 - O óbolo da pobre viúva.

Jo – 7,49 – “Este poviléu que não conhece a Lei é amaldiçoado”. Jesus responde: – “Eu te bendigo Pai...escondeste os mistérios aos sábios...” (Mt 11,25).

C– Jesus defendeu os pobres denunciando a ganância dos ricos.

Lc 6,24 – “Ai de vós ricos”.

Mt 23,14 - “Ai de vós que devorais as casas das viúvas”.

D– Jesus manifesta a compaixão do Pai também pelos ricos através de ameaças e maldições. Ameaça, amaldiçoa para acordar, que levem um susto, que fiquem chocados. Jesus alerta e desmascara a ilusão da riqueza, fustiga a idolatria do dinheiro.

Lc 12,13-21 – Parábola do rico dos celeiros: “Louco, coitado... Guardai-vos de toda avareza, porque a vida de um homem, ainda que ele esteja na abundância, não depende de suas riquezas”.

Lc 16,13 – Não podeis servir a Deus e ao dinheiro.

Lc 16,19-31 – O rico e o pobre Lázaro.

Lc 18, 24-25 – Como é difícil para os ricos entrar no Reino de Deus; é mais fácil o camelo entrar pelo buraco de uma agulha.

Jesus não afasta os ricos, morreu para eles, os chama todos, os ama, mas não aceita partilhar suas riquezas e chama primeiramente os pobres... Não cessemos nunca de ser completamente pobres, irmãos dos pobres, companheiros dos pobres, os mais pobres dos pobres, como Jesus e como Ele amemos os pobres. É bem claro que o Irmão Carlos se fez pobre por causa do Bem-Amado, para imitá-lo em tudo, não suportando ser rico se o Bem-Amado é pobre” (M.S.E.263).

Mas há a outra grande motivação para escolher a pobreza e é justamente a imensa multidão dos pobres que enchem as periferias das pequenas e grandes cidades, o campo, a floresta.

A realidade do nosso povo explorado, empobrecido, nos obriga a tomar decisões claras a favor dos pobres e a vivermos uma vida de simplicidade, sobriedade, austeridade se não mesmo de pobreza.

Os documentos da Igreja dos papas, da Conferência Nacional dos Bispos, inúmeras vezes tem denunciado o escândalo de ricos cada vez mais ricos às custas dos pobres cada vez mais pobres.

Mas não basta falar. Dom Benedito de Ulhôa Vieira afirmou, num retiro, “Fala-se tanto em opção pelos pobres que virou uma diarreia verbal: são necessários gestos concretos de solidariedade e libertação”.

A bem-aventurança de pobreza evangélica escolhida e vivida conscientemente, livremente, espontaneamente, amorosamente, alegremente:

1) – Denuncia a ilusão do ter. A felicidade não está no ter (cf. São Francisco – esfarrapado, descalço e com fome, mas feliz: ...è Deus que me faz cócegas...).

2)– Nos torna solidários com os pobres.

3) – Alerta contra uma mentalidade consumista, capitalista, poluidora, gastona. Os santos foram tão felizes tendo tão pouco!

A pobreza evangélica é um dom do Espírito à Igreja e a toda a humanidade. Um dom escatológico que aponta para a verdadeira riqueza, para o tesouro escondido e a pérola de grande valor que é Deus mesmo, o Bem-Amado Jesus, o Reino. Deus é o bem, o sumo, único, verdadeiro bem.

“Meu Deus e meu tudo” – São Francisco “Só Deus basta”. – Santa Tereza

A pobreza evangélica é exigência de evangelização, garantia de autenticidade, característica do missionário.

Mt 10,9-10 – “Não leveis nada...”

Abbe Pierre – “Converteremos os pobres tornando-nos como eles e os ricos, sendo diferentes deles”.

Não optar pelos pobres é travar o avanço do Reino: a Igreja pode ganhar privilégios, prestígio, poder, mas o Reino perde.


9ª MEDITAÇÃO: ADORAÇÃO À EUCARISTIA

“Adorar dia e noite a Santa Eucaristia perpetuamente exposta” (Carta a Maria de Bondy – 28/04/1904)

“Adoração do SS.mo Sacramento perenemente exposto, amor apaixonado pelo próximo, imitação da vida escondida de Nosso Senhor Jesus em Nazaré: eis as principais características dos Pequenos Irmãos do Sagrado Coração de Jesus” (Retiro a Beni-Abbés – 29.11.1904).

Fundar uma família religiosa dos Pequenos Irmãos do Sagrado Coração de Jesus, “destinada a adorar dia e noite a Santa Eucaristia, perpetuamente exposta,na solidão e na clausura, nos países de missão, na pobreza e no trabalho” (Carta a Maria de Bondy – 28.04.1904).

“Minha vida, numa tranquilidade incomparável, na clausura ideal, sem muros, mas real, aos pés do Santíssimo Sacramento... seria aquela solidão que sonhava, não fosse uma coisa que me entristece, a de não poder celebrar a Santa Missa que raramente: sem um cristão que assista, quem quer que seja, não posso celebrar” (Tamanrassét 18.11.1907).

“Não se aflijam em saber-me sozinho, sem amigos, sem ajuda espiritual; não sofro minimamente por esta solidão, aliás, acho-a dulcíssima; tenho comigo o Santo Sacramento, o melhor amigo, com o qual falar dia e noite” (Tamanrasset 16.12.1905).

Depois da sua conversão, Charles de Foucauld não pensa no sacerdócio, pensa em levar uma vida o mais possível parecida a do Bem-Amado Senhor Jesus. Para realizar isto entra na trapa e depois vai a Nazaré. Num segundo tempo, nasce e cresce nele o desejo de levar este tipo de vida (pobreza, solidão, trabalho como Jesus) não em Nazaré, mas entre os pobres muçulmanos do Saara e a eles levar Jesus.

Deseja então ser sacerdote, como foi o Bem Amado e sê-lo no meio dos pobres muçulmanos. Ir. Carlos torna-se um adorador, apaixonado da Eucaristia e um “missionário” da Eucaristia.

“Já que ele está sempre conosco na Santa Eucaristia fiquemos sempre com ele, em sua companhia aos pés do Sacrário, não desperdicemos por nossa culpa um só momento que passamos diante dele. Deus está aí, o que vamos procurar alhures”? O Bem Amado, o nosso tudo está aí e nos convida a ficar em sua companhia (M.S.E.174).

A espiritualidade do Ir. Carlos é incompreensível sem a Eucaristia e assim a vida de Jesus. A Eucaristia não é como a cura de um doente que poderia ter acontecido ou não. A Eucaristia é ponto de chegada de todo um caminho.

“Acima de tudo fazer o máximo de bem que se pode fazer atualmente, aos povos muçulmanos e tão abandonados, levando no meio deles Jesus no SS.mo.Sacramento, assim como a SS.ma. Virgem santificou João Batista levando a ele Jesus” (Carta a Maria de Bondy – 09.09.1901).

A adoração e a contemplação do Bem Amado na Eucaristia é fundamental e ocupa um lugar central na espiritualidade do Ir. Carlos, assim como foi central na vida de Jesus. A Eucaristia é ponto de chegada de todo o ministério apostólico de Jesus e do seu amor aos discípulos.

Lc 22,14-15 – “Chegada que foi a hora, Jesus pôs-se à mesa e com ele os apóstolos. Disse-lhes: Tenho desejado ardentemente comer convosco esta Páscoa antes de sofrer”.

Jo 13,1 – “Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo ao Pai, como amasse os seus, que estavam no mundo, até o extremo os amou”.

Na hora da despedida gostamos de deixar aos amigos algum objeto, que mantenha viva a lembrança do amigo (um presente, um sinal). Jesus veio para ser o Emanuel, o Deus conosco, e na hora da despedida não deixa um objeto, mas deixa a si mesmo nos sinais do pão e vinho.

“Eis que estou com vocês todos os dias...” (Mt 28,20). A Eucaristia nos primeiros séculos foi celebrada com grande liberdade e espontaneidade: da fórmula da Consagração temos 4 formulários diversos: A fração do pão ou Ceia do Senhor era celebrada com liberdade e criatividade conforme as possibilidades do tempo e do lugar. Mas a preocupação da Igreja, legítima, mas talvez excessiva, de preservar a Eucaristia de abusos e devoções, impôs uma liturgia Eucarística idêntica, intocável, estereotipada, igual em todo tempo e lugar do Vaticano à Amazônia.

A Eucaristia foi plastificada e empobrecida, mas o problema mais grave é o da autenticidade do mistério que celebramos e este problema aparece já no começo; é prova disso a primeira Carta aos Coríntios e o Evangelho de João: é o perigo de reduzir o Mistério da Eucaristia a uma cerimônia.

Então a preocupação (cf. missa da 1ª Comunhão, crisma, etc) se limita a organizar cerimônias, esteticamente perfeitas (procissões, cantos, instrumentos, vestes litúrgicas, ornamentação, incenso) e nos esquecemos que estamos fazendo memória de um homem arrastado pelas ruas, condenado à morte, crucificado, entre tormentos e ressuscitado para ensinar-nos a viver como irmãos, filhos do mesmo Pai.

O perigo do ritualismo era presente já no Antigo Testamento. Os profetas são duríssimos em denunciá-lo. Confira em Is 1,10-20 – Am 5,21-25 – Mq 6,6-8 – Os 6,6 – Eclo 34,18,22.

Para compreender a Eucaristia é preciso ter presente o contexto remoto, próximo e imediato no qual Jesus a realizou.

1- Contexto Remoto: é a vida toda de Jesus, o dom total que Jesus fez de si, o seu imenso amor. Durante toda sua vida, Jesus encurvou-se, dobrou-se, partiu-se para fazer a Vontade do Pai.

Lc 2,49 – “Não sabíeis que devo estar nas coisas do Pai”?

Jo 4,34 – “Meu alimento é fazer a vontade do Pai”.

Hb 10,5-7 – “Não quiseste sacrifícios e holocaustos. Eis que venho para fazer a tua vontade”.

Durante toda sua vida Jesus se dobrou, se encurvou, se partiu na frente dos homens, para salvá-los, curá-los, perdoá-los, consolá-los.

Mc 3,20 – “Era tanta gente que o procurava que não tinha tempo de comer um pedaço de pão”.

Jo 10,10 – “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância”.

Jo 15,13 – Não tem prova de amor maior que dar a vida pelos amigos.

Mas ao mesmo tempo, quantos conflitos!

2– Contexto Próximo: são os acontecimentos dos últimos dias antes da Ceia. A Ceia de Betânia (Jo12,1-11) é significativa e revela os sentimentos de Jesus e a situação de conflito que se criara em torno de Jesus: desconfiança, inveja, traição, ódio, covardia, falsa amizade, fingimento, que toca também os discípulos.

Jesus encontra-se na casa de Lázaro. Maria percebe a atmosfera da morte, clima pesado, e quer demonstrar seu afeto, ternura, amizade sincera a Jesus e o faz com o perfume. Indignação de Judas e dos discípulos.

É neste contexto de conflito, resistência dos inimigos, e de rancor, intriga, incompreensão, ingratidão, covardia dos mesmos discípulos, que Jesus celebra a Ceia, demonstrando o maior amor, pronto a dar a vida.

– Contexto Imediato – A ceia Pascal: Jesus age conscientemente e predispõe os mínimos detalhes (Lc 22,7-13) enviando Pedro e João para preparar tudo. Ambiente: acolhedor, aconchegante e festivo. Sentado Jesus manifesta seus sentimentos. “Tenho desejado ardentemente comer convosco esta Páscoa, antes de sofrer”. Nesta hora santa, sagrada, esperada, aparecem todos os conflitos e rivalidades. “Quem é o maior”? – Lc 22,24.

João introduz o lava-pés: “Durante a ceia quando o demônio já tinha lançado no coração de Judas, filho de Simão Iscariotes, o propósito de traí-lo...” E conclui o lava-pés: “Vós estais puros, mas nem todos, pois sabia quem o havia de trair”. (Jo 13,2,11).

Também Paulo, narrando a ceia, anota o contexto da morte que envolve a Ceia no começo e no fim. “O Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão... todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, lembrareis a morte do Senhor até que Ele venha”.(1Cor 23,26).

A 3ª Oração Eucarística sublinha este clima de traição e morte que envolveu a ceia do Senhor. A intenção de Paulo não era tanto de narrar a instituição da Eucaristia, mas denunciar alguns abusos, contradições, aspectos negativos que se davam em Corinto durante a Celebração da Ceia do Senhor.

Estes aspectos negativos eram tão graves que a Ceia perdia sua identidade, não era mais comer a Ceia do Senhor.(1Cor 11,20).

Aquelas celebrações causavam mais prejuízo que proveito.(1Cor 11,12). Qual era o abuso? “Mal vos pondes à mesa, cada um se apressa a tomar sua própria refeição; e enquanto uns tem fome, outros se fartam” (21). Esta falta de partilha, de solidariedade e co-divisão tira a verdadeira identidade da Ceia e a reduz a um simples rito.

A mesma preocupação de Paulo será a de João, que ao narrar a Ultima Ceia (5 capítulos) omite a narração da instituição da Eucaristia e a substitui com o lava-pés. João deveria ter narrado a instituição da Eucaristia para eliminar a impressão negativa suscitada entre os judeus com o discurso eucarístico (Jo 6) que parecia afirmar que os discípulos deviam tornar-e canibais (comer a carne e beber o sangue de Jesus).

Por que a substitui com o lava-pés? João tem medo que a Eucaristia se torne uma cerimônia-rito. A Eucaristia - memória de Cristo morto e ressuscitado - deve transformar as relações humanas marcadas pelo pecado, egoísmo, ganância, violência em relações amorosas, fraternas, justas e não se tornar uma cerimônia superficial, inócua, acomodante, sentimental.

Era o mesmo pecado denunciado pelos profetas, mas infinitamente mais grave, porque naquele tempo se tratava de vítimas de animais, mas agora a vitima é o Filho de Deus.

No fim da instituição da Eucaristia há uma ordem: “fazei isto em memória de mim”. (1 Cor 11,24s). No fim do lava-pés a ordem é a mesma. “Dei-vos o exemplo, para que façam o mesmo”. (Jo 13,15). “Fazei isto” não é simplesmente celebrar, adorar, recordar, comemorar, aplaudir, honrar, glorificar, cantar, mas Fazer, Realizar. Não é simplesmente repetir gestos simbólicos, litúrgicos.

Na ceia, que é a síntese de sua vida, Jesus se partiu como se parte o pão, se dobrou, se inclinou, se prostrou, lavando os pés, se entregou totalmente, se esmigalhou e deixou comer até que não sobrou mais nada, amou até o fim. No meio da incompreensão, traição e ódio.

Celebramos uma Eucaristia verdadeira quando fazemos o mesmo, mesmo no meio de traições e incompreensões. Há Eucaristias que são verdadeiros sacrilégios (como a celebrada na Igreja do Carmo no Recife para conseguir que Domingos, o Velho, destruísse o quilombo de Palmares, e a de agradecimento pela vitória conseguida e o assassínio de Zumbi e de todos os negros do quilombo).

Mas há Eucaristias verdadeiras como a celebrada por Oscar Romero quando seu sangue foi derramado com o de Jesus sobre o altar.

Permanecer em silencio diante do sacrário, como fazia Ir. Carlos, é permitir que o projeto de Jesus se torne o nosso projeto de vida, é partilhar os seus mesmos sentimentos, é fazer nossa a práxis de Jesus, para levar a frente o Reino

de Deus e a sua justiça. Assim o sacrário se torna o prolongamento do altar.


10ª MEDITAÇÃO: “Gritar o Evangelho com a vida”

“Você pergunta se estaria pronto a ir num lugar diferente de Beni-Abbés para a difusão do Santo Evangelho: sou pronto para isso a ir até os confins do mundo e viver até o juízo final” (Carta a Mons. Guérrin de Beni-Abbés – 27.02.1903).

“Os meus retiros para o diaconato e para o sacerdócio mostraram-me que a vida de Nazaré, que me parecia ser a minha vocação, devo vivê-la não na Terra Santa tão amada, mas entre as almas doentes, as ovelhas mais abandonadas. Este divino Banquete do qual me torno ministro, devo prepará-lo, não para os parentes, não para os vizinhos ricos, mas para os aleijados, cegos e pobres, isto é para as almas às quais faltam os padres” (Carta ao padre Caron – 02.04.1905).

“A tua vocação: pregar o Evangelho em silencio, como fazia Eu, numa vida escondida como Maria e José” (Anotações – 06.06.1897).

“Sem palavras, em silêncio, vão realizar seus retiros entre aqueles que não Me conhecem: levem-me entre eles, construindo um altar, um tabernáculo, e levando o Evangelho, não o pregando, mas vivendo-o, santificando o mundo; almas piedosas, almas escondidas e silenciosas, como Maria me levou a João” (Retiro a Efrem – 1898).

“Procuremos o ultimo lugar e não só para nós, mas também para todos aqueles que nos cercam, pais, amigos, companheiros” (S.E.E.)

Charles de Foucauld é um homem do deserto, sente uma necessidade enorme de silêncio e solidão, uma saudade irresistível do deserto. Ao mesmo tempo, sente-se continuamente quase arrastado para fora do deserto à força, para ir ao encontro dos irmãos, dos que não conhecem Jesus e entre eles os mais pobres.

Irmão Carlos é um apóstolo contemplativo, um contemplativo missionário, por causa do amor.

A missão nasce no coração do Pai, do seu amor. “A tal ponto Deus amou o mundo de dar o seu filho único, para que todos que nele creem tenham vida”. Assim é o amor do Pai. Jesus, o filho que o Pai enviou ao mundo por amor, realiza sua missão doando-se totalmente: “não tem prova de amor maior que dar a vida”.

É esta a missão que Jesus confiou aos discípulos na Páscoa, na Cruz e na Ressurreição. Na cruz, com um olhar retrospectivo Jesus exclamou: “Tudo está consumado” (Jo 19,30) que não significa “tudo acabou”, mas “acabei tudo como o Pai queria, realizei plenamente a missão que foi confiada a mim pelo Pai”.

Daqui pra frente a missão será dos discípulos. “Como o Pai me enviou, eu envio vocês; recebam o Espírito Santo”.

Será o Espírito Santo a lembrar tudo que Jesus fez e ensinou e a dar coragem para o testemunho. Sereis minhas testemunhas em Jerusalém, Judeia, Samaria e até os confins... Uma missão amorosa que nasceu no coração do Pai, que levou o Filho à doação total, e é condicionada ao amor.

“Simão, filho de João, amas-me mais que estes?” - “Apascenta”. “Você me ama?” Será sempre a grande pergunta que nos é feita por Jesus e pelos pequenos de Jesus (pobres fracos, doentes, excepcionais...).

Não basta trabalhar, organizar as coisas; Jesus e os irmãos nos pedem amor. Irmão Carlos cultiva este amor na solidão, adoração, contemplação.

Em 1897 escreve a seu primo Luiz de Foucauld: “Vim morar em Nazaré... O bom Deus me fez encontrar aqui, o mais perfeitamente possível, aquilo que procurava: pobreza, solidão, abjeção, trabalho humilde, escuridão total, imitação a mais perfeita possível daquela que foi a vida de Nosso Senhor Jesus, nesta mesma Nazaré”.

Mas já em 07.05.1900, escrevendo ao Pe. Huvelin, refletindo sobre a festa da visitação de Maria a Isabel diz:

“Quando chegar a primavera terão passados 7 anos de quando lhe escrevi de Akbes (da trapa na Síria), o que eu vislumbrava para mim: levar com alguns companheiros a vida da Santa Virgem no mistério da visitação: isto é santificar os povos infiéis dos paises de missão, levando a eles silenciosamente, sem pregações, Jesus no Santíssimo Sacramento e a prática das virtudes evangélicas”.

“A visitação é o amor de Cristo que te empurra (2Cor 5,14) é Jesus que, logo que entrou em você tem sede de tornar santos e felizes os outros”(08.07.1898) “A festa da visitação se tornará a Festa patronal dos pequenos irmãos e pequenas irmãs do Sagrado Coração de Jesus” (CBA p/43 – 02.07.1904).

“O que a Virgem vai fazer na Visitação não é uma visita à sua prima para consolar-se e edificar-se mutuamente. Maria parte para santificar João, não com as palavras, mas levando silenciosamente Jesus até ele, na sua casa...”

“Assim fazem os religiosos e religiosas contemplativas nos paises da missão: vão para evangelizar e santificar os povos infiéis sem palavras, levando Jesus no meio deles em silêncio; levando-o na Santa Eucaristia, levando-o na própria vida, a vida evangélica da qual dão exemplo e da qual são imagens vivas”.(cf. P/471).

Irmão Carlos voltará periodicamente à meditação sobre a visitação, até o ultimo ano de sua vida e sempre para indicá-la como modelo de missão para si e para os futuros irmãos e irmãs. Prolongar invisivelmente o mistério da visitação se tornará a única forma possível de encontro e missão com os muçulmanos e naqueles ambientes onde um anúncio explícito seria impossível ou até negativo.

O importante é ser “grávido” de Jesus e cheio de amor como Maria, ser fermento escondido na massa. Ao Pe. Jerônimo escrevia (07.07.1901) “Não acredito poder fazer aos muçulmanos um bem maior do que levando a eles, como Maria na visitação na casa de João, Jesus, o sumo bem, o santificador supremo; Jesus que será sempre presente entre eles no Sacrário e, espero, no Ostensório, Jesus que se oferece todo dia sobre o altar para a conversão deles, Jesus que os abençoa todos os dias. Eis o bem maior, nosso tudo, Jesus! Ao mesmo tempo, mesmo calados, daríamos a conhecer aos nossos irmãos ignorantes, não com palavras, mas com o exemplo, e acima de tudo com o amor universal, aquilo que é a nossa fé, aquilo que é o espírito cristão, aquilo que é o Coração de Jesus”.

Em setembro de 1901, Irmão Carlos se estabelece em Beni Abbés perto da fronteira com o Marrocos, mas, como o Marrocos fica fechado, pensa em ir mais para o Sul (no meio dos Tuareg) e em Janeiro 1905 chega a Tamanrasset onde se estabelece por ser o vilarejo mais pobre e abandonado.

Mas estas mudanças lhe causam sempre transtorno e perturbação. “Sim, toda a mudança, todo movimento me espanta, me dá uma sensação de vertigens, de perturbação: tenho medo de errar, tenho medo de não ter as forças” (carta ao Pe. Guerin).

Para poder realizar a missão (e facilitar a missão para futuros missionários) considera fundamental conhecer bem o idioma e a cultura dos Tuareg, que era um povo retirado, marginalizado. Aprende a língua e escreve um dicionário Francês-Tuareg com 2028 páginas.

Recolhe e escreve poesias e provérbios Tuareg (6000 versos) que termina de passar a limpo no dia 28.11.1916. Traduz o evangelho na língua Tuareg. Mas tem consciência de que não é o saber intelectual que irá converter as pessoas, e escreve: “Uma alma faz o bem, não na medida de sua sabedoria ou inteligência, mas de sua santidade”.

Paulo VI na “Evangeli Nuntiandi” dirá: “O mundo de hoje acredita mais nas testemunhas do que nos mestres, e, se acredita nos mestres, é porque também são testemunhas (n.41)”.

No retiro de Ghardaia (1904) Irmão Carlos descreve com simplicidade as atitudes do missionário com o povo: “Deixar que se aproximem de mim, que falem comigo... ao invés de evitar suas longas conversas, desejá-las, mas, dirigidas sempre para Deus. Não ter medo do contacto com os indígenas, nem de suas roupas e cobertores, etc...não ter medo de suas sujeiras e pulgas”.

Aos poucos Irmão Carlos reconhece que a maneira melhor, mais acertada de evangelizar, de fazer apostolado é através do encontro pessoal: “tête-a-tête”, e “tu per tu”.

“Para qualquer questão importante, tratar sempre de você para você”. “Na medida em que se estabelece a amizade, falo sempre, e quase sempre “a tu per tu”, do Bom Deus, brevemente, dando a cada um o que é capaz de carregar” (CFEM p 442).

A maneira de evangelizar do Ir. Carlos nos oferece assim grandes intuições que são também verdadeiros desafios e muito atuais.

1- Ser “grávidos” de Jesus como Maria na visitação, para podê-lo levar aos outros: para tanto é necessário que o evangelizador tenha encontrado pessoalmente Jesus” (1Jo 1,1-4). “O que os nossos olhos viram, o que os nossos ouvidos ouviram, o que as nossas mãos apalparam... É a santidade do apóstolo que é importante”.

2 – Encarnar-se como Jesus, o Bem amado (Fl 2,6-10) “Tende em vós os mesmos sentimentos de Jesus, o qual...” 1Cor 9,19-23 – “...eu me fiz servo de todos para ganhar o maior número possível. Para os judeus fiz-me judeu...fiz-me fraco com os fracos para ganhar os fracos. Fiz-me tudo para todos a fim de salvar a todos.” Como o Bem-Amado modelo único e como eles”.

3 - Silenciosamente: “Gritar o Evangelho com a vida”, como Jesus em Nazaré. “O cristão sabe quando é hora de falar de Deus e quando é hora de calar e deixar falar somente o amor” (Bento XVI - Deus é amor 31).

No retiro para o diaconato em 23.03.1901, escreve: ”O que quer Deus que eu faça? Aquilo em que há maior amor. O amor maior e na sua mais perfeita imitação. A mais perfeita imitação é imitar perfeitamente Jesus, num ou outro estilo de vida que ele viveu: pregação, deserto, Nazaré. Certamente eu não sou chamado à pregação, porque minh' alma é incapaz para o deserto, pois meu corpo não pode viver sem comer, então sou chamado para a vida de

Nazaré (disto a minha alma e o meu corpo são capazes e eu me sinto atraído”).

Durante o retiro em novembro de 1897 se pergunta: “É necessário considerar indispensável morar em Nazaré? Não, não mais que o resto. Não buscar outra coisa que a vontade de Deus, Deus só...Sou certo de que é uma grande graça morar em Nazaré, mas logo que isto deixasse de ser a vontade de Deus, preciso ignorar totalmente, sem olhar para trás, aonde e para qualquer coisa que a sua vontade me chama”. “A tua vida de Nazaré pode ser vivida em todo lugar; vive-a no lugar mais útil para o próximo” (22.05.1905 – CT p 47).

4 – Tornar-se um “irmão universal”. “Quero habituar todos os moradores cristãos, muçulmanos, hebreus, pagãos e considerar-me como seu irmão, o irmão universal. Eles começam a chamar a casa. HIWÂ - “A fraternidade” e isto me é doce! (À senhora de Bondy, 07.01.1902). “Falar muito com eles, ser amigos de todos, bons e maus ser o irmão universal (08.06.1904 ao Pe. Guérin na primeira viagem ao Haggar). Como irmão universal ocupar, não o primeiro lugar, mas o ultimo”. Busquemos o último lugar, e não somente para nós, mas também para todos que nos cercam; pais, amigos, companheiros” (S.E.E.).

Tamanrasset 01.12.1916 – Dia da Morte. “Não se deve nunca ter medo de pedir os lugares onde o perigo, o sacrifício, a abnegação sejam maiores; as honras, deixemos para quem as quiserem, mas o perigo, o sofrimento, peçamos sempre. Cristãos devemos dar exemplo de sacrifício e abnegação. É um principio ao qual temos que ser fiéis durante toda a vida, com simplicidade,

sem perguntar-nos se neste comportamento não haja um pouco de orgulho: é o dever, façamo-lo. Peçamos ao Bem-Amado esposo da nossa alma de fazê-lo com humildade, e com pleno amor a Deus e ao próximo”.

5 – Como pobre, no meio dos pobres, e com meios pobres.

Como pobre - “Ó meu Senhor Jesus, como se tornará rapidamente pobre aquele que, amando-te com todo o seu coração não poderá suportar de ser mais rico do que o seu Bem amado” (Retiro em Nazaré 1897).

No meio dos pobres -“Não cessemos nunca de ser completamente pobres, irmãos dos pobres, companheiros dos pobres. Sejamos os mais pobres dos pobres. Como Jesus, e como ele amemos os pobres e cerquemo-nos deles” (MSE 263).

Com meios pobres - “É com a cruz que Jesus salvou o mundo; é com a cruz deixando Jesus viver em nós e completar em nós, com nossos sofrimentos, o que falta a sua paixão que devemos continuar até o fim dos tempos a obra de redenção” (regulamento dos pequenos irmãos 1901 – 23).