A VIDA CONTEMPLATIVA


  Veja as fotos deles neste link:     http://camaldolenses.com.br/fotos.php?id=65


MONGES BENEDITINOS CAMALDOLENSES

 (e as  monjas)

O Mosteiro da Transfiguração, pertence à grande tradição monástica que no Ocidente  reconhece em S. Bento de Núrcia (séc. VI) sua primeira raiz espiritual,  e em S. Romualdo de Ravenna (+ 1027), o seu  pai espiritual mais próximo. Segue a Regra de São Bento e os ensinamentos de São Romualdo e da milenar tradição que  nele se inspira . O Sacro Éremo de Camáldoli ( Itália),  foi fundado pelo próprio São Romualdo no ano 1024 e desde aquela época, teve a presença ininterrupta da comunidade monástica.

 A Congregação  camaldolense da Ordem de São Bento tem dois modelos de vida monástica: mosteiro(vida comunitária) e eremitério(vida solitária). Os dois, cada um com o  próprio estilo, ficam abertos ao testemunho e ao serviço ao Senhor na Igreja e nos irmãos e irmãs(evangelização).        No mosteiro a vida tem  uma intensa dinâmica comunitária, alimentada pela palavra de Deus, pelas celebrações litúrgicas da Eucaristia e do Ofício divino ( Liturgia das Horas), sustentada pelo estudo e  trabalho, aberta à hospitalidade dos que pedem  acolhimento para fazer retiro espiritual, seguindo o ritmo de vida da comunidade monástica.

        No eremitério é sobretudo privilegiada, a  busca de  Deus na solidão, no estudo e na oração pessoal e comunitária, sempre animada por um intenso sentido de comunhão com os irmãos e com a Igreja inteira. A vida no eremitério visa destacar esta tensão espiritual que anima a caminhada do povo de Deus na história, testemunhando a primazia de Deus na  vida de cada cristão.

        São Pedro Damião, discípulo de São Romualdo, descreve muito bem esta tensão interior entre solidão e comunhão que  faz o eremita morar na intimidade do Espírito  e no coração da Igreja e da humanidade.

O Mosteiro da Transfiguração foi fundado em 1985. Os monges provinham do Sacro Éremo e Mosteiro de Camaldoli (Arezzo) Itália, Casa mãe da Congregação Camaldolense da Ordem de São Bento, sob o convite do então Bispo de Mogi das Cruzes (SP), Dom Emílio Pignoli.

tirado do blog dos carmelitas eremitas    carmelotradicional.blogspot.com/

  

 A Vida monástica é um grande dom de Deus para a Igreja. Desde o início da pregação do Evangelho, não faltaram homens e mulheres que se renderam ao convite de Jesus: “se queres ser perfeito...” (Mt 19). Esta inquietação de sempre desejar fazer algo a mais por Deus é a vocação para a vida monástica. Quem a tem, abandona o mundo e deixa tudo para viver somente para o Senhor.     

          No Carmelo, podemos encontrar uma belíssima forma de servirmos a Deus e buscarmos a santidade. A tradição carmelitana consagrou duas finalidades desta vida: alcançar a pureza do coração e gozar as delícias de Deus. “Esta vida de perfeição religiosa encerra dois fins: um nós podemos alcançar com o nosso esforço e o exercício das virtudes, e o outro, ajudados pela graça divina. O primeiro consiste em oferecer a Deus um coração santo e limpo de toda mancha atual de pecado. O outro fim desta vida é dom totalmente gratuito de Deus e que Ele comunica à alma. Consiste em, não somente depois da morte, mas também nesta vida mortal, já experimentar no afeto do amor e do gozo da luz do entendimento algo do poder da presença de Deus e do deleite da eterna glória.” (Livro da Instituição dos Primeiros Monges).

     Observando a Regra Primitiva podemos progredir nesta primeira finalidade através da ascese e da penitência. O jejum vai de setembro até a Páscoa. Não comemos carne e não consumimos bebida alcoólica. Em ocasiões mais solenes podemos comer peixes, laticínios e ovos. Também evitamos o açúcar e a cafeína. O silêncio e a solidão também ajudam a encontrar este equilíbrio interior. A segunda finalidade, porém é puro dom de Deus. Através dos ensinamentos da Mãe dos espirituais, Santa Teresa, do Doutor Místico, São João da Cruz e de tantos outros santos Carmelitas, podemos nos aprofundar na intimidade com Deus. Nas pequenas celas, realiza-se o colóquio amoroso da alma com o seu Esposo Divino.

     Apesar de guardarmos os costumes do Carmelo Descalço, valorizamos mais a solidão, tendo ermidas separadas, com mais tempo de oração individual. Vivemos nos lugares afastados em harmonia com a natureza, uma vida simples e austera. Nossas construções são rústicas e aproveitamos material de demolição. Vivemos da providência, não temos nenhuma renda, mas nada nos falta. Procuramos não desperdiçar nem uma migalha de pão e partilhamos o que temos com os pobres. A rotina diária intercala a oração com o trabalho manual. Cada um exerce um ofício conforme sua capacidade.

     O Mosteiro dos irmãos fica ao lado do Mosteiro das irmãs. Isso também permite uma colaboração mútua, em clima de família. Cada um, porém tem sua clausura totalmente separada. As irmãs, inclusive, mantém a grade e a clausura papal. Os monges podem fazer algum apostolado quando estão nos Mosteiros, onde as pessoas podem fazer retiros, ser atendidas em confissões e direção espiritual. Por isso, aqueles que desejam podem se tornar sacerdotes. Entretanto, os que estão nos Santos Desertos e Eremitérios se dedicam exclusivamente à oração. Os familiares podem nos visitar e se hospedarem conosco. Porém, só os visitamos em caso de grande necessidade.

Os vocacionados são recebidos para uma experiência de pelo menos uma semana. Se aprovados, ingressam no postulantado que dura em torno de seis meses. Depois desse período, fazem o noviciado e depois, a profissão dos votos. Não há limite de idade para admissão, o importante é que a pessoa tenha saúde para cumprir suas obrigações. A Santa Missa e toda a liturgia é rezada em latim, no Rito Tradicional. Consideramos a Eucaristia, como o ápice de nossa vida. Amamos profundamente a Santa Igreja Católica. Temos muito carinho pelo Santo Padre o Papa e pelo nosso Bispo. Procuramos atender os pedidos de Nossa Senhora, que, em Fátima, em sua última aparição se mostrou como Nossa Senhora do Carmo.

         Unimos nossa oração, trabalhos, jejuns e penitências às intenções do Imaculado Coração de Maria. Fazemos subir, do nosso Carmelo, dia e noite, nossa adoração, como uma fumaça de incenso, ao supremo trono do Deus Uno e Trino. Que Ele seja bendito para sempre! Amém.

Em 1993, aos monges se uniram as Monjas Camaldolenses da Ordem de São Bento, com  a fundação do Mosteiro da Encarnação. Monges e monjas, na recíproca independência, constituem uma “comunidade gêmea” na qual compartilham em fraternidade, a oração litúrgica cotidiana, a formação dos candidatos/as e o serviço de hospitalidade.                         Hoje, o serviço de animação cultural e espiritual dos monges se dá,  sobretudo, através  da hospitalidade, pelo  acolhimento de religiosos, religiosas e leigos, bem como retiros espirituais individuais, que possibilitam  aos hóspedes de viver, sob direção espiritual, num ambiente natural, muito bonito, silencioso e tranqüilo, no ritmo de vida cotidiana dos monges e das monjas, o ministério da reconciliação.

                Alguns monges  oferecem cursos  e palestras na vizinha  Faculdade de Filosofia e Teologia “Paulo VI”. O desenvolvimento desta forma de animação espiritual e cultural  requer que os  candidatos à vida monástica recebam uma boa formação humana, espiritual e cultural, atualizando a antiga tradição do monaquismo beneditino.

  No mês  de outubro de 2006 foi fundado no Mosteiro,  o Centro de Estudos de Liturgia (CESLI), com a finalidade de contribuir para a formação  espiritual de leigos, religiosos/as, a partir da própria Liturgia. O CESLI iniciou suas atividades no mês de fevereiro de 2007 com a I Semana de Espiritualidade Litúrgica. Para ressaltar a comunhão com a igreja local, o CESLI atua  em colaboração com alguns padres e leigos da diocese formados em liturgia e oferece encontros também em algumas paróquias vizinhas para facilitar o acesso dos fiéis.

A  Eucaristia das comunidades monásticas no domingo, partilhada com muitos amigos e pessoas que moram na  cidade e nos “condomínios fechados” da redondeza,  celebrada com estilo calmo e contemplativo e animada por cantos que facilitam a participação interior e ritual do povo, é uma verdadeira festa que nos anima ao longo de toda a semana.   Estão  programadas, ainda,  no Mosteiro  nos fins de semana ou no decorrer da semana inteira, cursos de formação espiritual referentes  à Sagrada Escritura, à liturgia, à espiritualidade e  ao estudo das línguas bíblicas, hebraica e grega.

Alguns dos leigos/as que seguem a comunidade há algum tempo, tem iniciado um caminho de aprofundamento da espiritualidade monástica, reconhecendo-a como fonte de inspiração para a própria vida pessoal, familiar e  profissional. É o caminho da “oblação” que prevê um programa de formação específico a partir da Regra de São Bento e da tradição espiritual e cultural beneditina e camaldolense.       

A comunidade sustenta também um projeto de promoção social de famílias marginalizadas presentes na região vizinha ao Mosteiro, denominado “ Projeto São Bento”.

  

O estilo da vida monástica beneditina e camaldolense é marcado pela virtude da “discrição/discernimento/medida”, como destaca São Gregório Magno, o grande biógrafo e  intérprete  de São Bento. O intuito da Regra e da organização do dia é levar  o monge a construir  sua vida totalmente orientada ao Senhor, purificando seu coração e  unificando nele suas energias vitais, à medida que cresce a  experiência da força transformadora do amor no Espírito Santo. Com isso cresce a  autêntica liberdade interior e a recíproca relação na caridade..

Eis alguns dos principais elementos desta cotidiana construção da pessoa e da comunidade monástica. Eles animam o movimento interior e marcam o ritmo do dia, como demonstração da irradiação do carisma monástico e da sua  contribuição à evangelização da Igreja.

- estudo e meditação perseverante da Palavra de Deus (lectio divina),  em  clima de silêncio, espírito de oração  e humildade;

- celebração do mistério pascal de Cristo na liturgia eucarística e na  das horas;

- busca da obediência de fé ao Senhor, guiados pela sua Palavra, a Regra de São Bento, a tradição viva de São Romualdo e dos padres monásticos,  as orientações do magistério da igreja  e a reflexão teológica da comunidade cristã, o ministério de animação e de comunhão do Prior, em espírito  de  comunhão fraterna.

- trabalho manual e cultural, segundo as circunstâncias, executado em colaboração fraterna;

- acolhida de Cristo nos hóspedes, nos pobres e nos  necessitados de qualquer forma; 

- animação cultural e espiritual.

            O resultado de tudo isso é a criação de autêntico  espírito filial nas relações com o Senhor e  de sincero espírito fraternal entre os membros da comunidade que se abre ao mundo inteiro.

 1 – Espírito de oração filial e  primado do amor 

          O Pai nos escolheu no Filho e nos predestinou a sermos filhos adotivos. Consagrados pelo Espírito Santo para formarmos um edifício espiritual  e um sacerdócio santo, somos chamados a fazer da nossa vida um sacrifício espiritual agradável  a Deus, por Jesus Cristo. Sendo assim aqueles  verdadeiros adoradores que o Pai procura (cf Jô 4,23), unidos nos sacramentos da igreja à oblação que o Cristo faz de si mesmo ao Pai, exercem em plenitude o seu caráter sacerdotal. Este culto espiritual, enquanto  tem seu centro na liturgia e na vida ascética, abraça todas as expressões da vida pessoal e comunitária.

             Participar a desta relação  de amor filial de Jesus para com o Pai, constitui a verdadeira escola na qual o monge aprende a  lei do “primado do amor”,  lei suprema de toda a vida monástica, e  sentido das  regras e sugestões ascéticas e espirituais. O primado do amor (privilegium amoris) foi  a marca que destacou a relação de  São Romualdo com seus discípulos, como mestre e como pai, e a marca que mais frisou o testemunho pessoal e o ensinamento de Don Benedetto Calati (1914- 2000), o Prior Geral que contribuiu de maneira tão profunda para a renovação espiritual e organizadora da congregação camaldolense,  depois do concílio Vaticano II. É a herança que queremos guardar  cuidadosamente para guiar o estilo da nossa  presença na igreja do Brasil.

            Eucaristia, Liturgia das horas, lectio divina, serviço na caridade, constituem o horizonte espiritual que alimenta o sentido filial  e fraternal da vida do monge camaldolense.

 2 – Celebração eucarística.

      

A  celebração eucarística, perene presença do mistério pascal de Cristo, é o centro da vida da comunidade. Dela a igreja nasce, dela continuamente vive e por ela cresce e se desenvolve até o encontro final com Cristo, seu esposo glorioso.

            Portanto, os monges vão procurando que a orientação espiritual da sua vida seja preparação e expansão da celebração da liturgia e de maneira especial, da eucaristia. Cuidam que  todos os membros recebam uma boa formação litúrgica  e que as celebrações se desenvolvam com um estilo simples e solene ao mesmo tempo, com respiração e ritmo contemplativo  que favoreça uma autêntica  participação ativa, interior e ritual.

            Favorecer tal participação ativa dos monges, dos hóspedes e do povo é um critério fundamental da espiritualidade e da ação pastoral da nossa comunidade. Por isso, a liturgia é celebrada em português, guardando ao mesmo tempo o ritmo contemplativo do antigo canto gregoriano do qual ressoam alguns dos mais significativos cantos, e oferecendo na homilia cotidiana, orientações para interiorizar a palavra e o mistério celebrado.

 3 – Liturgia das Horas

                       Na liturgia das horas a igreja oferece ao Pai o sacrifício de louvor e a ação de graças pela salvação em Cristo, dando voz à inteira família humana e à mesma criação que geme, na espera da plena libertação dos filhos de Deus.

          Como a liturgia das horas, conforme a tradição, pretende  santificar o curso do dia dando respiração interior, ao ritmo das obras do homem, a sua celebração dela é distribuída ao longo do dia com sapiente medida, alternando oração comunitária e trabalho.

Horário dos dias feriais5h.30  Despertar

6h.00   Ofício das vigílias

6h.30  - 7h.30 Lectio divina

7h.30   Laudes

12h.15 Hora media

18h.15  Vésperas e Eucaristia

21h.00  Completas

Horário do Domingo e Festivo

Sábado 18h.00  Lectio divina partilhada em preparação ao Domingo

21h.00  Ofício das Vigílias

Domingo7h.00  Despertar

7h.30  Laudes

11h.00 Solene Concelebração

18h.00 Vésperas

            A celebração das Laudes, das Vésperas e da eucaristia é partilhada todo dia, com  as co-irmãs monjas camaldolenses do Mosteiro da Encanação, assim como a Lectio divina do sábado. 


4 – Lectio divina e oração particular

            A experiência de Deus vivida na celebração litúrgica, tem a necessária preparação e a natural expansão num empenho coerente de vida e no encontro contínuo com o Pai, cultivado no silêncio do coração e no contato com a sua Palavra, “alimento da alma, manancial puro e perene da vida espiritual”, como lembra o Concilio Vaticano II (DV 21).

            A tradição monástica tem considerado fundamental este encontro com a Palavra de Deus e tem feito dele a “lectio divina” por excelência. Ela abrange, em primeiro lugar a Sagrada Escritura, os padres da igreja, a tradição e a reflexão sempre viva na igreja, no intuito de conduzir o monge a uma inteligência cada vez mais profunda da Palavra divina e a uma  atuação mais plena da vontade salvífica  do Pai.

             A este mesmo objetivo aponta a formação geral  e a teológica do monge, em prol da sua vida pessoal e do serviço de animação  cultural e espiritual da comunidade na igreja. Tal formação é oferecida a  todos os candidatos à vida monástica, independentemente da   eventual vocação ao sacerdócio,  que deve ser reconhecida e promovida pela comunidade.

            Da  participação pessoal  à liturgia e da prática da lectio divina, desabrochará na alma do monge, sob o influxo do Espírito Santo, aquela oração secreta feita em compunção e pureza de coração, recomendada por São Bento, conforme ao preceito evangélico  (Mt 6,6).

            Compenetrada e fomentada pelo indispensável clima de silêncio em que Deus fala, praticada com fidelidade, esta oração deve ser para o monge um elemento constante da sua vida filial, além do horário comunitário, visando garantir  uma medida mínima e  indicando uma atitude permanente.

            Permanece fundamental, pelo monge camaldolense, o ensinamento do nosso santo pai Romualdo que entregou aos discípulos como herança preciosa, esta pérola de espiritualidade do oriente e do ocidente monástico, chamada por seu discípulo João “pequena regra de ouro”:

” Fica sentado na tua cela, como no paraíso.

Expele da memória o mundo inteiro e joga-o atrás de ti. 

Fica vigilante e atento aos bons pensamentos

como um bom pescador aos peixes.

Única via, para ti, encontra-se nos Salmos.

Não deixá-la mais.

Se tu que és noviço não consegues entender tudo, 

ora aqui  e ora lá, procura rezar os salmos  

com o coração  e entendê-los com a mente. 

E quando na leitura começas a distrair-te, 

não desanimes deixando de meditar, 

mas esforça-te para voltar à atenção. 

Antes de tudo, coloca-te na presença de Deus com atitude humilde,

como quem está na presença do imperador.

Esquece-te totalmente e fica aí 

como uma criancinha, 

contente só com a  graça de Deus.

Pois, se a mãe não dá, ela não tem de que comer, 

e a comida mesma não tem sabor.”

(São Bruno Bonifácio, Vida dos cinco Irmãos, cap 19)

             Com profundo sentido de agradecimento ao Senhor  queremos lembrar  aos amigos brasileiros que  Don Cipriano Vagaggini (1909 – 1999), o grande liturgista que mais desenvolveu o “sentido teológico da liturgia” (título do seu mais conhecido livro traduzido nas principais línguas e  em 2008 também em português), e que tanto contribuiu  à renovação da liturgia   durante o Concílio Vaticano II, foi monge da nossa comunidade mãe de Camaldoli (Itália). Ele nos ensinou a redescobrir a centralidade da liturgia na vida da igreja, como sua fonte e seu cume,  e a unificar o processo da vida espiritual a partir da liturgia. Seu testemunho de fé inteligente e seu ensino teológico e espiritual  permanecem atuais mais do que nunca neste tempo de desvios superficiais, de polêmicas  e de busca de maior autenticidade da liturgia na vida do povo de Deus.


 5 -  Trabalho manual e trabalho intelectual

O trabalho, pelos monges como por todo ser humano, é constitutivo da sua vida cotidiana naquele sábio equilíbrio entre todas suas atividades, que a tradição beneditina tem simbolicamente resumido no lema “Ora et labora” (Oração e trabalho).

O trabalho em todas as suas dimensões, seja manual seja intelectual e espiritual, favorece a participação à obra criativa de Deus, ao desenvolvimento das atitudes de cada pessoa em solidariedade com a comunidade, e a participação nas suas necessidades e na vida dos necessitados.

O Horário da comunidade visa a favorecer este compromisso e este equilíbrio.

Nesta fase de reestruturação da vida da nossa pequena comunidade, o trabalho manual principal dos monges é provisoriamente o de manutenção e de desenvolvimento dos edifícios e do meio  ambiente. A tradição beneditina nos solicita um estilo de vida  simples e o uso respeitoso das coisas e dos recursos naturais, como resposta à presença sagrada e humilde  de Deus neles, não menos de que na liturgia(cf RB ,3110). Para nós é razão  profunda  para nossa consciência ecológica, brotando daí  o nosso carinhoso cuidado pelo ambiente que circunda o Mosteiro e  pela criação inteira.

            O trabalho intelectual visa antes de tudo à formação dos candidatos e  à animação cultural e espiritual da igreja local de Mogi e das dioceses mais próximas, através do Centro de Estudos Litúrgicos (CESLI), do ensino da Liturgia e das línguas bíblicas na Faculdade  de Filosofia e Teologia Paulo VI, da hospitalidade de pessoas e grupos, e  várias iniciativas de formação espiritual dos leigos.

6 –Presença na igreja e Hospitalidade

Por força do próprio batismo, todos os discípulos de Jesus, e cada um segundo a própria vocação em comunhão com a Igreja, são chamados a participar também da sua missão de testemunho e irradiação do reino de Deus. Os monges não são exceção. Temos a consciência que a comunidade monástica cumpre eficazmente esta missão apostólica com a sua própria presença, com os valores que orientam a sua vida e frisam a busca de Deus como o critério absoluto.

A caridade que une os irmãos numa única família, o mistério de Cristo celebrado e vivido em coerência de vida, a Palavra de Deus ouvida e meditada diariamente, o colóquio orante que os une ao Pai, na ascese e na alegria do Espírito Santo, fazem da comunidade monástica uma proclamação da presença do Cristo na igreja e da espera do reino de Deus.

Vivendo  e colaborando na vida da comunidade, conforme o próprio compromisso e os dons recebidos do Espírito Santo, os monges, assim,   participam da obra apostólica da igreja. A ela não ficam alheios, nem aqueles que, por vocação especial, vivem uma vida de total dedicação ao Senhor na solidão, em contínua oração e intensa penitência, no vinculo de uma misteriosa fecundidade apostólica que os une ao corpo de Cristo. A tradição camaldolense chama estes irmãos, “reclusos”, separados dos outros pelo estilo de vida solitário, mas inseridos na comunhão da comunidade  e na obediência ao Prior.

            A hospitalidade dos monges é um jeito de ser,  antes de constituir um serviço  de caridade. Exprime a  experiência de ser amado  pelo próprio Pai  e acolhido na sua casa. Esta consciência faz enxergar em cada hóspede  o próprio Cristo: "todos os hóspedes que chegarem ao mosteiro sejam recebidos como o Cristo, pois ele próprio irá dizer: fui hóspede e me recebestes” (RB 53,1).

            A hospitalidade  é a forma mais tradicional da presença dos monges  camaldolenses  na sociedade. Ela tenciona não só oferecer alivio material aos que visitam a comunidade, mas também proporcionar a eles o alimento espiritual na comunhão da caridade e no encontro com a palavra de Deus. Aos hóspedes, homens e mulheres, a comunidade oferece quartos individuais com alfaia simples e essencial, um clima tranquilo e silencioso que favorece a reflexão e a oração pessoal, a partilha da liturgia monástica e das refeições com a comunidade, a possibilidade de diálogo com  um monge  para  direção espiritual e  a celebração do sacramento da reconciliação.  O prazo  de estadia habitualmente  oferecido  a pessoas individuais  é  de uma semana.  Por grupos, um dia,  enquanto o Mosteiro ainda não dispõe de estruturas apropriadas. O mosteiro está circundado por um ambiente natural da Mata Atlântica muito lindo e tranqüilo,favorável ao descanso e  à meditação.

Para  marcar visitas e estadias  contatar  o responsável pela hospedaria, Don Emanuele.

No espírito de hospitalidade recíproca,  as comunidades camaldolenses, cada uma segundo as circunstâncias do próprio ambiente, promovem o  caminho ecumênico e o dialogo inter–religioso, para buscar juntos  a comunhão com o mesmo Senhor  que  nos transcende e nos ama e para promover a paz  e o recíproco respeito, nesta época em que  o nome de Deus é abusivamente usado para justificar violência e guerras.

Junto com as atividades de animação cultural acima mencionadas, o mosteiro promove  também um projeto de promoção social em prol de algumas  famílias mais pobres presentes na região: é o “Projeto São Bento”, realizado em parceria com a Cáritas diocesana de Mogi das Cruzes.

A pobreza mais emergente nesta região  da Grande São Paulo, é a espiritual. Muita gente, também entre os católicos que frequentam as paróquias , tem escassa ou nenhuma formação para  viver com alegria o dom da fé, e enfrentar os desafios da sociedade secularizada ou dos vários grupos evangélicos.

Com seu estilo de vida, a liturgia aberta ao povo e a acolhida fraterna dos que pedem atenção e escuta, a pequena comunidade procura tornar-se um pequeno centro de irradiação do evangelho.

 7 -  Partilhando o carisma monástico: os oblatos/as

 Alguns leigos, desejando aprofundar a própria vida cristã, estão descobrindo na tradição espiritual monástica beneditina camaldolense um significativo ponto de referência para incrementar a própria formação e alimentar o próprio caminho espiritual.

O carisma da vida monástica, sendo constituído pelos valores fundamentais da vida cristã, pode ser participado e partilhado de maneiras diferentes, tornando-se fonte de inspiração de vários modelos de vida entre os monges/as e também para leigos e leigas. Assim um número crescente  de homens e mulheres, católicos e membros de outras confissões cristãs, estão descobrindo na Regra de São Bento e na pluralística tradição monástica, uma fecunda fonte de inspiração, e entram em relação fraterna com um ou outro mosteiro, encontrando nele, uma oportunidade concreta para responder à própria busca.

 São pessoas que “se dedicam” de maneira mais radical ao Senhor( é este o significado da palavra “oblato”!) seguindo a própria vocação de leigos e leigas empenhadas  cristãmente  na família, na Igreja, nas atividades profissionais, etc, para realizar a vocação  universal e pessoal à santidade  recebida no batismo.

O Mosteiro da Transfiguração, a pedido de várias pessoas, tem iniciado o processo de formação e constituição de um grupo de “oblatos/as”.  O objetivo é  promover a formação espiritual  das pessoas, oferecer experiências de vida na comunidade, e chegar a um conhecimento e a uma interiorização da tradição espiritual beneditina camaldolense que possa alimentar as suas vidas. O programa, adaptado às situações de cada pessoa, prevê um período  de formação inicial com encontros sobre  sagrada escritura,  lectio divina, liturgia, Regra de São Bento e introdução aos ensinamentos  espirituais dos padres do monaquismo e à tradição de São Romualdo e de Camaldoli, reflexão sobre os maiores desafios da vida cristã de hoje na linha de renovação do concílio vaticano II..

A lectio divina cotidiana, a participação frequente à missa, a celebração de alguma parte da Liturgia das horas, um estilo de vida simples e solidário na caridade, tornam-se gradualmente pilares da própria vida cristã, inspirada pela espiritualidade monástica. Na partilha da mesma fé e busca do Senhor  e na recíproca escuta, monges e oblatos acabam enriquecendo-se reciprocamente.

Ao fim do período de formação inicial, o oblato/a assume formalmente o empenho da oblação perante à  comunidade  e apresentando ao prior seu projeto de vida para ser por ele abençoado.

A caminhada prossegue, através do processo de formação permanente e da partilha com a comunidade.

Mosteiro da Transfiguação

E-mail  mosteiro@camaldolense.org.br

vocacao@camaldolense.org.br

emba@camaldolense.org.br

http://www.mosteirocamaldolense.com.br/

Mosteiro da Encarnação, Monjas Beneditinas Camaldolense

 http://www.mosteirodaencanacao.com.br/


MENSAGEM DO PAPA AOS CARMELITAS


MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO AO PRIOR-GERAL DOS IRMÃOS DA BEM-AVENTURADA VIRGEM MARIA DO MONTE CARMELO POR OCASIÃO DO CAPÍTULO GERAL

 

Ao Reverendo Padre Fernando Millán Romeral

Prior-Geral da Ordem dos Frades da Bem-Aventurada 

Virgem Maria do Monte Carmelo

Dirijo-me a vós, amados Irmãos da Ordem da Bem-Aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo, que celebrais neste mês de Setembro o Capítulo Geral. Num momento de graça e de renovação, que vos chama a discernir a missão da gloriosa Ordem carmelita, desejo oferecer-vos uma palavra de encorajamento e de esperança. 

O antigo carisma do Carmelo foi durante oito séculos um dom para toda a Igreja, e ainda hoje continua a oferecer a sua contribuição peculiar para a edificação do Corpo de Cristo e para mostrar ao mundo o seu rosto luminoso e santo. As vossas origens contemplativas surgem da terra da epifania do amor eterno de Deus em Jesus Cristo, Verbo feito homem. Enquanto refletis sobre a vossa missão de Carmelitas de hoje, sugiro-vos que considereis três elementos que vos podem guiar na plena realização da vossa vocação que é a subida ao monte da perfeição: a reverência a Cristo, a oração e a missão.

Reverência

A Igreja tem a missão de levar Cristo ao mundo e por isso, como Mãe e Mestra, convida cada um a aproximar-se d'Ele.

Na liturgia carmelita para a festa de Nossa Senhora do Monte Carmelo contemplamos a Virgem que está «aos pés da Cruz de Cristo». Aquele é também o lugar da Igreja: perto de Cristo. E é também o lugar de cada filho fiel da Ordem carmelita. A vossa Regra começa com a exortação aos irmãos a que «vivam uma vida de reverência a Jesus Cristo», para o seguir e servir com coração puro e indiviso. A estreita relação com Cristo realiza-se na solidão, na assembleia fraterna e na missão. 

«A opção fundamental de uma vida concreta e radicalmente dedicada à sequela de Cristo» (Ratio Institutionis Vitae Carmelitanae, 8) torna a vossa existência uma peregrinação de transformação no amor. O Concílio Ecumênico Vaticano II recorda o papel da contemplação no caminho da vida: a Igreja tem «de facto a característica de ser ao mesmo tempo humana e divina, visível mas dotada de realidades invisíveis, fervorosa na ação e dedicada à contemplação, presente no mundo e contudo peregrina» (Sacrosanctum Concilium, 2). Os antigos eremitas do Monte Carmelo conservaram a memória daquele lugar santo e, mesmo se exilados ou distantes, mantinham o olhar e o coração constantemente fixos na glória de Deus. Refletindo sobre as vossas origens e sobre a vossa história e contemplando a imensa multidão de quantos viveram nos séculos o carisma carmelita, descobrireis também a vossa vocação atual de profetas de esperança. E é precisamente nesta esperança que sereis regenerados. Com frequência o que parece novo é algo muito antigo iluminado por uma luz nova.

Na vossa Regra está o coração da missão carmelita de então e também de hoje. Enquanto vos preparais para celebrar o oitavo centenário da morte de Alberto, Patriarca de Jerusalém, em 1214, recordareis que ele reformulou um «percurso de vida», um espaço que torna capazes de viver uma espiritualidade totalmente orientada para Cristo. Ele delineou elementos externos e interiores, uma ecologia física do espaço e a armadura espiritual necessária para responder adequadamente à vocação e cumprir eficazmente a própria missão.

Num mundo que com frequência menospreza Cristo e, de facto, o rejeita, vós sois convidados a aproximar-vos e a aderir cada vez mais a Ele. É uma chamada continua a seguir Cristo e a estar conformados com Ele. Isto é de importância vital no nosso mundo tão desorientado, «porque quando a sua chama se apaga também todas as outras luzes acabam por perder o seu vigor» (Lumen fidei , 4). Cristo está presente na vossa fraternidade, na liturgia comunitária e no ministério que vos foi confiado: renovai-lhe a reverência de toda a vossa vida!

Oração

O Santo Padre Bento XVI, antes do vosso Capítulo Geral de 2007, recordou-vos que «a peregrinação interior de fé a Deus começa na oração»; e em Castel Gandolfo, em Agosto de 2010, disse-vos: «Vós sois aqueles que ensinam a rezar». Vós definis-vos contemplativos no meio do povo. Com efeito, se é verdade que estais chamados a viver nas alturas do Carmelo, é de igual modo verdade que estais chamados a dar testemunho no meio do povo. A oração é aquele «caminho real» que abre à profundidade do mistério de Deus Uno e Trino, mas é também o caminho obrigatório que se abre no meio do povo de Deus peregrino no mundo rumo à Terra Prometida.

Um dos caminhos mais belos para entrar na oração passa através da Palavra de Deus. A lectio divina introduz na conversação direta com o Senhor e desvela os tesouros da sabedoria. A amizade íntima com Aquele que nos ama torna-nos capazes de ver com os olhos de Deus, de falar com a sua Palavra no coração, de conservar a beleza desta experiência e de a partilhar com quantos têm fome de eternidade.

Voltar à simplicidade de uma vida centrada no Evangelho é o desafio para a renovação da Igreja, comunidade de fé que encontra sempre percursos novos para evangelizar o mundo em contínua transformação. Os santos carmelitas foram grandes pregadores e mestres de oração. Isto é o que mais uma vez se pede ao Carmelo do século XXI. Ao longo de toda a vossa história, os grandes Carmelitas foram uma forte chamada às raízes da contemplação, raízes sempre fecundas de oração. 

Aqui está o coração do vosso testemunho: a dimensão de «contemplatividade» da Ordem, que deve ser vivida, cultivada e transmitida. Gostaria que cada um se perguntasse: como é a minha vida de contemplação? Quanto tempo dedico durante o meu dia à oração e à contemplação? Um carmelita sem esta vida contemplativa é um corpo morto! Hoje, talvez mais do que no passado, é fácil deixar-se distrair pelas preocupações e pelos problemas deste mundo e fascinar por falsos ídolos. O nosso mundo está espedaçado de muitos modos; ao contrário o contemplativo volta à unidade e constitui uma forte chamada à unidade. 

Agora mais do que nunca é o momento de redescobrir o caminho interior do amor através da oração e oferecer ao povo de hoje no testemunho da contemplação, assim como na pregação e na missão, não atalhos inúteis, mas aquela sabedoria que sobressai do meditar «dia e noite na Lei do Senhor», Palavra que conduz sempre junto da Cruz gloriosa de Cristo. E, juntamente com a contemplação, a austeridade de vida, que não é um aspecto secundário da vossa vida e do vosso testemunho. É uma tentação muito forte também para vós a de cair na mundanidade espiritual. O espírito do mundo é inimigo da vida de oração: nunca vos esqueçais disto! Exorto-vos a uma vida mais austera e penitente, segundo a vossa tradição mais autêntica, uma vida afastada de qualquer mundanidade, distante dos critérios do mundo.

Missão

Queridos Irmãos Carmelitas, a vossa missão é a mesma de Jesus. Qualquer planificação, qualquer confronto seriam pouco úteis, se o Capítulo não realizasse antes de mais um caminho de renovação verdadeira. A Família Carmelita conheceu uma maravilhosa «primavera», em todo o mundo, como fruto, concedido por Deus, do compromisso missionário do passado. 

Hoje a missão apresenta por vezes desafios árduos, porque a mensagem evangélica nem sempre é acolhida e por vezes até é rejeitada com violência. Nunca nos devemos esquecer de que, mesmo se somos lançados em águas turbulentas e desconhecidas, Aquele que nos chama à missão também nos dá a coragem e a força para a realizar. Por isso, celebrai o Capítulo animados pela esperança que nunca esmorece, com um forte espírito de generosidade para recuperar a vida contemplativa e a simplicidade e austeridade evangélicas.

Dirigindo-me aos peregrinos na Praça de São Pedro tive a ocasião de dizer: «Cada cristão e cada comunidade é missionária na medida em que leva e vive o Evangelho e testemunha o amor de Deus por todos, sobretudo pelos que se encontram em dificuldade. Sede missionários do amor e da ternura de Deus! Sede missionários da misericórdia de Deus, que nos perdoa sempre, nos espera sempre, nos ama tanto!» (Homilia, 5 de Maio de 2013). O testemunho do Carmelo no passado pertence à profunda tradição espiritual que cresceu numa das maiores escolas de oração. Ela suscitou também a coragem de homens e mulheres que enfrentaram o perigo e até a morte. Recordemos apenas os dois grandes mártires contemporâneos: Santa Teresa Benedita da Cruz e o Beato Titus Brandsma. Então pergunto-me: hoje entre vós, vive-se com a índole, com a coragem destes santos?

Queridos irmãos do Carmelo, o testemunho do vosso amor e da vossa esperança, radicados na amizade profunda com o Deus vivente, pode chegar como uma «brisa leve» que renova e fortalece a vossa missão eclesial no mundo de hoje. Para isto fostes chamados. O Rito da Profissão coloca nos vossos lábios estas palavras: «Com esta profissão confio-me à família carmelita para viver ao serviço de Deus e na Igreja e aspirar pela caridade perfeita com a graça do Espírito Santo e com a ajuda da Bem-Aventurada Virgem Maria» (Rito da Profissão Ord. Carm.).

A Bem-Aventurada Virgem Maria, Mãe e Rainha do Carmelo, acompanhe os vossos passos e torne fecundo de frutos o caminho diário rumo ao Monte de Deus. Invoco sobre toda a Família Carmelita, e de modo particular sobre os Padres Capitulares, abundantes dons do Divino Espírito, e a todos concedo de coração a implorada Bênção Apostólica.

 

FRANCISCO


DESERTO: ENCONTRO COM DEUS


Dom Edson Damian, Bispo de S. Gabriel da Cachoeira, AM


O primeiro impacto de Deus como Absoluto o Irmão Carlos vivenciou em sua viagem de reconhecimento ao Marrocos: na descoberta da “grandeza austera do deserto” e na simplicidade religiosa dos muçulmanos. Escreve à Marie de Bondy:


“O que há de maravilhoso por aqui é o pôr-do-sol, o entardecer e a noite. Vendo esses belos crepúsculos, relembro o quanto eles lhe agradam, pois evocam a bonança que virá após a tormenta do nosso tempo. Os fins de tarde são tranquilos, as noites tão serenas, este céu imenso e estes vastos horizontes parcialmente iluminados pelos astros são tão tranquilos e, silenciosamente, de uma maneira tão penetrante cantam o Eterno, o Infinito, o Além, que seríamos capazes de passar noites inteiras nesta contemplação; no entanto, abrevio estas contemplações e, depois de alguns instantes, dirijo-me para o sacrário, pois há muito mais do que tudo isso no humilde sacrário. Tudo é nada comparado ao Bem-Amado”.



O deserto deixou no Irmão Carlos uma marca definitiva. Será como uma espécie de selo de família, de todos os ramos da família espiritual que tenham sua origem no carisma foucauldiano. Partindo de uma vasta tradição dos padres do deserto, escreve: “É necessário passar pelo deserto e nele permanecer para receber a graça de Deus: é no deserto que nos esvaziamos e nos desprendemos de tudo o que não seja Deus, onde esvaziamos completamente a casinha de nossa alma para deixar o espaço todo somente para Deus. Os hebreus passaram pelo deserto, Moisés viveu nele antes de receber a missão, Paulo, ao sair de Damasco, passou três anos na Arábia, São Jerônimo e São João Crisóstomo também se prepararam no deserto. É indispensável. É um tempo de graça. É um período pelo qual tem de passar necessariamente toda alma que queira dar fruto. É necessário este silêncio, este recolhimento, este esquecimento de tudo o que foi criado para que Deus estabeleça na alma o seu Reino e forme na alma o espírito interior, a vida íntima com Deus, a conversação da alma com Deus na fé, na esperança, na caridade... É na solidão, vivendo somente com Deus, no recolhimento profundo da alma que esquece o que existe para viver só em comunhão com Deus, onde Deus se entrega totalmente a quem se abandona totalmente a Ele”.



Desde Abraão, nosso pai na fé, que no deserto é enviado por Deus a uma terra estranha para consolidar sua vocação; passando por todos os profetas, desde Moisés e Elias até João Batista, todos eles purificados por Deus no deserto e consumidos aí por seu amor em vista da missão; até o próprio Jesus, conduzido pelo Espírito ao deserto da tentação e periodicamente indo a lugares ermos para orar – a espiritualidade bíblica é incompreensível sem a dimensão do deserto.


O Absoluto de Deus, descoberto e vivido num primeiro tempo, mediante o deserto e o Islã, produziu no Irmão Carlos uma experiência muito intensa de dependência como criatura, antes de chegar à consciência de filiação. A experiência do deserto rompeu o ceticismo-agnosticismo científico de Carlos de Foucauld; no entanto teve um longo caminho a percorrer para descobrir, através do caminho místico da vida cristã, sua condição de filho de Deus e irmão amado de Jesus.



A relação do Irmão Carlos com o Pai está expressa na “Oração do Abandono”, considerada a maior característica de sua espiritualidade. 


EM PRIMEIRO LUGAR,


deserto, é experiência do Absoluto de Deus e do relativo de tudo o mais, incluídas aí as pessoas e nós mesmos. No deserto estamos sós diante de Deus, e esta presença deveria bastar para plenificar e dar sentido à nossa vida. No deserto, o amar e buscar a Deus com todo o coração, com toda a mente e com todas as forças, é a única alternativa possível e assim experimentamos a verdade fundamental da mística cristã: Deus nos amou primeiro e vem ao nosso encontro. “Agora sou eu mesmo que vou seduzi-la, vou leva-la ao deserto e conquistar seu coração” (Os 2,16). Vamos ao deserto sem enfeites e sem máscaras, no silêncio e na pobreza do ser, para escutar Deus falar ao coração, para deixar Deus ser Deus.


“O silêncio é a medida do amor. Só quem ama sabe curtir o silêncio a dois. É ruidoso o mundo em que vivemos. Há demasiadas máquinas de fazer barulho: telefone, fax, rádio, TV, veículos, campainhas. Nosso cérebro habitua-se tanto à sonoridade excessiva que custamos a desligá-lo. Uns preferem remédios que façam dormir. Outros, a bebida. Assusta-nos a hipótese de manter a casa em silêncio. Decretar o jejum de ruídos; desligar rádio, TV e telefone. Isso pode levar ao pânico. A “louca da casa”, a imaginação, entra em rebuliço, supondo que há uma notícia importante a ser ouvida ou um telefonema de urgência a ser recebido. Ou experimenta-se o medo de si mesmo. Sentir-se ameaçado por si mesmo é uma forma de loucura freqüente em quem, súbito, vê-se privado de sons exteriores. Como alguém preso no elevador. Não é a claustrofobia que amedronta. É o peso de suportar-se a si mesmo, entregue aos próprios ruídos interiores. É terrível o espectro de uma par­cela dessa geração que se nutre de ruídos desconexos. Comunica-se por um código ilógico; balbucia le­tras musicais sem sentido; entope de sons os ouvidos, na ânsia de preencher o vazio do coração. São seres transcendentes, porém cegos. Trafegam por veredas perdidas, sem consciência de que procuram fora o que só pode ser encontrado dentro” (Frei Betto).



Os monges, os contemplativos inseridos no mundo como fermento na massa, nutrem-se de silên­cio. No deserto aprendemos a gostar da solidão, ouvir a voz interior, estar só para sentir-nos intimamente acompa­nhados, tapar os ouvidos para es­cutar e auscultar Aquele que faz em nós Sua morada. Enfim, fechar os olhos para ver melhor.



Espiritualidade é deixar-nos encontrar, amar e conduzir por Deus. Assim o deserto salienta a dimensão da espera, da expectativa da visita de Deus que vem ao encontro de nossa impotência e aridez e se revela sempre maior que o nosso coração. Como nos testemunha o Irmão Carlos: “Assim que eu acreditei que havia um Deus, compreendi que só podia viver unicamente para ele: minha vocação religiosa data da mesma hora que minha fé. Deus é tão grande! Há uma diferença tão grande entre Deus e tudo que não é ele!” 


Deus está sempre além das fórmulas teológicas, de qualquer utopia histórica e social, de qualquer acontecimento libertador ou de toda a beleza e bondade que vemos nas pessoas ou na natureza. No Evangelho, Jesus recomenda não multiplicarmos as palavras na oração. O Pai sabe de que necessita­mos. Todavia, somos desatentos ao conselho. No Ocidente, falamos de Deus, a Deus, sobre Deus. Quase nunca deixamos Deus falar em nós. Agimos como aquela tia que liga pa­ra minha mãe: fala tanto, que nem se dá conta de que mamãe larga o fone, vai à cozinha mexer a panela e retorna. Quem muito se explica, muito se complica, pois teme a própria sin­gularidade.


“O silêncio ajuda-nos a descer em nós mesmos para ir ao encontro de Deus e ao nosso encontro também, pois revela ao homem o seu próprio mistério, o cerne do seu ser como pessoa livre, indefinível e inacessível a qualquer ciência humana. Há uma qualidade de silêncio que nos põe em estado de escuta total. É um silêncio que nos leva ao fundo de nós mesmos, em comunhão com o Ser Absoluto que nos deu a existência. Tal silêncio é sagrado e precisa ser absoluto. É tudo ou nada. É descer no mistério do “eu” que nos conduz à fronteira do Mistério de Deus e constitui uma última preparação para a escuta da Palavra incriada que nos deu a vida ao pronunciar o nosso nome” (René Voillaume).


EM SEGUNDO LUGAR,


o deserto é o lugar da autenticidade e da verdade sobre nós mesmos, sobre o que habitualmente nos rodeia, sobre nossos trabalhos, sobre sociedade. A sós diante de Deus, no despojamento do deserto, não podemos mais nos enganar, nem continuar nos iludindo e mascarando nossa vida. Prestígio, realizações, relações pessoais, sempre mescladas de ilusões e inautenticidade, já não acobertam nossas pretensões e mentiras nem nos desviam da verdade sobre nós mesmos e a realidade que nos cerca. A ambiguidade de nossas motivações e de nossas “generosidades” vem à tona e nos vemos tal qual somos, ou melhor tal qual Deus nos vê. Por isso o deserto é o lugar da conversão e de purificação do coração porque somos ambíguos na posse dos bens (pobreza), nas relações interpessoais (amor, afeto) e no uso do poder, no exercício da autoridade (obediência).


 O nosso amor, vivido na castidade do celibato, exige tempo de deserto para não se perder no caminho, não se tornar coração endurecido nem transviado (cf Sl 94). Na verdade, se buscamos Deus, a tomada de consciência das mentiras e cegueiras que nos envolvem leva-nos a optar pela luz que nasce do deserto e a despegar-nos das trevas das nossas motivações, trabalhos e relações com os outros; leva-nos a silenciar as vozes enganadoras dos ídolos, das ideologias, das riquezas, do prestígio e do poder, das paixões desordenadas, das compensações sutis do prazer. O deserto é o caminho da libertação interior, onde “Deus fala ao coração” e onde o espírito do mundo, que nos fascina, pode emudecer.


EM TERCEIRO LUGAR, 


o deserto nos abre à verdadeira solidariedade e misericórdia para com os irmãos e nos ajuda a amar verdadeiramente. A aprendizagem do amor fraterno requer a atitude de deserto; a fraternidade e o serviço da comunidade exigem que em nosso espírito haja espaço para a solidão e silêncio.


Os Santos Padres nos ensinam que, paradoxalmente, a solidão dá lugar à misericórdia “porque nos faz morrer para o próximo”, isto é, nos impede de julgá-lo, criticá-lo, avaliá-lo, morrer a toda espécie de preconceitos, antipatias, rancores, ressentimentos e hostilidades.


Isto se torna possível porque o deserto nos dá um agudo sentir de nossos próprios defeitos e misérias, nos faz “ver a trave em nosso olho” e nos brandos e misericordiosos quando se faz necessário ajudar a “tirar o cisco no olho do nosso irmão. “O silêncio nos predispõe à compreensão dos outros, pois o hábito do silêncio nos ajuda a ouvi-los atentamente e colocar-nos em seu lugar, em vez de nos impormos por atitudes ou palavras muitas vezes indiscretas e ofensivas. 


Esse silêncio faz-nos fugir da tagarelice inútil, permitindo-nos ultrapassar certa superficialidade das relações humanas nas quais tão facilmente nos refugiamos”(René Voillaume).


Durante o deserto vêm à tona nossas fraquezas, incoerências, ambiguidades, infidelidades e torna-se impossível escamoteá-las ou justificá-las. Os gaúchos costumam usar uma mala de garupa que colocam nos ombros para carregar coisas na frente e atrás. Há um provérbio que aconselha a virar de lado a mala, porque costumamos colocar os defeitos dos outros na frente e os nossos atrás. A solidão do deserto possibilita-nos encarar nossos defeitos e buscar os meios para superá-los. E como certos vícios e defeitos têm raízes profundas e somos impotentes para arrancá-los, precisamos da misericórdia e do perdão do Senhor. Por isso, o deserto constitui lugar privilegiado para preparar a revisão de vida e o sacramento da reconciliação.


EM QUARTO LUGAR, 


o deserto é o lugar das tentações, da crise e também da superação das mesmas. É o lugar de nosso fortalecimento e amadurecimento, já que nosso espírito se torna forte mediante a coragem no enfrentamento da prova. Para os Santos Padres, o deserto é também o lugar do demônio e para lá se dirigiam para enfrentar e vencer as tentações, inspirados no testemunho de Jesus, quando esteve no deserto por quarenta dias. 


Como momento forte de espiritualidade, o deserto sempre gera crise. Nele encontramos Deus, mas também o demônio. Sem tentação correríamos o risco de apoderar-nos de Deus e torná-lo inofensivo e inócuo. Pela tentação experimentamos existencialmente nossa distância de Deus, percebemos a diferença entre o homem e Deus. Quando suplicamos; “Não nos deixeis cair em tentação” (Mt 6,13), não estamos pedindo para não sermos tentados, uma vez que isso seria até mesmo impossível, mas imploramos para não sermos devorados pela tentação ou fazermos algo que contrarie a vontade de Deus. 


Sem a tentação não sentiríamos o cuidado de Deus por nós, não adquiriríamos a confiança nele. Antes da tentação, poderíamos orar a Deus como a um ser longínquo, estranho. Após termos suportado a tentação por amor a Deus, Ele nos considera como alguém a quem fez um empréstimo e por isso tem o direito de receber juros, como um amigo que nos arrancou das mãos de um inimigo. Deus se torna mais próximo e familiar.


Sem a tentação podemos nos tornar desleixados, descuidados de nós mesmos e passamos pura e simplesmente a vegetar. As tentações nos forçam a viver conscientemente, a exercitar a disciplina e a ascese, a permanecer sempre vigilantes e atentos. Porque nos torna mais humanos e humildes, a tentação torna-se caminho de crescimento e amadurecimento.


A miséria de que somos feitos emerge como verdade, como desânimo e até como desespero. Somos tentados a fugir do deserto porque é difícil agüentar o vazio, a solidão, as horas intermináveis, a aparente perda de tempo. Nossas agendas estão sempre abarrotadas de compromissos. Por formação e cultura capitalista, somos naturalmente voltados para a ação, para os resultados, para extroversão. 


O índex do totalitarismo do consenso neoliberal decreta, hoje, o silêncio dos conceitos altruístas. Grita-se competitividade, concorrência, “performance”, disputa, privatização... Cala-se solidariedade, cooperação, doação, partilha, socialização. Edifica-se a barbárie em nome de uma civilização prometeica, na qual muitos são os excluídos e poucos os escolhidos.



Temos medo do deserto porque o caminho mais difícil é aquele que nos leva para dentro de nós mesmos. Só quem conhece a beleza do silêncio, dentro e fora de si, é capaz de viajar por seu próprio mundo interior e encontrar o Senhor que habita no mais íntimo de nós. “Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei! Eis que estavas dentro e eu, fora. Aí te procurava e lançava-me nada belo ante a beleza que tu criaste. Estavas comigo e eu não contigo. Seguravam-me longe de ti as coisas que não existiriam, se não existissem em ti. Chamaste, clamaste e rompeste minha surdez! Brilhaste, resplandeceste e afugentaste minha cegueira. Exalaste perfume e respirei. Agora anelo por ti. Provei-te, e tenho fome e sede. Tocaste-me e ardi por tua paz” (Santo Agostinho, Confissões).


Portanto, é importante ajudar-nos em nossas fraternidades a não fugir do deserto, a realizá-lo com certa regularidade e fidelidade. Porque, ou nos entregamos a Deus, ou nos fechamos em nós mesmos, fugindo de Deus: nisto consiste a tentação. Estas duas alternativas são radicais e incompatíveis e a gravidade da crise persiste até que morramos à nossa imagem e acolhamos a presença de Deus e nos deixemos moldar e conduzir pelo seu Espírito. A graça do deserto consiste em vencer a tentação sutil que o demônio nos apresenta como um bem aparente. 


Deserto é o lugar de conversão e espaço vocacional. Na volta do deserto estamos mais preparados para assumir a Fraternidade (espaço eclesial), para receber o sacramento do perdão e entregar a vida ao olhar dos irmãos (revisão de vida) para buscar novos caminhos de entrega e serviço ao Senhor e aos irmãos.


Nós vamos para o deserto:


- com o Povo de Deus que “no deserto andava” em busca da Terra Prometida: somos descendentes e herdeiros de homens e mulheres do deserto.


- com os Profetas para que o fogo da paixão por Deus nos queime por dentro, e com o coração abrasado nos deixemos seduzir.


- com Maria que “guardava e meditava no seu coração" e na hora certa soube dizer: “Eis aqui a serva do Senhor, faça-se me mim segundo a tua palavra”


- com Jesus, nosso “único modelo”: vida toda aberta ao Pai e aos irmãos. Ele espera nossa resposta como a de Pedro: “Senhor tu conheces tudo, tu sabes que eu te amo”. Por sua vez nos dirá: “Apascenta as minhas ovelhas...Quando eras moço...Segue-me” (aqui atrás de mim); “por causa de Jesus e do Evangelho”


- com os “grandes orantes” da Igreja de ontem e de hoje


- com o testemunho fascinante e o incentivo cativante de nosso querido Ir Carlos para aprender a articular com ele a “Oração do Abandono” como Jesus no deserto e na cruz para fazer a vontade do Pai e para que venha o seu Reino.


Dom Edson Damian 


(Escrito quando era presbítero-missionário na Igreja de Roraima - Amazônia)


 ELOGIO DO SILÊNCIO

Por: Monge Luciano Manicardi

Comunidade Monástica de Bose, Itália

 

Depois de ter vivido a experiência de duas semanas passadas num lugar retirado sem a possibilidade de ligar-se à internet, a escritora britânica Ruth Thomas publicou as suas reflexões sobre a perda da capacidade de estar em solidão a que nos conduz a vida contemporânea, marcada pelas conexões em rede, mas também sobre o prazer de redescobrir a riqueza e a potencialidade inerente à solitude. Viver alguns dias sem telefone e sem internet é hoje uma experiência excecional, com dimensões antropológicas e espirituais relevantes. Ruth Thomas afirma que lhe parecia estar a viver num tempo passado, noutra época, duzentos anos antes.

O binómio "solidão - 'ocium'" é amplamente atestado na Antiguidade clássica. Um passo do "De officiis", do célebre sábio e cônsul romano Cícero, diz: «Marco, meu filho: de Públio Cipião, que em primeiro lugar teve o sobrenome de Africano, Catão, que era mais ou menos seu coetâneo, conta que era habitual dizer que ele nunca era menos ocioso do que quando era ocioso, nem menos só do que quando estava só». Expressão verdadeiramente esplêndida e digna de um homem grande e sábio: ela diz que também no tempo livre ("in otio") pensava nos negócios públicos ("de negotiis") e em solitude ("in solitudine") falava consigo próprio, e por isso nunca era ocioso e não sentia a necessidade de alguém com quem conversar. Desta forma, ociosidade e solitude ("otium et solitudo"), estas duas coisas que paralisam os outros, a ele, pelo contrário, estimulavam-no. Obviamente, o significado de "otium" e "otiosus" não tem aqui nada de negativo, antes indica o tempo do retiro, o tempo dedicado ao estudo, ao pensar, ao refletir, à atividade espiritual. Santo Ambrósio de Milão realizará uma refundação bíblico-cristã desta dupla terminológica. O bispo de Milão aplicou a si mesmo a expressão ciceroniana: «Com efeito, nunca sou menos só do que quando parece que esteja só, nem menos ocioso do que quando parece que seja ocioso». Silêncio, solidão, tranquilidade eram considerados por Ambrósio elementos de fecundidade e de eficácia também no exercício do seu ministério episcopal.

Diante da dificuldade de viver a solidão e de estar sem fazer nada, é preciso, portanto, creio redescobrir a antiga e sempre nova virtude do "otium". No atual contexto de idolatria da comunicação, somos subjugados por demasiada informação, que não sabemos elaborar. Seria preciso um movimento de "tomada de distância de si". É um movimento de resistência individual, um ato de subversão solitária.

A ideia da recuperação e da valorização da noção de "otium" é precisamente dirigida à recuperação de uma sabedoria que hoje está perdida. Como já escrevia santo Agostinho, «o meu "otium" (tempo livre) não é destinado a cultivar a preguiça, mas a alcançar a sabedoria». E Agostinho dizia isto a partir da lição bíblica: «O letrado adquire a sabedoria, no tempo em que está livre de negócios; por isso, aquele que tem poucas ocupações pode chegar a ser sábio» (Ben Sira 38, 24). Ter tempo, dar-se tempo, para poder habitar consigo próprio. De outro modo o risco da nossa incapacidade de solitude é que os nossos corpos se tornem não-lugares, lugares não habitados, lugares sem alma, lugares só de passagem de emoções e flash, de sons e rumores, sem princípio nem fim.

A ideia de "otium", a expressão "vacare Deo" (ter tempo livre para Deus), tornam-se elementos típicos da experiência monástica, experiência que desenvolve particularmente a dimensão solitária, e que, todavia não cria uma vida de privilegiados, mas funde "otium" com a atividade laboral intensa e quotidiana.

Em síntese, o "otium", se é virtuoso, deve afastar de si toda a forma de "otiositas". Sem o cansaço do trabalho manual e intelectual, com efeito, o monge não poderia alcançar aquele distanciamento do mundo, dos próprios pensamentos e desejos que lhe permite alcançar a paz interior e, portanto, a contemplação de Deus. Em suma, o "otium" é um bem na medida em que vê trabalho, fadiga, esforço e aplicação. Um "otium negotiosum" (um ócio laborioso, uma inatividade operativa) como gostam de repetir os monges, e também "negotiosissimum" (laborosíssimo), como especifica S. Bernardo. O "otium" é a possibilidade da solidão positiva, da solidão da alma. E talvez o retomar da atitude espiritual do "otium" possa fazer bem também a nós, hoje, que vivemos uma relação conflitual com o tempo e frenética com o fazer. Mas aqui coloca-se a pergunta: sabemos estar sem fazer nada? Sabemos habitar a atitude positiva, não indolente, mas eficaz, do não fazer?

A fadiga do "otium" está no dedicar-se ao trabalho mais difícil e mais necessário do homem: conhecer-se a si mesmo. O "otium" permitir-nos-ia aprofundar a noção de vida interior e, sobretudo de desenvolver a prática. Prática que conhece muitos movimentos que precisam ser aprofundados e analisados (tomar atenção, vigiar, interrogar-se, pensar, discernir, decidir, etc.), mas aqui limito-me a elencar as três atitudes de fundo que se apresentam ao homem que decide entrar na vida interior ou, se quisermos, de dar espaço ao "otium" na sua existência. São os movimentos contidos num apotegma de Arsénio, um padre do deserto: «Foge, faz silêncio, sê tranquilo: destas raízes nasce a possibilidade de não pecar». Ou seja, procura conscientemente a solidão, vive o silêncio como ação interior, persegue a paz interior. Trata-se de uma ação fatigante, que exige um esforço, que convoca as energias interiores e espirituais da pessoa para um fim preciso, e que consente ao homem sair da atitude "viciosa", isto é, dos maus hábitos, da tirania dos hábitos que nos agitam e nos tiram liberdade e responsabilidade. O hábito, escreve o filósofo latino Séneca, «imobiliza as coisas» e paralisa também a pessoa. O resultado desta ascese, isto é, desta escolha consciente do essencial, é o sentido acrescido de integridade pessoal (1).

O ínclito eremita francês Charles de Foucauld relata sua meditação: “Quero passar sobre a terra de maneira obscura como um viajante à noite. Viver na pobreza, na abjeção, no sofrimento, na solidão, no abandono para estar na vida com o meu Mestre, o meu Irmão, o meu Esposo, o meu Deus, que viveu assim toda a sua vida e me dá  esse exemplo desde o nascimento”. (Meditações sobre o Evangelho). (2).

CONCLUSÃO

A práxis do silêncio, solidão, deserto e toda ascese desse contexto, é a abissal vida espiritual com a bênção da celestialidade que não existe palavras para uma explicitação desse estado de graça. O amor desse estado de vida, a fé, a esperança e o poder de Deus são fundamentos da vivência da via contemplativa. A simbiose da gloriosa felicidade, a busca ardente do silêncio, oração, intercessão, estudo da Sagrada Escritura,  jejum e visões, são atitudes alimentares da alma, saúde emocional e equilíbrio para o corpo. Os atos praticados de tais virtudes solidificam a caminhada na profundidade de comunhão com Deus, consigo mesmo e com o próximo. A idiossincrasia dessa abençoada jornada  é sublime, caridosa e tomada de uma vontade infinita de paz, de serenidade e de santificação. A solidão do deserto é a companhia da Santíssima Trindade, dos anjos, dos santos e dos mistérios revelativos! Aqui há confidencialidade eremítica.

Hoje mais do que nunca, a vida tem sentido na dimensão da espiritualidade do silêncio. A falação, o barulho, a poluição visual e a perigosa companhia de certas pessoas, são armas que assassinam muitas vidas. A sabedoria do silêncio é o tesouro dos sábios. Quem fala pouco, ou seja, o necessário, e fala para edificação é ser intelectual. O silencioso vive no conhecimento da escola de São José e de Maria de Nazaré. O silêncio é o livro de ouro dos sábios. Quanto mais se aprende a viver em silêncio, mais profundo se torna o discípulo da Sagrada Família. Nosso relacionamento com a solidão é o livramento de tudo que pode ofender o espírito e a matéria. Depositamos a nossa confiança em Deus em nós mesmos com a força do silêncio. Viver verdadeiramente é viver livremente para amar o bom Deus, o nosso “eu” e o nosso semelhante na infinidade do tempo graciosamente silencioso. Em tudo na adoração e louvor angelical!

Crescer na graça, na misericórdia e no conhecimento de Jesus Cristo, configurados na riqueza do silêncio e da solidão, tendo como pedagogo o Espírito Santo para que o nosso progresso espiritual seja sempre renovado, avivado e reavivado.

Inácio José do Vale

Professor, Sociólogo e Conferencista

Fraternidade Sacerdotal Jesus Cáritas

Irmãozinhos da  Visitação de Charles de Foucauld

E-mail: pe.inacio.jose@gmail.com

 

 Notas:

(1)  http://www.snpcultura.org/elogio_da_solidao.html

(2)https://fraternidadecharlesdefoucauld.wordpress.com/2016/01/05/o-deserto-de-charles-de-foucauld/


INTRODUÇÃO ao estudo do silêncio

- Mássimo Massini.

Este é um estudo muito bonito, que tirei do boletim espanhol nº 03/98, maio-junho 1998, de Mássimo Massini.

São 10 textos para refletir e meditar.

"Se amas a verdade, seja amante do silêncio; à semelhança do sol, ele te fará luminoso ante Deus e te livrará dos fantasmas da ignorância; o silêncio te unirá ao mesmo Deus" (Isaac de Nínive).

"Pelo silêncio se reconhecem os que levam Deus em seu coração" (Gerhard Tersteegen).

O tema do silêncio, mais do que nunca, é atual. "Conforme vai diminuindo o prestígio da linguagem, aumenta o silêncio" (Susan Sontag).

"Em nenhum século a palavra tem sido tão pervertida, como o está agora, de sua finalidade natural que é a de fazer os homens se comunicarem. Falar e enganar (frequentemente também enganando a si mesmo) são agora quase sinônimos" (Ignazio Silone, "Pão e Vinho")

O desamor pela palavra, que está difundido como nunca, nasce da constatação de nosso falar e o dos demais chegou a ser, em geral, atos meramente físicos, charlatanice impessoal e banal. Em pouco tempo, falar converteu-se, para o homem do século 20, numa "escravidão como a do álcool"

A nossa civilização é caracterizada por palavras acabadas, desgastadas, sem conteúdo, soltas. "Uma civilização baseada nas palavras é uma civilização perturbada. As palavras criam confusão. As palavras não são a palavra. Não há palavras para a experiência mais profunda. Quanto mais desejo expressar-me, tanto menos me entendo. Na verdade, nem tudo é inexprimível em palavras, mas apenas a verdade viva"

Em nossas conversações cotidianas tropeçamos muito em palavras sem peso, inoperantes, que nos entorpecem intelectualmente, assim como tropeçam, resvalam, deterioram, apodrecem as palavras nos slogans, clichês, metáforas mortas, nos pré-fabricados linguísticos. A desumanização política de nosso século também tem levado à desumanização da linguagem. "O silêncio é uma alternativa. Quando as palavras da cidade estão cheias de barbáries e mentiras, nada fala mais forte que a poesia não escrita".

O poeta de nossos tempos, como o místico, provou pelo menos por uma só vez na vida o desejo de "morrer de silêncio".

Deste inferno do ruído, que é a nossa vida cotidiana, desta "galeria do vento das conversas vazias" e das tagarelices nasce espontânea a saudade do silêncio, o desejo de fazer emudecer as palavras instrumentalizadas e de descobrir as palavras do silencio. O homem contemporâneo, ainda que inconscientemente, está gritando com Verlaine ”Dai-me o silêncio e o amor do mistério".

 

"O silêncio pertence à estrutura fundamental do homem". Nele, "realiza-se o conhecimento autêntico" Para Ghandi, "o silêncio dilata o espaço de tempo de nossa vida".

 

Para Psichari, é "um grande mestre da verdade" . Para Lavelle, "é a forma mais perfeita do pudor " Para S. Paulo da Cruz, " a chave de ouro que conserva o tesouro das virtudes".

Para Bossuet,, "o guardião da alma". Para João de Jesus Maria, "tem certa afinidade com a contemplação divina e o arrebatamento (o êxtase) da alma, enquanto que faz entender também sem estrépitos de palavras coisas superiores à capacidade do mundo”.

O silêncio é todas estas coisas e muitas outras mais; sem dúvida, dado que muitos se esqueceram do silêncio é talvez mais oportuno esclarecer em seguida o que não é, excluindo algumas ideias errôneas que podem estar circulando.


O QUE O SILÊNCIO É OU NÃO É


EQUIPE DO BOLETIM ESPANHOL


1 - O SILÊNCIO NÃO É ALGO MERAMENTE NEGATIVO


Ele não é uma simples negação de conversação, mas algo positivo, um mundo completo em si mesmo. É algo mais que uma simples renúncia à palavra.


2 - O SILÊNCIO NÃO É A MERA AUSÊNCIA DE RUÍDO


Existe a ausência de ruído e existe o silêncio. O silêncio é a paz. A ausência de ruído, às vezes, é o nada angustioso. Há, por outro lado, ruídos que são essenciais ao silêncio: o tic-tac de um relógio, o murmúrio das folhas, o trilar de um pássaro, o agitar de suas asas.


3 - O SILÊNCIO NÃO É MUTISMO


O mutismo está para o silêncio como as conversações vãs estão para as palavras. Para existir como pessoa o homem tem que saber calar. Não é o mesmo que "ser mudo". A mudez é carência de palavra em que a pessoa se reprime. O calar, pelo contrário, supõe a pessoa, a única que pode estar naquele recolhimento sereno que se chama silêncio.


O mutismo é a "enfermidade mortal" do silêncio. O silêncio não é mudo e o que é mudo não é silêncio. As duas palavras se excluem. Não existe "silêncio mudo". O silêncio é uma forma de comunicação profunda, a mais profunda que existe na comunicação. O mudo, pelo contrário, se isola e se exclui de toda comunicação (Sciacca).


Uma pessoa pode ser calada por tristeza, temperamento, enfermidade etc. Mas a pessoa só pode ser silenciosa pela atenção, concentração, recolhimento, meditação, oração (idem).


4 - O SILÊNCIO NÃO SE RESUME NO MERO SILÊNCIO DOS LÁBIOS.


O silêncio não é nem pode ser unicamente externo. Ele tem diversos graus. Não se resume nos lábios, mas engloba todos os nossos membros e, mais ainda, a nossa alma. Existem o silêncio da palavra, da ação, da atitude, e o mais sublime, que se poderia chamar o "silêncio do silêncio".


Ele é a expressão de um estado interior. Para resolver não falar, a pessoa tem de viver internamente em silêncio. Mesmo calado, a pessoa pode estar às vezes cheio de ruídos, tumulto, ao passo que mesmo falando, pode ser interiormente silencioso, se as palavras que pronuncia são envolvidas pelo silêncio interior.


Quem julga os outros, por exemplo, mesmo calado, está falando continuamente: não sabe o que é o silêncio. Quando o que se fala é de alguma utilidade pessoal, na verdade é guardar silêncio.


Lembremo-nos de que todos os ruídos que nos rodeiam são menos barulhentos que nós mesmos. O verdadeiro ruído é o eco que as coisas produzem em nós. O silêncio é a sede [é] da palavra de Deus e se, quando falamos, nos limitamos a repetir essa palavra, então mesmo assim estamos em silêncio.


5 - NÃO EXISTE APENAS UMA CLASSE DE SILÊNCIO, MAS UMA PLURALIDADE DE SILÊNCIOS.


O silêncio é mais complexo do que parece. Não tem uma só forma de expressão, um só significado, mas pode assumir múltiplos significados. Levelle fala do silêncio de clausura, de discrição, de mortificação, de ameaça, de cólera, de rancor. Há também o da aceitação, o da promessa, o silêncio que suporta o peso de todas as recordações, sem evocar concretamente nenhuma delas, o que submete ao exame todas as possibilidades sem preferir nenhuma delas.


Há o silêncio pesado, como de chumbo, que oprime de tal modo que a menor palavra seria uma libertação. Há o silêncio frágil, cuja ruptura teme-se. Há o que protesta uma hostilidade irritada, por não encontrar os meios suficientemente fortes para expressar-se. Há o de amizade plena, feliz de haver superado todas as palavras e assim havê-las tornado inúteis. Há também o de admiração, e o de desprezo. Às vezes o silêncio faz sentir a presença do corpo como uma carga, que não se pode levantar; outras vezes, em troca, parece desprezá-lo como se se tivesse tornado um puro espírito. 


6 - O SILÊNCIO NÃO É SEMPRE E TOTALMENTE UM FENÔMENO POSITIVO 


Algumas pessoas conseguem o máximo de sua maldade no silêncio. Existe um silêncio que tem algo de divino, mas também um silêncio que tem algo de demoníaco. Existe o silêncio falso como a palavra falsa. Para Ghandi, o silêncio inspirado no medo não é silêncio.


São Gregório Magno aponta um "silêncio ruidoso" (o do rancor, do ódio, da inveja, que é um silêncio de dissipação. Às vezes o silêncio acaba sendo tão culpável como a charlatanice. Ainda São Gregório Magno diz que "Os demasiadamente calados, quando vêm os males alheios e continuam calados, são como quem visse suas feridas e não as deixasse curar; e se fazem responsáveis por sua morte, porque não quiseram arrancar aquele veneno que poderiam ter curado com suas palavras." Se o silêncio excessivo não fosse culpável, o profeta não teria dito: "Ai de mim, porque calei-me". 


7 - O SILÊNCIO NÃO É DESAMOR À PALAVRA, NÃO É UMA FUGA DO REINO DA LINGUAGEM.


Escolher o silêncio não significa ter ódio à palavra ou desprezar a palavra anônima, irresponsável, impessoal, falsa, mas certamente é ter amor à palavra autêntica, e à que permanece fiel ao silêncio que a sustém. É, pois, uma valorização da linguagem e dos perigos que ela apresenta hoje a uma consciência livre.


Quem ama o silêncio, ama também a palavra verdadeira, que não quebra o silêncio. A palavra procede do silêncio, expressa-o e a ele retorna. O silêncio é o espaço entre as palavras; é o espaço em que elas ressoam. Elas evocam sua infinidade.


"Um ressoar da palavra autêntica só pode brotar do silêncio" (Heidegger). "A linguagem é a que abre caminho à possibilidade do silêncio. Quem não sabe calar-se é como quem quer só espirar e nunca inspirar" (Romano Guardini).


Quem quiser viver profundamente, tem que criar em sua vida espaços de silêncio, aventurar-se nesse continente vasto e inexplorável como a Antártida, que é o silêncio.


O silêncio é um meio privilegiado para se conseguir a própria salvação, para desfrutar a presença de Deus; enfim, para entrar em contato com o sagrado, com o divino. Como a palavra é a linguagem usada para se falar entre os homens, o silêncio é a linguagem com que a alma fala com Deus e obtém dele o que precisa (João Paulo de Sault). É com o silêncio também que Deus fala com a alma e a instrui sobre as verdades da salvação e dos mistérios divinos.


O silêncio é o antegozo de Deus. A pegada divina nas coisas se conserva mediante a união com o mundo do silêncio. O homem amante do silêncio pode ser um sinal do Absoluto. De seu interior Deus brota até involuntariamente, sem que haja necessidade de qualquer preocupação especial. O homem é esse ser no silêncio por meio do qual pode atualizar-se para nós a presença de Deus.


Santo Agostinho, no comentário ao Evangelho de São João, afirma que "nossa alma tem necessidade de solidão. Na solidão, se a alma está atenta, Deus se deixa ver. A multidão é ruidosa; para ver a Deus é necessário o silêncio". Sobre esse assunto, os místicos escreveram suas mais belas páginas. Por exemplo, São João da Cruz: "Deus só escuta o amor silencioso ". Ângelo Silésio: "Se tu pensas em Deus, tu o ouves dentro de ti, na medida do teu silêncio".


Por tudo isso, o homem contemporâneo tem necessidade da escola do silêncio. Dela aprenderá o respeito à palavra, o descarte de conversas banais e irresponsáveis, da idolatria e da fascinação da palavra. O silêncio o levará a uma nova atitude em relação à realidade. De fato, o espírito de silêncio favorece o reconhecimento da finitude humana e anuncia o mistério. Quem deixa espaço ao silêncio em sua vida, automaticamente se reconhece criatura e ciente da necessidade (e saudade) da oração. "O silêncio constrói a vida de oração", diz Thomas Merton. A oração é um exercício de silêncio, diz Saint Exupéry.


O silêncio não prova, não argumenta, não demonstra, só testemunha, e por isso possui uma força insuspeita. O silêncio pode ser como um grito que chega até o céu.


O silêncio, finalmente, abre a dimensão da transcendência e do divino. " A figura de um homem amante do silêncio torna palpável o próprio Deus como presença de Cristo. O homem que escuta, põe atenção e aguça o ouvido e obedece, é o lugar onde se realiza esta transformação." 


Nunca como agora nosso mundo teve necessidade de tantos homens amantes do silêncio e talvez nunca como agora houve tão poucos! Aquele a quem agora lhe seja dado o dom da experiência do silêncio, pode estar agradecido, pode conservá-la bem e fazer com que ela seja fecunda.


 OS 12 DEGRAUS DO SILÊNCIO


Irmã Maria Amada de Jesus – Dorothee Quoniam)

A vida interior poderia consistir apenas nessa palavra: SILÊNCIO! O silêncio prepara a santidade, começa-a, continua-a e a aperfeiçoa. Deus, que é eterno, não diz mais que uma só palavra: o Verbo. De maneira semelhante seria desejável que todas as nossas palavras expressassem direta ou indiretamente essa única palavra: JESUS!

Esta palavra, “silêncio”, é belíssima! Podemos traduzi-la em doze graus:

1º – FALAR POUCO COM AS CRIATURAS E MUITO COM DEUS

É o primeiro passo, mas indispensável no caminho solitário do silêncio, para unir-se a Deus. É o silêncio em relação ao mundo, aos acontecimentos cotidianos.

2º – O SILÊNCIO NO TRABALHO E NOS MOVIMENTOS

Silêncio em nossas atitudes cotidianas e em todos os nossos sentidos, para percebermos mais claramente a voz de Deus. Afastar-se do ruído e tudo o que poderia distrair- nos. O Senhor nos chama ao deserto. Lá, ele falará ao nosso coração (Oséias).

3º – O SILÊNCIO DA IMAGINAÇÃO

Substituir as perturbações, tristezas, impressões, pela imagem do céu, do Senhor, da paixão de Cristo, das perfeições de Deus.

4º – O SILÊNCIO DA MEMÓRIA

Deixar de lado o passado e preencher a memória com a lembrança da misericórdia de Deus.

5º – O SILÊNCIO EM RELAÇÃO ÀS CRIATURAS

Saber retirar-se e ficar a sós com Deus, para conhecer seus segredos e a felicidade futura que nos espera. Deus nos infundirá um amargo desgosto pelo pecado e tudo o que possa nos separar dele.

6 – O SILÊNCIO DO CORAÇÃO.

Se se fizer silêncio em todos os aspectos que já vimos, ou seja, da língua, dos sentidos, da imaginação, da memória, nós saberemos criar a solidão, se não ao nosso redor, pelo menos no coração. Silenciar, no coração, tudo o que vem simbolicamente dele: os afetos, antipatias, desejos muito ardentes, dos ciúmes, do fervor exagerado, dos suspiros, enfim, em tudo o que for exagerado.

Um coração em silêncio é um coração puro, uma melodia para o coração de Deus. A lamparina se consome sem ruído diante do sacrário e o incenso sobe em silêncio até o trono do salvador. Eis o silêncio do amor!

7º – O SILÊNCIO DA PRÓPRIA NATUREZA E DO AMOR PRÓPRIO

É o silêncio tanto diante do elogio como diante do desprezo, calunias, murmurações que se fazem a nosso respeito, assim como nas alegrias e nos prazeres, nos trabalhos, no frio, no calor, na saúde, na enfermidade. É o silêncio do “eu” humano que passa ao querer divino.

8º – SILÊNCIO DA MENTE

Fazer calar os pensamentos inúteis, os pensamentos naturalmente agradáveis, pois são esses que prejudicam o silêncio da mente.

9º – SILÊNCIO DO JUÍZO: NUNCA JULGAR!

10º SILÊNCIO DA VONTADE

Seguir em tudo a vontade de Deus, sem nunca perguntar: “Por quê?” Ou “Até quando?” É o silêncio do abandono. O divino silêncio de Jesus em sua agonia.

11º – SILÊNCIO CONSIGO MESMO

Esquecer-se, fugir de si mesmo. É o silêncio do nada. É mais heróico que o silêncio da morte.

12º – SILÊNCIO COM DEUS

É aderir-se a Deus, apresentar-se, expor-se diante dele, oferecer-se a Ele, adorá-lo, amá-lo, escutá-lo, ouvi-lo, repousar nele. É o silêncio da eternidade, da união da alma com Deus.


- PENSAMENTO SOBRE O SILÊNCIO (GANDHI)

 ( M.K.GHANDI)

1 – Quem está frente a frente com Deus, não fala; não conseguiria fazê-lo!

2 – O ruído não pode afastar o ruído. Só o silêncio pode fazer isso.

3 – O silêncio inspirado pelo medo não é verdadeiro silêncio.

4 – O homem empobrece as coisas muito mais com suas palavras que com seu silêncio.

5 – um sábio afirmou que só no silêncio nos preparamos à realização pessoal. E nossa vida futura estará conectada à nossa realidade profunda.

6 – Quanto tiveres dúvida se é melhor falar ou calar, escolhe o silêncio.

7 – O silêncio dilata o espaço de tempo de nossa vida.

8 – Se deixássemos de falar coisas inúteis e falássemos coisas úteis, usando um mínimo de palavras, economizaríamos muito tempo para nós mesmos e para os demais.

9 – Quantas coisas se podem fazer com o silêncio! Todos os dias tenho novas provas disso!

10 – Quando as conversações inúteis se convertem num costume, devemos libertar-nos dele, fechando decididamente nossa boca ou, se necessário, costurando nossos lábios.

11 – Até a menor palavra inútil ofende a verdade. Por esse motivo, é mais fácil praticar a verdade, se se guardar o silêncio.

12 – Descubro, cada dia mais, a importância do silêncio. O silêncio é é necessário para todos, mas para os que têm de trabalhar é mais valioso do que o ouro.

13 – Quanto mais avanço em minha vida, tanto mais me dou conta de que a maior conversação é o silêncio. Se for necessário falar, convêm fazê-lo brevemente e não usar duas palavras onde basta uma.

14 – os que têm um grande autocontrole, ou estão totalmente absortos em seu trabalho, falam pouco. Falar e trabalhar não combinam bem. Observa a natureza: ela trabalha continuamente, mas em silêncio.

15 – A observância do silêncio é sinal autêntico de quem prometeu sempre falar a verdade. Entretanto, a gente percebe que muitos dos que dizem que buscam a verdade falam demasiadamente. É necessário que procurem superar esse feio costume.

 

 SILÊNCIO E SOLIDÃO - THOMAS MERTON.

I – A chuva pára e um pássaro canta.

II- Deus, nosso Criador e Senhor, deu-nos uma linguagem para falar e ouvir. A linguagem é a chave que revela a odos o céu, mas quando a palavra nos avisa que o noivo vem, em seguida nos convida a nos comunicar com Ele, na solidão, sem pensamentos discursivos, no silêncio de todo o nosso ser. Quem não estiver disposto a abandonar suas ideias e suas palavras, não pode seguir adiante.

III- Não deseje ser acariciado e consolado por Deus: deseje, sobretudo, amá-lo. Da mesma forma, não deseje ansiosamente que os demais sintam consolação em Deus, mas sim, que os ajude a amar a Deus.

Não busque consolação ao falar de Deus, mas que Ele seja glorificado. Se você ama a Deus de verdade, nada pode consolar você mais do que a glória dele. Agindo assim, você será humilde o bastante para receber consolações de sua mão, pois desse modo, Ele estará se glorificando em nossa alma.

Muitas vezes o nosso silêncio e nossas orações levam mais as pessoas a conhecerem a Deus que todas as palavras que possamos dizer sobre Ele. O silêncio lhe dá glória.

IV – Se você vai à solidão com uma língua silenciosa, o silêncio dos seres mudos dividirá com você seu sossego. Entretanto, se você for à solidão com um coração silencioso, o silêncio da criação falará mais forte que as línguas dos homens e as dos anjos.

V- O silêncio da língua e da fantasia nos põe em contato com a paz das coisas que existem só por Deus e não por si mesmas, mas o silêncio de todos os desejos desordenados nos põe em contato com Deus. Aí, conseguiremos viver nele somente, Ele que nos fala com um silêncio muito mais profundo.

VI – Os que amam o barulho e a futilidade vivem cobrindo, com o seu barulho, o silêncio das selvas, das montanhas e do mar, por medo que um mundo tranquilo possa acusá-los de sua futilidade. Agem nervosamente, com o pretexto de agirem com alguma finalidade. Assim também acontece com o avião: ao passar, parece que nega a realidade das nuvens e do céu, com sua prepotência. Depois que ele passa, volta o silêncio e a tranquilidade. É o silêncio do mundo que é real. Nossos ruídos, nossos negócios nossas finalidades e todas as vãs afirmações relativas a eles, tudo isso é ilusório. Apesar de todos os ruídos externos, a árvore produz os seus frutos em silêncio.

VII – É muito difícil que um homem que só vê a natureza quando esta vai lhe proporcionar um lucro financeiro (como derrubar uma árvore para vender a madeira, ou matar um boi para um churrasco), é muito difícil que conheça o silêncio do amor e, portanto, o silêncio de Deus, que é a caridade, e que não destrói tudo o que ama, que dá vida a todos aos que atrai a esse seu silêncio.

VIII – O silêncio não existe em nossa vida só por si, mas está destinado a alguma outra coisa. O silêncio gera a palavra. Falamos para confessar a Cristo e permanecemos em silêncio para meditar sobre ele e entrar mais profundamente em seu silêncio, que é ao mesmo tempo o silêncio da morte e da vida eterna – o silêncio da noite de Sexta Feira Santa e a paz da manhã da Ressurreição.

IX – Recebemos no coração o silêncio de Cristo quando proferimos pela primeira vez de coração a palavra da fé. Trabalhamos nossa salvação no silêncio e na esperança. O silêncio é a força de nossa vida interior. O silêncio entra misteriosamente na composição de todas as virtudes e, inclusive, preserva nossa vida inteira da corrupção.

O silêncio da virtude é a caridade, que deve dar a cada virtude uma vida sobrenatural, e que é silenciosa, porque está arraigada em Deus. Sem esse silêncio, nossas virtudes são só sons, barulho exterior, manifestação que resulta em nada o que as virtudes manifestam é sua caridade interior, que tem um silêncio seu especial. E neste silêncio se esconde uma pessoa: Cristo, o mesmo escondido, assim como é proferido, no silêncio do Pai.

X – Se preenchermos a vida com o silêncio, viveremos de esperança e Cristo vive em nós e dá consistência à nossas virtudes. O silêncio é a base sólida onde está arraigada nossa confissão pública de fé, convertendo, também aos que ouvem ao silêncio de Cristo, onde descobrem a si próprios, o seu verdadeiro ser.

As palavras inúteis que falamos nos impedem de ouvir coisa alguma na profundidade de nosso coração, onde Cristo vive e fala em silêncio. E, o pior, falamos tudo o que não deveríamos falar e, quando precisamos declarar quem e o que somos, estaremos sem palavras, mostrando que não seremos nada, nunca.

XI – Tem que haver um momento do dia em que esquecemos tudo o que somos, o que sabemos, e nos coloquemos a rezar como se fosse a primeira vez da vida.

XII – No silêncio aprendemos a distinguir as coisas. Quem ama a Deus, também ama o silêncio, porque teme perder seu sentido de discernimento. Evita o ruído, que faz com que não se distinga a realidade da fantasia, confundindo pelo movimento todas as coisas num amontoado indefinível e indistinguível.

XIII – O silêncio que não ouve, não acende, mas apaga a chama de amor que brota da oração.

XIV – A vida não é um ininterrupto fluir de palavras que a morte interromperá. Ela é entremeada de silêncio. Muitos resistem ao fecundo silêncio do seu ser com ruídos contínuos dos pensamentos sem sentido, dos carros, do trânsito, das rádios... Confundem sua vida como ruído, para fugir da morte. Não sabem que os seus corações têm raízes num silêncio que não é morte, mas vida!

XVI – Se a morte for par nós como uma estrangeira indesejada, quer dizer que Cristo também é isso para nós, pois com a morte Cristo também vem, para trazer-nos a vida eterna que adquiriu para nós com sua própria morte. Por isso os que amam a vida eterna pensam sempre na própria morte. Sua vida está preenchida por um silêncio que é uma antecipada vitória sobre a morte. É no silêncio que a morte se torna nossa serva e até mesmo nossa amiga. Os pensamentos e orações que surjam do silencioso pensamento da morte são como árvores que crescem próximo à água. São pensamentos fortes que vencem o medo da desgraça porque derrotaram a paixão e o desejo.

XVII – Os santos são os que quiseram ser os mais pobres na vida e que, mais do que quaisquer outros, exultaram na suprema pobreza da morte.


O SILÊNCIO - Romano Guardini.

A vida do homem se desenvolve entre o silêncio e a palavra; entre o calar e o falar. Na palavra, a unidade de matéria e espírito, que se chama homem, alcança sua máxima perfeição, pois esta é a expressão material de algo espiritual que estava escondido, que é o pensamento. Aí se forma, no encontro com o outro, o diálogo. Só o homem tem essa faculdade.

Quanto ao silêncio, deixar simplesmente de falar, até as pedras o fazem. Silêncio é quando o homem, depois de falar, volta-se a si mesmo e se cala, ou também quando, podendo falar, permanece calado. Só pode calar-se quem também pode falar. Porém, ser dono do próprio silêncio é uma virtude. Quem não sabe calar-se é como quem quer só espirar e nunca expirar. A humanidade de quem nunca se cala, dissolve-se.

Falar é mostrar ao outro o que tenho lá dentro, no mais íntimo de mim mesmo. Quando há reciprocidade na comunicação, quando pergunta e resposta, afirmação e objeção avançam em clareza e profundidade, isto quer dizer que eles se comunicaram com a verdade: um maravilhoso modo de estar juntos.

Há horas em que a verdade contemplada interiormente não precisa de nada mais. Sentarmo-nos nos bancos de uma igreja silenciosa, por exemplo, e contemplarmos as colunas, as imagens, em silêncio, isso produz algo em nosso interior que dificilmente seriamos capazes de expressarmos com totalidade.

Falando, o homem entra na história. A palavra, causa e efeito, entra em ação e se solidifica num sentido preciso. Só no silêncio se realiza o conhecimento autêntico. Conhecimento não é simplesmente notícia, informação, embora esta seja boa e indispensável. Uma pessoa doente, por exemplo, só pode ser ajudada se comunica a outro sua doença.

Só no silêncio eu chego diante de Deus. O princípio de toda a vida religiosa consiste em saber que Deus existe. Deus é mais real do que eu. A realidade íntima – Deus e eu – não se chega a ela falando, mas somente se calando. Quando nos recolhemos, o espaço interior se abre e a divina presença pode anunciar-se. Esse silêncio precisa ser aprendido. É preciso um esforço tremendo para nos defendermos contra a onda de ruídos que envolve o mundo.

O alvoroço interior, o caos dos pensamentos, a variedade dos desejos, as inquietudes, as angústias do espírito, o peso das depressões, o muro das torpezas e todas as demais coisas que se amontoam em nosso mundo íntimo, são como detritos sobre um manancial que o impedem de correr livremente.

Para aprender a calar-nos, temos que ter a boca fechada todas as vezes em que o requer a confiança dos outros, o dever profissional, o tato, o respeito à vida do próximo.

Permanecer calado quando se poderia falar, é um magnífico exercício para adquirir domínio sobre a mania de falar. Quantas coisas supérfluas ou bobas decidimos durante o dia! O silêncio é formoso, não é um vazio, mas vida genuína e plena.

Temos que aprender o silêncio interior. O nosso mundo interior é imenso e pode cada vez mais ser aprofundado. Com o silêncio, aprendemos a ser homens. Quando aprendemos a calar e a falar quando devemos, revela-se em nós a imagem de Deus.

Em 1ªReis 19,11-12, a imagem que significa a vinda de Deus é a de uma paz infinita, de um silêncio que abrange tudo: Deus estava na brisa suave. O silêncio, de tácita simplicidade, do trecho de Elias e o nascimento falante e da comunicação do amor, do prólogo de São João, circunscrevem o mistério da vida de Deus e de sua santa soberania.


A NECESSIDADE E A FORÇA DO SILÊNCIO

 

(Dietrich Bonhöeffer)

 A característica da solidão é o silêncio, como a palavra é a característica da comunicação. Entre silêncio e palavra há o mesmo vínculo interior e a mesma distinção que há entre solidão e comunicação. Uma não pode existir sem a outra. A palavra justa nasce do silêncio, e o justo silêncio, nasce da palavra.

Calar não significa ficar mudo. Falar não significa simplesmente fazer ouvir palavras. O ficar mudo não cria a solidão e o falar por falar não cria a comunicação. Nós nos calamos após ouvir a Palavra, porque esta se segue falando, vive e permanece em nós. No silêncio da manhãzinha e no noturno, Deus tem a primeira e a última palavra do dia. Calar, enfim, é aguardar a palavra de Deus e caminhar, após ouvi-la, com a sua bênção. Aprender a calar nesta época em que o predomínio é falar.

Saber calar-se para ouvir a Palavra permite que nos calemos, e usemos corretamente o silêncio e as palavras em nossa jornada. O silêncio do cristão é um silêncio orientado a ouvir a Palavra, e que pode ser quebrado a qualquer momento. É um silêncio vinculado à Palavra. O silêncio esclarece, purifica, permite a concentração. Devemos saber ouvir e saber falar no momento oportuno!

Onde vivem muitas pessoas, deve haver um período comunitário de silêncio, se não houver um local para o silêncio individual. Encontramos o nosso próximo com um ânimo muito melhor depois de um período de silêncio.

Entretanto, o silêncio mal orientado ou obrigado pode ser um terrível deserto com toda solidão e todos os erros, como também pode ser um paraíso da auto ilusão; e não se sabe qual desses dois é pior.

Nada mais se espere do silêncio que um simples e puro encontro com a Palavra de Deus, em vista da qual se buscou o silêncio. O cristão deve aceitar esse encontro do modo que vier, sem impor condições, e o silêncio será amplamente recompensado.


O MEDO E A FASCINAÇÃO DO SILÊNCIO

 

Carlo Maria Martini

Se no princípio era a Palavra, e pela Palavra de Deus, chegada até nós, começou a realizar-se nossa redenção, de nossa parte deve haver o silêncio, para ouvir essa Palavra. O silêncio que escuta, acolhe, que se deixa avivar. É claro que, em seguida, usaremos nossa palavra para agradecer, adorar, suplicar; mas em primeiro lugar, o silêncio.

Podemos dizer que a capacidade de viver um pouco de silêncio interior conota o verdadeiro crente e o separa do mundo da incredulidade. Quem não aceita ou não acredita em Deus, afasta de seu pensamento o Deus vivo, que cobre todo espaço, não suporta o silêncio. Para ele, o silêncio é a marca aterradora do vazio. Qualquer ruído, por mais que seja tormentoso e obsessivo, lhe parece agradável. Quando as vozes se calam, ele se vê frente a frente com o horror do nada. O ruído, conversa mole, qualquer barulho é bem recebido por eles, para distrair da mente do conhecimento arrepiante do universo deserto.

O homem “novo” (de olhos da fé penetrantes, que vê além do aparente e tem um coração capaz de amar o Invisível), sabe que o vazio não existe, que o nada é vencido pela divina Infinitude, que o universo está povoado de criaturas alegres, que o expectador já goza, de certo modo, da exultação cósmica, refletida pelo mistério de luz, de felicidade que substancia a vida inesgotável do Deus Trino.

Por isso o homem novo, como o Senhor Jesus, que ao alvorecer subia solitário para os montes (Mc 1,3; Lc 4,42; 6,12; 9,28) aspira ter para si um espaço imune a qualquer ruído alienante, onde seja possível aplicar o ouvido e perceber algo da festa eterna e da voz do Pai.

O homem velho (que tem medo do silêncio) e o homem novo convivem normalmente, em diferentes proporções, em cada um de nós. Somos agredidos exteriormente por avalanches de palavras, sons, clamores, que ensurdecem nosso dia e nossa noite. Todos estamos interiormente atingidos pela oratória excessivamente mundana, que com mil futilidades nos distraem e faz com que nos percamos.

O homem novo que há em nós tem, pois, de lutar para assegurar no céu sua alma, esse prodígio de “um silêncio durante meia hora” de que fala o Apocalipse 8,1. Que seja um silêncio verdadeiro, cumulado da Presença ressonante da Palavra, pronto para escutar, aberto à comunicação.



A SOLIDÃO E O SILÊNCIO- Jean Guilton

– De Jean Guilton para a Marquesa de Voguë.

 

A solidão não é isolamento; ao meditar sobre esta primeira diferença, quero buscar sua definição. O que se isola sofre por estar desligado das relações que o faziam viver. Afasta-se com uma feroz altivez; está ferido; busca um cantinho para sofrer e morrer ali sem falar, Não seria necessária a ideia de buscar o isolamento. O isolamento nos afasta dos demais, nos faz altivos, duros, às vezes ferozes.

O isolamento nos fecha em nós mesmos. E, em nós mesmos, encontramos a dança de nossos pensamentos fixos, as associações extravagantes, as mágoas, os remorsos inevitáveis e a imagem de um futuro sem saída que se conclui com a morte. O homem que se isola é esse que os existencialistas descrevem, quando fazem o retrato da angústia e quando analisam o que chamam de masoquismo, quer dizer, o desprezo de si mesmo, a arte de fazer sofrer a si mesmo para gozar, inclusive de si mesmo, num prazer triste.

O isolamento conduz a uma classe de crueldade, como tudo o que nos encerra no “eu” que nos atormenta e que nós atormentamos.

Tudo isso não se dá na solidão. A solidão nos une e nos unifica, fazendo cessar o rumor interior, produto de um falso amor de nós mesmos. A solidão nos aproxima dos que amamos, formando em nosso coração a comunidade dos verdadeiros amigos. Na verdade, os que se conheceram no meio do tumulto, do barulho, separam-se após um dia que seja de solidão. Na solidão total um mosteiro invisível se eleva, construído com as pedras do silêncio.

O silêncio nos introduz diretamente no coração dos outros, ao passo que a palavra nos obriga a realizar longas e sinuosas voltas periféricas. O silêncio nos reconduz ao ponto mais íntimo de nós mesmos, ali onde a eternidade nos toca e nos vivifica, ali onde a verdade sussurra sem palavras. Em outras palavras: o silêncio deve sempre nos preparar para a palavra, e nunca ser um isolamento egoísta.



 O SILÊNCIO COMO HUMILDADE

(Remo Bessero Belti)

Silêncio para ouvir, silêncio para falar, mas, sobretudo, silêncio para calar-se. O silêncio em que não falo de mim mesmo é o silêncio como humildade. É talvez o mais difícil, mas também o mais formoso e verdadeiro.

Calar-se (não falar) de si mesmo significa dominar o próprio egoísmo, ter vitória sobre si mesmo.

Egoísmo + sentimento = sensualidade

Egoísmo + inteligência = soberba

Egoísmo + vontade = amor próprio

É muito difícil não falar nunca de si mesmo, de nenhum modo. Para não falar de si mesmo, é preciso primeiro saber calar de si mesmo dentro de si. Até quando se fala aos outros que se é pecador, pode aí haver egoísmo. O único espaço espiritual em que o homem precisa falar de si mesmo é quando fala com Deus. Aí ele se reconhece pecador.


AGITAÇÃO X CONTEMPLAÇÃO


Redação - (Sexta-feira, 29/01/2016, Gaudium Press) - Após o pecado original e o consequente enfraquecimento da natureza humana, a inquietação do espírito pode derivar-se da desordem das paixões, fascinadas por algo que não é lícito. Mas, há outro fator: "o demônio, vosso adversário, anda ao redor, como um leão que ruge, buscando a quem devorar" (I Pe 5, 8). Inúmeras vezes, é ele quem provoca na alma estados de perturbação, aguçando ainda mais as más tendências. Como Lúcifer e seus sequazes não cumpriram a finalidade para a qual foram criados, por se terem revoltado contra Deus, buscam a todo custo a mesma desgraça para os homens com o intuito de privá-los das alegrias da eterna contemplação.

São Francisco de Sales qualifica o frenesi como o maior mal que pode sobrevir à alma, depois do pecado:

Porque assim como as perturbações e sedições interiores de uma república a arruínam por completo e a embaraçam a ponto de que não possa resistir ao estrangeiro, assim o nosso coração, estando perturbado e inquieto em si mesmo perde a força de conservar as virtudes que tinha adquirido e ao mesmo tempo o meio de resistir às tentações do inimigo. [1]Com efeito, o demônio procura exacerbar essa debilidade, utilizando-se da agitação constante, especialmente propagada com a Revolução Industrial.

Revolução Industrial: a embriaguez da agitação

É inegável que o desenvolvimento da tecnologia e da ciência geram inúmeros benefícios e facilidades para a sociedade contemporânea. Com efeito, seria um absurdo se, ainda nos dias atuais, as cirurgias fossem realizadas sem o uso de anestésicos, se para o envio de uma carta fossem utilizados os famosos "pombos-correios" ou, para deslocar-se de um país para outro, não houvesse outro meio senão empreender uma longa viagem marítima ou a cavalo.

Entretanto, muitas vezes, pelo mau uso de tais tecnologias e máquinas, surgem problemas bastante complexos, cuja existência talvez nem seria cogitada em épocas anteriores. Um efeito devastador desse mau uso foi o fato de esse espírito prático, fortemente tendente à velocidade, à agitação e, consequentemente, ao esquecimento do sobrenatural, ter penetrado na alma humana e afetado todo o seu modo de ser.

A máquina - a "alma" de quase toda técnica - tende a sujeitar inteiramente a seu ritmo mecânico todo o trabalho humano. E mais do que o trabalho as diversões, a vida de família, toda a existência. Em todos os domínios, o homem vai se utilizando cada vez mais largamente da máquina, e aceitando adaptar-se a ela, para fruir as vantagens que ela proporciona. Nestas condições, a influência da máquina tende a penetrar nas esferas mais delicadas e mais altas da vida humana, isto é, tende a criar um estilo de vida, um modo de conceber os problemas e de os resolver, uma mentalidade enfim, inteiramente mecanizada. Homens estandardizados, com ideias e gostos padronizados, imersos num estado de espírito de um tédio sombrio, displicente, pesado, cheio de fadiga, interrompido apenas pelas excitações delirantes do cinema, da televisão, do rádio, ou das "torcidas" esportivas.[2]

Até o século XIX, podia-se afirmar que a maior parte das pessoas ainda levava uma vida muito estável, penetrada, em muitos aspectos, pelos costumes tradicionais e carregados de simbolismo das civilizações anteriores. Contudo, o surgimento das indústrias e a realização de tantos avanços científicos e tecnológicos contribuiu decisivamente para que se operasse uma mudança radical nas mentalidades e no modo de viver de toda sociedade. O "progresso" e o "desenvolvimento", tão difundidos desde o final do século XVIII, prometiam uma era de paz e segurança, na qual o homem seria o rei absoluto de si mesmo e de suas ações.

Essa brusca transformação da cultura e dos ambientes causada pela Revolução Industrial exerceu uma profunda ação sobre as tendências humanas, pois "os ambientes [o mesmo pode ser aplicado à cultura], na medida em que favorecem os costumes bons e maus, podem opor à Revolução as admiráveis barreiras de reação; ou [...] podem comunicar às almas as toxinas e as energias tremendas do espírito revolucionário", [3] que incentivam a revolta das paixões.

Com as tendências amortecidas, torna-se mais fácil ao homem a aderência aos fatos que se concretizam depois. Por isso, ao longo do processo de industrialização, rapidamente se consolidou e difundiu o mito de que o homem, por si só, era capaz de produzir coisas extraordinárias e numerosas, independentes de Deus. O otimismo contaminou de tal maneira os espíritos que despertou neles uma crescente apetência de fruição e um verdadeiro horror ao recolhimento e ao sacrifício.

Pode-se acrescentar ainda a ação do demônio que, aproveitando-se deste estado de espírito reinante, começou a propagar a ideia de que a máquina e a velocidade podem proporcionar ao ser humano a plenitude do gozo, dando a entender que "a excitação era a única forma de gozar a vida".[4]

O desejo da novidade passou a ser, então, o dogma da sociedade contemporânea, levando o homem a se cansar rapidamente das coisas, querendo continuamente substituí-las por outras, o que o tornou incapaz da estabilidade e, portanto, do estado espírito exigido pela contemplação. Esta, junto com muitas outras práticas da Religião, foi sendo cada vez mais relegada a um segundo plano, até se dissociar completamente da vida cotidiana:

No fundo, tratava-se de um laicismo que não consistia apenas em silenciar os temas referentes a Deus e ao mundo sobrenatural, mas em apresentar uma visão das atividades do homem diante da qual a Religião era considerada uma coisa com la quale o senza la quale il mondo va tale e quale[com a qual ou sem a qual o mundo continua tal e qual].[5]

Quebrava-se assim, de forma mais ou menos explícita, a necessidade da relação que deve existir entre as criaturas contingentes e o Criador, resultando no mundo pragmático e materialista de nossos dias.


De fato, aquilo que satanás promete, é exatamente o que vai tirar: as promessas de paz e segurança. Basta frequentar qualquer um dos grandes centros urbanos do mundo contemporâneo: em vez de paz, encontra-se agitação; em vez de realização, frustração e infelicidade quase irreversíveis. A alma que voluntariamente se entrega a este estado de espírito se expõe a receber constantes influências malignas.

[...] há um barulho, um ruído ensurdecedor no mundo que seduz as pessoas e estas, em tais condições, não escutam a suave voz do Divino Mestre. Esse barulho, embora possa ser tomado no sentido material da palavra, antes de tudo significa o tumulto das paixões humanas desordenadas que nos levam a agir e a nos movimentarmos de maneira igualmente desordenada. Donde uma espécie de perturbação difusa nas grandes cidades, uma agitação da vida moderna e seus acontecimentos, que embriagam e fascinam imensa parcela dos habitantes dos maiores centros urbanos. Ora, enquanto houver numa alma esse deleite com o tumultuar do século, algo da delicada voz de Nosso Senhor Jesus Cristo não chegará até ela. Nesta sua lamentável surdez irão esbarrar e se deter as inspirações da graça. [6]

Como diz a Sagrada Escritura: "Non in commotione Dominus" (Vulgata: III Rs 19, 11) - "O Senhor não está na agitação"- e nem pode ser causa dela.

Por Ir. Ariane Heringer Tavares, EP

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[1] SÃO FRANCISCO DE SALES. Introdução à vida devota. 5.ed. Porto: Porto Médico, 1948, p.270.

[2] CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Vida mecânica, vida natural. In: Catolicismo. São Paulo, n. 55, jul. 1955, [s. p.].

[3] Id. Revolução e Contra-Revolução. 5. ed. São Paulo: Retornarei, 2002, p.85.

[4] CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Notas Autobiográficas. São Paulo: Retornarei, 2010, v.II, p.103.

[5] Ibid. p.107.

[6] CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. O partido de Jesus e o do mundo. In: Dr. Plinio. São Paulo: ano XI, n. 118. jan. 2008, p. 12.

Conteúdo publicado emgaudiumpress.org, no linkhttp://www.gaudiumpress.org/content/76289#ixzz440XUzYmW



 A GLÓRIA DO SILÊNCIO


DO IRMÃO INÁCIO:


“Assim vive em um presente que não tem um amanhã. Deus fala no silêncio e por isso o solitário cala. A tarefa primordial é deixar-se formar, trabalhar, e estruturar pelo silêncio, que dá a capacidade de bem viver e bem morrer...”- (Monge desconhecido).

No silêncio reza melhor. Enche-se de amor e vive o equilíbrio das emoções. Na glória do silêncio a vida encontra a verdadeira felicidade. A paz, a serenidade, a alegria, o equilíbrio emocional, a incomensurável energia do realizável,  a comunhão da irmandade, o respeito pela dignidade da pessoa humana, força e poder para suportar as tormentas, coragem diante das incompatibilidades, caridade e justiça para o bem comum. O silêncio tem como fundamento a maravilhosa graça de Cristo, o amor eterno de Deus e a profunda comunhão do Espírito Santo.

Toda espiritualidade do silêncio, a experiência do deserto, a teologia ascética e mística têm nesse tripé a sua ortodoxia. Daí a vida cristã caminha na fé, no amor e na esperança. É nesse contexto que a alma busca Deus com toda fome e sede. O desejo ardente pelas coisas espirituais e a abissalidade contemplativa se guia pela docilidade do silêncio. O silêncio é arte pedagógica da alma para Deus. O monge e o eremita têm muito a nos ensinar. Precisamos demais aprender com a riqueza do patrimônio sapiencial do monasticismo e eremítico. É a falta dessa colossal sabedoria que a nossa sociedade vive numa catástrofe. Cada dia que passa o conhecimento desse patrimônio fica mais distante das mentes e dos corações.

No entanto, resta tão somente viver essa sabedoria divina no testemunho de vida, nos escritos e no silêncio. A Santíssima Trindade tem chamado monges e eremitas num mundo tomado de guerras, conflitos, terrorismos, vícios, luxúrias e agressão à natureza. Esses ascetas, místicos e contemplativos são verdadeiras luzes nesse mundo de tantas trevas e de profundo abismo. Esses homens e mulheres são os embriagados de Deus, ou seja, mergulham no silêncio e na radical busca de intimidade com a Trindade Santíssima. Só há uma razão de viver, unicamente para Deus. Por muitos que não vivem para Deus e  sua vontade, eles vivem muito para Deus e sua vontade, realizando a caridade da intercessão  para o bem de todos. Pelo exemplo de vida: sem ostentação, sem consumismo, sem espetacularização e sem escravidão pelas coisas materiais, eles causam impacto e desperta consciência em prol de algo melhor, maior e eterno. A sua contribuição para sociedade é de sustentabilidade em todos os níveis, principalmente espirituais e emocionais.

A glória do silêncio é a glorificação, o louvor e a nossa adoração a Santíssima Trindade que cantamos  muito mais com a alma do que com a boca.

“A minha vida aqui não é a de um missionário, mas a de um eremita” escreveu o eremita do deserto do Saara Charles de Foucauld a Henry de Castries, 28 outubro de 1905 (1). A 2 de Julho de 1907, ele escreveu a Dom Guérin, destacando as palavras “Eu sou um monge, não um missionário, feito para o silêncio, para não falar” (2). Esta recusa em ser chamado missionário levou-o a querer desenvolver um apostolado da presença “silenciosa”, “incógnito”. Em correspondência, o Padre Charles acredita que esta presença é essencial, a fim de “gritar com a vida o Evangelho de Cristo”.

Inácio José do Vale

Fraternidade Sacerdotal Jesus Cáritas

Religioso da Fraternidade da Visitação de Charles de Foucauld


O DESEJO DE CONTEMPLAR A DEUS

SANTO ANSELMO 


Segunda leitura Da 6ª feira da 1ª semana do advento 

Do livro “Proslógion”, de Santo Anselmo, bispo 

(Cap. I: Opera omnia, Edit. Schmitt, Seccovii, 1938, 1,97-100) 

(Séc. XII) 


O desejo de contemplar a Deus 


Vamos, coragem, pobre homem! Foge um pouco de tuas ocupações. Esconde-te um instante do tumulto de teus pensamentos. Põe de parte os cuidados que te absorvem e livra-te das preocupações que te afligem. Dá um pouco de tempo a Deus e repousa nele.


Entra no íntimo de tua alma, afasta tudo de ti, exceto Deus ou o que possa ajudar-te a procurá-lo; fecha a porta e põe-te à sua procura. Agora fala, meu coração, abre-te e dize a Deus: Busco a vossa face; Senhor, é a vossa face que eu procuro (Sl 26,8).


E agora, Senhor meu Deus, ensinai a meu coração onde e como vos procurar, onde e como vos encontrar.


Senhor, se não estais aqui, se estais ausente, onde vos procurarei? E se estais em toda parte, por que não vos encontro presente? É certo que habitais numa luz inacessível, mas onde está essa luz inacessível e como chegarei a ela? Quem me conduzirá e nela me introduzirá, para que nela eu vos veja? E depois, com que sinais e sob que aspecto vos devo procurar? Nunca vos vi, Senhor meu Deus, não conheço a vossa face.


Que pode fazer, altíssimo Senhor, que pode fazer este exilado longe de vós? Que pode fazer este vosso servo, sedento do vosso amor, mas tão longe da vossa presença? Aspira ver-vos, mas vossa face se esconde inteiramente dele. Deseja aproximar-se de vós, mas vossa morada é inacessível. Aspira encontrar-vos, mas não sabe onde estais. Tenta procurar-vos, mas desconhece a vossa face.


Senhor, vós sois o meu Deus, o meu Senhor, e nunca vos vi. Vós me criastes e redimistes, destes-me todos os meus bens e ainda não vos conheço. Fui criado para vos ver e ainda não fiz aquilo para que fui criado. 


E vós, Senhor, até quando? Até quando, Senhor, nos esquecereis, até quando nos ocultareis a vossa face? Quando nos olhareis e nos ouvireis? Quando iluminareis os nossos olhos, e nos mostrareis a vossa face? Quando voltareis a nós?


Olhai-nos, Senhor, ouvi-nos, mostrai-vos a nós. Dai-nos novamente a vossa presença para sermos felizes, pois sem vós somos tão infelizes! Tende piedade dos rudes esforços que fazemos para alcançar-vos, nós que nada podemos sem vós.


Ensinai-me a vos procurar e mostrai-vos quando vos procuro; pois não posso procurar-vos se não me ensinais nem encontrar-vos se não vos mostrais. Que desejando eu vos procure, procurando vos deseje, amando vos encontre, e encontrando vos ame. 


OS PADRES DO DESERTO


“Num mundo que ameaça caminhar para a desertificação, a resposta poderá vir, mais uma vez, de onde menos se espera: do silêncio que fala por si (e por nós), dos que sabem estar sós. Vale, por isso, a pena escutar de novo as palavras do silêncio, para aprendermos a ouvir mais e a falar melhor”, escreve o frei franciscano Isidro Lamelas em seu livro: “Padres do Deserto – Palavras do silêncio”. 


No início do século IV, no Império Romano, o cristianismo passou de religião ilícita e perseguida para a condição de tolerada e, depois, de protegida e beneficiada. Para resistir à onda secularizante que invadira a Igreja imperial, os Padres do Deserto começaram por se retirar em locais desabitados e inóspitos, primeiro no Egito, depois, noutras partes, como a Palestina e a Síria. “Mais do que teóricos da espiritualidade, estes “pais espirituais” constituem um patrimônio de humanidade e uma reserva inesgotável da melhor espiritualidade, precisamente porque se deixaram incendiar pelo fogo regenerador do amor misericordioso de Deus”, salienta o Frei Isidro Lamelas. 


Os Padres do Deserto ensinam-nos a introduzir o silêncio dentro da palavra e a traduzir em poucas palavras esse enigma que nos habita e escapa. De muitos deles nem o nome ficou; são simplesmente nomeados como “Anciãos” ou “Pais”, porque nada quiseram ser nem ter, a não ser “filhos” e “irmãos” que partilham da mesma sede de Deus. 


Como os próprios nos ensinam, não é o deserto que faz o monge. Conforme dizia o pai Longuino: “quem não é capaz de viver corretamente com os homens, não será capaz de viver corretamente na solidão” (Longuino, 1). De nada valem o silêncio, o jejum ou as múltiplas formas de ascese e anacorese, sem a caridade verdadeira para com todos, especialmente para com os mais fracos. Por isso, Orígenes de Alexandria (cerca de 185-254), considerado um dos pioneiros da espiritualidade e experiência monástica advertia que “devemos abandonar o mundo não tanto localmente, mas mentalmente”. 


Os Padres do Deserto são eremitas embriagados na radicalidade no amor do Eterno e Todo-Poderoso. Ébrias de Deus”, como lhes chamou São Macário, um deles, no século IV. 


Se algo de novo encontramos nestes insaciáveis buscadores de Deus é a vigilante autenticidade e paixão com que abraçam o Evangelho de Jesus Cristo. De facto, o cristianismo é, para os Pais e Mães do deserto, um fogo novo aceso por Cristo que, como ensina Sinclética, “devemos acender em nós mesmos, com lágrimas e esforço”. 


Charles de Foucauld 


“Charles de Foucauld, o homem silencioso do Saara, homem de adoração e de oração, que se fez “irmão universal”, sempre acolhedor para com todos, se propunha a “gritar o Evangelho sobre os telhados com toda a minha vida”. Esse foi o caminho aberto pelo “missionário isolado”, cujo exemplo inspirou e continua inspirando inúmeros pastores e fiéis”, afirma o padre francês Bernard Ardura, postulador da causa de canonização do Bem-aventurado Charles de Foucauld e presidente do Pontifício Comitê de Ciências Históricas. 


Escreveu o eremita do deserto do Saara Charles de Foucauld: “Viver na pobreza, na abjeção, no sofrimento, na solidão, no abandono para estar na vida com o meu Mestre, o meu Irmão, o meu Esposo, o meu Deus, que viveu assim toda a sua vida e me dá esse exemplo desde o nascimento”. 


Para meditação 


“O monge é aquele que está separado de todos e unido a todos. É monge aquele que se considera um com todos, pois tem o hábito de se ver em todos” (Evágrio, Pequena Filocalia, 124-125). 


O pai Isaías disse: “Ama calar mais que falar, pois o silêncio entesoura ao passo que o falar desperdiça” (Guy IV, 18; SC 387, 194). 


Viver abissalmente a espiritualidade na pós-modernidade, só na configuração da mística do deserto, no amor radical ao bom Deus! 


Frei Inácio José do Vale, FCF 

Sociólogo em Ciência da Religião 

Fraternidade Sacerdotal Jesus Cáritas 

Bem-aventurado Charles de Foucauld 


Fonte: 

https://www.snpcultura.org/padres_do_deserto_palavras_do_silencio.html