MIGRAÇÃO

Migração e políticas públicas: um olhar profético

Tomo emprestado o olhar dos profetas do Antigo Testamento e o olhar do profeta itinerante de Nazaré para ler o Livro dos Atos dos Apóstolos, de um lado, e, de outro, para tentar acender algumas luzes sobre os rostos e as rotas dos migrantes apresentado nesta manhã. Luzes que no decorrer dos debates poderão transformar-se em elementos para pensar políticas públicas adequadas à realidade da mobilidade humana. De forma mais ou menos livre, pretendo fazer uma espécie de poema em cinco palavras – palavras que, para o vasto fenômeno migratório, representam conceitos relevantes.

1. Caminho

A primeira palavra é CAMINHO. O movimento profético no Antigo Testamento (doravante AT) nasce a partir do campo, do caminho e do exílio. Desenvolve-se num contexto de tensão entre os sacerdotes, como funcionários do templo, do palácio e da ordem estabelecida, e os profetas que se insurgem contra a opressão, as injustiças e a violação dos direitos humanos. A voz desses últimos vem de fora, da periferia, do deserto, das fronteiras. Mas vem sobretudo da memória do Deus que os libertou do Egito e os conduziu a uma terra prometida. Daí que, no pano de fundo de toda a profecia, se oculte um “lembra-te”.

Um “lembra-te” cuja origem está nos chamados livros da Lei, especialmente nas páginas do Deuteronômio: Lembra-te que foste escravo no Egito, e por isso não podes escravizar teu próprio irmão, e tampouco o estrangeiro que habita contigo na terra da promessa. “Por isso, quando estiveres ceifando a colheita em teu campo e esqueceres um feixe, não voltes para pegá-lo (...), quando vindimares a tua vinha, não voltes a rebuscá-la, não repasses os ramos. O resto será do estrangeiro, do órfão e da viúva” (Dt 24,17-19). A memória do Deus da vida, que é o Deus do caminho, peregrino com o povo na história, amplia para todos o horizonte de novas oportunidades, sem excluir outros povos e nações. Antes, são privilegiadas as categorias do “órfão, da viúva e do estrangeiro”, por serem as mais marginalizadas e vulneráveis. O Deus da tenda prevalece sobre o Deus estabelecido no templo.

No Evangelho, lê-se que Jesus “percorria cidades e aldeias”. Nelas, encontrava as multidões cansadas e abatidas, como ovelhas que não têm pastor”. E, diante dos pobres e excluídos, “suas entranhas estremeciam de compaixão” (Mt 9,35-38). Inspirando-se no Livro do Profeta Isaías, o profeta itinerante de Nazaré traça seu programa de “anunciar uma Boa Nova para os pobres” (Lc 4, 16-20). Deparamo-nos novamente com a tensão, marcada por vários atritos, entre o Mestre que, por um lado, “percorre” os caminhos onde o povo se encontra; e, por outro lado, os saduceus, escribas e sacerdotes, os quais, preocupados com o templo, não se detêm para socorrer o “caído” na parábola do Bom Samaritano (Lc 10,25-37).

O mesmo olhar iluminará a segunda obra de Lucas, o Livro dos Atos dos Apóstolos. Tanto que os cristãos das primeiras comunidades, nos séculos iniciais de nossa era, consideravam-se o povo do “caminho”. Peregrino como o fora o próprio Jesus pelas estradas da Galileia, da Judeia, até chegar a Jerusalém. Aqui também começa a desenvolver-se uma tensão entre cristãos e judeus: enquanto estes últimos têm como referência a sinagoga, aqueles criam uma rede capilar de núcleos comunitários ligados sobretudo à casa (oikos em grego), como se verá, por exemplo, na Primeira Carta de Pedro. Logo, com a conversão e as intensas viagens do apóstolo Paulo, o cristianismo cresce a partir das encruzilhadas da rota comercial. Encruzilhadas que, através do intercâmbio das mercadorias, engendram verdadeiros núcleos urbanos: Éfeso, Corinto, Felipo, Galácia, Tessalônica – até chegar a Roma.

Vale acrescentar uma observação que veio à tona durante o debate. Lucas se propõe narrar não as palavras, nem os ensinamentos ou preceitos dos apóstolos, mas seus atos. E logo na abertura do livro remete o leitor à sua primeira obra, o Evangelho, onde diz ter “falado de tudo aquilo que Jesus fez e ensinou” (At 1,1). A atividade de ensinar pressupõe o fazer, da mesma forma que agora, os ensinamentos pressupõem os atos dos apóstolos.

Não é diferente com os rostos e rotas de migrantes que desfilaram diante de nossos olhas nesta manhã. Em seus relatos às vezes trágicos, sente-se igualmente a presença de Deus a caminho, em meio às turbulências e adversidades da travessia. Como ocorreu com o povo de Israel no AT, os migrantes vindos particularmente da Venezuela e do Haiti (mas aqui poderíamos incluir os exilados de todo o mundo) encontram-se na rua, na floresta, nas estradas. Outros enfrentam as areias do deserto, as águas do mar, a precariedade dos acampamentos. Todos conhecem na carne e na alma o que significa o exílio, a diáspora e a dispersão. Diante de tantas pessoas e famílias em movimento, conclui-se que, de tato, “não se trata apenas de migrantes” – como diz a mensagem do Papa Francisco – mas de traduzir a dimensão profética para o contexto e os desafios migratórios dos tempos atuais, em vista de uma nova sociedade.

2. Lamento

A segunda palavra é o LAMENTO. Iniciamos este Seminário com o canto de lamentação de nossos irmãos indígenas. Que é o lamento? Lamento reflete dor e sofrimento: dor de dente, de cabeça, de estômago, de coluna!... Mas reflete também a dor oculta e silenciosa da fome, da miséria e da pobreza. Tanto mais estridente quanto mais silenciosa e silenciada! Dor da falta de trabalho, de ter dois braços fortes para qualquer tipo de serviço e não poder colocar o pão na mesa da família, de condições precárias de alimentação, moradia, saúde, transporte, vestiário, segurança!... A solidão de que padecem tantos migrantes solitários, sem qualquer grupo de referência e de proteção!... Dor da violência, especialmente contra as crianças e as mulheres, que não raro obriga-as a esconder dos entes mais queridos os próprios hematomas e as lágrimas amargas, para não piorar as coisas!... Dor da exploração das pessoas mais frágeis e vulneráveis, dos direitos básicos violados, da dignidade humana pisoteada, do abandono forçado da terra onde sepultamos nossos ancestrais, da separação da família e de seus membros dispersos, da fragmentação e perda dos valores culturais, religiosos!... Dor de uma vida de andarilho, sem endereço físico e fixo, longe da pátria!...

Os profetas do AT tinham a missão de trazer à tona, à luz do dia, essa dor oculta e silenciada. Escancará-la diante do rei, da corte, do templo e do palácio. Eles mesmos encarnavam o sofrimento do povo, como vemos em Jeremias e Oseias. Daí a perseguição e às vezes o martírio dessas vozes solitárias. Emerge com força outro aspecto da profecia: a denúncia. Denúncia contra a opressão, as injustiças e o desrespeito ao direito, Exemplos disso são as duras palavras de Amós contra quem “vende o pobre por um par de sandálias” (Am 8,4-6) e o capítulo três de Miqueias, ao se levantar contra “os sacerdotes e dirigentes de Israel que ignoram o direito e a justiça” (Mq 3,1-2). Isaías e Amós, por sua vez, erguem a voz contra todo tipo de exploração, bem contra os ataques dos impérios vizinhos.

Nos Atos dos Apóstolos, dores e sofrimentos estão ligados à opressão do Império Romano. As perseguições contra os cristãos já começam a se fazerem sentir. Da mesma forma que o Livro do Apocalipse, de João, Lucas escreve para nutrir e sustentar a fé e a esperança dos cristãos em meio a um contexto adverso e hostil. Vale lembrar que, no ano 70 de nossa era, a cidade de Jerusalém sofreu uma derrota para o exército romano, com a destruição do templo. A violência se abate não só sobre o judaísmo, mas também sobre o cristianismo nascente. De outro lado, Lucas narra o sofrimento das viúvas, esquecidas à mesa, o que leva à eleição dos diáconos e da diakonia, enquanto serviço aos pequenos e indefesos.

As comunidades lembram que a caravana de Jesus jamais atropelava uma dor, um grito, um pedido de socorro. Diante do sofrimento, Mestre sempre se detêm para escutar, curar, confortar e levantar os “caídos”. Um bom exemplo é o da mulher que sofria de hemorragia e, em vão, havia gasto tudo com os médicos (Lc 8,46-56). “Alguém me tocou”, diz Jesus. Não, tem tanta gente que vai e vem, a confusão é geral. Os discípulos tentam dissuadi-lo. Mas Jesus insiste: “Alguém me tocou”! Alguém cuja vida está ameaçada a grita num silêncio desesperado. A sensibilidade e solidariedade do Mestre não se limitam apenas aos seus seguidores. Abrem-se para fora dos muros, de todos os muros.

Uma vez mais, “Não se trata apenas de migrantes”, mas de colocar a profecia a serviço de todas as dores, de todo sofrimento. A denúncia, tanto nas páginas da profecia do AT quanto na prática de Jesus e nos Atos dos Apóstolos, alerta para os projetos humanos que contrariam a vontade de Deus. E não raro pode levar ao martírio, como se verá diante dos animais ferozes nas arenas de Roma e nos dias de hoje para os defensores dos direitos humanos.

3. Parente

A terceira palavra é PARENTE. Estamos diante de um conceito extremamente rico, recorrente e significativo entre os povos indígenas. Conceito que, para os povos da floresta, equivale ao de “irmãos e irmãs” para o cristianismo e outros credos. Com efeito, parente é quem nasce do solo, mergulha as raízes no ventre da terra, cresce com e como as árvores, satisfaz a fome e a sede nos bens da floresta e das águas. Parente em referência às pessoas da mesma tribo, mas também em referência aos indígenas de outras tribos; parente da fauna e da flora, do planeta Terra, da “nossa casa comum”. Parentes são aqueles e aquelas que conhecem de perto o convívio com as riquezas que a criação e a natureza coloca à disposição da vida. Não só da vida humana, e sim da vida em todas as suas formas – da biodiversidade. De todas as pessoas que descobriram que o viver bem da cultura produtivista e consumista deve ser substituído pelo bem viver de uma cultura social e ecologicamente sustentável.

No AT em geral, e no movimento profético em particular, parentes são os representantes do povo que se deixa guiar por Javé. Diferentemente dos povos vizinhos, para Israel, o parentesco está ligado ao Deus criador e libertador, que tirou o povo da escravidão do Egito e o conduziu a uma terra “onde corre leite e mel”, como lemos no chamado credo histórico (Dt 26,5-10). Os profetas se levantam não tanto como figuras inovadoras, mas como mensageiros que relembram ao povo a natureza de um Deus peregrino, que caminha com ele pelo deserto, rumo à terra de Canaã. O Deus que não apenas “vê a aflição do povo escravo, ouve seu clamor e conhece seu sofrimento”, mas também “desce para libertá-lo e conduzi-lo” a uma terra livre e farta (Ex 3,7-10). Disso resulta a dimensão profética do anúncio e do messianismo. Anúncio do “Dia do Senhor”, como o dia de uma nova e definitiva libertação.

Nos Atos dos Apóstolos, particularmente a partir da ação apostólica de Paulo, parentes serão todos os povos e nações, sem distinção de raça, cultura ou sexo. Convém não esquecer que Paulo será o apóstolo das nações. “Não há mais judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher, porque todos são iguais em Cristo” (Gl 3,28). A fé no Ressuscitado quebra todas a barreiras e fronteiras: o conceito de parentesco ganha um horizonte aberto, plural e universal. Prova disso serão os dois retratos das primeiras comunidades cristãs, respectivamente nos capítulos 2 e 4 dos Atos dos Apóstolos. A proclamação da Boa Nova de Jesus une a todos na mesma fé, esperança e caridade.

Para nós cabe a pergunta: o que nos une como parentes neste Seminário sobre Migração e Políticas Públicas? O mundo da mobilidade humana, a causa dos migrantes, a defesa de seus direitos fundamentais, a dignidade humana de toda pessoa, grupo ou nação. Trata-se da tradução atualizada da “Jerusalém Celeste” do profeta Isaías (Is 65,17ss), retomada pelos “novos céus e nova terra”, no capítulo 21 do Livro do Apocalipse. A utopia do Reino, anunciada pelo próprio Jesus, depois difundida pelas primeiras comunidades cristãs, ganha hoje em dia nova roupagem. Trata-se da cidadania universal, dos direitos humanos, do desenvolvimento sustentável, do cuidado com as diversas formas de vida ou biodiversidade.

O olhar profético sobre a narrativa dos Atos dos Apóstolos ilumina o rosto e as rotas, os sonhos e lutas, o sofrimento e a esperança, “as alegrias e esperanças, as tristezas e angústias” (Gaudium et Spes) dos migrantes que se encontram em nosso regional e em nossas dioceses, em nossas paróquias e comunidades. E unifica o empenho e os esforços de todos os movimentos, pastorais, entidades, associações, organizações populares engajadas na mesma luta. A interpelação dos migrantes nos identifica e nos torna a todos verdadeiramente parentes. Parentes na análise do fenômeno migratório, parentes no confronto com a Palavra de Deus e parentes nas ações a serem desenvolvidas de forma “orgânica e de conjunto”.

4. Pátria

A quarta palavra é PÁTRIA. No AT, o conceito de pátria comporta duas dimensões essenciais: a posse da terra e “um povo tão numeroso como as estrelas do céu ou as areias da praia”, como vemos na vocação de Abraão, capítulo 15 do livro do Gênesis. Conceito ligado à emancipação quanto às garras do Faraó, de um lado, e à conquista da Terra Prometida, de outro. Mas, já de posse da terra, o povo se divide em dois reinos: Israel e Judá. Mais grave ainda, os irmãos passam a explorar os próprios irmãos. O povo cai nas mãos do império Assírio, depois Grego e por fim Romano. Boa parte dos israelitas são deportados para o exílio, vivendo em diáspora. Desse contexto nasce a ideia de reconquista da terra, da cidade de Jerusalém e do templo. Mas, através dos profetas mais recentes, renasce ainda mais forte o anúncio messiânico do reencontro de Israel. Deus há de enviar o Messias, filho de David, para restaurar Israel. E João Batista, ´últimos dos profetas do AT, se declarará seu precursor, “aquele que prepara os caminhos do Senhor”, como se lê no capítulo 3 do Evangelho de Mateus.

Para as primeiras comunidades cristãs dos Atos dos Apóstolos, Jesus de Nazaré, o crucificado, é o Messias anunciado. Ressuscitou de entre os mortos e está vivo entre nós: caminha conosco nos embates e combates da história. Esse anúncio separa os primeiros cristãos da trajetória do judaísmo. Maria, Pedro, Paulo, os demais apóstolos e o conjunto das comunidades não se cansarão de repetir: o Ressuscitado, após ter vencido a morte, virá novamente para instaurar o Reino de Deus. Pátria neste caso será a Boa Nova de Jesus Cristo. Dessa esperança, nasce a consciência de que todos somos peregrinos sobre a face da terra, num vaivém sempre inquieto e irrequieto, até retornar à casa de Deus, de onde saímos, e nela repousar, como pátria definitiva, de acordo com aquilo que dirá mais tarde Santo Agostinho.

Para o profeta itinerante de Nazaré, como a água na fonte, as coisas são ainda mais cristalinas e transparentes. Duas centralidades são inegociáveis em seus discursos e parábolas: no coração da mensagem de Jesus, encontra-se o Reino de Deus; no coração do Reino de Deus, encontram-se os pobres. Pequenos, marginalizados, indefesos, pecadores, leprosos, doentes, excluídos, crianças, mulheres sem voz, poderíamos acrescentar migrantes – eis os protagonistas da Boa Nova. “Eles vos precederão no Reino de meu Pai” (Mt 21,31). Mais ainda, nossa atitude frente aos pobres será o critério de salvação. Qual das duas sentenças prevalecerá: “era migrante e me acolheste” (Mt 25,35), ou era migrante e não me acolheste” (Mt 25,43)?

Neste Seminário nos deparamos com milhares de migrantes – uma multidão “sem raiz, sem pátria e sem destino”. O solo pátrio lhes foi negado. Puseram-se à estrada, com a “fé e a coragem”. Hoje sofrem uma “dupla ausência”, na expressão o nigeriano radicado na França Abdelmalek Sayad. Fora de casa, são chamados de estrangeiros; quando retornam, são tidos como estranhos. Onde está a pátria? Para trás ficaram a crise, as ruínas e o pesadelo; à frente estão a fé e a esperança. Aqui entra em cena a noção de J. B. Scalabrini, “pai e apóstolo dos migrantes”, segundo o qual “a pátria é a terra que nos dá o pão”. Ou ainda, “a migração amplia para nós o conceito de pátria”.

Voltamos à Exortação Apostólica Laudauto Si’, publicada pelo Papa Francisco, em 2015. O planeta Terra é “nossa casa comum”, vale dizer nossa pátria comum. Disso deriva a contínua responsabilidade de todos, e de cada um, pela elaboração de Políticas Públicas em vista do bem-estar de todos. Não somente políticas privadas ou corporativistas, mas sobretudo políticas que possam envolver o bem comum, na linguagem do ensino social da Igreja. Três coisas não podem faltar em tais esforços conjuntos de orientação sociopolítica: o uso correto dos bens que a natureza colocou à nossa disposição, a preocupação com as gerações futuras e a participação popular. Vale lembrar que a aliança de Deus com Noé (Gn 9, 12-15) não implica somente um pacto com os seres humanos, mas com “todos os seres que vivem sobre a face da terra” e com “todas as gerações vindouras”. Para além do serviço aos migrantes, está a salvação deles juntamente com todo o universo habitado. Por isso “não se trata só de migrantes”!...

5. Protagonismo

A quinta e última palavra é PROTAGONISMO. Os profetas do AT conheciam o protagonismo de Moisés e Aarão no processo de libertação do Egito. Sabiam também que os dois líderes não haviam agido isoladamente. Por trás deles, uma multidão organizada constituía o verdadeiro protagonismo desse evento fundante. Mas, entre os líderes e a multidão, o Espírito de Deus deixava suas digitais na História da Salvação.

Jesus de Nazaré, por seu lado, reúne um grupo de doze e um grupo mais ampliado para ajudá-lo na divulgação da Boa Nova do Reino. Esses apóstolos e discípulos, mesmo traumatizados pela paixão e morte do líder na cruz, renovam seu ardor após a ressurreição do Senhor. A partir desse vigor renovado, começam a proliferar as primeiras comunidades cristãs. As páginas dos Atos dos Apóstolos mostram o crescimento da Igreja nascente, desde o Oriente Médio, até a capital do Império Romano, passando pelo norte da África e pela Ásia ocidental.

Vemos aí o protagonismo de Pedro, João, Paulo, Barnabé, André!... Mas igualmente o protagonismo de numerosas mulheres. Lucas, no livro dos Atos, e Paulo, em suas cartas, não deixam de acenar para as mulheres que acompanham os evangelizadores, que os hospedam em suas casas e que colaboram para o seu sustento. Já no decorrer da vida pública de Jesus, deparamos com Marta e Maria, Madalena, Salomé e tantas outras. Não obstante o contexto da sociedade patriarcal, o papel das mulheres na evangelização incipiente sobressai nos escritos neotestamentários. Uma vez mais, o Espírito de Deus age em meio a todos e todas.

Uma atividade semelhante podemos ver hoje em dia entre os migrantes. Vale destacar três tipos de protagonismo: movimento involuntário, rede de solidariedade e gestos danosos. O primeiro tipo emerge a olho nu. Os trabalhadores e trabalhadoras, pelo simples fato e coragem de migrar, exercem já uma protagonismo, seja esse consciente ou inconsciente. Ao deixar a terra e se colocar a caminho, fazem marchar a própria sociedade – governos, entidades, movimentos, igrejas pastorais, organizações populares, enfim, cada um de nós aqui presente. Quem se move, faz mover a história. Daí que os migrantes em seu conjunto sejam, de uma forma ou de outra, profetas e protagonistas do futuro. Na origem, denunciam os países que lhes negam a pátria; no destino, exigem mudanças substanciais nas relações humanas.

Em segundo lugar, em suas idas e vindas os migrantes costumam organizar uma rede solidária: sistema familiar, de parentesco ou de conhecimento. Essa rede costuma oferecer os primeiros serviços de que o migrante tem necessidade, tanto na saída quanto na chegada. Não raro, serve para reunir a família fragmentada e dispersa, ou manter a coesão de um grupo mais amplo. Ou então funciona como uma porta de entrada no novo lugar de destino. A mesma rede muitas vezes constitui o modelo e a base para ampliar a rede pastoral e social que o sustentará na integração e inserção com a nova sociedade.

Mas aqui, em terceiro lugar, é preciso muita atenção. Em casos pontuais e extremos, a chamada rede de solidariedade serve também para explorar os recém-chegados. Exploração que pode ser efetuada pelos migrantes mais antigos, até mesmo parentes ou familiares. Deve-se esclarecer que não se trata sempre de má fé, mas por vezes de uma pretensa “ajuda” inicial. Esta espécie de paternalismo, a médio e longo prazo, deixa o migrante preso a uma ratoeira de dependência pessoal (e até de dívidas) em relação a quem, por primeiro, lhe estendeu a mão. Tal mecanismo esconde gestos danosos para o recém-chegado. Tende a gerar uma espécie de minoridade nociva mórbida e permanente do migrante, tornando-o impossibilitando de realizar livremente seus sonhos e potencialidades.

Entretanto, “não se trata só de migrantes”! O protagonismo no campo da mobilidade humana se une a um protagonismo que inclui outros atores e agentes sociais. As tarefas pontuais, locais e regionais se inserem na rede mundial da luta pela transformação da ordem vigente. O grande desafio – segundo o Papa Francisco – permanece o de superar a “globalização da indiferença” pela cultura do encontro, do diálogo e da solidariedade.

Conclusão

Uma outra imagem tipicamente amazônica poderia servir de conclusão. Cada ação que levamos a cabo, cada atividade que desenvolvemos; cada gesto, empenho ou luta em prol dos migrantes, por menor que seja, é como se fosse um pequeno igarapé. Mas quando reunimos todos esses esforços num trabalho conjunto e orgânico, eles formam um pequeno igarapé. E mais ainda, quando procuramos fazer parcerias com todos os agentes envolvidos – igrejas, movimentos, academia, organizações não governamentais, associações, mobilizações populares, campanhas, seminários, debates, etc. – os diversos igarapés formam um grande rio, como o Solimões e o Negro, e muito mais o Amazonas.

Se é verdade que as pequenas ações nutrem os igarapés, e se os igarapés alimentam a força dos rios, também é certo que estes últimos caminham para “a terra sem males”, como ensinava a sabedoria de nossos parentes mais antigos. E neste ponto, as imagens se fundem e ganham maior significação: a metáfora da “Jerusalém celeste” e do “Dia do Senhor” nos profetas do AT, com a prática de Jesus e das primeiras comunidades cristãs, transformam-se no Reino de Deus. Já para os primeiros habitantes desta grande região amazônica, a metáfora da luz e da paz definitivas tem a ver com “a terra sem males”.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs

Manaus – AM, 31 de agosto de 2019


Migrante como bode expiatório da economia globalizada

Duas observações oportunas e pertinentes alertam para o espectro da extrema direita que vem se alastrando por países historicamente democráticos. A primeira vem de um artigo de Demétrio Magnoli, o qual, entre outras coisas, tece alguns traços sobre a trajetória política do primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán. Escreve o autor: “Hoje, o líder que nasceu da derrubada de um muro converteu-se no principal arauto da construção de muros. Orbán é a face icônica da Europas xenófoba que invoca o direito do sangue para implantar barreiras de arame farpado diante dos refugiados do Oriente Médio e do norte da África” (Jornal O Globo, “30 anos amanhã”, 09/09/2019. Pág. 3).

A segunda vem de uma nota do ministro Celso de Mello, decano do STF, comentada pelo editorial do mesmo periódico, um dia depois. A nota, na verdade, refere-se à censura prévia na Bienal do Livro, realizada pelo prefeito Marcelo Crivella do Rio de Janeiro. Mas o editorialista sublinha as palavras do ministro al alertar para o fato de que “(...) sob o signo do retrocesso, um novo e sombrio tempo se anuncia: o tempo da intolerância, da repressão ao pensamento, da interdição ostensiva ao pluralismo de ideias e do repúdio ao princípio democrático!!!” (Jornal O Globo, “A necessária reação do STF à censura”. 10/09/2019, pág.2).

Como se vê, por ângulos diferentes, as duas observações se enquadram no contexto nacional e internacional, atualmente marcado por uma crescente onda de ódio, intolerância e xenofobia. Uma espécie de pensamento único – obscurantista, autoritário e retrógrado – vai se instalando em grandes fatias da população mais desavisada. Desse ponto de vista, num quadro mais amplo, o maior problema não tanto é a presença ostensiva de Viktor Orbán, Trump, Salvini, Le Pen ou Bolsonaro, mas sobretudo o fato de que todos, em maior ou menor grau, eles representam alto-falantes de fortes setores populacionais. São porta-vozes de uma visão de mundo e de uma atitude política que ganham espaço através da força bruta. Os argumentos racionais e o bom senso cedem o lugar a ofensas, insultos, ataques e agressões, quando não a meias verdades que costumam trazer mais dano que a mentira declarada. Além de desqualificar os dados científicos e as opiniões democráticas, fazem de cada opositor um inimigo a ser abatido. Elegem-se em geral com uma campanha combativa e belicosa nas redes sociais. Entretanto, a pós a chegada ao poder, tendem a governar “de armas em punho”, com uma metralhadora verbal tingida por palavras chulas e toscas, de baixo calão – linguagem de botequim.

No quadro geral da mobilidade humana, semelhantes posturas causam um duplo estrago. De um lado, como já assinalamos em diversas ocasiões, as pessoas em fuga da pobreza ou da guerra, tornam-se cada vez mais vulnerabilizadas. Para quem se vê como estranho em terra alheia, as ameaças geram o medo e inibem uma inserção proativa. A cobertura invertida das autoridades governamentais estimula contra o “outro e diferente” a hostilidade frontal de grupos racistas ou neofascistas. Estes últimos sentem-se muito mais à vontade para violar os direitos humanos, sabendo de antemão que estão imunes a qualquer tipo de punição. Daí o aumento de mortes nas trajetórias da travessia e especialmente nas zonas fronteiriças.

O segundo estrago decorre do anterior. Inibidos e vulnerabilizados, os migrantes convertem-se em alvo fácil do “dedo em riste” por parte da opinião pública e da mídia, quado a desordem varre ruas e cidades. Repete-se o esquema do Buc émissaire (bode expiatório), estudado por René Girard. Nesses casos de crise e de caos sociopolítico, intensos e frequentes na economia globalizada, é preciso encontrar um culpado para os distúrbios. A tensão e a raiva, o ódio e a violência recaindo unicamente sobre o escolhido, os demais membros da sociedade beneficiam-se do alívio imediato, ainda que a paz tenha um caráter provisório e efêmero. Ninguém melhor do que o migrante para desempenhar esse papel de bode expiatório: vem de fora, encontra-se em situação de risco e raramente pode mobilizar as próprias energias em seu favor.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs – Rio de Janeiro, 10 de setembro de 2019