RETIRO 2006-DOM EDSON

1. RETIRO 2006 - INTRODUÇÃO

Lc 10, 17-24

Vamos iniciar este retiro com a mesma alegria que animou os discípulos quando retornaram para junto de Jesus: “Os setenta e dois voltaram muito alegres” para partilhar a vida e o ministério. “Antes, fiquem alegres porque os nomes de vocês estão escritos nos céu... Nessa hora, Jesus exultou de alegria no espírito Santo, e disse: ‘Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste essas coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos”. Já fizemos tantos retiros em nossa vida. No entanto, cada um deles trouxe alguma iluminação especial, revelou-nos algo novo da pessoa de Jesus e do seu Evangelho, abrasou nosso coração e ajudou-nos a dar passos novos e decididos no caminho da nossa conversão pessoal e eclesial.

Outro fato que nos enche de alegria é a beatificação de nosso Ir Carlos, no dia 13/11/05. O Pe Mariano Puga, responsável internacional da Fraternidade Sacerdotal Jesus Caritas, em sua mensagem natalina, fala sobre este acontecimento:

“Santiago do Chile, 01 de dezembro de 2005.

Queridos Irmãos

O pobre, ignorado, sedento de Deus e de Fraternidade, o monge, o sacerdote missionário…que perdeu seu coração por esse Jesus de Nazaré “que tratei de imitar apesar de minhas debilidades”…acaba de ser inscrito pela Igreja de Roma, que guarda o testemunho dos Apóstolos Pedro e Pablo, entre os Bem-aventurados, pobres, mansos, misericordiosos, sedentos de justiça, puros de coração… proclamados por Jesus de Nazaré.

Foi uma grande festa de Igreja e da Família Espiritual do Ir Carlos! Tanto na Vigília de Oração com os monges de Tre Fontane, como na basílica de São Pedro e na Eucaristia de Ação de Graças do dia 14. Percebia-se no ar o odor do “Espírito de Fraternidade Universal”, junto a nossos irmãos Tuaregues, beduínos de deserto do Saara, as irmãzinhas e irmãozinhos que vieram do Iraque, Afeganistão, Amazônia, das tribos da África, dos bairros marginalizados das grandes cidades, dos extremos da Ásia, comunidades monásticas da Sibéria, Burkina Faso e República Central da África, leigos e leigas de todos os continentes, irmãos, sacerdotes e bispos…que vivem do Espírito de Nazaré, testemunhando e Evangelho do Reino, com compromissos missionários muito diversificados, com expressões litúrgicas simples e fraternas.

Vivemos como um jato de luz fulgurante do Espírito às nossas Igrejas “que não são frias nem quentes, mas mornas…” (Apoc 3, 16) para que elas escutem a voz d“Aquele que bate a porta”…através do gemido de milhões de nossos irmãos pobres que clamar por:

1. Um retorno a Jesus de Nazaré e ao Evangelho do Reino : « O único Modelo celebrado e contemplado na Eucaristia »

2. Igrejas fraternas e aconchegantes, solidárias com os pobres e excluídos… “O Irmão Universal”

3. Missionários que “gritam o Evangelho com suas vidas” e se comprometem, através de novas sendas, para « outro mundo seja possível ».

O Ir Carlos dizia: « Não devemos olhar os santos, mas Aquele que faz os santos ». Na América Latina dizemos: Os mártires-testemunhas - não existem para serem admirados, mas para serem imitados”.

Avante, queridos irmãos, no silêncio, na oração contemplativa e histórica, no deserto, na Revisão de vida em Fraternidade, escancaremos nossas portas para acolher Jesus de Nazaré, o Ressuscitado que nos convida ao Natal!

Na alegria « escandalosa » do Natal! Un abrazo. Mariano Puga.

Queremos encontrar e seguir Jesus seguindo a trilha e as pegadas do Ir Carlos. Ele realizou tantos retiros em sua vida e deixou-nos orientações e preciosos escritos. Ouçamos as dicas que nos dá para realizar um bom retiro: “Em nossa vida escondida, mas sobretudo na pública (quanto mais publica, mais necessário) devemos reservar momentos de repouso, momentos de solidão passados na companhia de Jesus. Devemos fazer retiros que tenham as três características que Jesus nos indica: que sejam momentos de repouso e não de cansaço, nem forçados, nem de trabalho pesado para o espírito, mas momentos de tranqüilidade, da calma, dos quais possamos sair não com o espírito cansado e esgotado por um esforço extraordinário, mas repousados e reanimados por um sereno descanso aos pés de Jesus: um momento de solidão, pois quanto mais estivermos a sós com Jesus, mais o saborearemos; ao amor agrada estar face a face, na intimidade, pois assim podermos consagrar todos os nossos minutos, todos os nossos pensamentos, todo o nosso coração unicamente ao amor e à contemplação do nosso Bem-Amado; sem ocupar-nos de outra coisa senão Ele, permanecendo calmamente aos seus pés e olhando-o sem cessar e interrogando-o como faziam os Apóstolos, a Santíssima Virgem, Maria Madalena quando estavam a sós com o Divino e Bem-Amado Jesus”. Hoje dizemos para nosso Irmão Carlos o que ele dizia a respeito dos santos: “Olhemos os santos, mas não nos demoremos na sua contemplação. Contemplemos com eles, Aquele cuja contemplação lhes encheu a vida... recebendo de cada um aquilo que nos pareça mais conforme às palavras e aos exemplos de Jesus Nosso Senhor, nosso único e verdadeiro modelo, servindo-nos assim dos seus ensinamentos, não para os imitar, mas para melhor imitar Jesus”.

Um amigo assim se expressou quando soube que o Irmão Carlos seria beatificado: “Pessoalmente, você sabe, acho que essa história de canonização "apaga" o santo: os devotos deixam de se interessar pela vida e pelo exemplo do santo e passam a vê-lo apenas como um funcionário de atendimento no balcão de graças do céu. Ninguém sabe - nem quer saber - como viveu Santa Edwiges; o pessoal quer é que as suas dúvidas sejam resolvidas pela padroeira dos endividados. No caso do Irmão Carlos, já que não podemos evitar que aconteça com ele esse desvio de função, pelo menos podemos aproveitar o pretexto para divulgar a pessoa que ele foi e o tipo de espiritualidade a que nos propõe. Para isso, farei o que puder”. Nada melhor do que fazer nosso retiro em companhia do Ir Carlos, acompanhando seu itinerário espiritual, acolhendo suas intuições, assimilando seu carisma, agora oficialmente reconhecido e apresentado aos cristãos do mundo inteiro.

Em cada retiro Jesus quer, com maior intensidade, revelar-nos o Pai: “Ninguém conhece quem é o Filho a não ser o Pai, e ninguém conhece quem é o Pai, a não ser o Filho e aquele a quem o Filho quiser revelar”. E Jesus voltou-se para os discípulos, e lhes disse em particular: ‘Felizes os olhos que vêem o que vocês vêem. Pois eu digo a vocês que muitos profetas quiserem ver o que vocês estão vendo, e não puderam ver; quiseram ouvir o que vocês estão ouvindo, e não puderem ouvir”. Depende de nós oferecer as condições favoráveis para que Jesus nos revele o Pai e exultemos de alegria no Espírito Santo.

A redescoberta da alegria no seguimento de Jesus é um valor que merece ser sempre buscado no retiro. Superar a superficialidade. a rotina, o ascetismo rígido e voluntarista pela acolhida alegre do amor gratuito e total do Senhor e pela fidelidade cada vez mais generosa no seu seguimento. “Conservemos o fervor do espírito, portanto, conservemos a reconfortante alegria de evangelizar, mesmo quando for preciso semear com lágrimas! Que isto constitua a grande alegria de nossas vidas consagradas. E o que o mundo de nosso tempo procura, ora com angústia, ora com esperança, possa receber a Boa Notícia dos lábios, não de evangelizadores tristes e amargurados, impacientes ou ansiosos, mas sim de ministros do Evangelho cuja vida irradie fervor, pois foram quem receberam primeiro em si a alegria de Cristo e são aqueles que aceitaram arriscar a sua própria vida para que o Reino seja anunciado no coração do mundo”( EN 80).

Os frutos de um retiro dependem muito do sentimento de gratuidade de cada participante, pois a oração e a contemplação são as ações mais livres que podemos realizar. Causa-nos sempre profunda impressão contemplar a prática da oração de Jesus: “De madrugada, quando ainda estava escuro, ele se levantou e retirou-se para um lugar deserto para rezar”(Mc 1,35). “A notícia a seu respeito, difundia-se cada vez mais, e acorriam numerosas multidões para ouvi-lo e serem curadas de suas enfermidades. Ele, porém, costumava retirar-se a lugares desertos para rezar” (Lc 5,15-16). E quantas vezes nos diz o Evangelho que ele passava a noite inteira em oração! “É preciso ir ao deserto e nele permanecer para receber a graça de Deus”, nos diz o Irmão Carlos. Uma comparação poderá aqui nos ajudar: um casal que vive realmente o amor sabe dedicar tempo e espaço para a gratuidade, para olhar-se em silêncio, auscultar o coração de cada um, crescer no amor esponsal. Os celibatários corremos o risco de perder a gratuidade na relação com Deus e esquecer de que Ele nos ama, em primeiro lugar por aquilo que somos e, só depois por aquilo que fazemos. Vivido desta forma, o retiro converte-se em refúgio estratégico indispensável par saborear e aprofundar nossa amizade com Deus e também para rever e reforçar a nossa ação evangelizadora.

Vamos reviver a experiência da transfiguração. No alto do monte Tabor dá-se uma revelação dos Divinos Três. Ouviremos a voz do Pai: “Este é o meu Filho querido, escutem o que ele diz”. Seremos envolvidos pela nuvem do Espírito que nos encobrirá com sua sombra. O Pai envia o Filho e o Espírito. Jesus recebe o Espírito e o derrama sobre nós. Cristo é o ícone da Trindade: “Quem me vê, Filipe, vê também o meu Pai”. No encontro do Tabor nasce uma incontida e envolvente alegria que explode no pedido de Pedro: “Senhor, como é bom estarmos aqui!” Em meio a tantos clamores e dores, misérias e sofrimentos do povo, sentimos necessidade de subir ao Tabor para contemplar Jesus, deixar-nos envolver pelos seus sentimentos e permanecer com Ele. “Enquanto rezava, Jesus transfigurou-se”. Retiro é experiência de Deus na oração. Na sinagoga de Nazaré quando proclamou a ano da graça do Senhor, “todos tinham os olhos fixos nele”(Lc 4,20). Precisamos caminhar com os olhos fixos em Jesus, a fim de não perder o rumo e a direção de nossa vida. O retiro funciona como uma espécie de radar para reencontrar o rumo, para reavaliar a caminhada. Tempo de parar para encontrar-se consigo mesmo, com os irmãos, com Deus: centralizar-se novamente nos valores fundamentais que norteiam nossa vida e nossa opções. “Qualquer que seja o ponto a que chegamos, o que importa é manter o rumo certo”(Fl 3,16). Para Paulo, o rumo não se mantém pela observância exterior da lei, mas pelo deixar-se seduzir, conquistar e conduzir por Cristo, pela participação nos seus sofrimentos com a esperança de alcançar com Ele a ressurreição dentre os mortos (cf Fl 3, 1-21).

Neste retiro vamos suplicar ao Senhor uma graça especial: retornar ao primeiro amor, para nos apaixonar novamente por Jesus e pelo Evangelho. O retiro é sempre uma espécie de segundo chamado, tal como aconteceu com Elias, Jeremias, Pedro, Paulo, Irmão Carlos. “Se retornas, eu te faço retornar”(Jr 15,19). Retornar ao primeiro amor, à sedução da juventude: “Seduziste-me, Senhor, e eu me deixei seduzir”(Jr 20,7). “Quando eras jovem, tu mesmo te cingias e andavas por onde querias; quando ficares velho, estenderás as mãos e outro te cingirá e te conduzirá aonde não queres”(Jo 21,18). “Enquanto o homem exterior caminha para o fim, o homem interior se renova a cada dia”( 2Cor 4,16). Cada um de nós é chamado a viver sua etapa existencial, a juventude, a meia idade, a terceira idade como novo chamamento: “Até à velhice de vocês eu serei o mesmo, até que se cubram de cabelos brancos eu continuarei a carregá-los”(Is 46, 4-9). “Sei em quem acreditei, em quem depositei a minha esperança!”(cf 1 Pd 3,15) Tudo o que segue em nossa vida é conseqüência, amadurecimento desta experiência fundamental: colocar nossa vida nas mãos do Senhor e deixar-nos conduzir pelo seu Espírito.

Os discípulos de Emaús sentiam o coração abrasar-se, enquanto Jesus caminhava com eles e lhes explicava as Escrituras. Ao partir o pão da Eucaristia, eles o reconheceram: Vencedor da morte, Cristo Ressuscitado! O Vivente do Apocalipse, o Primogênito dentre os mortos. O Bom Pastor Ressuscitado que caminha à nossa frente e intensifica o ardor missionário. O retiro nos ajudará a regressar às comunidades, ao ministério do amor pastoral com a mesma prontidão e coração abrasado dos discípulos de Emaús, com a mesma alegria de Pedro, Tiago e João na descida do Tabor.

Por fim, os agentes do retiro, colocados na devida hierarquia, são os seguintes:

1. O Espírito Santo é o protagonista da ação santificadora e evangelizadora. ‘Técnicas e instrumentos podem ajudar, porém, jamais substituem a “ação discreta” do Espírito Santo que faz arder o coração do discípulo de Jesus e o coloca no caminho dos irmãos para expressar a sua experiência” (DGAE, 108).

2. O próprio retirante , com suas angústias e esperanças, com seus êxitos e fracassos, com a disposição de dar o melhor de si para acolher e escutar o Senhor que quer lhe falar ao coração: “Oxalá ouvísseis hoje a sua voz: não endureçais os vossos corações como em Meriba, como em Massa, no deserto, em que outrora vossos pais me provocaram apesar de terem visto as minhas obras” (Sl 94,8-9).

3. Os irmãos participantes, podem nos ajudar e também atrapalhar. Solidários na vocação e no ministério, sintamo-nos também corresponsáveis uns pelos outros na busca de Deus, colaborando para criar o ambiente e as condições favoráveis aos nossos irmãos e irmãs para que possamos colher os melhores frutos do nosso retiro.

4. O orientador é um irmão que sugere em voz alta as reflexões, dá pistas, sugestões. É um companheiro de viagem, que se parece um pouco com a “burrinha de Balaão”, que chuta algumas coisas. Não direi novidades. Tentarei ajudá-los a fazer emergir os valores que já estão dentro de vocês, no coração do povo, no meio das comunidades que o Senhor confia ao amor pastoral de vocês, pois “o Reino de Deus já está no meio de nós” (Lc 17,21).

IRMÃO CARLOS DE JESUS

O homem do vento ou uma vida portadora do sopro do Espírito

0 teólogo Yves Congar disse que “Teresinha de Lisieux e Charles de Foucauld foram os grandes faróis que iluminaram o século XX”. O Ir Carlos é ponto de referência de nossos encontros e buscas, pois estamos diante de “um místico em estado puro” (Louis Massignon), de um de um apaixonado de Jesus que “fez da religião um amor” (Pe Huvelin). Nele, fé e amor nunca existiram separados.

O Espírito Santo sempre age de forma nova e criativa na história do mundo e da Igreja. Ele é livre para suscitar homens e mulheres que nos surpreendem pela fidelidade e radicalidade no seguimento de Jesus, na prática do Evangelho e suscitam novos impulsos e formas inesperadas de espiritualidade e evangelização. “Onde está o Espírito do Senhor, aí está a liberdade”( 2Cor 3,17)

O Ir Carlos deixou-se conduzir pelo vento da liberdade e da criatividade do Espírito. Por isso seu carisma e testemunho nos surpreendem. De forma radical ele convida a Igreja toda a “voltar ao Evangelho para encontrar Jesus”, a escolher “Jesus, o Único Modelo”, “a buscar o último lugar”, a “gritar o Evangelho com a vida” isto é, ir às raízes daquilo que faz com que uma existência seja realmente cristã e evangelizadora.

Quando vivo não conseguiu nenhum companheiro, embora o desejasse tanto! Depois de sua morte, a fecundidade do carisma do Ir Carlos inspira não somente novas fundações (onze congregações religiosas e oito associações de fiéis), mas milhares de homens e mulheres que vivem, rezam, evangelizam seguindo suas pegadas nos cinco continentes!

É próprio dos santos romper as fronteiras da graça. E a Igreja não pode se não se alegrar quando a novidade de Cristo e a verdade do Evangelho se irradiam além dos marcos habituais. O Ir Carlos rompe todos os marcos convencionais e torna-se um presente de Deus para a renovação de toda a Igreja. Num mundo que parece cada vez mais curvado diante do material, do conforto e do consumismo, O Ir Carlos oferece uma resposta a esta fome e sede de espiritualidade que marca os nossos tempos. Dom Luciano, publicou na Folha de São Paulo, no dia 12/11/05, um artigo intitulado "Irmão universal Charles de Foucauld", que conclui assim: "Quanto bem continuará fazendo ao nosso tempo a vida de Charles de Foucauld, irmão dos pobres e excluídos. Em meio ao egoísmo, ao desperdício e vazio de valores em nossa sociedade, ele nos revela a paixão pelo absoluto de Deus e a felicidade de quem aprende com o coração de Cristo a dar a vida por amor pelos irmãos".

Desejo partilhar com vocês algumas grandes linhas de uma única historia de amor entre três personagens (no início só eram dois):

O Ir Carlos ou um amante apaixonado de Jesus de Nazaré.

Jesus de Nazaré, pobre operário, rosto humano de Deus e rosto divino do homem.

Os pobres da terra, homens e mulheres, meus irmãos queridos.

Proponho contemplar o itinerário do Ir Carlos em três grandes períodos.

PRIMEIRO PERÍODO: DO NASCIMENTO À ENTRADA NA TRAPA

15 de setembro de 1858 a 15 de janeiro de 1890

Poder-se-ia intitular este período como: “as aventuras de um solitário”. Trata-se de um solitário em busca de si mesmo, de sua identidade. “O coração não encontra paz, enquanto não repousa em Deus”.

Uma síntese biográfica pode nos ajudar a identificar os elementos chave da espiritualidade do Ir Carlos. Nasceu em Estrasburgo, França, no dia 15 de setembro de 1858, no seio de uma família rica da velha aristocracia francesa. Seu pai era visconde. Época marcada pelos desdobramentos da Revolução Francesa. O país estava se reconstruindo após o período napoleônico. Era ainda marcante a divisão entre vida civil e religião, entre culto e vida. Secularização e fé eram vistas como antagônicas.

Órfão de pai e mãe desde os seis anos, foi educado pelos avós. Tornou-se introvertido e melancólico. Estudou com os jesuítas, fez a primeira comunhão, mas logo abandonou a Igreja e perdeu a fé. De aluno brilhante torna-se indolente, rebelde, arrogante. Temendo que sua preguiça e má conduta contagiassem os colegas, foi expulso pelo jesuítas. Ferido em seu orgulho, reage e com esforço pessoal e estímulo de seu avô, consegue ser aprovado colégio S. Cyr para seguir a carreira militar. No período militar levou também uma vida libertina, desregrada, esbanjando a fortuna, herdada do avó, em festas e boemias. Acompanhou uma expedição para defender a Argélia, colônia da França. Foi afastado do exército por indisciplina, principalmente por ter levado consigo uma companheira chamada Mimi. Posteriormente, diria sobre essa época: "Eu praticava o mal, mas não o aprovava nem nele me comprazia. Uma sensação de tristeza e depressão que jamais experimentara, sobrevinha nas noites em que estava só, deixava-me triste e melancólico, durante o que chamamos festas: eu as organizava, mas chegada a hora, eu as passava em silêncio, numa repugnância, num tédio infinito". Por conta própria, preparou-se para uma viagem de estudos geográficos ao Marrocos. Como era proibida a entrada de europeus naquele país muçulmano, percorreu 3.000 km disfarçado como um pobre judeu, na companhia de Mardoqueu, um rabino que lhe garantia acolhida e proteção da parte dos judeus. Para tanto estudou hebraico e árabe, tornou-se conhecedor da Bíblia e do Corão. A viagem durou quinze meses. Retornou à Argel onde se apaixonou por Marguerite, uma jovem protestante, filha do comandante Titre, convertida ao catolicismo e, por esse motivo, deserdada por sua família. Regressou à Paris para comunicar que pretendia casar-se. Por influência de seus familiares, não levou a diante esse relacionamento, pois a jovem não pertencia à sua classe social. Nesse período, a partir de sua observação perspicaz e anotações minuciosas preparou a publicação do livro “Reconhecimento do Marrocos”, o que lhe valeu o prêmio da Academia Francesa de Geografia.

O contato com o deserto, o impacto com a espiritualidade dos muçulmanos na busca do Absoluto de Deus despertou nele forte inquietação religiosa, adormecida por tantos anos. “O Islã produziu em mim uma profunda comoção... a visão dessa fé, dessas almas vivendo continuamente na presença de Deus, fez-me entrever algo maior e mais verdadeiro que as ocupações mundanas: ad maiora nati sumus”. Compôs uma pequena oração que repetia constantemente: “Deus, se existis, fazei com que eu vos conheça”.

O primeiro acontecimento-chave deste período é sua conversão, no final de outubro de 1886. O que se passou? Ir Carlos estava escrevendo um livro de seu itinerário no Marrocos. Atravessa uma etapa de inquietação e de busca. O testemunho dos mulçumanos o questiona, como também as pessoas que vivem com ele em Paris. Seus amigos mais próximos são cristãos. Sua busca de sentido é reforçada pela paz e serenidade que emanam de sua prima, Maria de Bondy. Referindo-se ao testemunho dela, escreve: “Uma bela alma vos secundava, meu Deus, por meio do seu silêncio, da sua doçura, da sua bondade e a sua perfeição... não se deixava notar, expandia seu perfume atraindo, mas sem intervir. Vós, meu Jesus, meu Salvador, vós fazíeis tudo, tanto por dentro como por fora... Vós me atraístes para a virtude pela beleza de uma alma em que a virtude se apresentou a mim tão bela que fascinou irremediavelmente o meu coração. Vós me atraístes para a verdade pela beleza dessa alma”. Empreende uma investigação nos filósofos e nas diferentes religiões buscando saber onde está a verdade. “Que é a verdade?” (Jo 18, 38): esta pergunta de Pilatos caracteriza perfeitamente sua atitude neste momento. Pede, então, à prima Maria de Bondy que lhe indique uma pessoa que conheça o cristianismo para instruí-lo. Ela o encaminha ao Pe Huvelin que sabe de quem se trata, pois o via passar horas em silêncio na igreja de Santo Agostinho, onde era confessor. Teve uma intuição extraordinária ao dizer: “Este homem não tem necessidade de conhecimento, de estudo, mas precisa de uma experiência”. Quando o procura para dialogar sobre o cristianismo lhe diz: “Ponha-te de joelhos e confesse”. Ir Carlos replica: “Mas eu não vim para isto! Vim pedir instrução”. Ele repete: “Ponha-te de joelhos e confesse”. Ele se submete, se confessa e imediatamente recebe a Eucaristia. O Pe Huvelin estava convencido de que a fé não é uma questão de conhecimento, de ciência, de sabedoria, de filosofia. É uma experiência pessoal, um encontro com alguém que nos acolhe com amor. De fato, o Ir Carlos diz que logo depois toma consciência de que é amado. Por que? Porque estava perdoado. Descobre, através de Jesus, que Deus realmente o ama porque está perdoado. Pela confissão de seus pecados encontra não um deus filósofo, mas uma Pessoa, Alguém que o amava e estava à sua espera para perdoá-lo. O ponto de partida para a fé não é o estudo, mas o encontro face a face com Alguém. Depois, pode-se estudar para aprofundar o significado da fé.

Houve realmente um encontro com Deus Vivo que marcou para sempre. Anos mais tarde falará da “paz infinita, da luz radiosa” que o invadiu nesta hora. Fez ao mesmo tempo fez a experiência do filho pródigo que no perdão encontrou o Pai e a dos peregrinos de Emaús que depois de uma longa caminhada reconheceram o Ressuscitado no pão partilhado da Eucaristia. O Ir Carlos é um órfão e a morte de seus pais, e principalmente a do pai deixou nele uma ferida profunda. Morreu em conseqüência de uma dolorosa doença que tentaram esconder das crianças. Afetou gravemente o cérebro e seu pai foi se apagando da vida familiar numa certa atmosfera de mistério. Sobre esse fundo de ausência, seu encontro com Deus, experimentado como Pai, deve ter sido algo extraordinário. Saboreou a ternura de Deus, do perdão que nos convida, não à penitência, mas à festa. Perdoa e entrega seu Filho na Eucaristia. Anos mais tarde, recordando aquele fim de outubro de 1886, escreve: “Quando descobri que Deus existia, descobri também que não poderia viver senão só para Ele. Minha vocação religiosa nasceu no mesmo instante da minha conversão”.

Desde o momento em que o Ir Carlos foi laçado e conquistado por Jesus, sua vida permaneceu centrada no mistério de Deus em quem se abandonou perdidamente. Esta entrega a Deus, não inclui somente a obediência e o esforço permanente de conversão, mas inspira também o louvor e o agradecimento. Alguns exemplos:

Em 1897, onze anos depois de sua conversão, no pequeno eremitério de Nazaré, como S. Agostinho e S. Terezinha de Lisieux, recorda o seu passado e canta a misericórdia de Deus para com ele: “Meu Deus! Temos que cantar tuas misericórdias, todos nós criados para tua eterna glória e resgatados pelo sangue de Jesus, por teu sangue Jesus, que estás aqui ao meu lado no sacrário. Se todos devemos fazê-lo, muito mais eu, que desde minha infância fui cercado de tantas graças. Meu Deus, a que ponto tuas mãos me seguravam e eu nem se quer as percebia! Como és bondoso, e quanto me protegias! Tu me cobrias com tuas asas quando eu nem mesmo acreditava em tua existência. No entanto me guardavas assim, o tempo passava e julgaste que se aproximava a hora de me fazer retornar ao teu redil”.

Em 1904, quando já estava no Saara e continuava buscando o seu caminho, escreve ao amigo Henri de Castries evocando sua confiança absoluta em Deus que conduz sua vida: “É tão doce sentir-se nas mãos de Deus, ser levado pelo Criador, bondade suprema, - ‘Deus caritas est’- Ele é o Amor, o amante, o Esposo de nossas almas no tempo e para toda a eternidade. É tão doce sentir-se conduzido por esta mão no decurso desta breve vida até à eternidade de luz e de amor para a qual nos criou”.

A partir deste momento coloca-se para ele a grande questão de São Paulo: “Senhor que queres que eu faça?” Após a conversão-encontro com Deus, nasce a pergunta. Trata-se de responder a vocação que se enraíza no rosto encontrado. A maneira como Deus revela seu rosto define também a vida e a missão a que Ele nos chama. No início da Carta aos Romanos, Paulo se apresenta dizendo: “recebi uma graça e uma missão” (Rm 1, 5). A graça é o encontro com o rosto de Deus. A missão é a tarefa que brota do encontro. O rosto de Deus manifestado através da pessoa de Jesus é o que vai definir a vocação e a missão.

O Pe Huvelin pensa que o Ir Carlos quer entrar de pressa demais numa congregação religiosa, a mais severa de todas. Por isso, manda-o fazer uma peregrinação à Terra Santa, no final de 1888 e janeiro de 1889. Não vou descrever a peregrinação, quero apenas destacar uma descoberta marcante, determinante na vida do Ir Carlos. Desembarca em Jafa, sobe logo a Jerusalém e de lá segue para Belém, para o dia 25 de dezembro. O mistério da Encarnação lhe causa impacto, mas percebe que de Belém se descortinam os campanários de Jerusalém. A alegria da vinda de Jesus está presente, mas, ao mesmo tempo, está ligada ao Gólgata, ao acontecimento da cruz. Volta à Jerusalém, dirige-se para a Galiléia e se detém em Nazaré, o único lugar onde volta uma segunda vez. Em Nazaré encontra a resposta à pergunta: “O que devo fazer?”

É o segundo acontecimento chave, ou a segunda revelação do amor de Deus. O Ir Carlos diz: “Estou percorrendo os mesmos caminhos que Deus, o pobre operário, caminhou, aqui em Nazaré. É o rosto de Deus, pobre operário, um dos nossos”. Mais adiante chega a dizer várias vezes: a partir deste momento o rosto de Jesus de Nazaré, o rosto de Deus pobre operário de Nazaré, determinou sua vocação.

Em 1886, pela conversão, o acontecimento chave foi o encontro com Deus que perdoa, fazendo a experiência do perdão e da gratuidade do amor salvador, na Eucaristia. Em 1889: é o encontro do rosto de Jesus de Nazaré. Três mistérios vão marcar sua vida, a partir dos lugares onde aconteceram. É importante sublinhar que estes três mistérios se apresentam nesta ordem.

1. Belém: A encarnação que ele descobre neste momento, e de uma maneira muito precisa, é uma indescritível descida, uma “incrível humildade” de Deus que se faz um de nós.

2. Jerusalém: a cruz revela a loucura do amor de Deus por nós. “Amamos a Deus porque ele nos amou primeiro. A Paixão, o Calvário são a suprema declaração de amor. O amor é o meio mais poderoso para se fazer amar. E também porque sofrer para quem se ama é o meio mais invencível para provar que se ama”.

3. Nazaré: “uma incrível solidariedade”. Ele vê Nazaré à luz de Jerusalém, do mistério da cruz. Nazaré é o rebaixamento, o aniquilamento. Por que? Porque o Filho de Deus se faz operário. É o visconde quem raciocina. Durante muito tempo ele contempla em Nazaré apenas o aspecto do rebaixamento, de aniquilamento. Na medida em que avança, sua visão de Nazaré evoluirá muito no sentido da solidariedade.

Desde então, o Ir Carlos procura responder à questão: o que devo fazer? "Imitar Jesus em sua vida escondida de Nazaré". Sabe-se disso porque logo em seguida fez quatro grandes retiros e deixou-nos muitos escritos marcados por esta busca: onde viver esta vida escondida de Nazaré? Na busca de abjeção, de esvaziamento, de anonimato.

Com a conversão aflorou em de Foucauld o desejo de imitação, identificação pessoal com Jesus. “Não suporto viver outra vida que não seja a de Jesus de Nazaré”. A dimensão da vida de Jesus que mais apaixonou o Ir Carlos e a qual quis imitar foi a do “operário filho de Maria (Mc 6,3) que em Nazaré assumiu a vida humilde e ordinária dos seus conterrâneos. “Deus, Ser infinito, o Onipotente se fez homem, o último dos homens”. Estabelece como programa de vida: “Para mim, procurar sempre os últimos lugares a fim de ser pequeno quanto foi meu Mestre, caminhar passo a passo com Ele, como um discípulo fiel, viver com o meu Deus que viveu assim por toda a vida e me deu um exemplo desde o seu nascimento”. Seu primeiro desejo foi buscar a forma de vida religiosa mais severa e exigente onde pudesse viver o Absoluto de Deus na fidelidade ao seguimento de Jesus. Depois da peregrinação à Terra Santa, seguindo a orientação do Pe Huvelin, entrou na Trapa de Akbes, na Síria, onde permaneceu seis anos.

SEGUNDO PERÍODO: AS DUAS PARTES DE UM NOVICIADO

janeiro de 1890 a agosto de 1900

1º. O monge trapista, Ir Maria Alberico; 2º. Três anos em Nazaré, servidor das Clarissas

Na verdade, todo este período constitui um longo noviciado. Se a primeira parte é essencialmente uma busca de identidade, um buscar-se a si mesmo, agora é uma busca de ruptura consigo e com o seu passado, por causa de Jesus e do Evangelho. Por isso é que buscou a Trapa mais pobre e a mais afastada daqueles que ele ama, do seu passado.

A primeira etapa se estende de 16 de janeiro de 1890 até 1897. O Ir Carlos entra na Trapa. É o terceiro acontecimento-chave que ele denomina “o grande sacrifício ou o dia da obediência a Deus”. É o dia do adeus ao Pe Huvelin, à Maria Bondy e a todas as pessoas que ele ama. É uma ruptura que lhe custou enormemente. Vinte anos depois escreveu: “No dia 15 de janeiro de 1890, às 17:10h eu entrei na casa do Pe Huvelin. Às 17:35 fui à casa de Maria de Bondy. Ás 17:55 deixei a casa de Maria de Bondy. No dia seguinte, 16 de janeiro, entrei na Trapa". O dia mais importante não é 16 de janeiro, mas o dia 15, o dia do grande sacrifício. Como se pode ver, esta data contém altíssima dose de sacrifício. "Sacrifício que me custou todas as lágrimas, pois desde esse dia não choro, parece que não tenho mais lágrimas... mas que em algumas ocasiões, quando penso nele... A ferida do dia 15 de janeiro continua a mesma... O sacrifício de então continua sendo o sacrifício de cada hora".

Neste período, em suas meditações volta sempre a expressão: “Estou na Trapa para seguir a Jesus na sua vida escondida em Nazaré”. A dimensão da vida de Jesus que mais apaixonou o Ir Carlos e a qual quis imitar foi a do “operário, filho de Maria” (Mc 6,3) que teve me Nazaré a vida pobre e ordinária dos seus compatriotas. O Ir Carlos é alguém que precisa sempre expressar o que descobre e o que sente. A partir desse momento, seguir Jesus e viver somente para Deus será algo extremamente concreto para ele: nessa aldeiazinha Jesus viveu durante trinta nos. Segui-lo será, portanto partilhar concretamente a mesma vida e viver somente para Deus. Será escolher esta vida escondida em Nazaré, numa condição de pobreza, anonimato: “Minha vocação é descer. O Evangelho nos diz Jesus desceu com eles para Nazaré. A vida toda, Ele só fez descer. Descer encarnando-se. Descer fazendo-se criancinha, descer obedecendo, descer tornando-se pobre, abandonado, perseguido, torturado, colocando-se sempre no último lugar”. Sua meta consiste em “rebaixar-se”, abaixar-se sempre mais. Há algo de extraordinariamente belo nesta etapa: a necessidade de viver de forma real esta ruptura pascal permite abrir-se para Deus.

O que reter deste período? Depressa ele vai sentir que a Trapa não permite ainda viver radicalmente as pegadas de Jesus de Nazaré. Percebe que ainda não encontrou o que está buscando. Por que? Talvez o mais importante não é a razão que ele mesmo dá. Certamente isto traduz algo, mas, como sempre, temos dificuldade de expressar para nós mesmos as razões profundas que comandam nosso agir. Em todo caso, podemos anotar duas coisas que parecem importantes. Em particular, há um pequeno caso que teve grande relevância em sua vida. Certa noite, o mandaram velar um vizinho, um pobre camponês que tinha morrido. Nesta ocasião, ele se dá conta da pobreza do povo da região. De volta escreve: “É verdade que a Trapa de Akbès é muito pobre. Mas não é a pobreza do povo”. Não é a pobreza que o povo vive, então, não é a pobreza de Jesus de Nazaré. O povo é muito mais pobre que eles; vive um outro tipo de pobreza. Além disso, aos poucos foi percebendo que o modo de viver e rezar dos monges se afastava dos pobres e do jeito de viver de Jesus de Nazaré.

Outro acontecimento marcante presente em várias das suas cartas: no período do massacre dos armênios ele se encontra na Trapa protegida pelo exército turco que massacra seus irmãos, os cristãos armênios. Percebe o absurdo da situação. Há ainda outros acontecimentos. O superior pede-lhe para dirigir um grupo de operários para fazer uma estrada através da propriedade, dando possibilidade de acesso aos campos para trabalhar a terra. Faz o papel de engenheiro e diz: “Isso não é abaixar-se, ser o último, viver escondido...”

Começa a escrever uma primeira regra, em 1896. Já que a Trapa não corresponde ao que busca, deve criar outra forma de vida religiosa. Como o Pe Huvelin lhe diz que é impossível viver essa regra, redige outra, em 1899, que conclui após sua saída da Trapa e a levará consigo até o fim da vida. É a regra dos “Eremitas do Sagrado Coração de Jesus”. Desta regra só mudará algumas palavras. Em 1901, durante seu retiro de ordenação substitui Eremitas “Irmãozinhos do Sagrado Coração de Jesus”.

Durante este período, o Pe Huvelin lhe escreve: “Há em você um impulso muito profundo e não se encontra no lugar onde deveria estar”. Já havia escrito em 1895 para Maria de Bondy: “Ele não ficará na Trapa”. Tinha sentido que alguma coisa não ia bem e não via como orientá-lo. Por isso, pediu-lhe que permanecesse na Trapa.

O 4º acontecimento-chave acontece no dia 23/01/1897. No período que antecedeu esta data, viveu a etapa da obediência mais difícil, “a obediência de Abraão”. Pede para sair da Trapa. Os superiores não concordam e o enviam à Roma para estudar teologia. De 15 a 23 de janeiro, faz um retiro e reitera seu pedido. Escreveu para Marie de Bondy: “No dia em que minha vocação estiver clara para meu padre geral e para meu mestre espiritual e lhes parecer evidente que Deus já não me quer na Trapa, eles me avisarão e me aconselharão a retirar-me. São extremamente delicados de consciência para me deterem, nem se quer um dia, quando perceberem que a vontade de Deus é outra”. O superior geral chega de Roma e decide examinar pessoalmente o pedido e dar-lhe uma resposta. O Ir Carlos diz ao geral: “Farei o que o Senhor decidir. Se o Senhor disser que eu posso partir, ficarei alegre e partirei. Se disser que devo continuar a teologia, fazer os votos perpétuos, ser ordenado padre, eu obedecerei”. Faz um retiro à espera da resposta do superior. Nisto consiste a obediência religiosa: comunhão entre pessoas na procura da vontade de Deus. O que Deus quer? Nunca está totalmente claro para ninguém. Qual a verdadeira resposta que devemos dar? A vida religiosa consiste em buscar em comunhão com os outros. O voto de obediência consiste em buscar a maior conformidade possível ao que Deus espera de mim junto com a comunidade. A obediência exige unir-se a outras pessoas. O Ir Carlos vive com intensidade este momento. Se o superior lhe tivesse pedido para ficar na Trapa, sua vida, indubitavelmente, teria sido outra.

Era a obediência de Abraão, porque ele já tinha escrito suas constituições. Se o superior lhe pedisse para continuar na Trapa, significaria renunciar ao seu plano de fundador. Mas, no dia 23 de janeiro, o superior geral lhe diz: “Siga seu caminho”. Neste momento escreve cartas muito bonitas, transbordantes de alegria. O trapista Dom Luís Gonzaga escreve uma carta que mostra a reação que teve a ordem com a saída do Ir Carlos: "Nosso Ir Maria Alberico abandonou definitivamente a ordem para levar na Palestina, creio, vida de ermitão ou algo parecido. É uma desventura e uma grande dor para mim. Pensava que em Roma que as coisas não seriam tratadas tão bruscamente, mas deve-se reconhecer que ele é realmente tenaz em seus desejos e decisões, para não dizer outra coisa. Para dizer a verdade, em nossa ordem, gostou de algumas pessoas, do Pe Policarpo, de ti, de mim, de alguns outros, mas pouco da própria ordem. É a própria imagem da nobreza do século XIX, corajoso, generoso com seu sangue e seu dinheiro, e às vezes, como nesse caso, santo, mas incapaz de obediência contínua e disciplinada, sob um comando; poderá chegar a ser santo, e assim o desejo, mas a seu modo, não obedecendo. Fez sacrifícios grandes e belos demais para que se perca. Em minha opinião, a garantia seria o caminho extraordinário a que se propõe".

Que vai fazer agora? Está sempre sob a direção do Pe Huvelin que lhe escreve: “Vá viver na sombra de um convento. Não pense em agrupar almas em torno de você, muito menos em lhe oferecer uma regra de vida. Viva sua vida. Depois, se pessoas se aproximarem, vivam juntos a mesma vida sem regulamentar nada. Sobre este ponto eu sou firme”. O Pe Huvelin conhece bem o Ir Carlos e sabe que é preciso lhe dizer as coisas claramente. Ele sai da Trapa e parte diretamente da Itália para a Palestina. Passa por Jerusalém e vai a Nazaré. Lá procura um convento que queira acolhê-lo. Por intermédio de um franciscano, vai morar junto ao mosteiro das Clarissas. Começa sua vida de Nazaré em Nazaré: será seu segundo noviciado. Servidor das Clarissas do dia 04/03/1897 até agosto de 1900.

Durante este período o que busca acima de tudo é o abaixar-se, esconder-se o mais possível, desaparecer. Quer ser desprezado. Veste-se de maneira esquisita e sente-se feliz quando as crianças da rua lhe atiram pedras. Busca a abjeção de Jesus na cruz.

Faz uma verdadeira experiência de “sepultamento”, busca o último lugar. É também um período de fortes tentações. Tentação de fuga. Dá-se conta de que é inviável permanecer ali. Vive numa obediência total ao Pe Huvelin. A cada 15 dias lhe ocorre uma nova idéia. Escreve ao padre o que pensa e este lhe responde: “Não, fique em Nazaré”. Ele obedece. Abandona o projeto e retoma sua vida em Nazaré. Semanas depois uma nova idéia lhe vem: “É preciso que eu parta à França para fazer uma coleta em favor das bravas religiosas de Nazaré, porque elas não tem nada para viver. Conheço muitas pessoas na França, devo procurá-las para esta coleta”.

Há outras tentações. Um dia ele ouve falar de uma viúva cujo filho partiu para a França para trabalhar e ajudar sua mãe. Mas o desejo do jovem é entrar na Trapa. Então, Ir Carlos decide: “Vou vender-me às irmãs da caridade. Trabalharei ao serviço delas num hospital; elas darão uma pequena soma de dinheiro a esta viúva para que possa sobreviver e assim o seu filho poderá entrar na Trapa”. É exatamente a vocação daqueles que se vendiam aos outros, durante a Idade Média. Comunica ao Pe Huvelin e vem a resposta: “Não, fique em seu lugar em Nazaré”. Segundo os critérios de hoje, esta teria sido a mais bela ocasião de Ir Carlos tornar-se um verdadeiro “irmãozinho” de Jesus.

O projeto seguinte é a famosa compra do monte das Bem-aventuranças. Diz para si mesmo: “O monte das Bem-aventuranças pertence ainda aos pagãos. Se puder comprá-lo, estabelecer-me-ei lá como eremita”. Uma nova aventura que lhe vai custar caro. Um vigarista levou boa soma de dinheiro que ele conseguiu de amigos da França e o Monte continuou nas mãos dos "pagãos".

Neste período escreve muito. A maior parte das meditações do Evangelho, publicadas em oito volumes, são deste período. Passa horas e horas rezando, fazendo adoração ou meditando diante da Eucaristia. Medita e escreve. Talvez escreva tanto para diblar o sono e evitar as distrações.

Tem o desejo de abaixar-se, esconder-se, desaparecer, o desejo de intimidade com Jesus. “Rezar é freqüentar Jesus”. Mas se dá conta de que algo falta em sua vida. O encontro dual de Ir Carlos – Jesus foi levado até o fim. No entanto, percebe cada vez mais, no coração desta intimidade real, que Jesus não veio simplesmente para um encontro a dois, mas para congregar todos os homens. É preciso levar adiante esta Boa Nova, trabalhar pela salvação das pessoas não somente na intimidade com Jesus, mas no relacionamento com elas. Embora querendo sepultar-se, isso leva agora a pensar em fugir, procurar outro lugar. Por que? Porque é preciso reencontrar as pessoas e neste período de Nazaré ele não vê quase ninguém. Através das grades vê a superiora das Clarissas de vez em quando e a cada semana sai para se confessar. Além disso: a Eucaristia de Jesus e ele. Falta um terceiro personagem. Isto ainda não está muito claro em sua cabeça, mas evidente em suas buscas, em seus gestos. Aos poucos surgem outras descobertas: a necessidade de relação com os outros, o amor e o serviço aos mais pobres.

Nesta época nascem os textos sobre os três tipos de vida. A melhor vida religiosa é a imitação de Jesus. Ora, Jesus viveu três etapas – a vida no deserto (não sou feito para não comer); a vida de pregação (pregar não é minha vocação); a vida de Nazaré (sou feito por ela). Tenta sistematizar tudo o que sente e, ao mesmo tempo, procura persuadir-se de que deve ficar em Nazaré, como o aconselha o Pe Huvelin. Mas algo novo e importante aparece neste momento: suas meditações sobre o mistério da visitação. Descobre uma rica simbologia que integra maravilhosamente Nazaré (a virgem de Nazaré), a Eucaristia (a presença escondida de Jesus no seio de Maria, o que o Ir Carlos vai também querer fazer: transportar a Eucaristia) e “trabalhar na salvação das almas” (Jesus, presente em Maria, santifica João Batista pela simples presença). Aos seus olhos não se trata tanto de uma visita de caridade para servir a sua prima nos últimos meses de gravidez e no momento do parto, embora isto seja importante, tem algo mais: “Maria parte para santificar São João, para lhe anunciar a boa nova, para o evangelizar e santificar, não com as palavras, mas levando-lhe Jesus, em silêncio, na sua morada”.

Deste período devemos ainda ressaltar outro elemento. Foi uma época de tentações vividas numa obediência cega. Talvez não por acaso, mas como conseqüência constituiu um estágio único em que o Ir Carlos recebeu muitos favores divinos, graças da presença de Deus na “noite escura”. René Voillaume fala de “imensas graças místicas”.

Lendo seus escritos, em particular do Natal de 97 à Páscoa de 98, nota-se que atravessa um período de trevas, vive “a noite escura”. Pergunta-se: "Por que permanecer em Nazaré? Que sentido tem esta vida? No entanto, Deus me pede para permanecer aqui porque meu diretor espiritual me aconselha". Vive, apesar desta dificuldade, o consolo da presença de Deus na noite, a certeza de que Deus está presente no meio de suas incertezas e buscas.

Começa a cogitar na possibilidade da ordenação sacerdotal. Por que? Porque Ir Carlos é um bom monge contemplativo e sabe muito bem que, segundo a tradição não é possível ser verdadeiro monge contemplativo e estar a serviço dos outros (é o que lhe falta, a relação com os outros), sem ser sacerdote. Qual é o serviço compatível com a vida “totalmente contemplativa” (como ele mesmo diz: “minha vida deve ser toda contemplativa”) e ao mesmo tempo ao serviço dos homens? O sacerdócio. Talvez foi esta a última tentação: permite-lhe deixar Nazaré e dar um passo novo. A questão é: onde ir? Outra vez uma longa busca. Escreve ao Pe Huvelin: “Permaneço na espera. Deus me trouxe até aqui, Por conselho seu, permaneço aqui. Deixo que ele conduza minha vida. Quando ele quiser que eu parta, se por acaso quiser, o que me parece certo, Ele me mostrará claramente por sua voz, querido padre, ou pelos acontecimentos. Assim espero e me deixo conduzir”.

O Ir Carlos demora para encontrar “a nova Nazaré”, mas está no rumo certo, pois a generosidade dos passos dados anteriormente e a fidelidade ao Bem-Amado e ao evangelho determinam a nova busca e opção a ser tomada. Decide ir ao deserto do Saara para viver entre os nômades, principalmente entre os tuaregues, entre os muçulmanos que lhe causaram forte impacto quando fez a viagem de reconhecimento da geografia do Marrocos.

TERCEIRO PERÍODO: DE 1900 ATÉ O FINAL DA VIDA

"Amo a Jesus Cristo, embora com um coração que gostaria de amar mais e melhor.

Apesar disso, eu o amo e não posso suportar viver outra vida que não seja a sua".

Em agosto de 1900, parte bruscamente da Terra Santa para se encontrar com o Pe Huvelin e combinar com ele a preparação para a ordenação presbiteral. É a grande mudança: passar de uma concepção de vida religiosa, onde tudo está centralizado no relacionamento com Deus (o que é correto, pois esta relação é fundamental, prioritária) a uma concepção na qual se integra um elemento novo: a presença dos outros, o serviço aos irmãos, o missionário em busca dos mais abandonados. Por isso, esta evolução do terceiro período pode denominar-se: bailando a três. Já não é mais um dueto.

Estuda teologia na Trapa de Nossa Senhora das Neves e recebe a ordenação sacerdotal no dia 09 de junho de 1901, na capela do Seminário Maior de Viviers com a firme decisão de levar o banquete da Eucaristia aos pobres. “Os meus últimos retiros do diaconato e do sacerdócio mostraram-me que essa vida, que por vocação tinha levado em Nazaré, eu devia continuá-la longe da Terra Santa, no meio das almas mais enfermas, das ovelhas mais desamparadas do rebanho. O banquete divino do qual era ministro devia levá-lo não aos parentes e vizinhos ricos, mas aos mais aleijados, aos mais cegos, aos mais abandonados”. Essa luminosa tomada de consciência revela o sentido pastoral, eclesial e missionário do “irmão universal”. Durante os 15 anos vividos em Beni-Abbés e em Tamanrasset, permanecendo por longas horas na companhia do Santíssimo Sacramento no silêncio do deserto, o Ir Carlos apresenta o mundo a Deus e contribui humildemente para fazer conhecer a Boa Nova da salvação, cumprindo assim com fidelidade sua missão presbiteral.

Após sua ordenação começa o período mais longo que vai até sua morte, em 1916. O que marca este terceiro período? Nas etapas anteriores queria sempre maior distancia de seu passado, ficar o mais longe possível de tudo o que amava, a começar pelos familiares e amigos. Agora, vai mudar, embora só explicite isto no final da vida. A partir de agora busca ser sempre mais íntimo na aproximação dos outros, mais comprometido com todos. Já não é afastando-se dos outros que vai libertar-se de si mesmo, de seu projeto, de suas idéias, mas é ligando-se aos outros que vai, de fato, ficar desprendido de si mesmo e entregue a Deus e aos outros.

É impossível falar de todo este longo período... A primeira pergunta tinha sido: “O que devo fazer?” Depois: “A onde ir?” Agora será: “Como trabalhar pela salvação das almas?”. No inicio ele pensava em trabalhar pela salvação dos irmãos através do aniquilamento, do sacrifício, da renúncia de si mesmo, o que nunca perderá o seu valor. Medita o que os diz São Paulo: “Jesus era rico e se fez pobre para nos enriquecer com sua pobreza”. Jesus se fez pobre para ser nosso irmão, não para ser pobre. Não é pelo fato de nada possuir que nos enriqueceu, mas porque criou laços conosco é que pode nos transmitir sua vida. Isto constitui o cerne da última etapa da vida do Ir Carlos. Não digo ‘descobriu’ porque ele nunca fez teologia disto. Uma vida é como um rio: as águas correm mansamente no seu leito, mas de tempos em tempos, irrompe um Ir Carlos que causa inundação. As águas vão além das margens, transbordam. Se esta água não provém do Espírito Santo, a água profunda de sua vocação, ela se diluirá nas areias do deserto. Se, ao contrário, corresponde exatamente ao que Deus pede, são águas que se avolumam e este rio se aprofunda cada vez mais.

Aqui também passou por diferentes etapas: primeiro em Beni-Abbès, onde vive como monge de clausura, monge perdido no mundo. Pouco a pouco descobre que o Senhor lhe pede para não ficar fechado num eremitério. Quando seu amigo Lapérinne o convida para colaborar com ele nos acampamentos dos tauaregues, sente um forte apelo para atender. Contudo resiste. Por que? De um lado, estava próximo do Marrocos para onde sonhava um dia poder entrar. Mas, a grande razão que o detém, é que se ele parte renuncia ao projeto de fundar uma congregação. Para conseguir irmãos deveria permanecer em Béni-Abbès. Daí porque resiste. Escreve ao Pe Huvelin: “Lapérinne me convidou duas vezes. Mas respondi que fico aqui”. Dois dias depois recebe um telegrama do Vigário Apostólico do Saara, Mons. Guérin, que lhe diz: “Estaria a favor de sua ida ao Hoggar”. É curioso ler as meditações deste dia sobre o abandono à vontade de Deus: “Estou disposto a fazer tudo o que Deus quiser. Se, por acaso, alguma coisa me indicar que a vontade de Deus se manifesta a favor...” Três dias depois ele parte. É fantástico constatar nele ao mesmo tempo um homem profundamente humano e uma obediência notável. Retoma o texto da visitação: “Maria partiu apressadamente para a região montanhosa”.

Não é um detalhe. Isto determina a saída do pequeno convento que construíra em Beni-Abbès, que tem tinha muitos aspectos interessantes, mas também muitos córregos que se perdiam na areia...

Em 1904, a saída da clausura. Aflora com intensidade o interesse por criar laços com o povo. Um dos textos que retoma, muitas vezes em suas meditações é Mt 25. No dia 26/05/1905, chega ao Hoggar, no oásis de Tit, e vê dois lugares onde poderia instalar a fraternidade: “O primeiro tem o inconveniente de estar muito perto do povo e exposto a muitas visitas. O segundo tem a vantagem de estar longe das pessoas e do barulho”. É o começo de sua meditação. Depois, faz Jesus falar. Espera uma resposta. “Onde deve ir?” Ao primeiro lugar ou ao segundo? E Jesus lhe diz: “Estabelece-te no primeiro lugar, onde tens ao mesmo tempo a perfeição de minha imitação e a perfeição da caridade. É o amor que deve recolher-te em mim, interiormente, e não o afastamento de meus irmãos. Procura ver-me neles e como eu em Nazaré vivia próximo deles, perdido em Deus”.

Poder-se-ia dizer que é uma reflexão escrita de passagem. No dia seguinte encontram-se alusões à sua vida em Beni-Abbès, ao monge de clausura. Retornam seus hábitos monacais, sobretudo se está em retiro. Retoma, então, sua regra de 1899 e se pergunta se continua sendo fiel à mesma. Alguns dias depois vive outra coisa. O critério para compreender sua vida não são apenas as meditações e as cartas, mas o que elas plasmam, de forma constante, em sua caminhada. Além disso, sem conhecer a “teologia dos sinais dos tempos”( que aprendemos com o Papa João XXIII), O Ir Carlos está sempre atendo às circunstâncias, aos acontecimentos e se deixa conduzir pelo vento do Espírito que conduz os homens, a Igreja e a história. Não há dúvida que, a partir de 1904 até 1916, ele vai ampliando o sentido da vida de Nazaré. O relacionamento fraterno, as amides não vão impedir as grandes rupturas pascais. Na medida em que se deixa consumir pelos outros, novas rupturas vão existir certamente, porém, não são rupturas que vive um monge. Vai assumindo a vida contemplativa de uma forma diferente, com meios novos. É a vida de Nazaré profundamente unida ao mistério da redenção, um jeito novo de entrar no mistério da redenção. Jesus viveu a vida pública e a paixão a partir da vida-inserção em Nazaré. É precisamente neste sentido que Jesus foi Nazareno. O trapista encontrou a outra face do rosto de Cristo, que não é contraditória, mas complementar: o interesse pela salvação das almas. Devemos abordar aqui dois assuntos importantes:

1. O primeiro é sua atitude diante da Eucaristia, manifestada na resposta à carta de Mons Guérin, no dia 02/07/1907, antes de viajar ao Hoggar. Mons Guérin lhe havia escrito: “Se você permanecer no Hoggar, saiba que estará só e as leis da Igreja, no momento, não permitem a um padre celebrar a Eucaristia sozinho”. Então ele se pergunta: “Ir ao Hoggar ou, ao contrário, não partir para poder continuar celebrando a Eucaristia?”. Escreve ao Mons Guérin: “Até o presente sempre pensei que deveríamos considerar a Eucaristia antes de tudo. A Eucaristia é a presença de Deus, é o Infinito. Mas deve haver algo equivocado nesta forma de pensar, pois constato que desde apóstolos, os maiores santos, em certas circunstâncias sacrificaram a possibilidade de celebrar a Eucaristia diante da urgência da caridade, de viagens e outras”. É certo que só diz isto uma vez. Mas, por mais de seis meses, ele vai viver esta realidade. No dia 31/01/1908 ele recebe a permissão para celebrar a Eucaristia sozinho, mas não pode conservar o Santíssimo. E jamais se perguntou se havia motivo para não permanecer no Hoggar. Compreendeu que levar adiante sua presença e missão junto aos tuaregues não estava em oposição à Eucaristia, mas direta e intimamente concatenada com sua espiritualidade eucarística. Houve também uma evolução em relação à sua compreensão da Eucaristia. No início imaginava que a presença eucarística se irradiaria quase que fisicamente e os muçulmanos se converteriam ao cristianismo graças à força irradiadora da Eucaristia. Depois, compreende que a Eucaristia se irradia pela mediação do sacramento dos gestos humanos e cristãos, através da acolhida, da bondade, da amizade. “Quero acostumar a todos os habitantes do lugar, cristãos, muçulmanos, judeus e pagãos a considerar-me como irmão – o irmão universal. Começam a chamar a casa de “fraternidade” (la khaoua, em árabe) e isto me enche de alegria”.

2. O segundo aspecto importante refere-se à sua evolução quanto ao papel dos religiosos e dos leigos e a propósito do sacerdócio. O mais importante neste terceiro período é o sacerdócio dos fiéis. No final de sua vida, quase não exerce o sacerdócio ministerial, pois os paroquianos são todos mulçumanos. Então, descobre o que ele chama de sacerdócio místico, isto é, o sacerdócio batismal.

Ele vive criando laços fraternos com aqueles que o adotaram. Laços gerados pelo apostolado da bondade que tanto recomenda aos missionários leigos, semelhantes à Priscila e Áquila, que deseja tanto ver chegar: missionários leigos, que evangelizam através de presença cristã, do testemunho de uma vida evangélica, dos laços criados pela amizade, da oração de intercessão.

O Ir Carlos sempre desejou fundar congregações, associações de fiéis, mas Deus o despojou deste sonho. No entanto, começa a fundar algo novo para a Igreja quando se faz verdadeiramente irmão de todos. Quando começa a compreender que não devia contrapor a vida contemplativa à ação evangelizadora. A obra da salvação se realiza pela superabundância da vida contemplativa que transborda no amor que dedica aos tuaregues e no extraordinário interesse que manifesta por todos os aspectos da sua cultura. Não os vê ainda preparados para receber diretamente o Evangelho, mas intui que habita neles a “Semina Verbi”. Descobriu que a evangelização é um processo muito exigente do que havia imaginado. Passou a ser mais paciente e gastou vários anos na convivência fraterna com os tuaregues, aprendendo e ensinando. Aprendeu a língua deles e codificou-a num dicionário. Codificar uma língua oral é tarefa árdua, que exige extraordinária sensibilidade para perceber e distinguir os sons. Ele entrou no coração e sintonizou com os sentimentos da cultura tuaregue. Em seguida, descobriu os valores, a filosofia, a sabedoria desta cultura através de suas lindas e provérbios, que constituem um presente de Deus para toda a humanidade.

Como o grão caído na terra

“Se o grão caído na terra não morrer, permanece só. Se morrer, dará muitos frutos” (Jo 12,24). Essa palavra de Jesus, o Ir Carlos a citou muitas vezes ao longo de sua vida. Primeiro para evocar essa morte espiritual, simbólica, que devia aniquilar seu ego a fim de deixar todo o lugar Àquele que queria viver nele. “Que não seja mais eu quem viva, mas vós que vivais em mim”. Ele colocava no mesmo plano essa morte a si mesmo e sua conversão permanente, condições indispensáveis para que sua vida fosse produtiva: “É preciso que eu me torne melhor, me converta, morra, como o grão de trigo que, se não morrer, permanece só. Eu não morri, então estou só. Reze por minha conversão, a fim de que morrendo, dê fruto”.

Se a paixão de Jesus é martírio, compreende-se por que o Ir Carlos, desejando imitar Jesus, tenha desejado morrer mártir. O pensamento que escreveu no dia 06 de junho de 1897, revelar-se-ia depois uma profecia detalhada, é bem conhecido e citado freqüentemente: “Pensa que deves morrer mártir, despojado de tudo, estendido no chão, nu, irreconhecível, coberto de sangue e de feridas, assassinado de modo violento e doloroso... e deseja que isto aconteça hoje mesmo. Para que eu te conceda esta graça infinita, sê fiel na constante vigília e em levar a cruz. Capacita-te de que é neste tipo de morte que deve verificar-se o desfecho de toda a tua vida. Toma consciência, assim, do pouco valor de tantas coisas. Pensa freqüentemente nessa morte, para te preparares para ela e dares às coisas o seu verdadeiro valor”

O grão jogado na terra evoca o que foi sua morte, uma morte muito banal, um acontecimento insignificante, um nome a mais na lista já longa das vítimas da guerra. No dia 1º de dezembro de 1916, enquanto os senussitas saqueavam o eremitério, o Ir Carlos fica sob a guarda de um rapaz de 15 anos. Num momento de confusão ele encosta o cano do fuzil na cabeça dele e dispara.

Ele, que tinha mostrado uma tal resistência ao sofrimento físico e moral ao longo de sua vida, morre quase de repente. Nos minutos que precederam o golpe fatal, terá ele tido consciência de que a hora chegara?

Poderíamos ter imaginado uma morte heróica e sublime ao longo de uma vida da qual retivemos sobretudo aspectos extraordinários. Mas, não passou de um seqüestro fracassado, um ato inacabado, um golpe frustrado. Os atores puderam considerar exitosa sua operação. Seu sucesso sublinha o fracasso aparente de toda uma vida. A obra humana do marabut simbolizada pelos muros fortificados do seu "forte" mostrou-se perfeitamente inútil. A banalidade e a rapidez dessa morte é como a coroação de uma vida que quisera se inteiramente escondida em Deus, sem aparecer aos olhos humanos. Para um olhar profano, com efeito, essa morte é um fracasso, faz sobressair o insucesso, a ausência de resultado, nem sequer uma vitória da não-violência. Essa morte diz que o importante é o que não se vê: “O bom Deus não precisa de mim, que sua Vontade se faça!” é a mensagem de gratuidade que deixa ao mundo este homem de ação, nascido para a eficácia e para os resultados.

É o sentido de sua vida, numa humilde fidelidade aos deveres cotidianos, os mais corriqueiros como os mais nobres. Podemos descobrir suas ocupações cotidianas, suas amizades e sua preocupação por aqueles que o rodeiam. Podemos criticar algumas de suas iniciativas. Podemos ler suas cartas que revelam a variedade de suas relações, sua atenção a cada um e a delicadeza de seus sentimentos. Mas de sua vida profunda, quem falará com realismo e verdade? Ele tentou formular o indizível no estilo da piedade de sua época. Multiplicou as fórmulas para convencer-se a si mesmo e para fazer bem aos outros. A abundância de seus escritos nos deixa diante do mistério de sua relação com Deus. O silêncio de seus últimos momentos é tão eloqüente quanto as milhares de páginas escritas. Ele quis “gritar em silêncio com toda a sua vida uma boa nova para o mundo”. Sua morte está realmente na continuidade de sua vida.

Podemos admirar sua sábia atividade de lingüista, que soma de trabalho! Esta obra lingüística, não assinada, permanece para nós como outro símbolo, o de uma vida toda entregue no esquecimento de si, uma obra notável que poderia até ter desaparecido no fogo e por milagre foi salvaguardada. Ela é o testemunho de um homem que se queria morto para o mundo e que foi na realidade plenamente vivo neste mundo apesar do anonimato que se impusera.

Ele pode então perder-se no amor que Deus lhe manifesta apesar de sua miséria e aparente fracasso de sua vida. Lembrar-se-á ele de sua primeira meditação sobre os salmos como no dia de Pentecostes de 1897: “Eu vejo minhas mãos vazias de bem: dignai- vos consolar-me; tu darás fruto em teu tempo, me dizeis... Qual será esse tempo? O tempo de todos nós será na hora do julgamento. Vós me prometeis que darei frutos na última hora. E acrescentais: serás uma bela árvore de folhas eternamente verdejantes e todas as tuas obras terão um fim próspero, todas trarão seus frutos por toda a eternidade”.

No momento de deixar Beni-Abbés para ir ao Hoggar, terminava sua última meditação escrita com estas palavras: “Obrigado por mostrar-me tão claramente que uma só coisa é necessária: amar-vos com todo meu coração, pois o trabalho que podemos fazer por vós, embora seja nosso dever estrito fazê-lo com todas as nossas forças e que este cuidado extremo por fazer e fazer o melhor possível tudo o que vós nos aconselhais, por pouco que seja, faça inseparavelmente parte do amor, permanece no entanto verdadeiro que deste trabalho vós não tendes necessidade, e que nós somos servos inúteis”.

Diante de Deus ele se apresenta de mãos vazias, mas na realidade elas estão cheias, pois ele carregou as angústias de uns e de outros. A inquietude por todos tornou-se oração de oferecimento e de intercessão. Aprendeu a sofrer e a amar. Pode repetir essa oração do Pe Huvelin no momento da morte: “Nunca amaremos bastante”. Ele sabe que na sua fraqueza reside sua maior força. Pode então, repetir essa oração que recopiou três vezes mudando cada vez alguma frase: “Meu Senhor Jesus que dissestes:“ninguém tem maior amor que aquele que dá sua vida por seus amigos, eu desejo de todo o meu coração dar minha vida por vós. Todavia, peço-vos instantemente: não a minha vontade, mas a vossa. Eu vos ofereço minha vida: fazei de mim o que vos agradar mais. Fazei que eu morra glorificando-vos o mais possível... Meus Deus, perdoai os meus inimigos, dai-lhes a salvação! Amém”.

No fim de sua última viagem, em 1913, no momento de deixar a França para retornar ao Saara, disse: “Como o grão do Evangelho, eu devo apodrecer na terra, no Saara, a fim de preparar as futuras colheitas. Essa é a minha vocação”.

Podemos concluir citando o Pe Voillard: “Afinal, sua morte corresponde plenamente à sua vida e a encerra de uma maneira estranhamente verdadeira”.

O Ir Carlos descobriu que a centralidade da vida de todo cristão é o Absoluto de Deus. Ao abraçar a aventura da fé descobre que Deus está acima de tudo e deseja responder ao seu amor com a maior generosidade possível. No seguimento do caminho de Jesus, na leitura orante da Palavra de Deus, na oração contemplativa, na celebração e adoração eucarística, na entrega aos pobres e excluídos ele descobre o Absoluto de Deus.

Todos os que salientam a novidade do testemunho do Ir Carlos desde René Bazin até Jacques Maritain, passando por Paul Claudel e muitos outros, insistem sobre o caráter radical de sua experiência de Deus. Fazem o mesmo também aqueles que assumem sua espiritualidade missionária: desde Madeleine Delbrel a Jacques Loew, e de um modo especial os Irmãozinhos e as Irmãzinhas de Jesus que vivem no coração das massas seguindo as orientações de Ir René Voillaume e da Irmãzinha Madalena.

Todos os escritos do Ir Carlos estão impregnados por um sentido quase imediato da grandeza e da providência de Deus. A experiência do deserto aprofunda nele ainda mais esta abertura à presença de Deus. Sobre este fundo de espiritualidade teocêntrica centrada no Absoluto de Deus é que se expande nele o amor apaixonado por Jesus, pelo mistério de sua Encarnação, pela sua humanidade, pela sua vida oculta, pela sua cruz.

Assumindo a vida de Nazaré como sua vocação e espiritualidade, o Ir Carlos percorreu um caminho marcado por sucessivas e radicais conversões até chegar a ser pobre com e como os pobres, ao ponto de se deixar conduzir por eles na última etapa de sua vida. “Escolher o último lugar” não é por acaso a expressão mais radical e comprometedora da inculturação? Significa renunciar a toda e qualquer posição e atitude de poder, comando, autoridade a fim de permitir que os receptores da evangelização sejam os protagonistas do processo da inculturação do Evangelho. O protagonismo dos leigos, prioridade da Igreja hoje, só terá chance de se concretizar quando os ministros ordenados se despojarem do clericalismo, do autoritarismo e dos monopólio da pastoral.

Quem é Carlos de Foucauld? Um monge? Um monge que não se adaptou ao mosteiro, mas viveu como um contemplativo no meio do mundo e dos pobres, fiel à intuição beneditina do “ora et labora”.

Foi eremita? Viveu só, porém sempre desejou ter companheiros e a relação com as pessoas sempre foram intensas e contínuas. Vivia só, porém, sua casa estava sempre cheia. Ele mesmo conta que o dia mais feliz de sua vida foi quando os nômades chamaram seu eremitério de “fraternidade” e a ele de “irmão universal”.

Foi presbítero? Ordenado na diocese de Viviers e “Fidei Donum” para viver entre os pobres do Saara. Foi conduzido pelo Espírito mais do que enviado pela diocese. Atuou onde não existia nenhuma presença organizada da Igreja institucional com a consciência de que preparava o caminho para os missionários que viriam depois.

Foi missionário? Sim, mas num estilo diferente, porque diretamente não converteu, não batizou ninguém, nem exerceu uma pastoral oficial. Foi presença fraterna, testemunho de amizade de solidariedade. “Meu apostolado deve ser o da bondade. Vendo-me, os outros poderão dizer: ‘já que esse homem é tão bom, sua religião deve ser boa’. Se me perguntarem porque sou manso e bom, devo dizer: ‘porque sou servo de alguém muito melhor do que eu - se soubessem o quanto é bom meu Senhor Jesus’. Gostaria de ser bom para que me dissessem: ‘se assim é o servo, como então será o Senhor?” Em última análise viveu um dos caminhos missionários mais intensos e autênticos da história da missão. Seguiu as intuições de Cirilo e Metódio, evangelizadores da Europa: chegam e começam a aprender a língua para entrar numa relação de proximidade e traduzir o evangelho. O Ir Carlos gastou anos para escutar os sons e codificar a língua tuaregue. Escreveu o primeiro dicionário, uma coleção de poesias e provérbios da sabedoria oral, traduziu os evangelhos. Preparou terreno para os que viriam depois.

Foi um assistente social? Não tinha esta vocação, mas face às urgentes necessidades sabia ser enfermeiro e providenciar medicamentos junto aos amigos franceses. Mandava vir agulhas e outros pequenos instrumentos para tornar mais fácil a tecelagem das mulheres. Enfrentou profeticamente a realidade da escravidão: “Não podemos ser cães mudos, sentinelas adormecidas”. Deixou-se envolver pelo entusiasmo comprando um escravo para lhe dar alforria.

Quem é afinal Carlos de Foucauld? É tudo isso e também nada disso. Poderíamos passar do Ir Carlos para uma outra pergunta: Quem é Jesus? Podemos classificá-lo em alguma categoria? Ele é o Messias, o Profeta, o Filho de Deus, o filho de Maria, o filho do carpinteiro, o operário de Nazaré, o Galileu atento às necessidades do povo, cuida da saúde, acolhe os leprosos, ensina a partilhar o pão. Jesus é tudo isso, mas nenhum título consegue definir a grandeza e a beleza de sua personalidade e de sua missão.

O discípulo de Jesus é um convertido que precisa de contínua conversão. Sou realmente um convertido? Como aconteceu e acontece o meu encontro com Jesus? Este encontro-revelação de Cristo me leva a considerar os privilégios, a careira eclesiástica, as seguranças religiosas como "perda e lixo" (cf Fl 3, 7-8)? O Ir Carlos sempre se excedeu em generosidade, transbordou em generosidade ao Senhor. O que "ainda me falta" (cf Mc 10, 21) no processo de minha conversão a Jesus e ao Evangelho?


1. IRMÃO CARLOS SOB O SIGNO DA CONVERSÃO PERMANENTE

“É preciso mudar muito para permanecer o mesmo”

A vida do Ir Carlos se constituiu de muitas conversões. Um dos traços marcantes do seu itinerário espiritual é a incansável capacidade de mudar. “É preciso mudar muito para permanecer o mesmo”, ensina-nos D.Helder Câmara. A vida do Ir Carlos foi um peregrinar constante. Viveu com radicalidade e inteireza as várias etapas de sua conversão. Cada ponto de chegada, assumido como se fosse definitivo, se transformava em plataforma para uma busca de maior entrega ao Bem-Amado Irmão e Senhor Jesus e aos pobres: da França para a Síria, da Trapa para Nazaré, da Terra Santa para a África, de Béni-Abbès para Tamanrasset, dos privilégios de uma vida acomodada para a simplicidade de uma vida pobre e desinstalada, de uma concepção de evangelização doutrinária e impositiva para outra mais dialógica, de inserção e testemunho.

Quando começou a viver no Saara, o Ir Carlos tentou converter os muçulmanos. Até cogitou que, com a ajuda dos militares franceses, pudesse fazê-lo mais facilmente. Com o passar do tempo, deu-se conta de que seu método estava equivocado. Descobriu que a missão era muito mais exigente do que imaginava. Passou a ser mais paciente e gastou vários anos na convivência fraterna com os tuaregues, aprendendo e ensinando. Aprendeu a língua deles e codificou-a em dicionário, que ainda não existia. Codificar uma língua oral é tarefa árdua, que exige extraordinária sensibilidade para perceber e distinguir os sons. Ele entrou no coração e sintonizou com os sentimentos da cultura tuaregue. Em seguida, descobriu os valores, a filosofia e a sabedoria dessa cultura através de suas lendas, provérbios e poesias, que constituem um presente de Deus para toda a humanidade: “Semina Verbi”.

Vamos nos deter num momento privilegiado de sua vida na África. É uma das passagens mais difíceis, um momento doloroso e crucial muito próximo da morte, uma verdadeira Páscoa – passagem de Deus em sua vida e travessia que gera mudança, deixa marcas indeléveis, talvez a última etapa de sua conversão.

A doença

Segunda-feira, 20 de janeiro de 1908. O Ir Carlos está pregado em sua cama. Sua casa, seis metros por dois, abriga a cama, a capela, a mesa de trabalho, a biblioteca, muitos papéis escritos. Não pode se quer levantar-se, sem risco de desmaiar. Percebe que seu fim está próximo. Anota em seu caderno: “Sou obrigado a interromper meu trabalho. Jesus, Maria, José, dou-vos a minha alma, o meu espírito, a minha vida”.

Está com 50 anos e na metade de sua caminhada no Saara (1901-1916). Restam-lhe ainda oito anos de vida. Desde o início do ano sente fadiga, dorme muito mal, não tem apetite. Não sabe se isso se deve ao frio, ao excesso de trabalho ou à falta de sono. Está com escorbuto, conseqüência da falta de alimentação que se manifesta em forma de anemia.Ultimamente tinha deixado de ingerir trigo e tâmaras, pois percebera que os pobres não tinham o que comer e distribuíra com eles o que havia estocado, sem se dar conta da reserva necessária para si mesmo. “Já faz dois anos que não chove. É a fome total para um país que vive principalmente de leite, onde os pobres quase que exclusivamente se alimentam de leite. As cabras estão secas como a terra e as pessoas, como as cabras”.

Segundo suas teorias ascéticas, quanto menos se come, mais perfeito se é. Agora, a situação fizera com que mudasse de idéia e, no início de janeiro, escrevera a Laperrine solicitando víveres diversos, entre os quais, leite em pó e vinho. Quinze dias depois, quando a carta chegou ao destinatário, ele compreenderá a gravidade da situação e escreverá ao Mons Guérrin: “Peço-lhe que me autorize para dizer-lhe que não se permite a penitência que pode levar ao suicídio progressivo”.

Trata-se do excesso de trabalho, além da pouca alimentação. Trabalhava num texto em prosa, a que se obrigara após a morte de Motilinski. Onze horas de concentração por dia. Ba-Hamou, um “tuaregue inteligente e muito falador” que o ajudava também e se esgotou e foi-se embora. Ficará inacabado este enorme trabalho e irão perder-se as milhares de folhas ordenadas sobre a mesa?

A solidão

A doença tem também causas psicológicas. Ficou seis meses sem ver passar ninguém, além de dois europeus. O correio partia em ocasiões pouco seguras e chegava raramente. No dia 07/01 recebera a última carta da prima que antes lhe escrevia a cada 15 dias. Há 18 anos não se viam. Sente-se privado do apoio eficaz desta afeição vital. A ferida permanece aberta como no dia da despedida. O que o mantém na esperança e em paz é o pensamento de que tendo entregado a Deus tudo quanto possuía de mais querido, jamais buscara amenizar o sacrifício de sua entrega. Porém, nunca sentira tão forte o isolamento e a ausência de seus entes queridos. A correspondência era o único meio que tinha para comunicar-se, expressar-se. Nada sabe do Pe Huvelin. Só lhe restou Jesus no sacrário com quem fala noite e dia. Mas, nesta hora sente a necessidade de alguém com quem dialogar. Desejava escutar uma voz fraterna e amiga...

Nenhum vizinho o visita há meses. Os sedentários da vila, umas 40 pessoas, ao perceberem que as esmolas haviam acabado, não encontravam mais motivo para visitá-lo. Os nômades, dispersados pela seca, também não manifestavam nenhum interesse em ir vê-lo. Ele imaginava que fosse por causa do frio.

Sua decepção é grande. Veio para estas montanhas em busca de um povo, ao qual sentiu-se enviado. Ao longo das viagens que empreendera nos anos precedentes, encontrou numerosos homens e mulheres e agora amarga a impressão de que seus esforços para tornar-se próximo tinham sido em vão. O que o machuca ainda mais é perceber que sua presença provoca reação de isolamento. Musa Ag Amastan, chefe do Hoggar, desde 1905 se instalara perto de Tamanrasset com a intenção de transformá-la numa cidade muçulmana. Trouxe mestres para ensinar o árabe e o Corão. Eles divulgam entre a povo aversão contra tudo o que é francês e cristão.

Angústia pela salvação dos homens

Neste estado de esgotamento físico e moral, a preocupação pela salvação das pessoas se converte em verdadeira angústia. “Existem regiões onde as almas desprovidas dos meios de salvação, escravas do erro e do vício, caem todas no inferno. Cristo morreu por elas. O que não devemos fazer por elas, cujo preço é o sangue de Cristo? Rezo para que o Senhor mande operários para a sua messe”.

O Ir Carlos teve, então, uma idéia: dirigir-se aos leigos, suscitando um movimento a fim de que os cristãos tomassem consciência do seu dever frente aos povos colonizados. Os sacerdotes e religiosos/as não haviam respondido ao seu convite. Restavam os leigos. Pensa criar uma associação de leigos e sacerdotes que se ajudarão mutuamente nessa missão. Será que vai morrer antes de colocar esse projeto por escrito?

Uma vida inútil

Reduzido a tal impotência, julga que é o fim de sua obra, e até de sua vida, visto que ainda realmente não se converteu. Não teria sido melhor escolher um tipo de vida mais útil, num lugar melhor? O que veio fazer aqui? Depois de 20 anos de reencontro com a fé, o que fez de concreto? Colocou-se longe de todos, num deserto. Para salvar sua vida, tinha buscado a proteção de uma “clausura”. Ainda uma vida de eremita na solidão, longe do mundo, longe dos homens. Será que o fato de pretender sentir-se responsável por uma missão especial de buscar os que estavam longe, mais afastados, onde ninguém desejava ir, não seria um pretexto para se julgar melhor que os outros? Sentir-se capaz da fazer o que os outros não podiam?

Sem Eucaristia

Havia partido, depois de sua ordenação, para levar o banquete da Eucaristia aos mais afastados. Quem se interessa pelo dom que deseja partilhar? Por que veio a este lugar onde se quer pode celebrar a Eucaristia? Depois de seis meses em Tamanrasset, celebrou apenas cinco vezes, aproveitando a passagem dos cristãos que desejavam “assistir” a sua missa. Não teria sido melhor permanecer em Beni-Abbès, onde podia ao menos celebrá-la diariamente? Não seria isso o mais útil que poderia fazer para a salvação das pessoas? Inclusive no Natal, esteve só e sem Eucaristia, pela primeira vez, depois de sua conversão. Apesar de tudo escolhera regressar e permanecer ao lado destas pessoas indiferentes.

Antes de cair imobilizado em sua cama, não deveria ter tirado o Santíssimo do Altar? O que aconteceria se viesse a falecer? A Eucaristia é a única razão de sua vida. Será que deverá privar-se até dela, dessa presença de Jesus?

Ele ainda acredita firmemente que a presença sacramental ilumina o mundo. O Sacrário está ali, a dois metros de sua cama e esta presença o enche de alegria. Espera obter um dia a permissão para celebrar sozinho. Jesus é o Mestre do impossível. Mal sabe ele que esta autorização é muito difícil de se conseguir. Esta privação está de tal modo contrária às suas convicções que nem se atreve a tocar neste assunto nas cartas aos seus familiares e amigos. Mal sabe ele que, algumas semanas mais tarde, ser-lhe-ia comunicado que não mais poderia guardar o pão consagrado no sacrário, enquanto estivesse só... Nada mais lhe restava que revisar suas convicções e opões.

Meu Pai, a vós me abandono!

O Ir Carlos provavelmente não rezava a “Oração do Abandono”, que seus discípulos descobrirão entre seus escritos. Além de outras formas, é a única nesta hora crucial: “Tomai minha vida, Senhor. É tudo o que posso vos oferecer. Não sou melhor que os outros. Eis-me aqui, de mãos vazias. Eis-me aqui ao entardecer desta vida tão miserável, tendo produzido tão poucos frutos. Se o grão de trigo caído na terra não morrer, ficará só”.

Desejou tanto este momento que lhe permitiria, afinal, encontrar-se com o seu Bem-Amado Irmão e Senhor. É nesta certeza que se agarra desesperadamente, no pouco tempo de vida que lhe resta. No entanto, jamais tivera tantas razões para continuar vivendo.Não é possível morrer assim sem nada, por mínimo que seja! Ainda há tanto a fazer por aqueles homens e mulheres...“O bom Deus, porém ama a todos mais que eu. Não sou necessário. Que se faça a sua Vontade. O que de mim fizerdes, eu vos agradeço. Estou pronto para tudo, contanto que a vossa vontade se faça em mim e em todas as vossas criaturas”.

Mas Deus não estava ausente. Presenciava tudo em silêncio, mas agia por meio das pessoas. Assim, Ba-Hamou alertou a todos sobre o que se passava com o Ir Carlos. Musa Ag Amastan, consciente de sua responsabilidade com seu amigo, apressou-se em fazer o que podia para salvá-lo. O que ocorreu naqueles dias é difícil de avaliar, tanto para a vida daquele povo, como para o Ir Carlos. “Mandaram buscar todas as cabras que tivessem um pouco de leite, nesta terrível seca, num raio de quatro quilômetros. As pessoas foram muito boas para mim”. O Ir Carlos ficou sensibilizado pela surpreendente bondade, não percebendo, porém, a radical mudança que estava ocorrendo nas suas relações pessoais e a profunda conversão que estava acontecendo com ele mesmo.

No entanto, tão rico

O Ir Carlos quer ser pobre para imitar Jesus que sendo rico se fez pobre. Era sua única referência. E de fato, viveu mais pobremente que alguns de seus vizinhos, porém eles jamais viram nele um pobre. Se não se alimentava bem e vestia-se da maneira mais despojada, nada tinha a ver com a pobreza. Sua casa estava sempre cheia de coisas para dar aos outros. Era visto como um benfeitor. Dá aos pobres tudo o que tem, o que solicita aos familiares e amigos da França.Era a sua característica de marabut cristão que o diferenciava dos marabuts locais, que recebiam ajuda do povo em troca de suas bênçãos e ensinamentos.

Em 1904, em seus escritos sobre a maneira de viajar pelo Saara, conclui: “Não aceitar nada, a não ser que seja imprescindível, e assim mesmo, coisa de pouco valor”. Receia envolver-se ou deixar-se comprar. Como, porém, realmente compartilhar sem estar disposto a receber alguma coisa? Pretendia ser pequeno e acessível a todos, no entanto constata a distância que o separa daqueles aos quais desejava ser próximo.

Apesar das esmolas que distribui, apesar do hábito religioso, apesar de permanecer só e sem armas, é visto como representante da dominação estrangeira da qual a população desconfia e tem medo. Aos olhos do povo, representa o poder dominador. Chegara lá junto com os militares e se perguntava a si mesmo se eles saberiam um dia fazer a distinção entre os sacerdotes e os militares.

O Ir Carlos deveria primeiro descobrir pessoas de uma civilização diferente, vivendo outra fé e outra cultura, antes de programar qualquer atividade que visasse a instrução e o desenvolvimento da população. Foi visto como conquistador. Veio para “domesticar”, como diziam os militares. Como poderia esperar que os outros o escutassem se, primeiro não estivesse disposto a ouvi-los?

Mudança e Conversão

Naquele dia nada tinha, nada podia fazer. Justamente naquele momento em eu estava reduzido a uma total impotência, inteiramente dependente dos vizinhos, foi quando eles se sentiram responsáveis por ele e puderam, finalmente, entrar em sua vida. Puderam oferecer-lhe alguma coisa, repartir com ele, abordá-lo em relações de igualdade. Partilham o que têm de melhor: um pouco de leite para salvá-lo da morte. Fazem o que podem segundo seus conhecimentos e o que é melhor para o seu bem.

O mês de janeiro termina como uma ressurreição. O doente recobra alguma força. No dia 31 recebe mensagem de Lapérrine, comunicando-lhe a autorização para celebrar a Eucaristia sozinho. “Nascimento, nascimento! Deo gratias”, anota em seu caderno. No dia primeiro de fevereiro começa a celebrar sozinho. Aos poucos vai retomando suas atividades, mas renunciando a várias coisas. Em março chegam dois camelos com as provisões, quatro vezes mais do que havia solicitado. As visitas tornam-se cada vez mais freqüentes. No fim de junho Lapérrine escreve ao Mons Guérin: “Comporta-se bastante bem e resplandece de saúde e de alegria”.

A debilidade e a enfermidade possibilitaram-lhe viver uma nova relação com os tuaregues, uma verdadeira conversão, um passo à frente na partilha, na reciprocidade da amizade. Antes, decidira deixar tudo. Agora, aceita receber o cêntuplo também neste mundo. Deixa de ser voluntarista na busca da perfeição religiosa e dos projetos excessivamente calculados Aprende a aceitar-se a si mesmo, sem pretender ser um super-homem. Torna-se mais humano, dormindo o necessário, alimentando-se corretamente. Começa a aceitar os outros como são. Aprende a compartilhar com todos não apenas o pão e o leite, mas também as boas as más notícias, os projetos, os desejos, as reivindicações, e se faz porta-voz de uns e de outros. Não se contenta em mandar conselhos a Musa, mas também anota os conselhos que recebe de Uksen e ainda anota as informações de Ba-Hamou. Expressa esse novo estado de espírito no que disse ao Dr Dhauteville, protestante: “Não estou aqui para converter os tuaregues, mas para compreendê-los e melhorá-los. Sobre tudo, desejo que os tuaregues consigam um lugar no paraíso. Estou certo de que Deus acolherá no céu os que forem bons e honestos, sem que seja preciso serem católicos romanos. Você pastor protestante, Teissère é incrédulo, os tuaregues são muçulmanos, mas estou persuadido de que Deus nos receberá a todos se o merecermos”. O Ir Carlos deixou-se acolher, criar laços. É ele quem se deixa conduzir.

Uma parábola do Reino

O Ir Carlos certamente não percebeu o alcance destes acontecimentos e nem o seu significado. Vamos tentar fazê-lo em seu lugar e descobrir nele uma parábola do Reino e uma luz que ilumina a sua e a nossa vida. Naquela época não se falava em interpretar os sinais dos tempos, nem em discernir os sinais do Reino para se reconhecer o Espírito que age no coração de cada pessoa. No entanto, parece que o Ir Carlos se destacou nesta interpretação e neste reconhecimento, expressando-o em sua linguagem diferente da nossa. Mons Guérin reconhecia que o Ir Carlos “como todos os que se deixam conduzir pelo Espírito de Deus, sabia apreciar maravilhosamente as circunstâncias”.

Se não verbalizou a importância do que estava vivendo naquele momento é também porque estas realidades do Reino não se deixam captar facilmente. Estão escondidas como o trigo na terra e o fermento na massa. A pequenez destes sinais, sua insignificância é muito característica: um pouco de leito, um pedaço de pão... Pensemos na viúva de Sarepta que colocou diante de Elias tudo o que tinha. Era tão pouco. Pensemos naquele menino que entregou alguns pães para alimentar uma multidão faminta. Gestos insignificantes que fazem milagres. São imperceptíveis, visto que demasiado comuns: uma visita, uma palavra, um gesto, um sorriso, lágrimas... Recorda o que lhe havia dito o Pe Huvelin: "O importante não é aquilo que se diz nem aquilo que se faz, mas aquilo que a gente é ". Convertido verdadeiramente num pobre doente, permitirá aos que o vieram salvar, escutar um dia: “Vinde, benditos do meu Pai, recebei em herança o Reino que meu Pai vos preparou desde a criação do mundo! Pois eu estava com fome e me destes de comer... Estava doente e cuidastes de mim”(Mt 25,34). Já não é apenas uma parábola, mas a realidade do Reino.

Necessitamos em nossas vidas de certas mudanças, que nos obriguem a dar um passo à frente, como se fosse uma morte. Quando se estreita o espaço para existir, quando não se pode fazer nada, quando a situação parece desesperada, quando nossa competência e nosso zelo se convertem em obstáculos, é bom recordar um antigo ensinamento que o Ir Carlos atualizou e se torna fonte de esperança. Os profetas nos ensinam que quando não se pode mais nada, aí é que Deus intervém. São Paulo se vangloria em sua fraqueza. "Quando estou fraco, então é que sou forte, porque tudo posso naquele que me dá força". Nesta mesma perspectiva também o Ir Carlos nos diz: “A debilidade dos meios humanos é a causa da força. Nosso despojamento é o meio mais poderoso que temos para nos unimos a Jesus e fazer bem às pessoas. É o que São João da Cruz repete constantemente: quando se pode sofrer e amar, se pode muito” (Carta a Marie de Bondy em 01-12-1916, dia de sua morte).

Em outro momento difícil de sua vida, quando se submeteu totalmente à obediência, um mês antes de deixar a Trapa, em 1886, escreveu: “Quando Jacó está a caminho, pobre, sozinho, quando se joga ao chão desnudo do deserto para repousar depois de um longo caminho a pé, no momento em que se encontra nesta dolorosa situação de viajante solitário, num país estrangeiro e selvagem, sem hospedagem, neste momento em que se encontra nesta desoladora situação, Deus o cumula de graças incomparáveis (Gn 28).

1. O Ir Carlos é homem do Vento, conduzido pelo sopro do Espírito

Onde coloco mais obstáculos para me deixar conduzir pelo Espírito?

2. "É preciso mudar muito para permanecer sempre o mesmo" (D. Helder Camara).

Estou pronto, disponível, generoso para novos passos que ainda devo dar na caminhada da minha conversão?

3. "Os pobres são os nossos mestres" (São Vicente de Paulo). "Os pobres nos evangelizam" (Doc. Puebla).

Que lugar ocupam os pobres em minha vida e ministério?

2. MARTIR DA CARIDADE

De Robert Deleener, da fraternidade de Bruxelas.

“Viver cada dia como se fosse o último, investino o melhor de si mesmo, é já dar um sentido a própria vida”.

No ano passado, no dia 5 de junho, morria nosso irmão Robert Deleener com 54 anos. A notícia se espalhou por sua paróquia e entre os padres da Fraternidade Jesus Caritas. “Hoje cedo Roberto foi assassinado, selvagemente apunhalado e degolado ... e, cúmulo do horror, diante de sua pobre mãe de 88 anos.

Na tarde do dia seguinte, nossa fraternidade, composta de padres africanos e europeus, se reuniu no lugar habitual, na casa dos irmãozinhos do Evangelho, para uma tarde de recolhimento. Cada um de nós contou como conheceu Robert e a melhor lembrança que dele guardava. Lendo alguns textos, relacionamos espiritualmente esta morte trágica com a de Carlos de Foucauld, de Roger van Turnhout, padre operário de Charleroi, dos monges de Tibhirine, do irmão Yves Lescanne nos Camarões, de Dom Pierre Claverie em Oran e de muitos outros mártires da caridade como Charles Deckers, que acolheu a Assembléia Geral de nossas Fraternidades na Argélia, há muitos anos.

Lembramo-nos, naquela tarde, que por duas vezes Robert tinha falado com humildade do caso de consciência que lhe colocava alguém que pedia asilo e a necessidade de pôr limites a seu comportamento psicótico e, além disso, agressivo. Nós o escutamos e aconselhamos sem nos dar conta do paroxismo da situação e que se tratava de alguém que podia tornar-se assassino.

Num mesmo movimento de consagração a Deus, Robert tinha se dedicado ao mundo do trabalho. São testemunhas sua formação no seminário Cardijn em Jumet e seus anos de padre operário numa instituição hospitalar. Nomeado pároco da paróquia de Sainte Croix-la-futaie, em Boisfort (bairro residencial periférico de Bruxelas), ele manteve contato com o Movimento Operário Cristão (MOC). Foi assim assistente do “serviço aos doentes” da Mutuelle Saint Michel e da União Cristã de Aposentados.

Gente muito simples, às vezes marginais, eram seus amigos e comiam em sua casa em companhia de sua querida mãe. Esta, de uma discrição sem igual, mostrou-lhe o caminho do dom de si mesmo, e até no momento de terror, ela esteve a seu lado. Como Maria junto de Jesus na cruz. Vendo-a participar dos funerais, corajosa e cantando, não ousamos dizer o que pensamos: “ela não vai se refazer nunca mais”.

Em nossa Fraternidade Sacerdotal, Robert participava regularmente da reunião mensal, atento a todos, particularmente aos padres expatriados, cujos sofrimentos pessoais devidos ao exílio ele compreendia.

Modesto e humilde quando se tratava de sua revisão de vida, sabia no entanto animar-se e tomar posições firmes quando a questão era a evolução da Igreja e os freios colocados por um tipo de hierarquia e pelos meios conservadores à criatividade pastoral. Homem de diálogo, comprometia-se com a colaboração entre as paróquias e as comunidades de seu setor pastoral com paciência e firmeza.

Na homilia, Dom de Kesel lembrou que Robert foi discípulo de Jesus. “Foi a pobreza do coração, a ausência de todo orgulho e superioridade, a simplicidade e a doçura, que o marcaram tanto. Tinha sede de justiça, e se preocupava de fato com o outro, o deficiente, o doente, o pobre.”

Aos jornalistas que o interrogaram no dia depois da “despedida”, um jovem confrade e amigo de Robert dizia: “Creio que ele nos pediria que perdoássemos”. Um diário popular fez dessa afirmação um grande título que foi lido por milhares de pessoas, como uma mensagem póstuma à população de Bruxelas.

E agora que “o justo foi posto à morte”, o que dizer ainda?

Quando nos reencontramos em fraternidade, uma série de questões nos veio à mente. Queremos compartilhá-la com vocês.

- Vamos nos entrincheirar por detrás das fechaduras da segurança e do medo? Saberemos continuar a correr o risco da hospitalidade e da acolhida, mesmo se o dom de nossa vida nos for arrancado? Estamos atentos aos milhões de mães cujos filhos foram supressos pela violência? Saberemos dizer-lhes: “Mães, somos seus filhos”?

- Como um ser humano pode tornar-se o assassino de seu benfeitor? Não somos cúmplices de uma sociedade que faz calar pela exclusão ou a repressão aquele que grita seu desespero, por seu mal estar? Não tentamos sufocar a revolta que explode, e que nós conhecemos? É o amor que cura. Relemos a atitude de Jesus diante do demoníaco (Mc 5,1-20)

- Não estamos diante do trágico inesperado como aqueles, no tempo de Jesus, que procuravam uma explicação para o massacre dos galileus ou a queda da torre de Siloé? (Lc 13,1-5). Isso não poderia acontecer conosco também? Em qualquer momento, podemos ser levados a prestar contas de nossa vida.

Nesses dias de luto e de esperança, fomos interpelados por um texto de Carlos de Foucauld, escrito em 1898, bastante tempo antes de sua morte. Apresentamos o texto assim como se encontra na obra de Antoine Chatelard “A morte de Carlos de Foucauld” (Karthala 2000, p. 152).

“Seja qual for o motivo pelo qual alguém nos mata, se nós, na alma, recebemos a morte, injusta e cruel, como um dom abençoado de vossa mão, se vos agradecemos como por uma bela graça, por uma feliz imitação de vosso fim, se vo-la oferecemos como um sacrifício oferecido de muito boa vontade, se não resistimos para obedecer à vossa palavra “não resistais ao mal” e “por vosso exemplo ele se deixou não somente tosquiar mas degolar sem se queixar”, então, seja qual for o motivo que alguém tenha para nos matar, nós morremos no puro amor e nossa morte será para vós um sacrifício de agradável odor, e se não for um martírio no sentido estrito da palavra e aos olhos dos homens, assim será a vossos olhos, será uma imagem perfeita de vossa morte e um fim muito amoroso que nos levará ao céu... Pois se nesse caso não oferecemos nosso sangue por nossa fé, com todo o nosso coração nós o teremos oferecido e entregue por vosso amor”.

Quando terminamos este testemunho ficamos sabendo que o assassino de Robert se suicidou em sua cela. Remorso? Cume do desespero, falta de droga? Negligência dos guardas da prisão em greve naquele dia? Ei-lo na misericórdia de Deus e, na terra, terminou a ação da justiça.

3. VIVÊNCIA MONÁSTICA EM BURKINA FASSO

De Aurélio Sanz, da fraternidade de Murcia, Espanha

O tempo passado em Honda, no Burkina Fasso, antigo Alto Volta, no mosteiro Jesus Salvador, fundado por Emanuel, da fraternidade sacerdotal, marcou-me profundamente. Perguntei-me o que estava fazendo lá, a mais de uma hora por terra da aldeia mais próxima, sem caminho de acesso, sem luz, sem água, com muito pouco alimento, com um calor incrível... A acolhida dos monges que vivem de maneira muito austera, em cabanas de dois quartos, a espiritualidade de Carlos de Foucauld como única forma de vida monástica até agora, a simplicidade de vida e os pobres recursos postos à disposição dos visitantes nos pequenos eremitérios anexos, sua mesa e o silêncio, sua alegria e seu tempo quase sem limites, foram um autêntico presente, uma licão de humanidade e de fé, um espaço contemplativo. Diante da minha pressa em começar uma reunião na hora prevista, Philippe me disse que na Europa temos o relógio e na África eles têm o tempo. Eis o que é a sabedoria. Certamente há anos tinha eu necessidade de ouvir isso.

4. DESERTO

De P. Cadou, Tamanrasset.

O deserto para abrir meu coração, como um dever, uma oportunidade.

Redescobrir com ardor os únicos desejos que têm sentido.

O deserto para me abandonar às mãos estendidas da confiança.

Partir para melhor me despojar dos ferrolhos da minha existência.

O deserto para abrir caminho, o caminho que leva Teu nome.

Deixar que revires minha vida, todas as minhas verdadeiras prisões.

O deserto para escalar esta montanha, desejo,sofrimento.

Redescobri a teu lado o amor que se une à minha andança.

O deserto para encontrar tempo de permanecer a sós contigo.

No silêncio do instante, deixar teu sopro agir em mim.

O deserto para te reconhecer. Abrir meus olhos ao companheiro,

Que em meu caminho faz renascer o desejo de proclamar seu nome.

O deserto para me maravilhar de tudo o que realizas.

Sentir meu coração se transformar da Palavra em Eucaristia.

O deserto para ser testemunha de Deus no dia a dia.

O deserto para imaginar outros desertos a atravessar.