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“O cobrador de impostos nem se atrevia a levantar os olhos para o céu;
mas batia no peito dizendo: ‘Meu Deus, tem piedade de mim, que sou pecador’” Lc 18, 9-14):
Este domingo traz-nos de novo uma parábola que só encontramos no evangelho de Lucas, como a do domingo passado daquela viúva que clama por justiça diante do juiz iníquo (Lc 18, 1-8).
As duas parábolas, tratam da oração.
Na da viúva, Jesus fala da necessidade de “rezar sempre e nunca desistir” (18, 1) e termina com uma pergunta: “E Deus não fará justiça aos seus escolhidos que dia e noite gritam por Ele? Será que vai fazê-los esperar?” (18, 7).
O evangelho de hoje começa descrevendo o grupo de pessoas, às quais Jesus está contando esta parábola.
É “... para alguns que confiavam na sua própria justiça e desprezavam os outros: Dois homens subiram ao templo para rezar, um era fariseu, o outro cobrador de impostos. O fariseu, de pé, rezava assim no seu íntimo: ‘Ó Deus, eu te agradeço porque não sou como os outros homens, ladrões, desonestos, adúlteros, nem como este cobrador de impostos’” (18, 9-11).
Alonso Schökel comenta sobre esta religiosidade falsa:
“O fariseu está satisfeito consigo mesmo e despreza os demais. Sua ação de graças não é para agradecer a bondade e os benefícios de Deus”.
Está bem longe do encantamento agradecido de São Francisco de Assis: “Louvado seja meu grande e bom Senhor”. “Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e verduras”.
E Francisco prossegue louvando pelo irmão, sol, pela irmã lua, pela irmã água casta e bela, por todas as criaturas.
O cobrador de impostos, à distância, de pé, no fundo do templo “nem se atrevia a levantar os olhos para o céu, mas batia no peito dizendo:
‘Meu Deus, tem piedade de mim, que sou pecador!’” (18, 13).
Arremata Jesus:
“Este último voltou para casa justificado e o outro não” (18, 14).
Conclui ainda, numa boa recomendação para cada um de nós, a começar por mim, e que nos achamos às vezes melhor do que as outras pessoas e que, se não as desprezamos, quase sempre passamos por elas como se fossem invisíveis e as ignoramos:
“Pois quem se eleva será humilhado e quem se humilha, será elevado” (18, 14).
A texto de Lc 18,9-14, exclusivo do Evangelho de Lucas e parte da longa viagem a Jerusalém (Lc 9,51-21,27), é comumente chamada “a parábola do fariseu e do publicano”. Contém: uma introdução do evangelista Lucas, que procura mostrar o porquê da parábola (Lc 18,9); a parábola (Lc 18,10-13) e a conclusão de Jesus (Lc 18,14).
Jesus desmascara a falsa postura religiosa (Lc 18,9). A parábola tem duas finalidades: por um lado, desmascara a falsa postura religiosa de alguns que, convencidos de serem justos, desprezavam os outros (Lc 18,9); por outro lado, visa ensinar aos discípulos e discípulas o autêntico relacionamento com Deus e com o próximo. Os convencidos de serem justos se identificam com os fariseus, cujo comportamento foi muitas vezes condenado por Jesus. No Evangelho de Lucas, e somente nele (cf. Lc 16,14), os fariseus (palavra que significa “separados”) são chamados de “amigos do dinheiro”. Ou seja, são os que mantêm e defendem, com ideologia e com palavras, com relações de interesse (Lc 14,12-14) e com a religião do puro e do impuro (Lc 11,41) o sistema desigual e excludente das cidades, fundado na concentração de bens em poder de poucas pessoas. Os fariseus opõem-se a Jesus e sua prática, claramente favoráveis à partilha e à eliminação da religião do puro x impuro (veja, por exemplo, Lc 15,1-2).
Ninguém se justifica diante de Deus, que não é comprável (Lc 18,10-13). A parábola contrapõe dois modos de ser e de agir, um fariseu e um publicano, que vão ao Templo para rezar/orar (Lc 18,10). Ambos buscam entrar em comunhão com Deus mediante a oração. Entre os dois há um estridente contraste, seja quanto ao comportamento, seja quanto à idéia de religião e oração. Também a idéia de Deus que cada um deles possui é diferente e não conciliável. Uma é falsa, e a outra verdadeira. À primeira vista, tem-se a impressão de que o fariseu esteja certo e o publicano errado. Mas a decisão cabe a Jesus. O fariseu não pode ser juiz do publicano. Os fariseus se consideravam justos perante Deus. Acreditavam-se autênticos e puros. A própria palavra fariseu (= “separado”) denota a consciência que tinham e o rigor por eles usado na observância e aplicação da Lei de Moisés. Desprezavam os que não conheciam a Lei e os que não fossem – como eles – escrupulosos em observá-la nas minúcias. Julgavam-se aqueles que aplicavam autenticamente a Lei.
O fariseu da parábola denota a consciência e a escrupulosidade do movimento ao qual pertence. Tem consciência de não ser como o resto das pessoas, e por isso se dirige a Deus com altivez, rezando em voz alta, de pé, enumerando suas qualidades. Essas qualidades se caracterizam pelo não ser como os demais e pelo fazer escrupulosamente mais do que a Lei exigia. Ele não é como os outros. E passa a catalogar os pecados que evita: os outros são ladrões, injustos e adúlteros. Esses três pecados sintetizam a transgressão do Decálogo em relação ao próximo: não roube, não cometa adultério etc.
A seguir, enumera o que faz escrupulosamente: jejua duas vezes por semana. A Lei prescrevia um só jejum por ano, no dia da reconciliação. Ele é incrivelmente generoso, indo muito além do prescrito, provavelmente jejuando em representação-substituição pelos pecados do povo (é, como se dizia, uma “alma reparadora”). Além disso, paga o dízimo de todos os seus rendimentos, inclusive dos que fossem isentos de taxas dizimais. Trata-se, pois, de fariseu exemplar, íntegro em relação ao próximo e a Deus. Contudo, seu erro consiste em se julgar, por causa disso, merecedor da benevolência divina. Deus estaria sendo obrigado a reconhecê-lo justo. Não é por mérito que se encontra o Deus da vida.
O publicano é o oposto do fariseu. Sendo cobradores de impostos, os publicanos eram, e com razão, acusados de extorsão e corrupção. Por isso, tornaram-se impopulares, odiados como pessoas de moral pervertida. Enquanto cobradores de taxas, eram agentes do governo imperialista e ganancioso dos romanos. Colaboracionistas com os opressores, via-se neles a encarnação do pecado. Havia pelo menos duas classes de cobradores de impostos: os chefes (como Zaqueu, cf. Lc 19,1-10) e os subordinados. Os chefes praticavam a extorsão sobre seus comandados, e estes exploravam o povo. Os chefes eram ricos; os subordinados, remediados. Ambas as classes, malvistas, por serem colaboradoras do imperialismo romano, que era escravocrata.
A atitude do publicano diante de Deus choca-se frontalmente com a do fariseu. Reconhece-se pecador, não tem coragem de levantar os olhos, bate no peito e pede piedade (Lc 18,13). O pecador encontra a misericórdia divina (Lc 18,14). A conclusão de Jesus mostra que o publicano voltou para casa perdoado (justificado), e não o fariseu, que se propunha como modelo de religioso a ser seguido (Lc 18,14). Os fariseus se julgavam os primeiros (ou seja, os únicos, os “separados”) a serem recompensados por sua religiosidade e escrupulosidade em cumprir os mínimos detalhes da Lei. E julgavam os publicanos os últimos (ou seja, os excluídos), para os quais não havia esperança nem salvação. A conclusão de Jesus subverte essa mentalidade: o que se exalta (o fariseu) será humilhado (por Deus); o que se humilha (o publicano) será exaltado (por Deus). Como não reconhecer aqui um eco do Magnificat, o Cântico de Maria, que profetiza: “Deus dispersa os soberbos de coração, derruba do trono os poderosos e eleva os humildes”? (Lc 1,51-52).
A oração do fariseu é inautêntica pelos seguintes motivos:
1) Por causa do rigor na aplicação da Lei – indo muito além do que ela prescrevia – ele crê que Deus se sinta mais que obrigado a recompensá-lo. Mas Deus não se sente obrigado, porque a oração do fariseu era pura exaltação das próprias qualidades. E, no fundo, acobertava sua ganância de “amigo do dinheiro” (Lc 16,14). Muitas vezes, uma pessoa que se enriqueceu explorando os pobres, por ser religiosa sente que Deus a abençoou e que por isso ela se enriqueceu. Assim, a fé da pessoa encobre as relações de exploração que viabilizaram o enriquecimento dela. Ela se sente uma santa e bendita e, pior, o pobre, o que não se enricou, é taxado como um vagabundo e incompetente.
2) É inautêntica porque cria classes entre as pessoas, duvidando que a oração do publicano possa redimir o passado de injustiças. Com sua oração, além de exaltar a si próprio, cria a idéia de um deus feito à sua imagem e semelhança, incapaz de transformar totalmente a vida da pessoa pecadora.
3) É inautêntica porque não deixa margem para a gratuidade. Rezar é acolher o dom de Deus, oferecido gratuitamente em Jesus. Este veio ao mundo não por causa da bondade dos fariseus, mas porque Deus é amoroso e bom (cf. Mc 10,18). Rezar não viabiliza troca de favores; pelo contrário, é pôr-se na atitude de quem está disposto a se humanizar buscando o mistério de Deus, que é infinito amor. O fariseu não tem nada a pedir. Julga-se, portanto, perfeito. O fariseu ignora o que Jesus Cristo nos ensina na oração do Pai-nosso (Lc 11,2-4).
A oração do publicano é autêntica, pois nasce da sua humildade e condição de pecador. Sabe-se devedor a Deus e às pessoas. Reconhece que, se não houver um Deus misericordioso, seu caso não tem solução nem salvação. Assim ele mergulha no mistério de Deus, que não quer a morte do pecador, mas sim que se converta e viva (cf. Ez 18,23; Lc 15,7; Jo 8,11).
Enfim, ao abraçar o publicano no seu jeito de orar, Jesus aponta o jeito libertador que se espera de uma pessoa religiosa: que não se exalte no sentido de ser merecedora de reconhecimento por pretensos méritos, mas que conviva na humildade buscando ser a cada dia expressão de uma ética amorosa. Um ensinamento fundamentalista e moralista leva a um jeito de orar farisaico. Por outro lado, quem está mergulhado nas relações humanas e sociais buscando ser pessoa ética, justa e solidária com todas as pessoas e com toda a biodiversidade pode orar acolhendo o amor de Deus que nos envolve e nos inspira à prática de um humanismo que nos dignifica a cada dia.
A postura humana de muitas pessoas consideradas profanas agrada muito mais a Deus do que a postura de muitas pessoas religiosas, arraigadas em práticas religiosas auto-referenciais, mas que são ríspidas e ranzinzas nas relações humanas e sociais.
Na "parábola do fariseu e do publicano", Jesus nos mostra que a oração diz respeito ao nosso modo de ser e viver, à nossa relação com Deus, com nós mesmos, com os outros seres humanos e toda a biodiversidade. Jesus nos ensina que nossa vocação é sermos humanos, o que não deixa espaço para soberba, vaidade, poder. Deus acolhe quem tem a coragem de se reconhecer pecador e busca, com sinceridade, a libertação, confiante no amor misericordioso de Deus, com a firme disposição de se transformar, de mudar de vida para ser mais humano a cada dia. Que a gente tenha a humildade e a coragem de ser mais humano/a e menos arrogante!
Dois modelos de fé e devoção
Neste XXX Domingo comum do ano, o evangelho proposto é Lucas 18, 9- 14, que continua a conversa de Jesus sobre a oração. No texto lido no domingo passado, Jesus propunha orar sempre sem desanimar, mas orar buscando justiça para quem para todas as pessoas injustiçadas. Agora conta uma parábola para explicar o próprio espírito da oração.
Jesus não comenta as palavras que cada um usa na oração. O que lhe interessa é o espírito com o qual se ora. Para Jesus, o determinante é que “alguns confiavam na própria justiça e desprezavam os outros”. Para esse tipo de pessoas, Jesus conta uma parábola que tem dois protagonistas, conhecidos nossos: o fariseu e o publicano. O evangelho de Lucas já tinha nos apresentado a um e ao outro. O fariseu era exemplo de alguém religioso. Já o publicano, cobrador de impostos, era pouco honesto e pessoa de vida duvidosa. De fato, historicamente, havia vários tipos de fariseus, mas, na época de Jesus, o fariseu era mesmo uma pessoa boa, respeitadora da lei e da justiça. De acordo com os critérios da religião, era realmente alguém de vida exemplar. Sem dúvida, tinha toda razão em se sentir melhor do que a maioria das outras pessoas. Ele diz isso na sua oração: sou fiel, cumpro as leis, jejuo...
O que o fariseu diz em sua oração corresponde à verdade. Quando ele diz: jejuo duas vezes por semana, jejua mesmo... Isso lhe dá o direito de dizer: eu não sou como esses outros... Não era mesmo. Pode-se até dizer que a oração do fariseu é inspirada na própria Bíblia. Em sua oração, ele retoma expressões dos Salmos. Quem duvidar disso, compare as palavras usadas pelo fariseu e o salmo 26 (25), v. 4- 5 e também a oração do santo patriarca Jó (Jó 29, 12- 17).
Aquele fariseu da parábola de Jesus era um homem santo. Parecia com algumas pessoas das nossas paróquias e capelas que, no momento da oração dos fieis, oram: “Pelas pessoas que ainda não descobriram a luz da verdade (está subentendido: não são como nós), para que se convertam e sejam iluminadas pelo Espírito...”.
Essa é a oração de muita gente religiosa e era a do fariseu: “Eu te dou graças por não ser como os outros. Não sou como esse publicano”.
O problema é que Jesus toma o partido menos religioso e menos devoto. Opõe o jeito de orar do homem piedoso ao modo do publicano. O cobrador de impostos se mantém à distância e nem ousa levantar os olhos ao céu. Bate no peito e diz: “Senhor, tem piedade de mim, pecador”.
Essa invocação do publicano se tornou o refrão mais comum (mantra) da chamada “oração de Jesus”, prática de repetição incessante de uma palavra para que o coração se esvazie do próprio eu e possa acolher com carinho a palavra que Deus quer lhe dar.
Nesse evangelho, Jesus não comenta as palavras nem o conteúdo das orações. Diz simplesmente que o publicano voltou da oração justificado, enquanto o fariseu, não, porque, conclui Jesus: “toda pessoa que se exalta será humilhada e toda pessoa que se humilha será exaltada”.
Nesse domingo, alguns padres e pastores pregam sobre a humildade e a modéstia, mas não é isso que está em questão. O assunto aqui é mais estruturalmente de fé, ou seja, como nos relacionamos com Deus. Será que vivemos a relação com Deus como intimidade gratuita de amor, ou nos colocamos como se fosse em uma corrida ou concurso para ganhar méritos.
Em passagens anteriores do Evangelho de Lucas, Jesus contou as parábolas do pastor em busca da ovelha perdida, da mulher que perdeu a moeda ou a história do pai e dos dois filhos perdidos. Já com aquelas comparações, Jesus tinha criticado claramente os fariseus e religiosos do templo. Agora, conta essa parábola para todos nós que fomos educados a viver esse tipo de devoção.
Jesus já tinha dito que para Deus a justiça da lei, ou seja, a religião não tem nenhum valor, se é tomada como direito adquirido por merecimento e privilégio em relação aos outros. Deus subverte a lógica religiosa e justifica o pecador e não se liga a quem se acha com direito perante Deus. Nós somos salvos não pela justiça da lei e sim pela graça divina.
Um dos fenômenos que mais chama a atenção nas Igrejas cristãs hoje é o gosto de não poucos padres e pastores jovens por paramentos suntuosos e dourados, cheios de símbolos barrocos e anjinhos barrigudos. Para esse tipo de religiosos, o elemento mais importante da fé é a liturgia bem ordenada e com ritos hieráticos que devem ser seguidos à risca. No Brasil, um pastor neopentecostal construiu um imenso palácio religioso e o chamou de “Templo de Salomão”. Nesse ambiente, há até pastores que se vestem de rabinos. No entanto, o tipo de Judaísmo que eles se propõem a viver é o Judaísmo do templo e do sagrado sacerdotal e não o Judaísmo profético que foi o de Jesus. Não refazem o sacrifício de animais, mas, reatualizam a religião de sacrifício, por meio da rigidez do sistema de dízimos, que garantem o esplendor do templo e a riqueza pessoal do pastor. Do mesmo modo, em alguns santuários da Igreja Católica, se fazem permanentes campanhas financeiras de captação de dinheiro para a manutenção ou intermináveis reformas do santuário.
Ao contrário disso, as comunidades cristãs populares e as pastorais sociais sabem que a base da fé e da relação com Deus é o compromisso com a Justiça que respeita a dignidade de todas as pessoas e a solidariedade socioambiental que pavimenta a construção de uma sociedade justa, econômica e politicamente democrática, responsável no plano socioambiental e com a gerações futuras. Celebrações da caminhada da Igreja inserida no meio do povo empobrecido partem do princípio que, como dizia Santo Irineu, “a glória de Deus é a vida das pessoas”. Oscar Romero dizia: “é a libertação das pessoas oprimidas”. “O jejum que agrada a Deus é a prática do direito e da justiça”, profetizava Isaías.
Nessa caminhada profética, as orações e as celebrações não se centram tanto em falar com Deus e sim em escutar e acolher o que Deus tem a nos dizer a partir da Bíblia e principalmente a partir das entranhas dos fatos e acontecimentos da realidade. No compromisso de inserção junto às comunidades mais empobrecidas, a solidariedade amorosa toma forma de oração.
O evangelho de Jesus nos interpela: é preciso superar a religião que nos ensina a ganhar créditos junto a Deus, como se houvesse um banco de méritos ou uma caderneta de poupanças no céu. É preciso passarmos da religião ritual e legal para a fé profética e gratuita do amor divino, pois só assim podemos ser “sal na terra e luz no mundo” (Cf. Mt 5,13-16).
Se eu quiser falar com Deus
Gilberto Gil – 1981.
(Se quiser ver no youtube: https://youtu.be/3eKnerBU4HY?si=GklQESI0eF3r63n8)
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz
Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
Dos sapatos, da gravata
Dos desejos, dos receios
Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus.
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou
Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho
Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração.
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que me aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas pra segurar
Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada
Que ao findar, vai dar em nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar
“Não podemos formar rapazes para representar a hierarquia junto aos fiéis e muito menos transformar pessoas em potenciais carreiristas. Isso é doentio. Temos hoje muita reflexão sobre a pessoa do presbítero e o seu papel. Falta-nos avançar no processo de formação desse modelo”, escreve Pe. Manuel Joaquim R. dos Santos, coordenador do clero da arquidiocese de Londrina e reitor do Seminário Teológico São Paulo VI.
Eis o artigo.
Trabalho num Seminário Maior, onde se formam jovens na fase da Configuração. Preparei-me para tal e não abro mão do que acredito piamente: a Igreja de Jesus Cristo precisa de homens completos, que assumam o desafio de serem construtores do Reino e servidores do ser humano, na concretude deste tempo e lugar. Com empatia, misericórdia e compaixão. O Papa Francisco deixou-nos, entre tantas pérolas, inúmeros textos e observações sobre a formação sacerdotal e o que o mundo tem direito de esperar de nós. Não somos funcionários do sagrado, nem um misto de anjos e homens! Carregamos um tesouro em vasos de argila e frequentemente precisamos revisitar o cheiro e a textura dessa terra de que somos feitos.
Tenho ido com mais frequência do que poderia visitar os meus pais em Portugal. Idosos, estão numa Casa de Repouso e eu como filho, cumpro com alegria o que se espera de mim. Faço-o por uma atitude de coerência e para mostrar a mim mesmo que a caridade começa em casa. Esta foi, também, a primeira lição aos seminaristas! Nessas minhas estadias, eu fico na residência da família, numa aldeia que me viu crescer e que agora está praticamente deserta. Tenho por hábito permanecer horas a fio na janela, observando cada uma das casas de pedra em ruínas.
Ali existiu muita vida. Filhos gerados e criados às ninhadas! Jovens que emigraram e idosos que partiram para Deus. Barulho de carros de bois e uma azáfama tremenda até aos anos oitenta. Eu preciso disto. É um retiro existencial profundo. Aqui eu cresci e fui saboreando a vida tal qual ela é, sem eufemismos ou retoques de maquiagem. O padre que sou agora não está divorciado do que fui nesta aldeia. Não percebo nenhum fosso, nenhum muro.
O garoto que afogava a galinha da vizinha ou beijou pela primeira vez nos recônditos de um paredão, sou eu! O padre! Cavalgava sem sela, livre e solto pelas pradarias, deixando que os ventos do futuro banhassem o meu ser. Deus me moldava sem trair o que criou, porquanto me fez homem em primeiro lugar. Mais tarde, ao buscar um sentido profundo para a existência, eu decidi que trilhar as pegadas de Jesus de Nazaré até Jerusalém, saciaria a fome e a sede de bem e de belo que pautava a minha juventude. Não olhei para trás. Devo isso a Dom Hélder Câmara, a Óscar Romero e a tantos outros.
Voltar à aldeia é mais do que necessário. É imprescindível. Ali não vivíamos obcecados por vestimentas douradas ou avermelhadas e nem fazíamos da vida paroquial o centro da nossa saga. A vida real e concreta me fez filho, irmão, tio e padrinho. O Manuel Joaquim! Até hoje. Quando meus conterrâneos me dizem (com frequência) que eu “não mudei nada desde a infância”, sinto a bênção de nunca ter traído a essência que mora em mim e que faz deste homem um padre.
Não tenho obsessão por torres altas, nem pedestais engalhardeados e muito menos por sermões moralistas e moralizantes! Nunca me aprouve ser mestre de alguém e considero o sacerdócio comum dos fiéis como uma pérola a estimar e valorizar. Voltar frequentemente a essa aldeia reforça a verdade sobre mim mesmo e me impede de alçar voos desconectados do que se espera de um presbítero.
No Seminário acompanho a vida de jovens sonhadores. É um excelente começo para quem deseja servir ao Povo de Deus em nome de Jesus de Nazaré. Mas é pouco. O sistema atual é tremendamente contraproducente. Recebemos rapazes vindos em geral de meios pobres, os elevamos a um patamar de classe média, com casa, comida, carro, faculdade e depois os devolvemos ao povo, munidos de uma mentalidade incompatível com o que deles se espera como servidores últimos dos últimos! Fascinados pelo “consumo do sagrado”. Esse choque existencial é revelador de doenças, como a esquizofrenia ou agravamento da bipolaridade! Rapidamente fincam os seus pés no patamar da sacralidade que pensam possuir e que erroneamente os afasta do “comum dos mortais”.
Os jovens que acolhemos nem sempre apreciam a aldeia onde nasceram e cresceram! A opção pelos últimos é imediatamente ideologizada e levam para o ministério a polarização que vem afetando a sociedade. Vindos de meios pobres, manifestam pudor imoral em mencionar sua origem ou em classificar o pobre como verdadeiro lugar teológico.
O Papa Leão, na sua Exortação Apostólica Dilexi Te, denuncia que “também os cristãos, em muitas ocasiões, se deixam contagiar por atitudes marcadas por ideologias mundanas ou por orientações políticas e econômicas que levam a injustas generalizações e a conclusões enganadoras”. E que muitos cristãos têm “preconceitos” em relação aos pobres, sentindo-se “mais à vontade” sem eles. “Há quem continue a dizer: ‘O nosso dever é rezar e ensinar a verdadeira doutrina’. Mas, desvinculando este aspecto religioso da promoção integral, acrescentam que só o Governo deveria cuidar deles, ou que seria melhor deixá-los na miséria, e ensinar-lhes antes a trabalhar”, lamenta o Papa.
Este sistema atual não se sustenta.
A Igreja não precisa de funcionários do sagrado. Os Seminários não treinam profissionais. Ou não seria esse o escopo! Mas, em rota de colisão do que deveríamos, empoderamos jovens que não vendo a hora “mágica” da ordenação, aspiram a ter a “sua paróquia, sua casa, seu carro, seu povo”! E assim, vamos reproduzindo um modus operandi contraproducente, gerador de dores, sofrimento e às vezes morte (vide aumento dos suicídios). Virou assunto corriqueiro encontrar padres recém-ordenados em podcasts ou outras mídias, dando aulas “sobre tudo”! Em não poucos casos, denotando uma teologia medíocre e resvalando para o devocionismo. Repito, isso não se sustenta e não pode realizar um ser humano que um dia decidiu seguir a Jesus Mestre e Pastor.
Os aspirantes ao ministério ordenado não deveriam sair das suas comunidades e família. Ali, realizando os estudos (um curso universitário livre, não necessariamente filosofia) e depois Teologia, eles seriam acompanhados pelos formadores, segundo um itinerário consistente e adequado. No último ano (ano de síntese), viveriam então uma experiência específica ou inseridos numa paróquia. Opções como esta exigiriam um investimento grande no SAV e nas equipes de formadores. É um ato de coragem e discernimento avançar para este modelo. Por óbvio, para não cairmos em simplismos, devemos provocar uma reflexão e estudo sobre o assunto.
Não é uma grade curricular que está em causa (apenas)! Não se trata de horários ou simplesmente da presença feminina no processo de formação. É muito pouco! O maior questionamento é sobre que padre devemos dar a uma Igreja que necessita evangelizar um mundo “pós-Deus”! A Igreja que concretamente o Papa Francisco nos convidou a redescobrir. Missionária, em saída, hospital de campanha e acolhedora de “todos”! Os seminários nascidos em Trento não respondem mais a estes desafios que o mundo coloca à Igreja. Não podemos formar rapazes para representar a hierarquia junto aos fiéis e muito menos transformar pessoas em potenciais carreiristas. Isso é doentio. Temos hoje muita reflexão sobre a pessoa do presbítero e o seu papel. Falta-nos avançar no processo de formação desse modelo.
Quando a Igreja optou por substituir as grandes casas de formação por pequenas comunidades formativas, ela estava certa. Foi um passo muito consistente. Ambientes familiares, “atendimento personalizado” e corresponsabilidade visível na vivência em comunidade. Porém, o grande upgrade de hoje será acabar com a “artificialidade” que ronda uma formação longe do habitat normal e em situações que beiram uma caricatura de “família”. Padres que vão acompanhar a saga dos irmãos nas múltiplas etapas da existência humana, não poderão ter estado ausentes, para depois voltarem “mestres” dessa mesma existência! Isso é caricato! É uma mentira.
O Seminário atual isola, aliena e cria bolhas artificiais que depõem contra a missão do presbítero atualmente. O próprio celibato, construir-se-á com liberdade no confronto com todas as nuances de uma vida real e concreta. Ainda que uma boa parcela dos candidatos, hoje, tenha tendências homossexuais, o desafio por uma vida dedicada exclusivamente ao Reino se afirmará como um valor, enquanto os seus passos trilham o chão da adolescência e da juventude como todos os outros. A opção pela vida presbiteral e religiosa não pode estar alheia à “aldeia que nos viu nascer e crescer”! Para isto, a figura do formador perspicaz, humano, próximo, eclesial é essencial.
Não consiste
Na abundância de bens
Na cobiça da riqueza
Na acumulação
No bem-estar material
No armanezar para si.
Que leva
A solidão
Fechamento em si mesmo
Minha colheita
Meus celeiros
Meus bens e minha vida.
Torna-se prisioneiro
De uma lógica
Que desumaniza
Esvazia de toda dignidade
Traz infelicidade
Empobrece a vida.
Acumula bens
Mas não conhece
A amizade
O amor generoso
A alegria
E a solidariedade.
Não sabe compartilhar
Só monopolizar
A vida deste
É um fracasso
Uma insensatez
Perde a vida.
No percurso
Da vida humana
Surgem oportunidades
Para abrir os olhos
Sobre si mesmo
Que causa espanto.
De perceber
Que o individualismo
E o egoísmo
É infecundo
E sem sentido
Leva a perdição.
A eterna tentação
Da ganância e da cobiça
Esconde uma necessidade
Mais ou menos doentia
De segurança
De auto-proteção.
No que é passageiro
Na falsa ilusão
Que traz decepção
Sofrimento e frustração
Tristeza e fantasia
Vazio existencial.
É preciso reaprender
O caminho
Da capacidade de amar
De partilhar
De confraternizar-se
De busca a felicidade.
+ Fontinele
A busca do sentido da vida é uma das questões mais complexas da humanidade. E por considerar sua relevância, a CNBB promoveu a Campanha da Fraternidade do ano de 2020 sobre este tema. O evangelho iluminador é a parábola do Bom Samaritano (Lc 10,27-35).
De fato, nossa vida é toda pautada pelas duas linhas existenciais estruturantes do nosso ser, a saber, a linha da aspiração, que é tudo o que desejamos ser ou ter e a linha da aptidão, que compreende o que podemos ser ou ter. Estas duas linhas precisam andar o mais próximo possível para que não nos desintegremos.
À luz da psicologia profunda, podemos afirmar que cada pessoa possui quatro EUs. O eu cego, o eu aberto, o eu secreto e o eu escondido. O eu aberto é conhecido pelo próprio eu e pelos outros; o eu cego é desconhecido pelo eu e conhecido pelos outros; o eu secreto é conhecido pelo eu e não conhecido pelos outros e o eu desconhecido é desconhecido tanto pelo eu como pelos outros.
Para purificar e aprimorar os EUs, quem melhor elucidou um caminho possível foi o poeta e místico Gibran Khalill no poema A Perfeição.
Tu me perguntas, ó irmão, quando o homem será perfeito. Ouve minha resposta: O homem se encaminhará rumo à perfeição quando começar a sentir que ele é o espaço ilimitado, o mar sem fundo, o fogo em chama, a luz sempre brilhante, o vento em repouso ou em movimento, as árvores em flores ou desfolhadas, os campos férteis e inférteis, as montanhas e os vales. Quando o homem sentir todas essas coisas, estará no caminho da perfeição.
Se quiser atingir o cume mesmo da perfeição, deverá sentir, quando pensar em si, que é a criança amparada pela mãe, o jovem perdido entre suas aspirações e sua paixão, o adulto responsável pela sua família, o velho em luta contra seu passado e seu presente, o anacoreta em sua cela, o criminoso encarcerado, o sábio no meio de seus livros e papeis, o ignorante entre as trevas de seu dia e as trevas de sua noite, a freira entre as flores de sua fé e os espinhos de sua solidão, a prostituta entre as garras de sua fraqueza e as cadeias de suas necessidades, o pobre entre sua amargura e sua submissão, o rico entre suas ambições e suas limitações, e o poeta entre o nevoeiro de sua tarde e a luz de sua aurora. Quando o homem conseguir experimentar todos esses estados chegará à perfeição e se tornará uma sombra de Deus.
E São Francisco de Assis vai nesta mesma linha de pensamento, querendo contribuir com seus confrades na busca do sentido para suas vidas deixou-nos um dos mais sábios conselhos:
Se sentires o chamado do Espírito, atende-o e procura ser santo com toda a tua alma, com todo o teu coração e com todas as tuas forças. Se, porém, por humana fraqueza não conseguires ser santo, procura então ser perfeito com toda a tua alma, com todo o teu coração e com todas as tuas forças. Se, contudo, não conseguires ser perfeito por causa da vaidade de tua vida, procura então ser bom com toda a tua alma, com todo o teu coração e com todas as tuas forças. Se, ainda, não conseguires ser bom por causa das insídias do maligno, então procuras ser razoável com toda a tua alma, com todo o teu coração e com todas as tuas forças.
Se, por fim, não conseguires nem ser santo, nem ser perfeito, nem bom, nem razoável por causa do peso dos pecados, então procuras carregar este peso diante de Deus e entregas tua vida à divina misericórdia. Se isso fizeres, sem amargura, com toda a humildade e com jovialidade de espírito por causa da ternura de Deus que ama os ingratos e maus, então começarás a sentir o que é ser razoável, aprenderás o que é ser bom, lentamente aspirarás a ser perfeito, e, por fim, suspirarás por ser santo. Se tudo isso fizeres, cada dia, com toda a tua alma, com todo o teu coração e com todas as tuas forças, então eu te asseguro, irmão, não estarás longe do reino de Deus.
Portanto, comece fazendo o que é necessário, depois fazendo o que é possível, e de repente você estará fazendo o impossível. Eis o sentido da vida!
A Exortação do Papa Leão XIV sobre o amor aos pobres
É muito significativo que o primeiro documento de Leão XIV seja uma exortação sobre o amor aos pobres. Se o último documento de Francisco foi uma encíclica sobre o amor do Coração de Jesus (Dilexit Nos – Ele nos amou); o primeiro documento de Leão XIV é uma exortação a tornar realidade para os pobres as palavras de Jesus: “Eu te amei” (Dilexi Te). A contemplação do “amor de Cristo” leva-nos a colaborar na “difusão do seu amor” (DT 2). O texto já vinha sendo preparado por Francisco e foi assumido e concluído por Leão XIV com o propósito de ajudar a Igreja perceber a “forte ligação existente entre o amor de Cristo e o seu chamamento a tornar-nos próximos dos pobres” (DT 3).
O Documento tem cinco capítulos: Começa com “algumas palavras” sobre a relação entre o afeto ao Senhor e o afeto aos pobres; sobre São Francisco, sobre o clamor dos pobres e sobre os preconceitos ideológicos contra os pobres (cap. 1); partindo a Sagrada Escritura, mostra como “Deus escolhe os pobres” (cap. 2); fala da Igreja como “uma Igreja para os pobres”, testemunhada em toda a Tradição cristã (cap. 3); mostra como essa história de compromisso com os pobres continua em nosso tempo, destacando a importância da doutrina social da Igreja, do Concílio Vaticano II e da Igreja da América Latina (cap. 4); e conclui recordando que o serviço aos pobres “faz parte da grande Tradição da Igreja” e constitui “um desafio permanente” (cap. 5).
Um ponto fundamental do documento é a insistência no caráter teologal/espiritual da opção preferencial pelos pobres. Não se trata apenas de “beneficência” (serviço social), mas de “revelação” (salvação ou condenação) (DT 5). Na verdade, a opção da Igreja pelos pobres está fundada e decorre da “opção preferencial de Deus pelos pobres”: Em seu agir salvífico no mundo, Deus “tem particularmente a peito aqueles que são discriminados e oprimidos, pedindo-nos também a nós, sua Igreja, uma decidida e radical posição em favor dos mais fracos” (DT 16); “no coração de Deus, ocupam lugar preferencial dos pobres”; “todo caminho da nossa redenção está assinalado pelos pobres” (DT 17).
O capítulo 2 da exortação está todo dedicado à essa predileção de Deus pelos pobres: Em numerosas páginas do Antigo Testamento, “Deus é apresentado como amigo e libertador dos pobres, Aquele que escuta o grito dos pobres e intervém para o libertar” (DT 16). E “toda a história do Antigo Testamento sobre a predileção de Deus pelos pobres e o desejo divino de ouvir o seu clamor encontra em Jesus de Nazaré sua plena realização” (DT 18). Em sua identificação com os pobres, “Jesus é a revelação deste privilegium pauperum” (privilégio dos pobres) – “Ele apresenta-se ao mundo não só como messias pobre, mas também como messias dos pobres” (DT 19). Em sua pregação e nos sinais que realiza, Jesus manifesta a “predileção” de Deus pelos pobres: “a eles primeiramente se dirige a palavra de esperança e de libertação do Senhor e por isso ninguém, a apesar da condição de pobreza e fraqueza, deve sentir-se abandonado” (DT 21).
Essa “opção preferencial de Deus pelos pobres” justifica e exige da Igreja uma “decidida e radical” opção preferencial pelos pobres (DT 16). Na verdade, não se trata bem de “opção”, no sentido de que se poderia não optar. Trata-se de uma exigência que brota da revelação de Deus, de uma condição da fidelidade a Deus e de um critério escatológico de salvação ou de condenação: “desde os tempos apostólicos, a Igreja viu na libertação dos oprimidos um sinal do Reino de Deus” (DT 59); “se não quisermos sair da corrente viva da Igreja que brota do Evangelho e fecunda cada momento da história, não podemos esquecer os pobres” (DT 15); se a Igreja “deseja ser de Cristo, deve ser Igreja das Bem-aventuranças, Igreja que dá vez aos pequeninos e caminha pobre com os pobres, lugar onde os pobres têm um espaço privilegiado” (DT 21); “o amor aos pobres é a garantia evangélica de uma Igreja fiel ao coração de Deus” (103). Por essa razão, diz Leão XIV: “observar que o exercício da caridade é desprezado ou ridicularizado, como se fosse uma fixação somente de alguns e não o núcleo incandescente da missão eclesial, faz-me pensar que é preciso ler novamente o Evangelho” (DT 15).
Obrigado Leão XIV por nos recordar essa verdade dogmática fundamental de nossa fé. Obrigado por nos devolver o Evangelho de Jesus Cristo, devolvendo-nos aos pobres desse mundo e exortando toda Igreja a ser uma Igreja pobre e para os pobres…
“A vida cristã não é apenas ação, nem apenas doutrina; é uma experiência de comunhão com o Deus que se faz pobre, que se faz pão, que se faz povo. Quando perdemos isso, restam apenas estruturas, slogans e burocracia espiritual”, escreve José F. Castillo Tapia, padre jesuíta atuante na Amazônia brasileira junto aos povos indígenas.
Há um modo sutil e perigoso de trair o Evangelho: falar muito sobre Deus e, ao mesmo tempo, segui-Lo sem Ele. É o que acontece quando o nome de Deus ocupa nossos discursos, mas o seu Espírito não atravessa nossa vida. Quando multiplicamos palavras sobre sinodalidade, comunhão e participação, mas seguimos trancados em nossas estruturas de poder, distantes do povo, frios diante da dor e insensíveis aos clamores da Terra. A Igreja parece falar de caminhar junto, mas ainda caminha sobre os outros.
Em muitos ambientes eclesiais, perdemos a capacidade de sentir. Falamos sobre escuta, mas não escutamos; celebramos a missão, mas tememos sujar as sandálias no chão das aldeias, nas periferias, nas favelas. Continuamos a repetir fórmulas, discursos e documentos, sem deixar que o povo - com sua fé concreta, sua ternura e sua luta - nos evangelize. Seguimos, muitas vezes, num cristianismo de gabinete, onde o Espírito Santo é substituído por comissões e estratégias pastorais. E assim, inadvertidamente, seguimos a Deus sem Deus.
A tentação do clericalismo continua viva. Não é apenas o padre autoritário, mas todo modo de pensar a fé desde cima, como se o Espírito soprasse apenas nos que têm título e batina. Esse clericalismo se infiltra até nas tentativas de ser “sinodais”, transformando a escuta em formalidade e o discernimento em mera consulta. Falamos do Povo de Deus, mas tememos quando o povo fala com liberdade. Falamos de inculturação, mas não queremos aprender a rezar com os símbolos dos povos, com o ritmo das culturas, com o silêncio das florestas.
Entre dois extremos - o sacramentalismo moralizante e o ativismo político -, a Igreja corre o risco de perder sua alma mística. Uns reduzem a fé a cumprir normas e ritos; outros, a lutar por causas. Ambos esquecem que o centro do Evangelho é o encontro vivo com o Mistério, que é amor e presença. A vida cristã não é apenas ação, nem apenas doutrina; é uma experiência de comunhão com o Deus que se faz pobre, que se faz pão, que se faz povo. Quando perdemos isso, restam apenas estruturas, slogans e burocracia espiritual.
Talvez seguir a Deus sem Deus seja o maior drama de nosso tempo eclesial. Falamos em nome de Cristo, mas já não nos deixamos tocar por Ele. Fazemos pastoral, mas sem paixão. Celebramos, mas sem ardor. E o mundo, ferido e faminto, segue à espera de uma Igreja que não fale apenas sobre Deus, mas que revele Deus no modo como ama, como escuta, como serve.
A mística do Evangelho é o que pode curar nossa indiferença. Não uma mística evasiva, mas encarnada: aquela que nasce do chão, do pobre, da Amazônia, dos povos originários que nos ensinam a perceber a presença divina em tudo o que vive. Voltar à mística é voltar à alma do cristianismo. É deixar que Deus nos desinstale, nos despoje de nossas seguranças e nos devolva o coração. Porque seguir a Deus sem Deus é o mesmo que falar de amor sem amar. E nenhuma Igreja sobrevive a isso.
Não é realidade fácil a pessoa sair de si mesma, do seu egoísmo e do estado de autorreferenciamento. Assim, as palavras, humildade, pequenez e simplicidade são todos desafios para a atual cultura. O que vemos mesmo é a busca pertinaz de grandeza, poder, boa aparência e individualismo exacerbado. O ter, quando enraizado na sensibilidade do coração, obscurece a identidade do “eu”, do ser.
Na Palavra de Deus está um exemplo esclarecedor desse fato, quando olhamos para as pessoas concretas de um fariseu e de um publicano (cf. Lc 18,10). Os dois entram num templo e têm atitudes diversas. O fariseu, cheio de orgulho próprio, de vaidade, centrado em seu próprio “eu”, não se abre aos propósitos da Palavra. O publicano demonstra humildade e consciência de sua pequenez.
Há o perigo da pessoa viver escondida por traz de máscaras, que escondem a realidade da vida e a torna falsa na sociedade. O Papa Francisco chamava isso de “clericalismo”, de tradicionalismo, de onde surgem os grandes escândalos, provocando sofrimento para a vida da Igreja. Podemos dizer que a falsidade tem “pernas curtas”, porque a verdade sempre vence nos momentos certos.
Os personagens bíblicos tiveram grande sensibilidade para com o sentido da vida. Paulo escreve a Timóteo falando da fé como parte essencial da existência humana e do seu estilo pessoal, de forma desprendida no seu currículo de vida. Viver além do próprio “eu” é a pessoa colocar-se nas mãos de Deus, tendo nele a plena certeza da recompensa e da coroa da justiça (cf. 2Tm 4,8).
Todo ser humano tem virtudes, capacidades, forças, dons, mas também muitos limites, ambos relacionados com sua identidade, sua origem, seu caráter e seu “eu” constitutivo. Muitas vezes são frutos das influências sociais, tanto positivas como negativas. Sair de si supõe capacidade de discernimento, principalmente por saber que ninguém é o centro do mundo e das atenções na vida.
O coração da pessoa, isto é, o espaço existencial onde o “eu” individual, ou a falta de humildade é muito evidente, ali não tem lugar para Deus. A isto chamamos de individualismo exacerbado, sem sensibilidade para com as realidades divinas e nem para com o outro e, às vezes, até em relação à natureza. É como dizer, “eu me basto e pronto”, não dependo de motivações, nem de fora e nem do alto.
Dom Paulo Mendes Peixoto
Arcebispo de Uberaba.