PE. CELSO PEDRO- 1993

RETIRO FEITO PELO PADRE CELSO PEDRO DA SILVA EM TAPERA, CURITIBA, EM 1993, PUBLICADO NO BOLETIM DA FRATERNIDADE Nº 90.

(falta a tarde do terceiro dia)

Comecemos com o comentário feito pelo então padre Edson Damian (atualmente bispo de S.Gabriel da Cachoeira, AM), que era responsável pelo nosso boletim:

“A Fraternidade viveu dois encontros inesquecíveis durante o mês de janeiro (de 1993 em Tapera, Curitiba), com a presença de 42 irmãos vindos de Belém do Pará ao Uruguai. De 11 a 31, doze companheiros fizeram o Mês de Nazaré. Pe. Celso Pedro da Silva, da Arquidiocese de S. Paulo, animou a ambos. Lendo as meditações do retiro, o roteiro e as avaliações do Mês de Nazaré, você poderá saborear um pouco da riqueza destes dias de graça. Aos Pes. João e Batista, da Comunidade Damasco, tão irmã de Carlos de Foucauld, agradecemos de coração a hospedagem e o ambiente ecológico da casa de Tapera, a 18 km de Curitiba. Ave, Amém, Aleluia! Quem esquecerá os três sinos que nos despertavam e convocavam para as atividades comunitárias de cada dia”?

RETIRO DO PE. CELSO PEDRO DA SILVA:

Discernimento da vontade de Deus à luz da vida e do testemunho do Apóstolo Paulo, do Profeta Jonas e do Irmão Carlos de Jesus.

PRIMEIRO DIA – MANHÃ

A busca do Absoluto é um valor central da espiritualidade da Fraternidade. O tema do nosso retiro será o discernimento da vontade de Deus à luz da vida e do testemunho do Ir. Carlos.

J.F.Six – pág 67 - “Amor a Deus e amor aos irmãos. Um é impossível sem o outro” (Diário de 1909 – Apostolado da Bondade). “Ao me verem, devem refletir: Por que este homem é tão bom? Sua religião deve ser boa!”

Percebe-se, nesta citações, a disposição de sintonia com a vontade de Deus. É a tese que Antoine Chatelard desenvolve no livro sobre a vida do Ir. Carlos: “O Parceiro Invisível”. A vida é como uma dança na qual o homem procura acertar o passo com Deus. Os santos padres também comparavam a vida com uma viola que Deus afina e desafina para estar em sintonia com o homem.

A sintonia com Deus se traduz na sensibilidade com o outro. “Anunciar Jesus aos tuaregues...” (J. F. Six, pág. 66). Percebe-se aqui o esforço para tornar-se uma presença amável no meio em que se encontra. Anunciar simplesmente Jesus Cristo a eles será atrasar sua conversão. Devo tratá-los com bondade, como amigo, amavelmente, para aos poucos introduzi-los no cristianismo.

O Ir. Carlos, sem antes realizar grandes reflexões sobre o Evangelho, passa a vivê-lo na prática. Além do Evangelho, acredita na força que brota da Eucaristia. Jesus vivo e presente na Eucaristia deve estar no meio do Marrocos que permanece fechado para Ele. Mas esta presença silenciosa deve traduzir-se nos gestos, atitudes e palavras do seu discípulo. Ir. Carlos penetrou na alma dos tuaregues antes de escrever o dicionário. Para compor o dicionário de uma língua que ainda não era escrita, foi preciso escutar, sintonizar durante muito tempo. Presença silenciosa mas atenta e ativa.

A carta d Paulo aos Filipenses fundamenta a mística do Ir. Carlos . Hofmans, irmãozinho belga que viveu no Chile resumiu esta carta em duas palavras: Jesus + Cáritas. Toda esta carta está centrada no amor radical de Paulo a Jesus e ao amor terno e cordial aos Filipenses (Fil 1,8). Em Filipos Paulo sofreu a primeira perseguição, açoites, prisão. Ali ele rompeu com a rigidez dos costumes judaicos: aceitou a hospedagem de uma mulher, Lídia; pregou fora da sinagoga, à beira do rio, para as lavadeiras; contrariando seus princípios, aceitou até dinheiro da comunidade.

O relacionamento afetivo de Paulo é imenso: ele reza pela comunidade e aparece o conteúdo desa oração: suplica o que é necessário e decisivo para a vida cristã..(Fil 1,9-11).

O Ir. Carlos fala em crescer no amor a Deus e no amor aos irmãos. Paulo insiste no crescer em conhecimento e sensibilidade a fim de que sejam encontrados puros e irrepreensíveis no Deia do Senhor.

Paulo indica o caminho para discernir aquilo que convém nos juízos práticos da existência. Discernir o que mais convém é aceitar antecipadamente a vontade de Deus. O resultado desa série de discernimentos ao longo da vida nos tornará puros e irrepreensíveis.

1ª atitude: que o amor cresça sempre mais. Este amor não depende de nós. “O amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado “(Rom 5,5). Amor é dom do Espírito derramado em nós. Recebemos gratuitamente este dom que se chama amor-presença do Espírito em nós, na humanidade inteira. Este amor que etá em nós não é estático. É dinâmico e transformador. Deve manifestar-se e crescer sempre mais. “Não sufoqueis, não entristeçais o Espírito” , nos repete várias vezes o Apóstolo. Se o amor não for dinâmico, ele se entristece, sufoca-se dentro de nós.

O espaço de manifestação acontece no crescimento do amor em conhecimento e sensibilidade. Conhecimento é percepção intuitiva. Sensibilidade é qualidade de quem tem os sentidos ativos: tem olhos e vê, tem ouvidos e ouve... Os sentidos são as janelas das pessoas. Fazem-nos perceber a presença do outro. Devo perceber o outro ao meu lado. A pessoa não percebe se houver alguém atrás. Não é evidente que haja alguém atrás de mim. Por exemplo, a fila da comunhão, quando a pessoa dá um passo atrás após comungar, ignorando assim que há uma pessoa atrás dela. Sem falar ainda nas discriminações, opressões, guerras.

O amor, para não se extinguir, precisa encontrar caminho de manifestação através da sensibilidade aos outros. A sensibilidade é dom e um exercício para acolher e amar mais e melhor.

O Ir. Carlos escolhe o último lugar, pois “Cristo escolheu de tal modo o último lugar que ninguém lhe poderá tomar”. Buscar o último lugar é extraordinário exercício de sensibilidade pelos pobres, pelos mais esquecidos, pelos menos amados.

Cresce em sensibilidade, também, quem sabe contemplar os gestos de sensibilidade de tantas pessoas. Dois elementos educam nossa sensibilidade: multiplicar os gestos de sensibilidade e contemplar os gestos de sensibilidade dos outros para aprender com eles. Exemplo do menino que partiu a banana em dez pedações, contrariando a ordem do padre que pedira que ele a comesse sozinho.

Santo Agostinho nos ensina: “Como é impossível conhecer e ver a Deus, é possível saboreá-lo. Deus é o amor com o qual eu amo os meus irmãos.” Amor não é afeto sem consistência. Deus é Amor – Trindade com que amo os irmãos. Amando, descobrimos quem é Deus. Assim, vamos descobrindo os gestos de amor que realmente constroem a história.

Realizar a vontade de Deus, no cotidiano da vida cristã, deve tornar-se ato espontâneo. De tal forma que tudo quanto realizo é conformidade com a vontade de Deus. Discernindo e executando o que convém, estou construindo a justiça.

O Ir. Carlos nos ensina a sintonia entre amor a Deus e amor aos irmãos. Paulo nos diz que ao próximo se deve amar e a Deus se dá louvor e glória. O Amor que veio até nós expressa-se em nós através da sensibilidade aos irmãos e retorna a Deus através do louvor e da glória.

O que marca uma comunidade, na vida do padre que a atendeu, é a bondade. Pode ter sido sábio, bom administrador, mas se não soube amar, será logo esquecido. A bondade é um sol que entra nos corações esmagados e sofridos, Sensibilidade para priorizar o outro. Sem rodeios, descobrir a presença e a necessidade do outro.

A vontade de Deus se expressa em gestos de sensibilidade, dos pequeninos aos grandes gestos. Não é tão evidente que o outro está ao meu lado. Basta constatar as gigantescas diferenças sociais que nos dividem. Os ricos se dão conta das riquezas que possuem?

Quantas vezes vivemos ao lado das pessoas sem conhecê-las. É preciso ter sensibilidade para entrar no mundo real do interlocutor. Conhecer a história pessoal do outro para evitar juízos precipitados, preconceituosos, injustos. Por que meu irmão é assim como é agora? Que condicionamentos o fizeram chegar a esta situação? Saber aproximar-se dos outros sem rótulos, acolhê-lo como realmente é. Para tanto, é necessário querer crescer em sensibilidade. Assim, discernindo o que convém, viveremos puros e irrepreensíveis e alcançaremos a Justiça de Deus.

PRIMEIRO DIA – TARDE

O Ir. Carlos, nos conselhos às fraternidades, escreve: “Sejamos humildes, pacientes, corajosos...Serão amigos universais para serem salvadores universais.” (J. F. Six, pág. 77).

Foram os nômades que denominaram a casa do Ir.Carlos de Fraternidade. Foram ele, igualmente, que o chamaram de Irmão Universal. Quem quer que passasse pela sua casa, era muito bem acolhido.

Marcado pela Trapa, ele carrega a influência da clausura, do muro que separa o convento. Mas aos poucos vai se afastando dessa experiência, para viver a hospitalidade. “Humildes, pacientes, corajosos”, Essas são virtudes da hospitalidade. Traduzem o sonho das primeiras comunidades cristãs, das Igrejas de Paulo. A coragem é indispensável para viver a verdadeira fraternidade que supera preconceitos e racismo, pois a convivência fraterna é difícil. A proposta é apaixonante, mas a vivência concreta e sempre acompanhada de tensões, conflitos. Romanos 12: “Não vos conformeis com este mundo...mas ...com o que é agradável e perfeito.” Quem vive assim, está em sintonia com o Projeto de Deus. Como é tarefa exigente manter esta sintonia, Paulo descreve duas categorias de pessoas: os fracos e os fortes. Forte é aquele que vive plenamente a liberdade traduzida por Cristo. A liberdade nos torna novas criaturas em Cristo. É a marca que caracteriza a passagem do judaísmo para o cristianismo. “Nada mais é proibido para os que seguem a Cristo”, repete duas vezes na carta aos coríntios. “Nada é impuro em si mesmo” (Rom 14,14):liberdade absoluta diante de todas as coisas. Estes são os fortes.

Há também os fracos (que ninguém se considera!). Paulo coloca o problema da carne sacrificada aos ídolos, assunto polêmico na comunidade. Os fortes podem comê-la porque se consideram livres. Em relação ao sábado, vigora a mesma liberdade. Todo dia é dia do Senhor. Quando existem convicções tanto em relação ao comer quanto ao não comer, o que importa é realizar o que Deus quer. Aí, a fraternidade é possível.

Os conflitos surgem quando os que comem desprezam os que não comem. Há atitude de superioridade dos fortes que discriminam e humilham os que agem de modo diferente. O fraco, por sua vez, age contra o forte através da murmuração, da fofoca. “Quem come... quem não come... porque Deus os acolhe do mesmo modo”. Rom 14,2). Quem és tu que te arvoras no direito de julgar o teu irmão? Cada um age de acordo com a sua convicção. “Aquele que distingue os dias, é para o Senhor que os distingue”. Nada fazer para criar ciladas ou tropeço aos irmãos. Jamais ter segundas, terceiras intenções naquilo que faço. Limpidez e transparência no meu projeto.

“Acolhei o fraco... sem discutir as suas convicções” (Rom 14,1). Nunca começar pelo rótulo. “Seja bom ou mau, é um irmão a ser salvo”, diz o Ir. Carlos. Acolher o outro assim como é, é atitude realmente fraterna. Este argumento bíblico já aparece nos profetas. Identifica o projeto de quem age em sintonia ao Espírito que nos foi dado, Limpidez e transparência. As segundas intenções provêm da nossa natureza (homem velho), projeção do nosso egoísmo, da vaidade pessoal. Queiramos ou não, temos certa aura de pessoas boas, devotas: com ou sem batina, seremos reconhecidos. Mas isto também pode esconder muita hipocrisia. Pode-se disfarçar a maldade com aura de piedade.

Os outros sempre imaginam o melhor de nós. Por isso, pode-se enganar com muita facilidade. Por que Jesus, sendo bom, briga tanto com os fariseus? Alguns exegetas dizem que o conflito com os fariseus reflete mais as discussões que as primeira comunidades cristãs enfrentaram com eles. A verdade é que os fariseus foram os que continuaram intransigentes no judaísmo.

O farisaísmo é uma tentação frequente na vida religiosa. As companheiras da comunidade de Santa Margarida Maria Alacoque chegavam ao ponto de maltratá-la, derrubá-la da escada, enciumadas porque Jesus não aparecia a elas, que se consideravam mais piedosas!

“Cada um prestará contas a Deus das suas convicções. Cuidai para não ser torpeço...N ão entristeçais o irmão” (Rom 14,12-15). A liberdade que possuo é teórica. Na prática, deve sujeitar-se às limitações, às convicções dos irmãos. O princípio que precede a tudo e a todos é o amor que o Espírito derrama em nossos corações, o que é conveniente, o que constrói a vida do irmão. Quem sou eu para me julgar no direito de fazer perecer, se perder, um irmão pelo qual o Cristo morreu? (cf Rom 14,15) “Que a vossa liberdade não se torne objeto de calúnia, murmuração. O Reino de Deus é justiça, paz, alegria no Espírito Santo “ (Rom 14,16-18).

Justiça é reconhecer o outro na circunstância (situação) histórica em que se encontra, com suas grandezas e suas limitações. O irmão está sempre situado. Tudo pode ser motivo de preconceitos e suspeita: raça, cor, sexo, estatura, idade, cultura... tudo pode criar bloqueios no relacionamento. Justiça é aceitar o outro na sua situação histórica concreta. “O brasileiro é preguiçoso”, muitos dizem. Mas é assim porque tem a barriga cheia de vermes. É verminoso, e por isso, preguiçoso. Sem esquecer que a grande maioria tem a barriga vazia!

O Reino de Deus é paz: “Se queres ter paz, vai ao encontro dos pobres” - é o título da mensagem que João Paulo II nos enviou no Ano Novo. “A paz só existe quando encontramos o mesmo caminho para alcançar o mesmo fim”, ensina-nos Santo Tomás. As diretrizes da CNBB são as mesmas. Os conflitos aparecem na escolha dos caminhos. Se a razão última for o Senhor, a briga é positiva, mesmo que não seja possível a paz. O que importa é não perder o amor, pois o fim buscado é o Senhor, a comunhão com a Trindade.

Paulo e Barnabé tiveram séria discussão pública por causa de Marcos, durante a primeira viagem. Separaram-se: Paulo partiu com Silas e Barnabé com Marcos, com a bênção da comunidade. Romperam a paz, mas não a caridade. Quando teremos a paz, pergunta S. Tomás? Só na parusia!

O Reino de Deus é diálogo, revisão de vida. A Fraternidade preza tando a revisão de vida porque é o caminho mais eficaz para crescer no amor. Não somos dotados de ciência infusa, nem de visão intuitiva. As discussões são parte integrante da vida fraterna. Isso, é claro, sem segundas intenções, porque o fazemos pelo Senhor.

Hoje há mita amargura em relação à Igreja. Na Fraternidade devemos ter a coragem do diálogo crítico, mas sem deixar de amar. A bondade deve ser a marca de nossa vida. Quem se encontra conosco deve redescobrir a vontade de viver, de amar, de esperar. Jamais afastar-se de nós triste, amargurado. Estudiosos das fotos do Ir. Carlos descobrem que seu olhar é cada vez mais contemplativo, terno, bondoso. Olhar que reanima, transmite força para viver!

O Reino de Deus é alegria no Espírito Santo. Qual é o pecado contra o Espírito Santo? É não se alegrar com o bem do irmão. É roer-se de inveja, porque o irmão está bem, feliz, realizado em seu trabalho. Jesus fala deste pecado quando uma cura tornou-se causa de raiva e de conflito. Alegria porque o outro recebeu dons de Deus. A concorrência, a competição destroem a alegria. Quem quer levar vantagem em tudo, sempre explora e oprime os irmãos! No conselhos de presbíteros, quando se discutem as transferências, quanta inveja e outros preconceitos podem vir à tona!

Romanos 14,22-12: “A fé esclarecida que tens... tudo o que não procede da convicção é pecado”.

Cada um procure agradar o irmão em tudo o que constrói. Imitadores do Coração de Jesus, como o irmão Carlos: humildes, pacientes, corajosos. Irmãos universais, sem rótulos! Ter convicções, mas adaptar-se para ajudar os irmãos.

SEGUNDO DIA – MANHÃ

O que se passava dentro do coração do Ir. Carlos?

J.F.Six pág 28: “Amo nosso Senhor Jesus Cristo...”

Lc 6,40:”O discípulo autêntico é parecido com o Mestre”.

“A semelhança é a medida do amor” (Ir. Carlos).

Para o Ir. Carlos, Jesus é o único modelo. Daí o desejo de viver o mais perto de Jesus, imitá-lo na sua caminhada histórica. Quando deixou a Trapa, passou vários anos em Nazaré: lugar onde Jesus viveu a encarnação.

O esquema de vida do Ir. Carlos é Nazaré. Em Nazaré está Jesus. Em Marrocos, ele fizera a experiência de judeu e de muçulmano, vestido como eles, disfarçado a tal ponto que ninguém reconheceu sua identidade.

Em nosso retiro estamos procurando um caminho para discernir a Vontade de Deus, sintonizar a nossa vida de acordo com o Projeto de Deus. Nossa vida é tecida de contínuas decisões e escolhas sintonizadas com a Vontade de Deus.

Rom 12,2: “Não vos conformeis com este mundo...para que saibais discernir qual é a Vontade de Deus”. Na carta aos Filipenses, Paulo nos indica o caminho da sensibilidade-ternura aos irmãos. Na carta aos Romanos, o Apóstolo pede que “não nos conformemos com este mundo,”, ou seja, “não vos deixeis esquematizar por este mundo”. Ninguém vive sem um esquema, sem um projeto de vida. Ir. Carlos escolheu a vida de Nazaré.

Paulo chama a atenção para o estilo de vida que concretiza as convicções pessoais. Qual é o meu projeto fundamental de vida? “O esquema de vida de vocês não pode ser o deste undo”. Até aos 27 anos, Foucauld viveu o esquema mundano do seu tempo. Por isso, a sua conversão (outubro de 1886) implicou uma mudança total do jeito de viver. Paulo nos adverte: o esquema de sociedade que nos envolve pode levar ao enlouquecimento da mente. Igualmente pode-se passar neste mundo de forma distraída, acomodada, alienada.

Na análise de conjuntura que E. nos ajudou a fazer, descobrimos o esquema que está atrás dos fatos sócio-político-econômicos. Saímos aliviados do esquema de (...) e entramos no esquema de (...). Estamos curiosos para descobrir quais são as metas deste governo e as estratégias para concretizá-las.

O esquema do mundo é oposto ao de Nazaré. Alegra-nos escutar o que João Paulo II nos diz sobre a pobreza na mensagem para o Dia da Paz deste ano(1993): “Nos países industrializados...para garantir uma justa distribuição da riqueza mundial” (nº 05). O mundo está estruturado no esquema da corrida desenfreada do acúmulo e consumo de bens materiais. Infelizmente, à base da propaganda, temos a capacidade de assimilar e racionalizar qualquer esquema por mais antievangélico que seja. “A moderação e a austeridade deve ser o nosso esquema de vida”. Por que? Porque descobrimos que há muitas coisas que são totalmente descartáveis para construir um mundo novo. A mensagem do papa nos indica o caminho da pobreza evangélica.

É preciso ter aguçado espírito crítico em relação ao esquema deste mundo. “A abundância dos bens materiais não servem senão para melhor mostrar o quanto nós somos diferentes de Jesus”(Carlos de Foucauld).

Cuidado! Certos paramentos e casulas de padres, sobretudo novos, não ficam devendo nada à rainha de Sabá!

Rom 12:”...mas transformai-vos pela renovação da vossa mente”. O mundo não faz propostas feias, desagradáveis. Mesmo só propor algo prejudicial ou imoral sempre apresenta isso de forma agradável e atraente “Se é belo aos olhos, agradável ao paladar, por que não aceitar?” (Serpente a Eva).

Os esquemas mundanos sempre fizeram escola na Igreja. Mas há também os santos, às vezes um só, que conseguem indicar novos caminhos: Antão, Bento, Francisco de Assis, Teresinha de Jesus...

O espírito que faz o discernimento deve ter a garantia de não se equivocar. Quem nos dá esta garantia é a transformação da nossa mente pelo Espírito de Deus. Meu espírito se renova dando espaço ao Espírito Santo. O Espírito faz parte do novo homem de corpo e alma. É o dom de Deus derramado em nós pelo Espírito. O esforço da nossa parte consiste em remover os obstáculos a esta transformação do Espírito. O encontro é Ele quem faz acontecer. Mas eu aplaino os caminhos, afasto os obstáculos para que Ele se manifeste.

“No momento em que descobri que Deus existia, descobri também que não poderia viver senão só para ele: a vocação religiosa nasceu com a minha conversão”. Face ao Absoluto que irrompe gratuitamente em nossa vida, o Ir. Carlos nos ensina a atitude de acolhida, receptividade, abertura total.

Isaías ficou marcado para sempre pela primeira experiência de Deus. “Quando o leão ruge, não vais te mover, agir, falar?

Esta experiência – encontro com Deus, que pode durar apenas um instante, marcará para sempre a caminhada de transformação da nossa mente. Em todos os momentos nos ajudará a discernir o que convém, o que constrói. Dar-me-á força e entusiasmo para andar pelo deserto pobre, despojado, livre e feliz. Não preciso de muitas cosias além de Deus e dos irmãos.

“Nunca pensei que vocês fossem tão importantes em minha vida”, disse um padre equatoriano ao reencontrar os companheiros depois de passar horas perdido perambulando pelo deserto.

A experiência de Deus pode durar o tempo de um flash, mas dá força para caminhar a vida inteira.

SEGUNDO DIA – TARDE

Para não se deixar de esquematizar pelo sistema dominante, o Ir. Carlos elegeu seu esquema: a vida de Nazaré: oculta, humilde, marcada pelo trabalho. Vida salvadora a partir do mistério da encarnação: identificação com a inserção e a pobreza de Jesus de Nazaré.

A sintonia com o Projeto de Deus não se obtém com o simples cumprimento de preceitos exteriores. É fruto de uma sintonia com o Absoluto, resultado de um amor imenso, violento, radical.

“Eis que virão dias... e serão o meu povo” (Jer 31,31-33).

A nova aliança será escrita nos corações e não em pedra, isto é, fora do coração: preceitos exteriores. “Então eu serei o seu Deus e eles serão o meu povo. Não mais será necessário alguém para construir porque a lei estará no coração de cada um. E até não me lembrarei mais do seu pecado.”

“Derramarei sobre vós águas puras...Dar-vos-ei um coração novo e em vós colocarei um espírito novo” (Ez 36,25-26).

“Coração novo, espírito novo , renovação da mente”: a realização da vontade de Deus se faz a partir de um projeto interior, de convicções que brotam do coração habitado pelo Espírito. Observar os preceitos do Senhor deixa de ser algo imposto para tornar-se espontâneo.

Ir. Carlos busca a realização do Projeto de Deus com coração-espírito novo. Possui tal imagem de Jesus-Modelo que não pode ser diferente dele. Isto brota de uma experiência única, irrepetível, intransmissível.

Os profetas sempre alertaram que a observância exterior da lei não dá nenhuma certeza. “Detestai o mal, praticai o bem, fazei reinar a justiça nas vossas assembléias; talvez então o Senhor dos Exércitos terá compaixão de vós” (Amós 5,15).

A observância externa da lei não implica em nenhuma obrigação da parte de Deus como pensavam os fariseus no tempo de Jesus. Qual é a atitude de Israel diante da destruição de Jerusalém, do templo, do povo, do Estado? Trata-se de algo merecido e irreversível. A única atitude possível é a conversão. O reino de Israel e de Judá acabaram para sempre. Pelo menos é esta a interpretação do deuteronomista.

Paulo e o Ir. Carlos fazem profunda experiência de Deus. O absoluto de suas vidas é Jesus Cristo. “Tudo o que era vantagem, considerei perda e tenho em conta de esterco a fim de ganhar Crito”(Fil 3,7-11). Valor absoluto: ganhar a Cristo. Esta convicção nasce de um encontro único, irrepetível.

São João da Cruz relata idêntica experiência descrevendo-a como água debatendo-se dentro de um poço.

Os meios da fraternidade são instrumentos para remover os obstáculos, aplainar o caminho para o encontro com Deus.

“Uma vida inútil” - Assim o Ir. Carlos avalia sua caminhada muitos anos após a conversão. “Não teria sido melhor escolher outro tipo de vida mais útil, num lugar mais propício?” (Citação do artigo de Antoine Chatelard – sub-título: Uma clausura diante de Deus e dos homens, - cem anos após a conversão).

Suponhamos que um de nós, com 60 anos, decidisse outro caminho. Retomar a existência para torná-la mais útil. Haveria tempo físico para recomeçar a aventura? Na existência humana é impossível experimentar várias opções, para depois escolher a que mais me convém. Fazer a experiência do matrimônio para depois optar pelo celibato, ou vice-versa. É quase impossível. Aqui entra um valor chamado fé antropológica, confiança nas pessoas. “Sede meus imitadores como eu o sou de Cristo”. Paulo está plenamente convencido de que está propondo o melhor aos seus irmãos. Através do testemunho dos outros tiro minhas conclusões sobre a validade de um caminho.

Ir. Carlos fez um caminho a partir de um esquema. Hoje eu também defino o meu caminho a partir de uma experiência realizada e que deu certo.

A Fraternidade propõe em esquema norteado por valores inquestionáveis e que santificaram tantas pessoas: a busca do Absoluto de Deus, a Eucaristia, a Revisão de vida, o encontro com os irmãos, o dia de deserto, a opção pelos pobres e pelos meios pobres. Além disso, há o risco da aventura pessoal, pois cada um assimila de acordo com a originalidade de sua personalidade. Entretanto, paira a certeza de que este caminho conduz a algum lugar: sintonia de amor com o Absoluto.

A fé antropológica é o nível humano de confiança indispensável para caminhar. Trata-se de acertar o passo na dança com Deus no grande palco da vida. Esta aventura exige simplicidade, transparência, espírito de infância e de pobreza. Deus deve tornar-se familiar conosco e nós com Ele. Sentir-nos totalmente espontâneos com Ele, até para reclamar e externar nosso mau humor como faziam os profetas e os santos. Há tantos ambientes sociais onde somos formais. Com Deus devemos ser espontâneos. Ele fala. Eu falo. Fico irritado com ele, brigo, até acertar o passo com Ele.

Jonas 4 – O profeta está com muita raiva (Jn 4,1). Ele fala com Deus. Faz um interrogatório. No fim Deus responde: “Não era esta a minha palavra? É a única vez na Bíblia em que a palavra não é de Deus, mas de Jonas. Ele a profere na hora da fuga porque não consegue admitir que Deus seja tão misericordioso para com os ninivitas. Jonas usa 30 palavras. É o diálogo de igual para igual: familiaridade. Há uma intimidade de presença. Apesar de irado, o profeta sente-se à vontade diante de Deus para externar tudo o que pensa. Deus sente-se à vontade para dizer tudo ao profeta. O objetivo final é levar o profeta a realiza o Projeto de Javé.

Jonas 1,3-5: Levanta-te e vai a Nínive. Ele levanta e vai a Társis. DESCE para dentro do navio, DESCE par ao fundo do navio. Depois é jogado no mar. Ele DESCE porque está fugindo de Deus. Quem o jogou ao mar? Foi o próprio Deus através dos barqueiros. As ondas se quebram contra ele. Ele DESCE para o fundo. “”O abismo me engoliu, as algas se enrolaram em mim”.

Jonas 1,: “Eu DESCI até às raízes das montanhas onde há grades, e fiquei preso nelas”. Ponto final da descida. Agora ele se assume e diz: EU DESCI. Tem consciência de que desceu porque está fugindo de Deus, Desce até ao ponto onde não pode descer mais. Não tem mais saída, nem escapatória. “Mas tu fizeste subir da fossa à minha vida”. Quando hão há mais para onde descer, Deus o pega e o faz subir. Enquanto desce, diz?”Fui expulso diante dos teus olhos, mais ainda; continuarei a contemplar o teu santo templo.” Está afundando e mesmo assim continua arrogante, provocativo. Depois,continua: “Quando a alma desmaiava dentro de mim, minha prece chegou ao templo” Não é mais o eu que chega ao templo, mas a oração desesperada do profeta. FUGINDO (descendo até ao abismo mais profundo) Deus o pega, o eu desaparece e brota a oração, Não sou eu quem vou subir, é Deus quem me fará subir.

È porque Jonas não quer fazer a Vontade de Deus! À primeira ordem, “ele levanta, chama e foge” À segunda ordem, “Ele levanta, chama e vai”. Só depois de ter passado pela experiência do afundar-se no abismo, dá-se uma conversão. Mas ele continua o mesmo. Como todos nós. Deve andar três dias e só anda um e se aborrece de novo. Consolo para a nossa lentidão!

TERCEIRO DIA – MANHÃ

“Gritar o Evangelho com a vida” é a proposta do Ir. Carlos. Quem não conhecesse o Evangelho escrito, conhecê-lo-ia pelo testemunho de vida do discípulo de Jesus. Isto supõe a espontaneidade da sintonia com o Projeto de Deus. Assim, espontaneamente, fazemos aquilo que Deus quer e testemunhamos coma nossa vida. Silêncio que grita pelo nosso modo de viver – vida de alegria, vibração, coerência. Atitudes que também denunciam o projeto do mundo.

Causo surpresa, certa vez, um capuchinho com hábito, barba... que observava atentamente as vitrines sofisticadas da Rua Augusta. Interrogado a respeito do que fazia naquele local, respondeu: “Estou olhando para constatar de quantas coisas não preciso para viver feliz!”.

Os primeiros irmãos nossos descobriram na vida do Ir. Carlos um caminho para a espiritualidade e o ministério de presbíteros diocesanos: padres de Lyon, do Chile...Nasceu a União Sacerdotal. No primeiro projeto, todos os que ingressassem, deveriam passar um ano nos lugares onde andou o Ir. Carlos. Ainda hoje dois padres vivem lá para receber e acompanhar os padres que desejam fazer esta experiência. Mas sempre ficou claro que não seríamos uma congregação como os demais ramos que brotaram da espiritualidade do Ir. Carlos. Ele nos impressiona pela liberdade e criatividade com que procurou viver um projeto missionário distinto da mentalidade reinante da sua época. Opôs-se às construções e aos projetos que exigissem muitos recursos econômicos. Tinha convicção do valor da presença da Eucaristia, que tem a força de criar algo novo. Acredita no testemunho da presença silenciosa, solidária, ativa.

Um aspecto da vida do Ir. Carlos, nem sempre fácil de ser entendido, relaciona-se com a obediência. Até que ponto ele é obediente? Ele escuta e segue as orientações do Pe. Huvelin, mas acima de udo, é fiel á Vontade de Deus. Mas até que ponto ele fazia a sua própria vontade?

No Boletim da Espanha sobre a Vida do Irmão Carlos, página 26, lemos: “Estou sempre a mudar conforme as circunstâncias...” Ele não tem resposta fixa. Sua vida passa por sucessivas mudanças geográficas e contínuas conversões. Vai à Trapa, Nazaré, Beni-Abbés, Tamanrasset, Hogar: cada um destes lugares é assumido como definitivo; entretanto sempre dá passos novos. Cada etapa é plataforma para um passo mais radical. Cada momento é resposta plena à Vontade de Deus. Nada é provisório em sua vida, mas uma resposta integral que nasce das exigências das novas circunstâncias. A mudança não é consequência de sua insegurança ou instabilidade, mas salto qualitativo, novo grau de resposta em plenitude. São os pobres que o questionam sempre. Parte de Nazaré por causa dos pobres, mas também porque a superiora das clarissas o importunava demais. Há sempre as grandes e as pequenas motivações. Sai da Trapa porque, durante o velório, percebeu que as famílias vizinhas viviam uma pobreza muito maior que os monges. Mas era também a época em que a Trapa realizava reformas e ele achou que estavam abrandando demais. Há um grande ideal que o conduz e pequenas circunstâncias do ambiente que o impulsionam às mudanças.

O primeiro caminho que o marcou foi a Trapa. Se tivesse feito outra experiência religiosa, talvez a clausura não o tivesse influenciado tanto.

Imitação de Jesus, amor aos mais pobres: tanto na Trapa como em Beni-Abbés tem a convicção de que está sendo fiel ao Projeto de Deus. Os critérios para discernir a Vontade de Deus provêm de uma disposição interior ou de apelo às circunstâncias exteriores? Provêm apenas das minhas motivações ou também dos apelos da Igreja local a quem prometi obediência através do bispo que me ordenou?

Contemplemos novamente o profeta Jonas. Ele recebe uma ordem: “Levanta-te, vai, anuncia”. Não fez projeto, mas recebeu uma missão. Missão difícil. Sua primeira reação é recusá-la, como fizeram Moisés, Jeremias e outros. Jonas levantou-se e fugi para outra direção. Vimos o que aconteceu.

Mas Deus não desiste. Retorna com a mesma ordem: “Levanta-te, vai e anuncia (cap.3). Jonas levantou-se e foi. Quando o verbo está conjugado, ele acerta. Quando está no infinitivo, ele fracassa: porque realiza apenas a sua vontade.

No barco ele ouviu: “Levanta-te e clama!” As mesmas palavras d Javé. Certamente, teve um sobressalto. É a palavra de Javé que continua ressoando até que ele a realize. No meio do mar a Palavra retorna mais uma vez.

Finalmente, depois de sintonizar com a Vontade de Deus, acertar seus passos com o seu Projeto, ele concretiza o que Deus lhe pede. A cidade é grande. São necessários três dias para percorrê-la. Ele anda um dia e senta-se na encosta para ver o que vai acontecer.

Javé lhe envia três coisas: a mamoneira, o verme e o sol quente. Jonas está descontente, mal estar profundo. Fez a missão a contragosto. No início tentava escapar de todas a maneiras. Depois de realizá-la contrariado, continua irado.

No ventre do peixe ele reza. Depois de percorrer Nínive, reza de novo. E Javé responde com o mesmo número de palavras. Diferença das duas orações: a primeira é curta. A segunda é feita com raiva, porque não aceitou a missão até o fim. Minha palavra em oposição à Palavra. E Javé fala a sua Palavra. Não faz nenhuma censura ao profeta. Apenas diz que é preciso ter misericórdia. Não pretende nem corrigir seu azedume e mau humor. Respeitando o jeitão da sua personalidade, Javé espera dele apenas uma coisa: que vá a Nínive!

A mamoneira dá sombra porque certamente sua tenda não o protege. Ele se alegra com o arbusto. Javé fez isso para curá-lo do seu mau humor. Quando ele se alegra, Javé envia o verme e o sol quente para destruir a mamoneira. Tudo é importante à luz do objetivo maior: ir a Nínive para pregar a conversão à justiça! Por que Jonas recusava? Por uma razão muito simples: ir a Nínive para pregar a conversão do pior e mais feroz dos povos estrangeiros. Além disso, os israelitas com os profetas no meio deles não se convertiam, ao passo que o pior povo pagão aceita a Palavra e se converte. Jonas está preso à mentalidade reinante no meio do seu povo. Prefere pensar como a maioria mesmo que deva contrariar ao projeto de Javé.

Jonas 3,8: Nínive deve converter-se da violência que está em suas mãos. Essa violência está no centro da denúncia que Amós faz ao povo da Samaria. Nínive é a capital. É a violência social com conotações políticas. É a mesma denunciada por Amós e Jonas. Jonas deve protestar contra essa violência. Está consciente do que lhe poderá lhe acontecer. Faça isso no Rio, hoje, para ver no que dá!

Jonas é chamado a executar algo difícil, que compromete a vida, a própria pele. Ele age sem segundas intenções. Quando vai a Nínive, sabe que está correndo todos os riscos. Não tem nenhuma proteção pessoal, nem terá qualquer vantagem. O mesmo acontece com Moisés, Jeremias...

Moisés era gago. No entanto, no Deuteronômio, ele fala durante 30 capítulos. Mas tem um detalhe: ele fala depois da travessia do mar e do deserto. Se ele tivesse falado antes d agir, certamente o povo teria morrido no Egito antes de partir.

Projeto de Deus ou projeto pessoal? Fazer coincidir os dois: eis o drama, a aventura existencial de cada um. Cada um de nós tem uma Nínive diante de si. Recusar-se a ir pode significar a perda de muitos. A composição nem sempre é fácil e não se faz com fórmulas matemáticas, calculistas, regateando vantagens pessoais ou regalias. Nos profetas, nos santos, no Ir. Carlos, há uma profunda e radical experiência de Deus. Embora na vida deles existam momentos de decepção, fracasso, amargura, mesmo assim prevalece inquestionável a profissão de fé na justiça, na bondade, e a fraternidade do Ir. Carlos.

Quando considero meu projeto o único certo e errados todos os outros, certamente estou equivocado. É preciso saber caminhar com todos, no diálogo, na caridade, no equilíbrio. Manter o olhar fixo no templo e o coração na intimidade com o Senhor. Jonas não se afastou da intimidade, apesar de tentar fugir da missão difícil e arriscada. “Por causa de Jesus e do Evangelho eu estou disposto a ir até o fim do mundo!” - dizia o Ir. Carlos. Todos conhecem o boneco com o chumbinho que o mantém sempre de pé. É o equilíbrio que deve manter-se a todo custo. Neste caminho o Ir.Carlos é um mestre inquestionável.

Mateus 7,21:”Entrará no Reino aquele que pratica a Vontade de Deus”. A realização da Vontade de Deus é o único que importa. “Não foi em teu nome que curamos, expulsamos os demônios, denunciamos todas as escravidões” E Jesus dirá: “Nunca eu vos conheci. Afastai-vos de mim, vós que praticais a iniquidade”. Até milagres, profecias e exorcismos podem tornar-se iniquidade se os praticarmos seguindo nossos caprichos, vaidade, interesses pessoais. Trata-se de realizar, aqui e agora, aquilo que Deus quer. Em que medida faço aquilo que Deus quer ou aquilo que apenas gosto, me traz vantagens? Não há palavra mais terrível que esta: “NUNCA VOS CONHECI!”

Todos os dias, quando rezamos a oração do abandono, devemos sentir-nos honrados porque o Senhor nos chama para levar adiante o seu Reino. Confessemos a bondade de Deus que ainda continua confiando em nós, apesar de nossos desvios, limitações, cegueiras! Ele é vencedor.

Quando o Projeto de Javé parecia fracassar com a confusão e a dispersão da torre de Babel, surge um pobre migrante, Abraão, que resgata e leva adiante a vontade do Senhor. Quando o sonho do paraíso parecia liquidado, aparece no horizonte a figura de uma mulher que esmagará a cabeça do dragão.

COMEÇAR SEMPRE DE NOVO! Construir algo novo a partir de nossas tentações, pecados. Quando Deus perdoa, nos dá também um coração/espírito novo e força para recomeçar algo novo.

TERCEIRO DIA – TARDE

“Por causa de Jesus e do Evangelho”: palavras - força que conduziram o Ir. Carlos e sintetizam o espírito da Fraternidade.

No Boletim da Espanha, Vida do Ir. Carlos, pág 39, lemos: “Sorrir para afirmar as coisas mais simples: gritar sem agressividade”.

Somos chamados à liberdade do amor de Deus. Liberdade que não agride o fraco, mas o respeita, pois sabe situar o outro na sua história pessoal. Colocar-se junto, no lugar do outro, nunca com superioridade.

Paulo é judeu, fariseu de estrita observância, mas na medida em que anuncia o Evangelho aos gregos vai se despojando do radicalismo e intransigência dos seus costumes e cultura. “Judeu com os judeus, grego com os gregos, a fim de conquistá-los para Cristo”. Entre os gregos, o Evangelho é recebido de modo diferente. Por isso surge o problema que suscitou tanta polêmica: quem abraça o cristianismo sem a tradição de Israel, deve ou não submeter-se à lei de Moisés? Pedro deve desculpar-se em Jerusalém porque batizou Cornélio.

Alem disso, foi muito difícil para os judeus professar que Jesus é Deus. Mais difícil ainda chamar Maria de Mãe de Deus. A unidade de Deus no mundo oriental é algo muito arraigado, um valor irrenunciável. Por isso, após o sinal da cruz muitos acrescentam: “Um só Deus”. O Evangelho de João afirma “A vida eterna é esta: que conheçam a ti, único Deus verdadeiro e aquele que enviaste, Jesus Cristo” (Jo 17,3). Esta afirmação é judaica demais. Por isso precisou ser completada e corrigida por outra afirmação joanina: “Sabemos que o Filho de Deus veio e nos deu capacidade para conhecermos o Verdadeiro, e estamos no verdadeiro, nós que estamos com seu Filho Jesus Cristo. Este é o verdadeiro Deus e a vida eterna”(1Jo 5,20). Este versículo corrige o primeiro e demostra a dificuldade para afirmar a divindade de Jesus.

Paulo entra na briga com aqueles que julgam que os pagãos devem passar pelo judaísmo antes do batismo cristão. Filipenses é chamada a carta da ternura de Paulo. No entanto, o que ele diz aos judeus que desejam impor estas exigências aos pagãos?a “Cuidado com estes cães, com estes mutilados! Porque somos nós os verdadeiros circuncidados...colocamos nossa gloria em Jesus Cristo, em lugar de pôr nossa confiança na carne” (Fil 3,2-2). Na carta aos gálatas é mais direto ainda: “Os que desejam a circuncisão deveriam logo castrar-se!”.

Esta polêmica é séria. Em Jerusalém firmou-se a Igreja somente daqueles que vêm da circuncisão: pequenos grupos que se reúnem nas casas e nas grutas. Não há um corpo doutrinal sólido e nem uma hierarquia constituída. A Igreja nasceu assim e não podemos esquecer estas origens. É em Antioquia que a Igreja começa a estruturar-se de foma grega. Três séculos depois terá em seu meio um São João Crisóstomo. A Igreja das pequenas comunidades de Jerusalém acabou. Está ressuscitando agora nas comunidades eclesiais de base. Quando a Igreja se torna hierárquica e com o poder centralizado, é preciso valorizar as raízes judaicas da Igreja de Jerusalém.

No primeiro Concílio de Jerusalém, Paulo ganha a questão. Faz algumas concessões: afastar-se das uniões ilícitas e abster-se das carnes sacrificadas aos ídolos. Mas a circuncisão não é mais indispensável para tornar-se cristão. Além disso já há um consenso total: todos devem dedicar especial atenção aos pobres.

No entanto, o que faz Paulo depois disso? Ficou sabendo que em Listra há um jovem cheio do Espírito que poderá ajudar a Igreja. Timóteo, filho de mãe judia e de pai pagão. Não tinha sido circuncidado. Paulo o circuncida antes de batizá-lo e de torná-lo companheiro e apóstolo. Não é contraditório? Justamente após haver lutado com toda a garra contra a circuncisão? (cf. Atos 16).

O ponto de partida para Paulo não é a circuncisão. Ele tampouco substitui uma lei por outra. Ele parte de Jesus e do Evangelho. A circuncisão não tem nenhum valor em si. O que vale é a circuncisão do espírito. Por isso, é livre para circuncidar ou não. Se a ordem fosse: é preciso circuncidar ou é proibido circuncidar, em ambos os casos, as pessoas estariam sujeitas à lei. Paulo não age por conveniências pessoais, nem coagido por leis exteriores, mas por causa de Jesus e do Evangelho. Ele não aceita hospedagem, nem dinheiro de ninguém. No entanto, aceita hospedagem e dinheiro de Lídia. Por que? Os princípios rígidos de Paulo caem por terra diante de Jesus Cristo. Ele é servo do único Senhor. Discípulo do único Mestre. Se Timóteo for obstáculo para o anúncio de Jesus, não há nenhum problema em que seja circuncidado.

“Bem sabeis que a nossa passagem entre vós não foi inútil” (1Tess 2,1s.) E passa a descrever as imensas tribulações e sofrimentos: insultado e açoitado com Silas em Filipos. Presos com correntes fixas nas paredes, os dois começaram a cantar. Alegria de quem sabe que está certo: “Anunciei o Evangelho em meio a grande luta(...)A nossa pregação não provém de erro, nem de intenções enganosas, nem de astúcia” (1Tess 2,3-4). Ele não inventa uma doutrina. Transmite o que recebeu. Não é feita de engano, intenções fraudulentas e impuras (interesses sexuais como o tinham alguns pregadores!).

Paulo prossegue com toda a transparência:”Falamos para agradar a Deus e não aos homens. Não usamos adulações, não buscamos interesses pessoais ou elogios. Apresentamo-nos cheios de ternura como a mãe que cuida de seus filhos” (1Tes 2,9-12).

Paulo era acusado de estranhas artimanhas para que as pessoas aceitassem o Evangelho. Por isso ele se defende descrevendo com limpidez e transparência seu modo de proceder. Por causa de Jesus ele é capaz de comer ou não comer carne. Rejeitar a circuncisão como lei imposta, mas aceitá-la quando se tornar um obstáculo para o anúncio do Evangelho. Em cada circunstância discernir o que mais convém para que Jesus seja conhecido.

Paulo e o Ir. Carlos se assemelham na entrega radical a Cristo e à causa do Evangelho. O Evangelho tem força maior de conversão quando acompanhado do nosso testemunho transparente de pessoas convertidas, livres e alegres!

Por fim, um conselho do Pe. René Voillaume: “É preciso perseverar corajosamente na oração”. Adoração- Meditação do Evangelho – Deserto – Revisão de Vida – Dia da Fraternidade – Fidelidade na opção pelos pobres, são meios da Fraternidade. No cantinho mais insignificante em que estivermos, encontraremos sempre um sacrário para a adoração e pobres para acolher, amar e servir.