RETIRO 2023- D. CARLOS ALBERTO

FAZENDO MEMÓRIA

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RELATÓRIO DO RETIRO DA FRATERNIDADE SACERDOTAL JESUS CARITAS

Casa de Retiro Salesiano

Jaboatão dos Guararapes – PE

03 A 10 de Janeiro de 2023

Orientador: Dom Beto Breis

Dom Carlos Alberto Breis Pereira, OFM, Diocese de Juazeiro,BA. 


  1. 1-INTRODUÇÃO - MOTIVAÇÃO 


O Retiro não é um curso ou o mero cumprimento de uma obrigação legal. Pressupõe uma atitude interior: abertura e disponibilidade. “Alarga o espaço da tua tenda” (Is 54,2). Necessidade de ASCESE (ἄσκησις, exercício, atletismo).

Metáfora da esteira como cabides de roupas e o episódio com o Frei Sebaldo e o pescador.

Nossa cultura: eficácia e produção. A oração entra em outro nível, naquele da gratuidade “perder tempo”  X  eficácia imediata

Os 2,16: Sedução. Deserto. “Falar ao coração”. O deserto é o lugar de experimentar o “único necessário”, o Absoluto.

Nos dias de hoje há muito cansaço, ativismo: sintomas de um certo mal-estar. Fala-se em Síndrome de Burnout (Burn+out) = queima exterior: o motor de um jato para porque falta-lhe combustível disponível, todo esgotado. 

“Qual a quantidade de água bebemos por dia?” É uma boa pergunta que devemos transpor para o plano espiritual, pois temos sede e não percebemos, daí o convite de Jesus em Marcos 6,31s: buscar um lugar deserto para descanso, para refazer as forças e o próprio sentido da Missão.  Cuidado de si e dos outros. A qualidade de nossa Missão MISTA-GÓGICA pressupõe esses momentos fortes. Místicos para ser mistagogos.


Atos 20,28: “Cuidem de vocês e de todo o rebanho...”


O sacerdote é homem de oração. Um sacerdote sem vida de oração não vai muito longe. O povo fiel tem bom olfato e percebe se seu pastor reza e se relaciona com Deus. Rezar é a primeira tarefa do bispo e do sacerdote. Dessa relação de amizade com Deus se recebe a força e a luz necessária para enfrentar todo apostolado e missão, pois aquele que foi chamado vai se identificando cada vez mais com os sentimentos do Senhor e suas palavras e ações adquirem o sabor puro do amor de Deus” (Papa Francisco, a sacerdotes da Arquidiocese de Valência- Espanha)


“Quanto mais se ama, melhor se reza” (Irmão Charles) 


Em adoração ao Senhor se aprende a rejeitar aquilo que não deve ser adorado: o deus dinheiro, o deus consumo, o deus prazer, o deus sucesso e o nosso eu elevado a deus. Adorar é fazer-se pequeno na presença do Altíssimo, para descobrir diante dele que a grandeza da vida não consiste no ter, mas no amar...” (Papa Francisco).


Jesus em Lucas: a planície e a montanha não são alternativas, mas alternâncias.

Se em tempo privilegiado de Retiro denotamos dificuldades de parar, silenciar e orar, imaginemos no dia a dia corrido de um sacerdote. Muitas vezes não rezamos dizendo que não temos tempo: e nesse tempo de Pandemia, sobretudo naqueles meses de suspensão de atividades presenciais, rezamos mais intensa e temporalmente?


Relatou-nos o episódio dos alunos da Universidade de Paris e a Tomada da Bastilha – 14.07. 1789. 


Kairós no kronos. Deus fala na História e a partir da História, mas “sem fazer espetáculo pirotécnico no palco da História” (Cardeal Martini, em suas meditações pascais). Oportuna é a Teologia da História de São Boaventura, tema dissertação do jovem doutor Joseph Ratzinger, que o habilitava para a docência universitária: 


Há um ritmo trinitário da história. Assim, toda a história devia ser interpretada como uma história de progresso. Jesus Cristo é a última Palavra- nele Deus disse tudo, doando-se e proclamando-se a si mesmo. O Logos encarnado é o cumprimento da história realizada, e o sentido da história que está por vir.


A atenção aos “sinais dos tempos” é fundamental. Nunca a esperança foi tão urgente, para não incorrermos no risco de uma “Síndrome de Carolina” e desesperançarmos. 


Lá fora, amor uma rosa morreu, uma festa acabou, nosso barco partiu. Eu bem que mostrei a ela. O tempo passou na janela 

e só Carolina não viu(Chico Buarque)


Charles de Foucauld foi um contemplativo no sentido mais preciso do termo: um olhar profundo sobre os fatos e situações para neles vislumbrar, n’Aquele que é o sentido último de todas as coisas. Experimentou que a fé que permite-nos uma compreensão mais profunda da realidade, das coisas, dos fatos e pessoas que nos circundam. O mundo torna-se transparente e revelador na ordinariedade (não no extraordinário). Assim fez Israel, na firme convicção de que Deus fala na História e através da História. Alguns textos inspiradores: 


É preciso formar pessoas que sejam testemunhas da Ressurreição de Jesus. Pensemos naqueles religiosos que tem o coração ácido como vinagre, não foram feitos para o povo.” (Papa Francisco).



Tema 02 -PANDEMIA, TEMPO DE ESCUTA

Nossas precariedades e vulnerabilidades


(DP, 02/08/20) - Segundo a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, a pandemia da Covid-19 deve servir como um novo marco histórico, "(O historiador Eric) Hobsbawm disse que o longo século 19 só terminou depois da Primeira Guerra Mundial. Nós usamos o marcador de tempo: virou o século, tudo mudou. Mas não funciona assim, a experiência humana é que constrói o tempo. Ele tem razão, o longo século 19 terminou com a Primeira Guerra, com mortes, com a experiência do luto, mas também o que significou sobre a capacidade destrutiva. Acho que essa nossa pandemia marca o final do século 20, que foi o século da tecnologia. Nós tivemos um grande desenvolvimento tecnológico, mas agora a pandemia mostra esses limites", disse.


Leopoldo Barbosa - Doutor em neuropsiquiatria e ciências do comportamento e coordenador do mestrado em psicologia da saúde da Faculdade Pernambucana de Saúde, afirma que situações adversas têm potencial gerador de mudança. "A pandemia afetou a todos. Muitas pessoas já estão mudando, especialmente aquelas que vivenciaram perdas de perto. Esse momento repercute na valorização de questões que não eram percebidas como importantes antes", diz. Tempo de saber distinguir o que é essencial do que é secundário, contingentes, assessórios. Às vezes “brigamos\” por questões periféricas...

Podemos, efetivamente, olhar apenas para o assédio devastador desta crise que começou por ser sanitária, mas que depressa contaminou tantos outros âmbitos, tornando-se uma crise poliédrica: económica, social, política, eclesial, civilizacional. 

Ou podemos perceber, numa leitura crente e “esperançada” da história como o faz Deus incansavelmente: esta hora, com todos os seus constrangimentos é, afinal, um kairós, uma oportunidade para relançar a nossa aliança com a vida, nossos projetos, nossos nós de relações. 

“Este não é o momento para fazer cair os braços em desânimo, mas é um tempo para apostas de confiança. Não é só um compasso de espera que nos deixa como que suspensos numa dolorosa indefinição: é também um desafio à interlocução com o futuro e a dar passos concretos na sua direção. Não é só um tempo para fechar a semente no celeiro enquanto se aguardam as condições que consideramos propícias: é um tempo bom para os semeadores saírem para o campo” (Tolentino)


O im-pro-viso nos incomoda. O futuro chegou de inesperado, deixando-nos mais vulneráveis. Éramos acostumados a “ter” respostas para tudo. Éramos acostumados a krono-metrar: como exemplo, a “inutilidade” das agendas naqueles primeiros meses de Pandemia. 


Uma experiência de “clausura”, oxalá contemplativa, e o desafio de reencontrar o “único necessário”, o essencial. As palavras da Clarissa de Perugia: “Quem está atrás das grades? ”


A vida de Nazaré buscada incessantemente por Charles

Vivemos um kronos como possibilidade de Kairós e de kenosis (tempo de silêncio...). Tempo de in-certezas e in-seguranças. A pandemia, nos encontrou a todos despreparados e des-mascarou uma vulnerabilidade bem maior do que aquela que supúnhamos ser a nossa. 

Duas palavras semelhantes e de igual raiz no latim bem podemos empregar neste tempo: Precare (fazer prece) e precarium (o destino daquilo que é frágil).A espiritualidade não se constrói com a força. Podemos, assim, constatar que um tempo que pode ser visto como catastrófico, também pode ser acolhido como tempo de Graça. 

No cerne da VIDA CRISTÃestá o enamoramento a partir da des- coberta de um mistério insondável e AD-MIRÁVEL do Deus que se re-vela e salva a partir da fragilidade: coxo de Belém, Cruz fora dos muros da Cidade e frágil pão sobre o altar são o tríptico do Deus condescendente e humilde, que se manifesta na História a partir da fragilidade e vulnerabilidade. Jesus no mistério da sua Páscoa des-vela que tudo tem que passar pela Cruz. Experiência de um AMOR que o leva a amar, a com-prometer-se com o amado. 


O MISTERIO DA VIDA ESCONDIA DE NAZARÉ...

“Afinal, por que os conterrâneos de Jesus não O reconhecem e acreditam n’Ele? Qual é o motivo? Podemos dizer, em poucas palavras, que não aceitam o escândalo da Encarnação”. É escandaloso que a imensidão de Deus se revele na pequenez de nossa carne, que o Filho de Deus seja o filho do carpinteiro, que a divindade esteja escondida na humanidade, que Deus habite no rosto, nas palavras, nos gestos de um simples homem.

Eis o escândalo: a encarnação de Deus, sua concretude, seu “cotidiano. Na realidade, é mais cômodo um deus abstrato e distante, que não se intromete nas situações e que aceita uma fé distante da vida, dos problemas, da sociedade. 

Ou mesmo gostamos de acreditar em um deus ‘com efeitos especiais’, que só faz coisas excepcionais e sempre dá grandes emoções.

Ao invés, Deus se encarnou: humilde, terno, escondido, se faz próximo de nós habitando a normalidade de nossa vida cotidiana. E assim, como os conterrâneos de Jesus, corremos o risco que, quando passa, não o reconhecemos, aliás, nos escandalizamos por Ele” 

(Francisco, Angelus, 04/07/21)


Reconhecer as fragilidades, afinal, “a ânsia de poder não é originada da força, mas da fraqueza” (Erich  Fromm)


Ex: Francisco, o jovem “insatisfeito” depois de uma enfermidade e de confrontar-se com o outro – leproso - dilacerado pela doença. A ruptura decisiva e o encontro com o Senhor deram-se a partir do encontro com a vulnerabilidade humana e a necessidade de encontrar o ESSENCIAL. Também Camilo, Teresa... Inácio (e suas feridas).


CHARLES DE FOUCAULD....

Em certo período de sua permanência no deserto, a dura realidade do lugar e do isolamento pesaram sobre aquele homem de firme convicções e sem meias medidas. As leis eclesiásticas em vigor não pernitem que celebre a missa sozinho! Sente de perto as dores de uma total im-potência e forte angústia interior.Em fins de 1907 e inícios de 1908 cai gravemente enfermo. A fome assola a região. 

Irmão 

Charles distribuira tudo que tinha e agora ele mesmo fica doente. Graças à generosidade da população, que por toda parte vai à procura de leite de cabra, recupera a saúde. 

Momento providencial de uma "segunda conversão"! Até este momento fora sempre Charles de Foucauld que dava o que tinha, agora é ele que deve receber auxílio dos outros! Este acontecimento lhe ensina que é exatamente na fragilidade e vulnerabilidade que descobrimos o essencial, o que é definitivo e verdareiraente dá sabor á vida. Os resquícios do etnocentrismo e de uma pretensa superioridade racial desmoronam. O que fora uma experiência humana tomar-se-ia uma profunda experiência de Deus. Foi salvo da morte por aqueles que ele mesmo tinha vindo salvar!

O militar valente e o asceta voluntarioso começam a transformar -se num ser humano comum, um pobre, que precisa de Deus e dos outros.

Charles se humaniza e se torna ainda mais acessível e dialoga.

Invade-o uma imensa paz interior.


► Nestes dias é oportuno aproximar-nos de Simone Weil (+1943), filósofa e mística judia, uma figura inspiradora. A pensadora francesa que viveu os dilaceramentos da Segunda Guerra Mundial encontrou na vulnerabilidade da carne humana um caminho para a união com Deus e para a redenção. Para ela, o tempo da catástrofe é um tempo que parece que Deus recua, dá um passo atrás, mas o faz para descobrirmos o seu rosto de misericórdia, próximo às vítimas. 


► Esse tempo que ora atravessamos é o de nosso recuo, de kenosis. Tempo de dar um passo atrás para criticamente vermos como ocupamos o espaço. É tempo DE SILÊNCIO E ESCUTA. Tempo de deixar-se in-comodar pelas perguntas que emergem, sem incorrer na tentação de respostas precipitadas

Às vezes nossa vida é pura marcação de território, puro automatismo, como uma espécie de sonambulismo existencial.  Por vezes nos transformamos em meros funcionários do sagrado e a Eucaristia, centro e cume de nossa vida, corre o risco de tornar-se uma mera função exercida para os outros. 

► A indagação dos discípulos a Jesus durante a tempestade (Mc 4,35ss) é constante: “Não te importas que morramos? ”. Esse é o tempo das perguntas, e das perguntas fundamentais carregadas de sentido. Para vencer a banalidade. 

► Alguns diziam que naquele turbilhão não conseguiam rezar, mas deveria ser o contrário: esse tempo é de intensidade espiritual (de precare). E o termômetro são as perguntas fundamentais, radicais, e sua força. 

► Como disse o Papa naquela celebração na Praça, não foi a pandemia que nos adoeceu. A Pandemia revelou a doença que já tínhamos: estilo de vida onde não havia lugar para o humano, para o encontro, para uma vida interior digna desse nome. Tudo é cronometrado. Tempo de Graça e gratuidade. Tempo propício que e-voca o que o Exílio da Babilônia representou para a fé de Israel. 


As epidemias de males emocionais, de doenças da alma, já foram constatadas há anos por profissionais e estudiosos (cf. Der Spiegel, 2017). Também entre nós algumas constatações de anos atrás: 


Nós intelectualizamos demais a fé. Construímos um castelo de abstrações. Preocupamo-nos mais com a credibilidade racional da experiência de fé do que com sua credibilidade existencial, antropológica e afetiva: EMOÇÕES.

São Boaventura, a capela do Seminário e as catequeses de Bento XVI. 


"A fé está no intelecto, de tal modo que provocao afeto. Por exemplo: saber que Cristo morreu 'por nós' não permanece na consciência, mas torna-se necessariamente afeto, amor" (Breviloquio, Prologo, qu. 3)

“Por consequência, São Tomás e São Boaventura definem deforma diferente o destino último do homem, a sua felicidade plena: para São Tomás, o fim supremo, a que se dirige o nosso desejo é: ver a Deus. Nesse simples ato de ver a Deus encontra-se a solução de todos os problemas: somos felizes, nada mais é necessário. Para São Boaventura, o destino último do homem é: amar a Deus, encontrar e unir o nosso e o seu amor. Esta é, para ele, a definição mais apropriada da nossa felicidade”

O amor se estende para além da razão, vê mais, entra mais profundamente no mistério de Deus. (...) Exatamente na noite escura da Cruz aparece toda a grandeza do amor divino; onde a razão não mais enxerga, enxerga o amor. Tudo isso não é anti-intelectual e nem antirracional: supõe o caminho da razão, mas o transcende no amor de Cristo crucificado” (Bento XVI, Catequese de 17/03/2010)

“Não deixem as fragilidades de lado: elas são um lugar teológico.                                         A minha fragilidade, de cada um de nós é um lugar teológico de encontro com o Senhor. Os sacerdotes super-homens terminam mal, todos eles. O sacerdote frágil, que conhece suas fraquezas e fala delas com o Senhor, esse irá bem”



Tema 03 -PANDEMIA, TEMPO DE DESCISÃO,  SEM ESPAÇO PARA MEDIOCRIDADES E HIPOCRISIAS


► Este é um tempo de CRISE. Palavra carregada de pessimismo. Chamados a um olhar teo-logico e pascal. 


“Vejo este momento como a hora da verdade. Ele me faz lembrar do que Jesus disse a Pedro: Satanás quer “peneirar você como trigo” (Lc 22,31). Entrar em crise implica ser peneirado. É um momento em que tanto os nossos parâmetros como as nossas formas de pensar são sacudidos e as nossas prioridades e os nossos estilos de vida são postos em questão. Cruzamos um limiar, seja por decisão própria, seja por necessidade.

Estamos vivendo um momento de provação.  Nas provações da vida, você acaba revelando o seu próprio coração: a sua solidez, a sua misericórdia, a sua grandeza ou a sua mesquinhez. Os tempos normais são como as situações sociais formais: a pessoa nunca mostra o que é de verdade. Sorri, diz o correto e sai da situação, sem mostrar quem é na realidade. Mas, quando passa por uma crise, acontece o oposto: você se coloca diante da necessidade de escolher. E, ao fazer sua opção, seu coração é revelado” (“Francisco, Vamos Sonhar Juntos...) 

Quem atravessa uma CRISE emerge como nova criatura. A regra básica é que nunca se sai igual de uma crise. Caso se passe por ela, sai-se melhor ou pior; mas nunca igual. Não há espaço para a HIPOCRISIA E OU A MEDIOCRIDADE. 


AFINAL, O QUE É CRISE?

Outra palavra originária do radical grego: crisálida (lagarta X borboleta)


TEXTOS INSPIRADORES1 Reis 19 e Jeremias 15 e 20


Jo 21,1-14 - Sete discípulos bem representativos (Dois não são nominados).  No início, entusiasmo. Agora, voltaram a pescar nos limites estreitos do Tiberíades, esquecendo aquela vocação mais ampla, desmedida.Nanoite, nsucesso, sensação de fracasso, angústia, decepção (cf.Emaús – Lc24). Deus se esconde para tornar-se procurado e achado. A procura dele, ainda que sofredora e dolorosa, necessária passagem para uma verdadeira experiência –   Ct 3,1-2: “Procurei-o, mas não o encontrei”. Deus se re-vela não na clareza lógica, cristalina, cartesiana que o homem sempre deseja. Mas, Deus não faz um grande espetáculo pirotécnico no palco da História...  Jesus se apresenta na aurora, em uma luz velada, naquele momento da manhã no qual se vê sim e não. A angústia da noite passou, mas o sol não é ainda fulgurante.                                 

Quem o reconhece é o Discípulo Amado, amante, amigo.

Reconhecimento pressupõe empenho, esforço, pois não é uma evidência física, mas uma evidência moral e interior, que exige o caminho do ser humano. Muitos se cansam dessa tarefa e desistem. Mas Jesus é terno e se faz íntimo (“filhinhos”). Delicadeza e paciência pedagógicas.  Primeiro reabilita o entusiasmo, a autoconfiança. Bem diferente do que faria o ACUSADOR.


Na História da espiritualidade cristã é clássica a expressão “SILÊNCIO DE DEUS”. As palavras de Bento XVI em Auschwitz ainda ecoam e in-comodam: 


“Num lugar como este faltam as palavras, no fundo pode permanecer apenas um silêncio aterrorizado um silêncio que é um grito interior a Deus: Senhor, por que silenciaste? Por que toleraste tudo isto? É nesta atitude de silêncio que nos inclinamos profundamente no nosso coração face à numerosa multidão de quantos sofreram e foram condenados à morte”


“Senhor, quando tu voltares, não recorde só o que os nossos carrascos fizeram (sofrimento e morte que provocaram). Coloca também na tua balança as oportunidades de amor e graça que tu nos oferecestes neste tempo” (Oração encontrada em Auschwitz) 


Tempo de ADORAÇÃO: AD-ORUS


“Depois dessa experiência (doença grave no pumão) , decidi que, quando visitasse os doentes, falaria o mínimo possível. Hoje simplesmente seguro a mão deles” (Francisco)


► Este ainda  é um tempo de grande escuta espiritual. 

A vida não se esgota no instante, na arquitetura do cotidiano. Temos de ouvir os passos do futuro e dialogar com ele de outra forma. Também de escutar-nos uns aos outros. Sobretudo nós, sacerdotes, chamados a ser mist-agogos, devemos estar atentamente em atitude de escuta e olhar que perscruta. 

►Não se tratou de uma mera suspensão, ou parênteses. Temos que encontrar novas formas de viver e conviver.  É um tempo de “laboratório”, de sair de um cristianismo epidérmico, de superfície. Se fôssemos escolher um dia do Tríduo Pascal para simbolizarmos esse tempo, seria a sexta-feira santa: tudo despojado, sacrário vazio, silêncio...

► Aprender outras formas de presença. Estamos próximos, mas às vezes estamos distantes. Às vezes estamos em comunidade, mas somos ilhas (isolas). 


O individualismo solapou tantas de nossas dioceses... Em muitos casos não existem amizades, mas “pactos de mediocridade” ou “conchavos” . 

Somos frágeis vulneráveis, percebemos, e necessitamos do outro e somos umbilicalmente dependentes do Grande Outro. 

Um elemento de novidade destes tempos difíceis que vivemos é o património de perguntas que muitos se estão fazendo, perguntas não apenas imediatistas e focadas nas urgências do cotidiano, mas que se prendem com o sentido da vida, com a avaliação crítica daquilo que a sociedade moderna coloca como prioritário, com a forma como cada um de nós tem vivido, amado e com que nos comprometemos. «Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é a fazer outras maiores perguntas» e “viver é rasgar-se e remendar-se” (Guimarães Rosa).


“Uma fé que não nos põe em crise é uma fé em crise; uma fé que não nos faz crescer é uma fé que deve crescer; uma fé que não nos questiona é uma fé sobre a qual nos devemos questionar; uma fé que não nos anima é uma fé que deve ser animada; uma fé que não nos sacode é uma fé que deve ser sacudida” (Papa Francisco aos participantes da Assembleia Plenária da Congregação para a Doutrina da Fé - 21/02/22)


  Nesse sentido, uma característica decisiva no Santo Eremita do Saara é a ausência de medio-cridade. Sua vida não foi um caminho em linha reta, mas um itinerário tuultuado, sinuoso e em constante alterações. Sempre a partir de inquietações e angústias de quem quer sentido para a vida e, depois do encontro com o Evangelho, busca a radicalidade na identificação com o Bem-Amado. 

O Evangelho como um fogo ardente o acrisola, fazendo-o livrar-se pouco a pouco do des-necessário Desde o militar que pede demissão, em 1882, crises sucessivas provocam purgações, purificações, no processo que se tornará progressiva con-formidade a Cristo. O que lhe parecia embaraço para a incondicional IMITAÇÃO vai sendo largado e des-prezado. Quando entra em aparente “zona de conforto” seu coração se inquieta e sofre. Aquele jovem estudante indisciplinado, revoltado e insatisfeito (“penúltimo lugar” na Escola de Cavalaria de Samur) será até o fim de sua vida sempre um homem de coração inquieto, sob o ardor de um crisol. Expressão dessa busca sincera e angustiada e de como a questão de Deus lhe foi retomada fortemente ele próprio apresenta claramente na carta “confissão” ao amigo Castries: E seu coração só encontro remanso no coração do Deserto: 

Ao mesmo tempo, uma graça interior extremamente forte me impulsionava: eu me pus a ir à igreja, mesmo sem crer. Só aí me sentia bem. E passava longas horas a repetir esta estranha oração: Meu Deus, se vós existis, façais que eu vos conheça! F/C, 14/08/1901.

Encontro-me muito melhor aqui do que em Beni-Abbès. Esta vila perdida onde, por mais de seis meses geralmente estarei sem receber cartas nem ver rostos franceses, onde a minha pequena capela é de fato pobre e se assemelha verdadeiramente à Nazaré que eu quis, com seu recolhimento, sua oração, o trabalho cotidiano em um pequeno jardim.... Aqui tenho Nazaré como queria. Que coisa posso querer mais? ( F/H, 26/10/1905)

Evidentemente não se trata só de “êxodos” geográficos, mas de mudança de mentalidade, de modo totalmente renovado de ver o mundo e as pessoas, bem como de sentimentos e afetos igualmente novos, como transparece em seus escritos. 

Também não lhe faltaram momentos de crise no percurso espiritual, chegando a dizer que “meu estado é estranho: tudo me parece vazio, vazio, oco, nulo, infinitamente... fico árido, tíbio, sem palavra ou pensamento...”. Daí sai mais forte, apaixonado e decidido. 

Para meditar: Jo 21, 1-14 e Lc 24,13-35


Tema 04 - Tempo de renovado CRISTOCENTRISMO


“Logo que descobri que existe Deus entendi que                                                                                  não podia mais fazer outra coisa a não ser viver por ele:                                                       minha vocação religiosa começa no exato momento em que despertou a minha fé”.


As novas Diretrizes para a Formação dos Presbíteros, da CNBB, salientam que “não se inicia nenhum processo formativo que não tenha como ponto de partida o encontro com Cristo... O encontro é a possibilidade da formação como um processo renovador e de amadurecimento” (66a). A RFIS, por sua vez, logo na sua introdução, recorda que “a ideia de fundo é que os seminários possam formar discípulos missionários ‘enamorados’ do Mestre, pastores ‘com o cheiro das ovelhas’ que vivam no meio delas para servi-las e conduzi-las à misericórdia de Deus” (n.3). Devemos, pois, inicialmente recuperar a dimensão cristocêntrica. Neste momento complexo é preciso “ter os olhos fixos em Jesus”, o sacerdote por excelência, e na beleza da experiência de encontra-lo e de permanecer com Ele. Bem ecoam as palavras de São Paulo VI: 


“Os presbíteros seguem a Cristo não para anunciarem o Evangelho, senão anunciam o Evangelho porque seguem a Cristo”  


Ex-periência = conhecer por dentro, partindo da própria relação com as coisas. A pessoa se sente tomada, envolvida por inteira.  Realidade vital, não mera dedução intelectual ou  algo “epidérmico”.

O sacerdócio ministerial, como vimos, define-se pela profunda Experiência de Deus em Cristo Jesus. Tem nessa experiência vital seu eixo, razão e fundamento.

O Papa Francisco já alerta acerca “de qualquer tipo de motivações” com as quais não se pode encher os seminários: “e menos ainda se estão relacionadas com insegurança afetiva, busca de formas de poder, glória humana e bem estar econômico” (EG107). Nem mesmo uma “boa causa” pode ser a motivação chefe, central e irradiadora. Tudo o que fazemos, mesmo as atividades e iniciativas mais belas e dignas, são como que raios que partem de um único eixo e nele se sustentam e configuram.

A Pedro (Jo 21), Jesus não perguntou outra coisa a não ser “tu me amas?”. Não examinou o Pescador de Gente acerca de suas capacidades organizativas e articuladoras na futura missão de “apascentar minhas ovelhas” 

► Uma boa ação pastoral é configuração a Cristo, aos sentimentos do seu coração e à sua maneira de des-velar o rosto do Pai.  Vai muito além das iniciativas e atividades no âmbito da estrutura pastoral, mesmo que belas. 


“Não é a criatividade pastoral, não são as reuniões ou planejamentos que garantem os frutos, mas SER FIEL A JESUS (Papa Francisco, Rio, JMJ) 

“Se quiseres construir um navio, não comeces por dizer aos operários para juntar madeira ou preparar as ferramentas; não comeces por distribuir tarefas ou por organizar a atividade. Em vez disso, detém-te a acordar neles o desejo do mar distante e sem fim. Quando estiver viva esta sede meter-se-ão ao trabalho para construir o navio” (Saint-Exupéry)


Nas palavras oportunas e relevantes do atual Papa Emérito por ocasião da abertura da Conferência de Aparecida, e relembrada por Francisco na EG, encontramos o eco de um clássico de Romano Guardini que ele deve ter lido em sua juventude. Em Der Herr, Guardini enfatiza que no centro da fé cristã não está uma ideia, nem uma estratégia pastoral, e muito menos uma ideologia.  Está uma pessoa: Jesus Cristo.


"Não se começa a ser cristão por uma decisão ética ou uma grande ideia, mas através do encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá um novo horizonte à vida e, com isso, 

uma orientação decisiva" (Aparecida 243) 

NOSSO COMPROMISSO É COM ELE E O REINO, CENTRO DE SUA VIDA E MISSÃO. Não para exercermos determinada atividade ou para doar-nos em tal ou tal grupo e ou instituição. Mas, para SEGUIR mais de perto a Jesus (com Ele e como Ele) Só isso é ABSOLUTO. Ver Parábola de Corpus Christi

Dom Helder insistente e repetidamente dizia no inicio de cada celebração: “o principal celebrante é Jesus Cristo!”. A espetacularização da Liturgia é fragrante denuncia a camuflada crise de fé e de uma sólida catequese mistagógica. A tentação de atrair adeptos, não seguidores de Jesus, discípulos. As palavras do “Seu Josué” nos interpelam. 

Por outro lado, os escritos do Irmão Charles revelam uma paixão ardorosa e contagiante pelo Verbo feito carne. Ele não se preocupará em ser repetitivo em suas meditações escritas para insistir na bondade e na ternura que encerram o Mistério da Humanização de Deus. Ele emprega verdadeiramente termos que denotam um homem todo envolvido por um amor totalizante e absoluto. Encontramos aí a linguagem própria de um enamorado que não poupa a candura toda possível que encontra no vocabulário de seu idioma para referir-se ao “Bem-Amado”. Este parece-nos ser o título cristológico preferido de Charles de Foucauld, o que podemos constatar olhando o conjunto dos seus escritos. Outro “título” muito especial para o Cristo e abundantemente empregado é “Modelo Único”, expressão do seu cristocentrismo absoluto. Neste sentido, em seus escritos surge repetidamente o refrão: “como Jesus em Nazaré”. Exemplo desse modo de expressar-se próprio de quem está fascinado pela pessoa amada são suas palavras numa belíssima carta a Gabriel Tourdes, um dos seus amigos mais afeiçoados:


Eu passei quatro anos como eremita na Terra Santa, vivendo do trabalho de minhas mãos como Jesus sob o nome ‘Irmão Charles’, desconhecido de todos e pobre e gozando profundamente da obscuridade, do silêncio, da pobreza, da imitação de JESUS. A imitação é inseparável do amor, tu bem o sabes. Todo aquele que ama quer imitar: este é o segredo da minha vida: eu perdi meu coração por esse JESUS de Nazaré crucificado há 1900 anos e eu passo minha vida a procurar imitá-lo tanto quanto pode a minha fraqueza.  (F/T, lettre 46, Benis-Abbés, entre 1901-1904)


Citando e, de certo modo, parafraseando o Apóstolo Paulo, ele poderá com toda a autoridade propor a Sequela Christi e afirmar numa carta a Louis Massignon:


«Pouco a pouco você sentirá o desejo de imitar o Bem-Amado, de não fazer nada mais que ser um com Ele e de imitá-Lo. Você desejará amar como Ele, nada fazer que ter um só coração com Ele: já não sou eu que vivo, é JESUS – o CORAÇÃO DE JESUS – que vive em mim”. (F/M, 19/04/1911)

E nas anotações do Retiro em Nazaré ele escreverá: 

«Em todo caso, eu não posso conceber o amor sem um desejo um desejo imperioso de conformidade, de semelhança. (Nazareth, 28).


Charles era muito concreto e realista ao referir-se à sua querida Nazaré. Tudo naquele lugar lhe evocava o “humilde operário”, o “humilde filho de carpinteiro”. A humildade do Verbo de Deus manifestava-se com toda a sua eloquência na simplicidade da vida cotidiana de Jesus em Nazaré, com José e Maria, e em contato permanente com os pobres, seus vizinhos, bem como no trabalho manual realizado na carpintaria. A ordinariedade da vida comum em meio aos demais durante os prolongados trinta anos na aldeia de Nazaré era evidência do inquestionável amor de quem sendo infinitamente grande e o Primeiro de tudo, escolheu o “último lugar”. Num belo poema sobre Nazaré de 1897, justamente quando morava na cidade do “último lugar, poderá exclamar: 


Vi debaixo de um humilde teto de cabana / Um Deus feito carpinteiro./ Ao repouso do céu, seu Reino,/ ele prefere uma pobre carpintaria” (Notes, Terre Saint, Poesie sur Nazareth)


“Para os presbíteros é vital conservar a fé frente ao relativismo e ceticismo contemporâneos...O anúncio da Palavra de Deus será tanto mais convincente quanto mais sólida e profunda for essa CONVICÇÃO e certeza da presença e ação constantes de Cristo em sua Igreja” (Subsídio Doutrinal 5, CNBB) 


Ver parábola do padre e o palhaço do circo

Para meditação: João 21,15ss



Tema 05 - DEVOÇÃO À EUCARISTIA E VIDA EUCARÍSTICA

Sacerdócio ministerial: Con-figuração a Cristo. Con-formidade a Ele.

O Papa Francisco e o “ad (proximidade) -mirável sinal” na . Não só mirar. Muito menos ab- mirar, pois “surpresa é a marca de Deus”. 


Fil 2, 5-11 – “Tenham os mesmos sentimentos de Cristo Jesus: Ele tinha a condição divina e não considerou o ser igual a Deus...mas esvaziou-se a si mesmo e assumiu a condição de servo tomando a semelhança humana”


Identificação com o mais baixo – abaixamento – descimento – Êxodo

Encarnação: mistério da SIM-PATIA divina. Revelação plena. 

O Grande, Senhor, forte, Criador, Todo Poderoso, rico...”fez-se como um de nós (Häring). Quem ama não suporta distâncias, barreiras... Amar  X  gostar (cf. Duns Scotus)


«O Filho de Deus trabalhou com mãos humanas, pensou com uma inteligência humana, agiu com uma vontade humana, amou com um coração humano. Nascido da Virgem Maria, tornou-Se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, exceto no pecado» (GS 22)

A Eucaristia prolonga cotidianamente esse a-baixamento e a humildade ad-miráveis do cocho e da cruz. 

“No sacramento da Eucaristia o Salvador, que encarnou no seio de Maria vinte séculos atrás, continua a oferecer-Se à humanidade como fonte de vida divina” (C. A. Mane Nobiscum Domine, 7)

Jesus não dá “alguma coisa”, mas dá-se a si mesmo, entrega seu corpo e derrama seu sangue. Antecipa e implica o sacrifício da cruz. Podemos recorrer à figura de um Tríptico (obra de arte…três painéis, retábulos ...unidade) da ternura de Deus.

Em Charles, a admiração e reverência diante do Mistério da Encarnação é também presente no modo como contempla e admira devotamente a Eucaristia e a ela se refere. Esta ocupa um lugar privilegiado na sua espiritualidade e no modo como contempla a Cristo. Assim, é, por conseguinte, um tema densamente presente nos seus escritos. Encarnação e Eucaristia têm estreito vínculo, sendo a humildade de Cristo, o seu “abaixar-se” e “descer” ao nosso encontro o denominador comum entre os dois mistérios.

Com palavras que evocam as de Francisco de Assis, o Eremita do Saara, com expressões também marcadas não por uma análise teológica do que seja “presença real”, mas que manifestam quem está inebriado de amor por esse mistério, afirma: 

Como tu és próximo, meu Deus! Meu Salvador! Meu Jesus, meu irmão, meu esposo, meu bem-amado! Não era mais próximo da Santa Virgem durante os nove meses nos quais ela te carregou no seu seio de que és de mim quando vens sobre a minha língua na comunhão! Nazareth 11.

Foucauld afirma que o privilégio de estar sentado aos pés do tabernáculo é semelhante ao dos Apóstolos que eram fisicamente bem próximos a Jesus Em Charles o paralelo entre manjedoura e altar é abundantemente presente nos escritos, emergindo expressões que insistem na cotidianidade do Natal por causa da Eucaristia celebrada todos os dias chegando a afirmar que nos dias santos e benditos do Natal o Menino Jesus estará na sua manjedoura e desejará colocar-se em suas mãos junto ao altar. 

Na intensa relação de Charles de Foucauld com a Eucaristia encontramos forte ressonância da espiritualidade e de práticas devocionais próprias de sua época. Todavia, notamos elementos significativamente originais, emergentes de sua profunda ligação com as Escrituras e de uma atenta sensibilidade que lhe era muito peculiar. Tais fatores o impediram de cair em certos desvios e exageros comuns à segunda metade do século XIX. 

Desde o primeiro passo de sua conversão, naquela comunhão eucarística que sucedeu à confissão decisiva e inesquecível na Igreja de Santo Agostinho, Charles de Foucauld encontrará sempre na adoração e na comunhão frequentes o eixo radioso de onde brota sua força e de onde parte sua incrível disposição para amar terna e eficazmente todas as pessoas. Dirá muitas vezes, e o colocará entre suas resoluções do retiro feito em Nazaré, em 1897, que a devoção Eucarística é e deverá ser sempre a sua preferida. Nessas mesmas anotações afirmará com uma linguagem rigorosa e severa, que pode até nos surpreender, que as várias devoções a relíquias da Terra Santa e a imagens não podem jamais substituir ou serem comparadas à devoção eucarística, pois no Tabernáculo tem “Jesus vivo perto de nós” e não se pode trocá-lo por “pedras mortas”. O mesmo tom firme de um cristocentrismo firmado na fé no binômio Encarnação-Eucaristia deixará impresso nas suas meditações sobre as Sagradas Escrituras. Ao meditar o Salmo 35, após reconhecer o significado de casas e locais por onde Jesus passou (gruta de Belém, casas de Nazaré e de Betânia, etc), Charles afirmará incisivamente: 


Todavia, por mais santos que eles sejam… nada mais são que pedras... Vós estás dentro dos tabernáculos: lá está vosso corpo e vossa alma, vossa divindade e vossa humanidade.  (MPP, 70º, Ps 35,8-fin)


Se desde o princípio passava horas ininterruptas diante do Sacrário cultivando a intimidade com o Senhor e exercia a prática da adoração noturna, participava e celebrava a Eucaristia com piedade e zelo que chamavam a atenção dos circundantes. René Bazin ouviu pessoalmente testemunhos eloquentes nesse sentido. Assim, um fuzileiro que participou de várias celebrações presididas pelo “Père” Charles em Benni-Abbès dirá que “quem nunca assistiu àquele tipo de celebração não sabe bem que coisa pode ser uma Missa, para em seguida concluir que “quando pronunciava o Domine non sumdignus fazia-o com um tal acento que se tinha vontade de chorar com ele”. A mesma marcante impressão terá o General Lyautey, que o visitará em janeiro de 1905. Este, após descrever a sobriedade e a pobreza extrema daquela capela (“tínhamos os pés na areia”), declarará a Bazin que “nunca vi alguém celebrar a Missa como a celebrava o Padre De Foucauld. Parecia-me estar na Tebaida. Um dos momentos mais impressionantes da minha vida”.

Mais do que uma devoção eucarística, pautada por ritos e práticas externas, Irmão Charles viverá, assim, uma autêntica espiritualidade eucarística, que terá o sabor de concretude própria de um homem sem devocionismo e pieguismos. À adoração a Jesus nos tabernáculos estará sempre concomitante a leitura e meditação das Sagradas Escrituras. Não só olha ternamente a Jesus no tabernáculo, mas simultaneamente escuta a sua voz e suas interpelações através da leitura atenta dos textos bíblicos. Eucaristia e leitura bíblica serão sempre suas fontes para um relacionamento com Cristo cada vez mais intenso e envolvente, que será extravasado na relação solidária e fraterna sem distinções. A certeza de que todos os homens, particularmente os pobres, são membros do corpo de Cristo será exaustivamente rebatido em seus escritos, destacadamente em suas meditações evangélico-litúrgicas de 1898. A convicta e estreita ligação entre o corpo de Cristo na Eucaristia e o corpo de Cristo nos corpos dos sofredores encontrará uma bela síntese em suas palavras numa carta a Louis Massignon, a exatamente quatro meses antes de sua morte: 


Não existe, creio, palavra do Evangelho que tenha impressionado e transformado mais profundamente minha vida que essa: ‘Tudo o que fizerdes a um destes pequenos, é a mim que o fareis’. Quando se pensa que tais palavras saíram da Verdade incriada, saíram da mesma boca que disse “Isto é meu corpo... isto é meu sangue’, com qual força se é levado a procurar e a amar JESUS ‘nestes pequenos, nos pecadores, nos pobres [F/M, 01/08/1916.]


Essa vida toda feita Eucaristia resplenderá sobretudo a partir de Tamanrasset, onde chega em 1905, e culminará na oferta total de sua vida. Sua profunda e consistente compreensão acerca da Eucaristia manifestar-se-á com toda a sua pujança entre o fim de 1907 e começo de 1908, quando a solidão o impedirá de celebrar durante meses a Santa Ceia do Senhor. Se a Eucaristia é memória e atualização do sacrifício de Cristo, Charles, “sacrificará” o prazer e o bem imenso que lhe proporcionam celebrá-la para permanecer junto aos tuaregues, movido pelo ardor da caridade e da presença fraterna e acolhedora junto a essa população abandonada do deserto. Esse período, porém, assinalará uma grave crise espiritual e física, abatido sobretudo por não poder celebrar a Eucaristia, fonte de sua resistência e sustento. 

Em suas cartas desse período expressará a dor e a angústia que lhe pervadem. O mesmo desabafo coloca tantíssimas vezes no seu diário, nesse período, concluindo suas anotações com a expressão “nada de Missa porque estou só”.  E quando lhe chega em mãos uma carta do coronel Laperrine, seu grande amigo, datada de 31 de janeiro de 1908, comunicando-lhe o privilégio concedido de poder celebrar sozinho, cantará e extravasará de uma alegria que será registrada também em seu diário: 

Deo gratias! Deo gratias! Deo gratias! Meu Deus, como vós sois bom! Amanhã já poderei celebrar a Santa Missa. Natal! Natal! Natal!  Obrigado, meu Deus!. (F/M, 01/08/1916


Tal momento emblemático da vida do Irmão Carlos não há como não remeter-nos imediatamente ao episódio bíblico relatado em 1 Reis 19,1-8. 

MINISTERIO PRESBITERAL E EUCARISTIA

 “Esta é a principal e central razão de ser do sacramento do Sacerdócio, que nasceu efetivamente no momento da instituição da Eucaristia e juntamente com ela” (João Paulo II) 

Daí, o seguimento de Jesus conduz ao conformar-se a Ele. 

► Viver com Ele → em comunidade (v. o “tripé” em Marcos 3)

“Podemos dizer não só que cada um de nós recebe Cristo, mas também que Cristo recebe cada um de nós. Ele intensifica a sua amizade conosco: “Chamei-vos amigos”. Mais ainda, nós vivemos por Ele: “O que Me come viverá por Mim”.  Na comunhão eucarística, realiza-se de modo sublime a inabitação mútua de Cristo e do discípulo: “Permanecei em Mim e Eu permanecerei em vós” (EdE, 22) 

Nós nos tornamos Sacramento para a humanidade, o Corpo de Cristo no mundo. A Igreja é consolidada na sua unidade de Corpo de Cristo (efeito unificador). Afirma São João Crisóstomo: 


“Com efeito, o que é o pão? É o corpo de Cristo. E em que se transformam aqueles que o recebem? No corpo de Cristo; não muitos corpos, mas um só corpo. De fato, tal como o pão é um só apesar de constituído por muitos grãos, e estes, embora não se vejam, todavia estão no pão, de tal modo que a sua diferença desapareceu devido à sua perfeita e recíproca fusão, assim também nós estamos unidos reciprocamente entre nós e, todos juntos, com Cristo”

Espírito Santo e Eucaristia: epiclese e comunhão/unidade: “ ...e concedei que, alimentando-nos com o Corpo e o Sangue do vosso Filho, sejamos repletos do Espírito Santo e nos tornemos em Cristo um só corpo e um só espírito. (Oração Eucarística III)

 A Eucaristia, pois, cria comunhão e educa para a comunhão

Em 1Cor 11,17-34, Paulo faz os coríntios verem como as suas divisões, que se davam nas assembleias eucarísticas, estavam em contraste com o que celebravam – a Ceia do Senhor. Agostinho, por sua vez afirma:

 “Se sois o corpo de Cristo e seus membros, é o vosso sacramento que está colocado sobre a mesa do Senhor; é o vosso sacramento que recebeis... Cristo Senhor consagrou na sua mesa o sacramento da nossa paz e unidade. Quem recebe o sacramento da unidade, sem conservar o vínculo da paz, não recebe um sacramento para seu benefício, mas antes uma condenação”

Palavras do Núncio acerca de quem preside a Eucaristia, mas....

► Viver como Ele   → Ter os sentimentos do seu coração. Compartilhar sua vida e Missão à sua maneira. Descer. Tornar-se próximo. 

“As palavras da instituição da Eucaristia devem ser para nós não apenas uma fórmula de consagração, mas uma fórmula de vida” (SJP II, Carta QFS, 2005).          

Para a Missão, “não fornece apenas a força interior, mas também, em certo sentido, o projeto... o modo de ser” (MND, 25)

Cabe-nos encarnar o projeto eucarístico na vida cotidiana com atenção à “síndrome” dos filhos de Zebedeu e a tentação no Monte Tabor. Não querer subir, ir ao sentido contrário do caminho de Jesus → poder que não é SERVIÇO, status, privilégios, ascensão social, insistir nos sinais que distinguem e promovem. À medida em que fazia a kenosis no Saara, Irmão Charles torna-se mais identificado com as populações locais até no vestir.

Todo somos familiarizados com as duras e pertinentes críticas do Papa ao clericalismo, chamado por ele de “caricatura do ministério presbiteral”. O Povo e Deus necessita de homens servidores que transparecem Cristo, não dando lugar à auto exaltação (mesmo que disfarçada), à mediocridade e apatia e cedendo à tentação do sucesso/êxito. 

Invidia clericalis”: os nossos conflitos e a disputa pelo poder (ver Mc 9,30-37)

Fofoca é ato de terrorismo e covardia. Carreirismo, busca de títulos e sinais de distinção. 


Seguimento e CRUZ “E, achado em figura humana, humilhou-se e foi obediente até a morte, e morte de cruz”.


A terceira tentação de Jesus: Mt 4,9

(no pórtico da vida pública de Jesus) 

Mateus 28,16-20 

(no pórtico da Missão dos discípulos)


PODER de todos os reinos e sua glória. ADORAÇÃO 

Poder da doxa, da passageira gloria que se dissolve   X    poder qie integra o mistério da cruz 

Culto do poder, que o idolatra         X            serviço, oblação, entrega 

Devo me perguntar não só acerca do que faço com o poder que nos me confiado, mas “o que o poder fez de mim?”. Há um risco enome quando a tentação do poder nos afasta do mistério da CRUZ. Jesus se recusa a ajoelhar diante de Satanãs, mas se ajoelha firmemente diante dos discípulos para lavar-lhes os pés. 

O Papa reiteradas vezes alerta-nos acerca do mal do MUNDANISMO. 

À luz da célebre parábola do sábio que aponta para a lua e o idiota fixa-se no dedo indicador, podemos nos perguntar: agimos in Persona Christi ou formamos “idiotas” que se detém em nós mesmos (chamados a ser meros indicadores) ? Os olhos de todos devem “estar fixos em Jesus”. 

Para o deserto:  

Lc 22, 24-27: No contexto eucarístico, “quem é o maior?” Filipenses 2,5-11


Tema 06 -VIDA CONFORME O EVANGELHO

seguimento e imitação permanentes

Até a primeira metade do século XIX a Bíblia restava como uma obra de bibliotecas, um instrumento de trabalho para “iniciados”, cujas notas de rodapé e comentários em latim as tornavam disponíveis quase somente aos sacerdotes. Acrescenta-se a isso o fato de as publicações serem de preço muito elevado. A hierarquia católica chegava a desestimular o acesso direto dos leigos aos textos bíblicos, marcada pela apreensão diante das interpretações protestantes e racionalistas. A mudança será lenta e tímida a partir da segunda metade do 800.  Charles, por outro lado, escreve a um amigo leigo:  


Mas procure encontrar o tempo para ler quaisquer linhas do Santo Evangelho. É necessário procurar impregnarmos do espírito de Jesus lendo e relendo, meditando e remeditando sem cessar suas palavras e seus exemplos: que eles passem dentro de nossas almas como a gota d’água que cai e recai sobre uma pedra, todos os dias no mesmo lugar (F/M 22/julho/1914)


Charles que escrevera uma Regra minuciosa, rigorosa e detalhada para os pequenos irmãos que desejava agrupar em vista da “imitação de Nosso Senhor” tem bastante clareza que deve nortear sua vida e a dos irmãos tendo, na verdade, o Evangelho como Regra fundamental. Assim, coloca nos lábios de Jesus: A tua Regra seja o Evangelho, nele eu mostro que eu quero antes de tudo ser amado (Nazareth 19/20)

É justamente uma Regra pautada pela radicalidade que brota do Evangelho que Foucauld escrevera quando morava em Nazaré (em 1896), pensando nos futuros “Irmãozinhos de Jesus”. Huvelin poderem adverte que “sua Regra é absolutamente impraticável. O Papa resistiu a dar sua aprovação à regra franciscana, achando-a muito severa, mas a sua regra...; em verdade me aterroriza!” 

Ele procura seguir Jesus e conformar-se ao Amado nos mínimos detalhes, tentando atualizá-lo e “encarná-lo”. Ao mesmo tempo procura visibilizar e reproduzir o mais fortemente possível aquilo que é apresentado de Cristo nos relatos evangélicos. Os aspectos dessa procura incansável e, em certo sentido, perfeccionista são inumeráveis. Procura assemelhar-se a Cristo, numa vida como a sua, tanto no que se refere aos sentimentos e atitudes manifestados, como nas condições externas de sua humanidade segundo os relatos neotestamentários. Será formando uma fraternidade de doze irmãos que Foucauld deseja viver em tudo “a vida escondida de Nosso Senhor”. Charles quer tanto na Terra Santa como em pleno deserto do Saara reproduzir fielmente as condições da casa de Nazaré. Mas essa busca será sempre assinalada por um esforço significativo de atualizar as ações, os gestos e os sentimentos de Jesus de Nazaré, afastando-se do perigo de uma espiritualidade anacrônica, a-histórica e meramente “arqueológica”. 

É belo constatar que Charles estabelece sempre um nexo inseparável entre a Palavra e a Eucaristia:


Como vós sois bom por nos haver doado, ó Bom Deus, de ter, assim, ao lado do vosso Verbo vivente nos tabernáculos, a vossa Palavra escrita. Qual felicidade infinita! Eu adoro-a, meu Deus, de todo a minha alma, eu adoro em todos esses versículos essa escritura bendita. (MT, Genese V, 1-17).


É o seu desejo de imitar o Cristo que o leva a privilegiar a Bíblia, pois compreenderá que quanto mais se conhece a pessoa amada, melhor se poderá assemelhar-se e identificar-se com ela. A imitação, “primeira filha do amor” e, ao mesmo tempo, “uma necessidade do amor”, pressupõe o conhecer mais profundamente o “Bem-Amado”, suas palavras e exemplos. As conclusões e resoluções de seus retiros além de serem aplicações da Palavra rezada e meditada à sua vida concreta, sempre trazem como propósito de vida a ser assumido a leitura e meditação dos “livros santos que falam de Jesus”. 

De fato, Foucauld vai pautando a sua vida e suas decisões à luz da Palavra que lhe fala do “Modelo Único”. Todos os discernimentos que faz, todas as decisões e mudanças de plano que assume, num processo sempre crescente de identificação com Cristo, o fará provocado pela nova luz que emerge da Palavra de Deus. 

Parece-nos que o termo mais constante do vocabulário de Charles de Foucauld seja imitation. De fato, desde o princípio de seu processo de conversão, mais do que uma palavra tão presente na tradição espiritual da Igreja, imitação se tornou um projeto de vida, sua vocação, como ele mesmo dirá. Fica-nos nitidamente claro no conjunto de seus escritos, no entanto, que Charles compreende imitação, seguimento e conformidade como expressões que indicam uma única proposta e desafio. Usa esses termos, sempre privilegiando o primeiro, conferindo-lhes significado semelhante, como uma mesma realidade inseparável de quem conhece o Filho de Deus feito carne e se dispõe a amá-lo sem meias medidas. Nas suas Meditações sobre os Santos Evangelhos elaboradas durante sua estadia em Nazaré ao interpretar Mc 8,34 dirá justamente que 

Segui-lo significa imitá-lo. É imitar Jesus em tudo, compartilhar da sua vida como o fizeram a Santa Virgem, São José, os Apóstolos, isto é, de uma parte, conformando, como eles, a nossa alma à Sua; E de outra parte, conformando, como eles, nossa vida exterior à Sua. (MSE 213º)

Se na Trapa e em Nazaré imitação terá preponderantemente o caráter de literalidade, quase literalismo, progressivamente Charles compreenderá o termo mais no sentido de Sequela, assinalado pela procura em atualizar as palavras e gestos de Jesus e apreender o espírito que os textos revelam, não tanto fixando-se numa busca de semelhança exterior. Reconhecerá esse ardoroso discípulo, por outra parte, que a imitação total ao Mestre será sempre um farol a iluminar o percurso de quem o segue, mas permanecerá sempre como um ideal, pois o empenho de conversão e aprendizado não se conclui nunca neste mundo. O discípulo está sempre a caminho “porque jamais, jamais, no sofrimento como em outras coisas, nós poderemos, o que quer que façamos, atingir o nosso divino modelo”.

Sua compreensão acerca da Missão e de seu modo de estar em meio aos “infiéis” extrapolará a visão hegemônica de sua época e abrirá perspectivas inauditas porque fundadas em aspectos pouco vislumbrados nas leituras dos Evangelhos, como aqueles relacionados à vida de Jesus em Nazaré. Essa ligação estreita com o Evangelho associado a um amor total e desinteressado pelos habitantes do Saara o farão romper também com o modelo clássico de missionário e a superar em grande parte tantos condicionamentos etnocêntricos tão próprios de sua época. Mais do que consequência do contexto adverso à pregação explícita do Evangelho, seu método, ou melhor, seu modo de evangelizar, brota do desejo de imitar Jesus em sua encarnação, particularmente no mistério de Nazaré. 

Assim, acompanhando as etapas de Nazaré a Tamanrasset constatamos que o eremita do Saara será sempre mais flexível com relação a aspectos externos da imitação. A clausura é um exemplo emblemático. Mas será intransigente e obstinado quando se trata de assegurar o cerne de sua vocação, aquele aspecto da Encarnação que mais o fascinara e o “desnorteara”. Ele que era de uma obediência absoluta aos superiores, a ponto de exaustivamente citar em seus escritos a frase de Jesus “Quem vos escuta a mim escuta” (Lc 10,16), aplicando-a sempre ao escutar (ob-audire) os representantes de Cristo, será irredutível quando para salvaguardar e manter intacto aquilo que lhe é inegociável e essencial na imitação de Jesus em Nazaré. 

Charles será cada vez menos refém de minúcias externas, das “pequenas inquietudes” no tocante à imitação de Cristo, mas fará de sua vida uma Sequela total, um encarnar Jesus e torná-lo presente e visível junto aos esquecidos e últimos no hoje de seu tempo. A imitação o fará passar pelo caminho do esvaziar-se e do despojar-se de tantos condicionamentos e aparatos, experimentando, ele próprio, em sua vida a Kenosis do seu “Bem-Amado”. Procurará ter no coração e externá-los em gestos concretos o amor do Coração de Jesus, sua solidariedade e solicitude para com todos, particularmente com os pequenos e humilhados. Quer que Jesus seja conhecido e amado através de seu “apostolado da bondade”, de seu testemunho, de sua amizade desinteressada e não proselitista. O amor será para o Irmão Charles a forma por excelência da imitação, a partir da qual todas as outras podem e devem ser relativizadas. É no calor e na dureza íngreme do deserto que se manifesta com beleza estonteante o alcance e a maturidade de sua forte devoção ao Sagrado Coração de Jesus, livre de nacionalismos e reacionarismos, bem como de meras práticas devocionais externas. 


FORMAÇÃO PERMANENTE 

COMO COMFORMIDADE A CRISTO

O Presbiterato define-se (fim e finalidade) pelo seguimento de Cristo 

“Todo aquele que segue Cristo, o Homem perfeito,torna-se ele também mais homem” (GS, n. 41)

O grande desafio é, como claramente se percebe em Charles de Foucauld, SER PERPÉTUO DISCÍPULO, afinal, “a Formação Permanente representa uma necessidade imprescindível na vida e no exercício do ministério de cada sacerdote” (RFIS 56).

O Ano Vocacional já nos pode indicar que a Formação Permanente é ponto de partida até mesmo para a pastoral vocacional, afinal “mediocridade atrai mediocridade” e perseverança deve ser vista como  uma categoria teológica, não meramente institucional. Neste sentido, Formação Permanente não se trata apenas de “reciclagens”, cursos, encontros de atualização teológica e ou pastoral, mas uma atitude fundamental de quem sabe que está a caminho, que não está pronto. 


“...de fato, a atitude interior de cada sacerdote 

deve ser caracterizada por uma disponibilidade permanente 

à vontade de Deus, seguindo o exemplo de Cristo.  

Isso implica uma contínua CONVERSÃO DO CORAÇÃO...” (RFIS, 56)

“É necessário que cada sacerdote se sinta sempre um ‘discípulo a caminho’, carente constantemente de uma formação integral, compreendida como contínua configuração a Cristo” (RFIS, 3)  


Em relação às dimensões do processo formativo, duas são mais “fáceis” de ser atingidas: estudos acadêmicos, estratégias pastorais. O desafio maior consiste na aprendizagem do fixar o olhar em cristo Jesus, o Sacerdote, e a ele con-figurar-se progressivamente como homem maduro e equilibrado. Muitas vezes entendemos essas questões como algo meramente devocional e piedoso (e, portanto, opcional). 

FORMAÇÃO, assim, é um modo teológico de compreender a própria vida presbiteral, que é que é, em si mesma, uma formacão jamais terminada, uma participação na ação do Pai que, através do Espírito, plasma no coração os sentimientos do filho. 

Pelo SACRAMENTO DA ORDEM não apenas somos “consagrados” pelo Pai e “enviados” pelo Filho, como também somos “aninados” pelo Espirito Santo. Ele plasma em nossos corações os sentimentos do Filho. A Formação Permamente consiste em manter vivo o dom de Deus recebido com a ordenação. 

Em João 21,19 vemos que o convite de Jesus, “Segue-me” torna-se re-novação do chamado feito três anos atrás, nas mesmas margens do Tiberíades. Pedro des-cobre que não basta ser discípulo, mas é preciso ser DISCIPULO AMADO e que a resposta dada no início do percurso já não é suficiente para prossegui-lo nos passos do Mestre e Senhor. 

O Discipulado de Jesus se realiza no caminho (cf. teologia de Marcos). Os primeiros discípulos tiveram como mérito justamente o de aceitarem o chamado para colocarem-se na estrada com Jesus. A escola de Jesus é a preferencialmente estrada, não a sinagoga. No belo episódio dos Discípulos de Emaús vemos como a  Palavra se faz caminho e como se manifesta a ped-agogia de Jesus. 

Um grande perigo é a a-patia paralisante e, pior, a dureza de coração. Os grandes obstáculos à vida em Deus não são a fraqueza e a fragilidade, mas a dureza e a rigidez. Não é a vulnerabilidade e a humilhação, mas seu contrário; o orgulho, a autossuficiência, a auto justificação. A Graça de que necessitamos não é nossa, mas de Cristo (perigo de neo-pelagianismo). 

Não são poucos os que fazem da ordenação um ponto de chegada, a aquisição de um poder: “Estou pronto! Cheguei lá”.   E, pior, aconselham seminaristas a entrarem na mesma lógica perversa e esterilizante. 

O  húmus da Formação Permanente é a vida cotidiana, o exercício do ministério atento às exigências radicais do Evangelho diante da realidade. Há sempre o perigo de  acostumar-se, como o sapo na água que vai gradualmente sendo aquecida.

Formação seminarística é tempo de “aprender a aprender”, de descobrir a “beleza de ser um eterno aprendiz” e não ficar “sentado à beira de um caminho que não tem mais fim”. Neste sentido, nossas novas Diretrizes para a Formação salientam que a “importância da Formação Permanente deve ser despertada no Seminário com um caminho discipular...” (n. 329). As dimensões do Discipulado e da Con-figuração a Cristo Sacerdote não são apresentados na RFI como meros tempos cronológicos (etapas) do processo formativo (filosofia e teologia), mas como experiências teologais: tornar-se pessoa integrada, iniciada no mistério do Evangelho e discípulo. Um desafio de toda a vida! A formação inicial deve inculcar convicções nessa perspectiva fundamental. É tempo de vertebração.  


“Temos que formar o coração. Do contrário formaremos pequenos monstros. E depois, esses pequenos monstros formarão o Povo de Deus. Isso realmente me arrepia!... “É preciso formar pessoas que sejam testemunhas da ressurreição de Jesus. Pensemos naqueles religiosos que têm o coração ácido como o vinagre: não foram feitos para o povo. Enfim: não temos que formar administradores, mas pais, irmãos, companheiros de caminho” (Papa Francisco, a bispos da AL e Caribe, 2014)

A formação é uma questão de fé eclesial, pois seus efeitos e frutos incidem e atingem a Igreja inteira. O escândalo de poucos é atribuído a todos. É que temos laços sacramentais indestrutíveis que não nos separam nem na graça, nem no pecado, como bem expressou o Apóstolo Paulo: ‘quando um membro sofre, todo o corpo sofre’. 

Neste sentido, o cuidado com o uso inadequado das redes sociais. Não para não ser des-coberto, mas para não perder o sentido e o rumo do dom um dia recebido. Para não perder a qualidade da entrega e da in-divisibilidade que o CELIBATO aponta. Nossa família é o presbitério e o povo a nós confiado. “Deus não quer uma fatia de nós” (Francisco).

Daí o lugar privilegiado da Palavra de Deus aliada à acurada atenção aos apelos de Deus na realidade (sinais dos tempos). Deixar-se in-comodar, in-quietar e sacudir pela Palavra toda a vida, sempre.

Como na vida do Eeremita do Saara, a Palavra de Deus deve ser a espinha dorsal de nossa vida e do nosso ministério. Somos seus ministros. Não só mera coerência especulativa, mas que brota de um coração sincero e que ora.


“É a humildade do coração que reconhece que a Palavra sempre nos transcende, que somos ‘não os árbitros nem os proprietários, 

mas os depositários, os arautos e os servidores’” (EN, 78. EG, 146)


 Há sempre o perigo de criarmos calos no coração: a Palavra não in-comoda mais, não nos acrisola e des-instala. Por vezes, temos tempo para uso da internet, mas a Bíblia torna-se para nós um mero “instrumento de trabalho”.

Para muitos presbíteros, a Palavra de Deus numa posição periférica na vida e na espiritualidade. Daí apetrechos vários (devocionismos, espetacularizações...), quando não arrefecimento total do entusiasmo e do sentido da própria vocação. 



TEMA 07 - POBREZA RADICAL E COMPAIXÃO PELOS POBRES


Para meditação: Mateus 4,18s


Charles de Foucauld, nobre, proveniente de família abastada e com vastas possibilidades e sonhos iniciais de ascensão na escala social, despoja-se dos bens e privilégios, abraçando à risca e meticulosamente a pobreza por amor “àquele que se fez pobre, embora fosse rico” (2 Cor 8,9). A infinidade de citações possíveis nos escritos de Foucauld deixa bem claro a importância desse tema para a sua espiritualidade, para o seu modo de conceber a Sequela Christi. Nos cinco meses que passou como noviço no mosteiro de Notre-Dame-des-Neiges deixou impregnada nos confrades daquela Trapa uma viva e impactante impressão pela sua humildade e pobreza, o que será amplamente testemunhado a René Bazin. 

Meu Senhor Jesus, como será rapidamente pobre aquele que amando-vos de todo o seu coração não poderá sofrer por ser mais rico que o seu bem-Amado... Para mim é impossível compreender o Amor sem a procura de assemelhar-se... Eu não compreendo, portanto, quem pode vos amar sem desejar ser assim mais pobre que vós” (Nazareth 28)

O encontro com o Cristo pobre foi precedido pelo encontro com a pessoa do pobre, do desprezado e marginalizado. Encontramos a prerrogativa dada aos empobrecidos no seu processo de conversão e de retorno ao Evangelho. Charles retorna do Marrocos já transformado e profundamente marcado em sua fé sobretudo pelo contato com os pobres, a ponto de confessar, vários anos mais tarde, numa carta de 1911 a um amigo em crise religiosa:

Sim, você tem razão, o Islam produziu em mim um profundo impacto... A visão daquela fé, daquelas almas que vivem na contínua presença de Deus, fizeram-me entrever qualquer coisa de maior e de mais verdadeiro que as ocupações mundanas: “ad maioranatisumus”. Pus-me a estudar o Islam, depois a Bíblia e a Graça de Deus agia, a fé da minha infância se encontrou confirmada e renovada... (F/C 08/07/1901).

A conformidade ao Cristo pobre passa pela conformidade aos empobrecidos. Mesmo a austeridade e dureza de vida da Trapa não satisfazem a busca de Foucauld de ser pobre como o Senhor Jesus, sobretudo depois do impacto e repercussão que lhe causa entrar em 1894 na casa de um pobre nativo morto no povoado vizinho ao mosteiro trapista de Akbés. É o que confidencia à sua prima: 

Há oito dias atrás fui enviado a rezar um pouco junto a um pobre indígena católico morto na aldeia vizinha: quanta diferença entre aquela casa e as nossas habitações! Suspiro pensando em Nazaré... (F/MB 10/04/1894)

Tal sensibilidade pelos pobres leva-o a colocar-se no meio deles e a privilegiar e sentir alegria por estar juntos aos últimos e excluídos. Em uma carta de 1905 ao cunhado partilha essa sua felicidade no meio dos habitantes de um oásis sahariano dizendo estar contentíssimo de ver tanta gente e de poder circular no meio das tendas. Em Tamanrasset, em pleno Saara, procurará viver sempre mais próximo daquela paupérrima e isolada população e dos nômades da região, estabelecendo relações profundas de amizade e afeição que lhe agradam enormemente. 

O que mais encanta e comove Charles de Foucauld diante do mistério da Encarnação é que o Filho de Deus não só se fez um de nós, abaixou-se na direção da condição humana, assumindo-a plenamente, mas que Ele se fez pobre entre os pobres, numa solidariedade total com os pequenos e últimos entre os homens. É o que encontramos, só a título de exemplo, nas anotações do retiro feito em Nazaré: 

A Encarnação tem sua fonte na bondade de Deus… Mas uma coisa aparece primeiramente, tão maravilhosa, tão brilhante...: a humildade infinita que encerra um tal mistério: Deus, o Ser, o infinito, o perfeito, o Criador todo poderoso, imenso soberano, senhor de tudo, fez-se homem, uniu-se a um corpo humano e apareceu sobre a terra como um homem. E como o último dos homens.... (Nazareth 5)

Esta realidade de um abaixamento até as últimas consequências ele descobriu, sobretudo, percorrendo as ruas da humilde e despojada Nazaré, de pequenas e rústicas casas próprias do universo dos pobres. Ali recordará que trabalhou Jesus como um carpinteiro e artesão, totalmente inserido na cotidianidade da gente simples da aldeia. Nada de ostensivo e extraordinário, nada de supérfluo, numa pobreza absoluta que revela a que ponto pôde chegar Deus no seu amor e ternura para com os homens e mulheres. Não poderá imaginar-se mais como um homem detentor de posses e a ostentar orgulhosamente um título de nobreza, enquanto seu Amado amou a pobreza e a teve como “companheira fiel”. Nas suas Meditações sobre os Santos Evangelhos, ao comentar Lucas 6,40 (“não existe discípulo superior ao Mestre”) elencará como numa ladainha os aspectos concretos e reais da pobreza assumida pelo Cristo e como esses devem ser imitados pelos que se dispõem a seguir seus passos. A título de ilustração, apresentamos aqui apenas quatro desses aspectos elencados por Charles:

O Mestre foi pobre, o servidor não deve ser rico; o mestre viveu do trabalho de suas mãos, o servidor não deve viver de suas rendas; O mestre esteve em companhia dos pequenos, dos pobres, dos operários, o servo não deve estar em companhia dos grandes senhores; o mestre passou por um operário, o servo não deve passar por um grande personagem” (MSE 305)

Já após a exploração do Marrocos e pouco antes da conversão Charles de Foucauld, já com disposições transformadas e à procura do essencial, assumiu uma vida frugal e despojada. Mas será depois do encontro pessoal com o Cristo pobre e humilde da Encarnação que a pobreza será abraçada com uma radicalidade própria de quem fez uma experiência totalizante e absoluta. Procurará viver só com o indispensável, se bem que muitas vezes sua radicalidade o levará a privar-se também de coisas necessárias, numa radicalidade que deixará profundas impressões em todos. Será sempre um homem extremado e rigoroso na observância dessa virtude que considera imprescindível para quem quer percorrer a estrada de Jesus. Ao entrar na Trapa deixara todos os seus bens para a irmã, Madame de Blic, disposto a partir pobre. Todavia, não encontrando aquela total e absoluta pobreza na vida claustral trapista, o então Frére Marie-Alberic lamentará insistentemente em suas correspondências diante do fato de que “a pobreza suficientemente real” não é praticada no âmbito daquela Ordem. É o que dirá ao Abbé Huvelin numa carta de julho de 1893:


Como a pobreza é uma coisa bela, bendita e divina e como ela repugna aos homens... E depois quando se procura uma estrada diferente daquela de Nosso Senhor existe um grande risco de se tomar a direção errada (F/H 08/07/1893)


Pouco mais de dois meses depois dessa carta ao seu diretor espiritual, continuará expressando-lhe sua inquietação e descontentamento, chegando a afirmar que no tocante à pobreza lhe entristece ver Nosso Senhor conduzir sozinho essa vida.

Foucauld manterá até o fim esse cuidado meticuloso no viver a “pobreza de Nazaré” com a clara consciência de que o apego às coisas e aos bens disturbam a liberdade fundamental de quem quer seguir Jesus sem reservas e amá-lo como única riqueza, como o “único necessário”. Com a linguagem clara e direta que lhe é peculiar, esse homem concreto e sem rodeios dirá que os bens terrestres são como uma bagagem incômoda no caminho da perfeição”, no seguimento de Cristo e que é preciso esvaziar a casa da alma de toda forma de apego para que o divino proprietário possa “mobiliá-la” como quiser, com suas virtudes e com sua bondade. A mesma desapropriação que nos torna abertos para a comunhão com o Absoluto, torna-se também base de uma convivência fraterna e pacífica, pois a avidez e o apego às coisas estão na raiz de muitas discussões, lutas e desencontros. Nas constituições e nos regulamentos para os Pequenos Irmãos de Jesus, ou Irmãozinhos, insistirá veementemente na observância da pobreza, sempre à luz da Encarnação como mistério de um Deus que se fez pobre e das conquistas na relação com Deus e com os outros que atinge quem radicalmente acolhe a pobreza. 

O homem de origem nobre que, como os de sua classe, desprezava o trabalho manual, depois de sentir-se desconsertado diante da realidade de Jesus trabalhador e operário em Nazaré, insistirá ininterruptamente em associar pobreza ao trabalho humilde e servil, o que fica latente, sobretudo quando escreve constituições e regulamentos para a fraternidade que sonha formar para viver sem medidas a “imitação de Nosso Senhor”. À vivência da “santa pobreza colocará sempre o “Santo trabalho das mãos”. 

Irmão Charles entenderá a pobreza como intimamente correlata à humildade, à qual verá sempre como expressão privilegiada da “imitação interior” do Mestre. Insistirá que Cristo desprezou grandezas e presunções mundanas e “desceu” sempre mais num esvaziamento total de seu poder e grandeza que terá seu ápice no despojamento material das vestes na Cruz. Com esta convicção e disposto a percorrer o itinerário de Cristo, procurará sempre esconder suas raízes aristocráticas e viver numa humildade total e autêntica à qual todos os que gozaram da sua convivência desde os anos na Trapa poderão testemunhá-la emocionados. 

Relutara durante anos a ser admitido ao sacerdócio por pensar que esse ministério o pudesse afastar desse “último lugare significasse uma ascensão social. Charles só aceitou ser ordenado quando convencido de que poderá imitar Jesus como humilde sacerdote numa vida abjeta a serviço preferencialmente dos mais pobres. Numa ilustrativa carta de Dom Louis Gonzague, abade da Trapa de Akbès, à irmã do então Irmão Marie-Alberic, Madame de Blic, após dizer que tentará que o jovem confrade seja “promovido” ao sacerdócio, saberá que deverá “sustentar uma dura batalha contra a sua humildade”

Charles viverá de forma radical a pobreza porque tinha sempre dois parâmetros referenciais à sua frente: Jesus Cristo em sua Encarnação e os pobres que sempre estiveram sob seus olhos como imagem e representação desse Bem-Amado. Nunca, em nenhum momento de seu percurso espiritual depois da conversão, Charles abstraiu ou idealizou a pobreza. Deu-lhe sempre, ao contrário, as cores fortes e provocadoras da realidade daquelas pessoas concretas desprovidas dos bens essenciais à vida e desprezadas por conta dessa condição. Será sempre muito atento e sensível ao sofrimento dos pobres, numa compaixão que o impulsionará sempre mais a viver como eles e com eles. Desde a Trapa, quando sofrerá ao ver tantas situações de dor e miséria, quer por causa do rigoroso inverno, quer devido ao massacre dos turcos aos cristãos armenos, comover-se-á profundamente. A opção de Deus pelos pequenos e “por aqueles que o mundo rejeita” será uma chave-de-leitura constante das Escrituras. Afirmará, cheio de gratidão ao Senhor, que desde a escrava Agar, Deus mostrou sua predileção pelos pequenos e infelizes, num amor traduzido em ações. E como se não fosse suficiente manifestar em cada página do Antigo Testamento essa sua opção pelos últimos, o “Deus dos pobres, dos infelizes, dos menores e dos últimos” revelou plenamente sua bondade infinita na Encarnação:

Deus, não satisfeito de mostrar-nos a cada página das Escrituras sua predileção pelos mais pequenos, quis - quando apareceu na terra sob uma carne mortal - ser de tal maneira o menor, ocupar de tal maneira o último lugar, que nenhum mortal jamais poderá descer mais baixo que ele (MAT XXIX, 21-fin).

À luz dessa predileção divina fará também ele uma opção preferencial pelos pobres, identificando-se com eles e experimentando em sua carne as privações, desprezos e dificuldades próprias do universo dos despossuídos e marginalizados. É esse propósito de descer sempre mais nos porões da sociedade que o leva ao deserto e, particularmente, à vila de Tamanrasset. Aí mudará sua cotidianidade, assinalada agora pelo ir ao encontro das pessoas, pelo deixar-se encontrar por elas, no que encontra grande satisfação e alegria. Em uma carta a um amigo, reproduzida por Bazin, dirá que sua vida é ocupada pela oração e pela acolhida aos seus “vizinhos” e que não encontra tanto tempo para o trabalho que empreende em torno do glossário e gramática da língua tuareg poisdevo encontrar todos os meus vizinhos pobres, que começam a ser velhos amigos, porque já são sete anos que eu vivo em Tamanrasset”. 

Mais do que convivência e cordialidade na relação com os outros, a atitude fraterna do Irmão Charles levá-lo-á à solidariedade total, a atitudes e resoluções assinaladas pela profecia e ousadia. Ainda na Terra Santa escreverá em suas anotações do Retiro: 

Eu aprendi a mesma coisa, a defender os inocentes, os fracos, desde que sejam atacados. Não somente a vós, mas a todos os homens: e isto é um dever evidente da caridade fraterna (Ephrem, Mercredi – après le 3º dimanche de Carême)

Sob esse impulso e convicção, colocar-se-á mais tarde ao lado dos mais pobres entre os pobres, os escravos, denunciando veemente e corajosamente a escravidão. Apoiado no Mandamento do amor, em uma carta a Dom Guérin tratará longamente sobre o que ele chama de “imoralidade monstruosa” e de injustiça e que tanto o faz compadecer-se das vítimas. Chega a afirmar energicamente que não temos o direito de ser como cães e sentinelas mudos e que devemos gritar quando vemos o mal e dizer em voz alta: “Não é lícito” e “Ai de vós hipócritas!”. Saberá objetivamente reconhecer que a escravidão é tolerada pelas autoridades francesas e não poupará vigor no denunciar a prepotência de alguns membros do exército francês, tantas vezes somente um exército de ocupação. 

É necessário admitirmos que a Igreja perdeu os mais pobres entre os pobres. 

A opção pelos pobres não é, pois, uma opção sociológica ou ideológica, mas uma opção teológica. A exigência evangélica da misericórdia pressupõe o encurvar-se com as vísceras e o coração con-doídos. Num mundo de tantos in-visíveis, olhar atentamente e reconhecer o semblante dos irmãos, a des-velarem o Irmão. 



“Somos consagrados, pastores segundo o estilo de Jesus ferido, morto e ressuscitado. O SACERDOTE é alguém que encontra, nas suas feridas, os sinais da Ressurreição. É alguém que consegue ver, nas feridas do mundo, a força da Ressurreição. É alguém que, segundo o estilo de Jesus, não vai ao encontro dos seus irmãos com a censura e a condenação... 

O povo de Deus não espera nem precisa de nós como super-heróis, espera pastores, homens e mulheres consagrados, que conheçam a compaixão, que saibam estender uma mão, que saibam parar junto de quem está caído e, como Jesus, ajudem a sair desse círculo vicioso de «mastigar» a desolação que envenena a alma... (Papa Francisco, Chile, 2018)



Devemos superar o risco de sermos meramente bons técnicos (organizadores, articuladores e administradores) de misericórdia ou pior, acostumarmo-nos diante das dores de tantos. Corremos o risco de permitirmos “calos” no coração: indiferença e insensibilidade.

Algumas situações e falas reais e interpeladoras: 


“Tocar e olhar, tocar e olhar a carne de Cristo que sofre nos nossos irmãos e irmãs. Isto é muito importante. Dar a vida é isto. A santidade não se faz de alguns gestos heroicos, mas de muito amor diário”

(Papa Francisco, 15/05/22, na canonização de Charles de Foucauld)

Qual o lugar dos empobrecidos em nossos planos pastorais?

Ler EG 262: Oração e ação (“não mutilar o Evangelho”) 


«Quando houve a inauguração do Ano Jubilar na Paróquia de São Domingos, em Molfetta, aproximei-me da porta principal da igreja, bati três vezes, a porta se abriu e eu entrei no templo cheio de luzes, todo o povo atrás de mim, a multidão aplaudindo.

Eu preferiria, porém, inaugurar um dia, um Ano Santo em sentido inverso: o bispo perto da porta fechada, com o martelo que bate, a porta que se abre e o povo de Deus que sai na praça para levar Jesus Cristo aos outros.Sim, porque hoje o problema mais urgente para as nossas comunidades cristãs não é aquele de abrir portas que se abrem para o interior dos espaços sagrados.O problema mais dramático do nosso tempo é abrir portas que de dentro do templo se abram para a praça.

É deste simbolismo que precisamos! Para mostrar que a intimidade reconfortante de nossas liturgias torna-se ambígua quando ela não se abre aos espaços do ambiente profano.E para afirmar que o rito deve chegar aos pátios, entrar nos condomínios, parar nos patamares dos prédios, e atingir o homem nos ambientes do cotidiano.

Da próxima vez... daqui a vinte e cinco anos... iremos inaugurar o jubileu de forma diferente.Eu, bispo, abrirei caminho no meio do povo que lotará a igreja.Eu chegarei à frente da porta trancada.De dentro baterei com o martelo três vezes.As portas se abrirão.E vocês, multidão de crentes em Jesus Cristo, irão à praça por causa de uma necessidade irreprimível de comunicar a boa-nova para o homem da rua».   (Dom Tonino Bello - † 1993)


TEMA 08 – FRATERNIDADE E CORTESIA UNIVERSAIS

A contemplação atenta do mistério da Encarnação fez também Charles de Foucauld inebriar-se de ternura diante do Deus que se fez nosso irmão, nosso “Pequeno Irmão”, como preferia chamar, e em conseqüência olhar cada pessoa humana como irmão e irmã em Cristo. Michel Goyat, que com ele conviveu quase quatro meses entre 1906 e 1907, como “aspirante”, testemunhará que Charles amava apaixonadamente Jesus Cristo, seu Deus, seu irmão, seu amigo. É esse amor intenso e forte pelo Deus que se fez nosso irmão que o levará a amar todos os homens e mulheres, particularmente os pobres, a tomar a firme resolução de querer ser chamado “Irmão Universal” e procurar ardorosamente sê-lo de fato. Nesse sentido, procurando distanciar-se de qualquer distinção aristocrática, escreve ao amigo trapista Padre Jérôme quando ainda em Nazaré:  


Quando vós me escreveis, coloqueis sobre o endereço, no lugar de 

Frère Charles de Foucauld, Frère Charles de Jésus; Monsieur Huvelin permitiu-me de portar agora só esse nome: reze para que eu seja digno de tal coisa! (F/J 08/05/1899)


Descobrindo que o próprio Filho de Deus fez-se irmão de todos os homens e mulheres, Charles irá constatar que não existe título mais elevado e nobre que este, o qual deve ser atribuído a todas as pessoas. Fundamentado nessa certeza e nas exortações de Jesus «a ninguém na terra chameis de ‘Pai’ (Mt 23,9) e “todos vois sois irmãos” (Mt 23,8) ao escrever as Constituições e o Regulamento dos Irmãozinhos do Sagrado Coração de Jesus, quando ainda em Nazaré, imagina e sonha com uma Congregação que seja uma autêntica fraternidade, sem distinções e classes e ausente do espírito clericalista que coloca uns acima dos outros, como era comum nas ordens e congregações no seu tempo. Desse modo, nas Constituições estabelecerá:

Os irmãos devem portar o nome de ‘Pequenos Irmãos do 

Sagrado Coração de Jesus’ e cada uma de suas casas aquele de ‘Fraternidade do Sagrado Coração de Jesus’... e todos se chamem entre si, sem exceção, de irmãos (Constitutions XXXVII).

Nos Regulamentos, Irmão Charles será ainda mais preciso e claro quanto à exigência de superar toda forma de separação e graduação no interior das comunidades, vivendo uma irmandade autêntica e livre de todo espírito de superioridade (todos devem ser “pequenos”) também no nível das relações internas: 

Eles se chamarão todos entre si de ‘irmão. Jamais ‘padre’, seja no falar, 

seja no escrever. Nenhum pequeno irmão tenha o título de ‘Padre’, nem os sacerdotes, nem mesmo o prior. O prior se chame ‘irmão prior’ e ao falar e ao escrever, ele deve dizer: ‘meu irmão. (Règlements XXXVII).


A fé na Encarnação leva Charles também a reconhecer que esse mistério realça a dignidade e o valor de toda pessoa humana, independentemente de etnia, credo ou de qualquer outro aspecto distintivo, atento à certeza de que todos, sem distinção, são irmãos no “Irmão Maior” Jesus Cristo e filhos do mesmo Pai terno e bondoso. Assim, como um primeiro exemplo a ser recordado por nós, em um tempo de grande desconfiança entre católicos e protestantes, Charles travará um relacionamento sincero e despretensioso com o protestante Robert Hérisson, que permanecerá em Tamanrasset por alguns meses. Este poderá testemunhar pessoalmente a Renè Bazin que “sob uma grandíssima afabilidade, simplicidade, humildade de coração havia a cortesia, a fineza e a delicadeza de um homem do mundo... e permanecerá profundamente tocado e atraído por esse monge diferente que lhe “pareceu-me verdadeiramente simpático e me senti atraído por ele”.O mesmo Hérisson dirá que Charles se fazia próximo e era amado por todos aqueles que encontrava: os militares franceses, os tuaregues, os árabes, os escravos...

Aproximar-se e familiarizar-se serão termos densamente utilizados tanto para designar a ação de Deus entre os homens e mulheres no mistério da Encarnação, bem como as atitudes fundamentais de quem quer tornar-se semelhante a Ele, seguir os seus passos. Seu modo de estar entre os habitantes de Benì-Abbès e muito particularmente de Tamanrasset revelam com nitidez essas atitudes imprescindíveis. Não trata os muçulmanos como inimigos a serem combatidos e convertidos sob força, mas como irmãos e amigos e irá propor sempre a doçura e a bondade como fundamentais no contato com eles. Insistirá no termo “desarmè”. Mais do que uma “estratégia” de um ex-militar, esse “método” nasce do coração de quem realmente aprendeu com Jesus de Nazaré e nEle ama os seus irmãos e irmãs com alteridade e cordialidade impressionantes. Quer falar do seu “Bem-Amado” Jesus, mas reconhece com equilíbrio e sensatez que ainda ´

não é tempo e que a presença fraterna e solidária se torne sinal inquestionável do amor do Coração de Jesus. Os nômades tuaregues inicialmente desconfiados e temerosos diante desse homem estranho que veio morar no meio deles, como o eram de todos os ocupantes franceses, souberam reconhecer que se tratava realmente de uma pessoa especial, de um irmão que terna e gratuitamente se achegara, com um sorriso e cortesia cativantes. Reconheceram que se tratava de alguém que “desceu” e “esvaziou-se” para ser um com eles, sem o espírito de conquista e de superioridade tão próprios daqueles tempos. Assim, o marabout, como o chamavam, será amado por todos, de tal maneira que ele mesmo se surpreenderá. Quando retorna a Tamanrasset depois de alguns meses fora, escreverá à sua prima: 

Meu retorno aqui foi doce. Fui bem recebido pela população, 

muito mais afetuosamente do que eu poderia esperar. Parece-me que,

 pouco a pouco, têm confiança em mim (F/MB 11/07/1907).


Desde o oásis de Beni-Abbès sua casa não será um “mosteiro”, mas uma khaoua (fraternidade), uma casa pobre e miserável como a dos demais habitantes, mas com as portas abertas para todos, tornando-se lugar de acolhida e de encontro fraterno. E isso agradava muito o Irmão Charles. 

Charles amará profunda e concretamente os tuaregues, “valorizando” e respeitando suas tradições culturais. Aprende o seu idioma, recolhe canções, contos e poemas da tradição oral desse povo realizando um significativo e sério trabalho linguístico sem precedentes e de uma qualidade científica insuperável ainda hoje. Coloca-se bem longe de um etnocentrismo que impede de reconhecer os valores do outro e transforma a atividade missionária em imposição cultural e triunfalismo orgulhoso. Não se vê nas suas atitudes e atividades nenhum sinal de proselitismo e muito menos de intolerância. É a docilidade própria de quem verdadeiramente fez-se um “dulcíssimo pequeno irmão”, como o foi Jesus. Será cada vez mais inserido no meio dos tuaregues como um deles, tuareg entre os tuaregues, identificando-se totalmente com essa tribo, inclusive nas vestes e nos hábitos alimentares. Esse enamorado do Verbo Encarnado ousará vislumbrar e ensaiar uma compreensão nova da Missão, vista e assumida como Encarnação, como inculturação e diálogo. Imitar Jesus significará sempre mais encarnar-se, ser-um-com-os-outros, um “descer” ao encontro como irmão que ama num processo kenótico de tornar-se próximo a ponto de ser capaz de dar a própria vida.

Diante do perigo de insurreição das tribos vizinhas, o Irmãozinho rejeitou a proposta dos militares franceses e não quis abandonar os tuaregues, preferindo permanecer com eles até o fim, até o momento derradeiro de sua entrega. Afirmará Bazin “amava os pobres no meio dos quais vivia há doze anos e não queria abandonar-lhes no meio do perigo”. 

Moussa ag Amastane, chefe do tuaregues e grande amigo de Charles, sintetizará com palavras cheias de emoção e ternura o amor do seu povo por esse marabuto sem igual, por esse que até as últimas consequências amou os pobres, seus irmãos, amigos e vizinhos. Sua morte será lamentada não só pelos familiares consanguíneos, mas por aqueles irmãos junto aos quais ele escolheu viver e aos quais amou sem reservas. Assim, em uma carta enviada à irmã de Charles, Madame de Blic, dirá: 

Logo que tomei notícia da morte do nosso amigo, seu irmão Charles, os meus olhos se fecharam; existe só total escuridão para mim. Chorei e derramei muitas lágrimas e estou em grande luto. A sua morte me provocou muita pena. Dê um bom-dia da minha parte à sua filha, ao seu marido e todos os seus amigos, dizendo que Charles, o Marabuto, não morreu só por vocês, mas morreu também por todos nós. Que Deus lhe conceda a misericórdia e que nós possamos reencontrar com ele no Paraíso!

Fratelli Tutti, 286s - “Neste espaço de reflexão sobre a fraternidade universal, senti-me motivado especialmente por São Francisco de Assis e também por outros irmãos que não são católicos: Martin Luther King, Desmond Tutu, Mahatma Mohandas Gandhi e muitos outros. Mas quero terminar lembrando uma outra pessoa de profunda fé, que, a partir da sua intensa experiência de Deus, realizou um caminho de transformação até se sentir irmão de todos. Refiro-me ao Beato Carlos de Foucauld.

O seu ideal duma entrega total a Deus encaminhou-o para uma identificação com os últimos, os mais abandonados no interior do deserto africano. Naquele contexto, afloravam os seus desejos de sentir todo o ser humano como um irmão, e pedia a um amigo: «Peça a Deus que eu seja realmente o irmão de todos». Enfim queria ser «o irmão universal». Mas somente identificando-se com os últimos é que chegou a ser irmão de todos. Que Deus inspire este ideal a cada um de nós. Amém” 


EVANGELIZAÇÃO COMO PROXIMIDADE FRATERNA

Charles de Foucauld priorizou o testemunho de quem se conforma ao Evangelho e eloquentemente o manifesta aos outros, insistindo nesse seu jeito originário de estar presente sem enquadrar-se nos esquemas tradicionais da Missão Ad Gentes. O Concílio Vaticano II valorizou de forma considerável essa compreensão e insistência e Paulo VI na belíssima e atualíssima Evangelli Nuntiandi poderá afirmar que “o testemunho de uma vida autenticamente cristã, entregue nas mãos de Deus, numa comunhão que nada deverá interromper, e dedicada ao próximo com um zelo sem limites, é o primeiro meio de evangelização” e que “o homem contemporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres, dizíamos ainda recentemente a um grupo de leigos, ou então se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas". Particularmente nesses tempos de difícil diálogo com o mundo islâmico, Francisco com sua metodologia extraordinária pautada pela inaudita cortesia proposta no capítulo 16 da Regra não bulada e Charles de Foucauld pela vivência respeitosa e solidária entre os muçulmanos, sem pressa e sem as imposições usuais, têm muito a dizer e ensinar, como bem têm reconhecidos documentos da Igreja e tantos autores como o Cardeal alemão Walter Kasper. A Missão e Evangelização hoje, como sempre, comportam o desafio da Kenosis, da Encarnação que passa necessariamente pelo despojar-se, pelo “desapego e liberdade frente aos poderes deste mundo; numa palavra, testemunho de santidade”. Dois mil anos de cristianismo ensinam que cada vez que a Igreja cai na tentação do poder e da riqueza afasta-se do Evangelho, porque afasta-se da sua originalíssima e fundamental novidade encerrada no mistério do Deus que se fez “pobre e peregrino” e “humilde carpinteiro em Nazaré”. 

FRATERNIDADE COMO CUIDADO


Uma postagem em rede social e o “maior fake news”: “sairemos melhores”


Uma das principais tendências apontadas para o cenário de pós-pandemia é a revisão de crenças e valores. Seremos melhores enquanto sociedade? Segundo a psicóloga mestra em psicologia social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professora do Centro Universitário Tiradentes, Letícia Souto, em artigo publicado pelo Diário de Pernambuco, as possíveis mudanças vão passar por uma escolha ética. "Não sei se sairemos melhores, mas, certamente, diferentes. É muito arriscado dizer que iremos melhorar", enfatiza. E continua: 


"Talvez, a única saída que a gente encontre para passar por isso e após 

termos passado seja uma saída coletiva. Essa questão ética é uma escolha, 

mas uma escolha coletiva. Um pequeno detalhe, a escolha de não sair de casa, as atitudes individuais têm implicação no todo, no coletivo. 

Nessa crise sanitária, política e econômica, somos mais do que impulsionados, forjados à necessidade de tentar pensar eticamente e agir eticamente. 

E essa nova ética é diferente da que está posta atualmente


Necessitamos da prevalência da ÉTICA DO CUIDADO: o “Se cuide” dito como expressão de carinho tornando-se atitude permanente e expressão de alteridade. 

Na homilia do dia 01 de janeiro, disse o Papa Francisco: 


“Tudo começa daqui, de cuidarmos dos outros, do mundo, da criação. Pouco aproveita conhecer muitas pessoas e muitas coisas, se não cuidarmos delas. Neste ano, enquanto aguardamos um renascimento e novos tratamentos, não negligenciemos o cuidado. Com efeito, além da vacina para o corpo, é necessária a vacina para o coração: e esta vacina é o cuidado. 

Será um bom ano se cuidarmos dos outros"


Devemos superar o moderno humanismo antropocêntrico, principalmente na sua concepção de Ser humano como dominador e senhor da Criação. Um novo 

humanismo: AGAPICOCENTRICO. No centro, o AMOR. Somente um ser humano conduzido, movido e co-movido pela centralidade do amor que Deus é... pode ensaiar uma nova humanidade, um novo tempo. 

Vivemos a “globalização da in-diferença”, da a-patia e da dis-córdia num mundo carente de com-paixão e miseri-córdia. “Anestesiados”: 


“Quase sem nos dar conta, tornamo-nos incapazes de nos compadecer ao ouvir os clamores alheios, já não choramos à vista do drama dos outros, nem nos interessamos por cuidar deles, como se tudo fosse uma responsabilidade de outrem, que não nos incumbe. A cultura do bem-estar anestesia-nos...» (EG 54).



Certa vez, um aluno perguntou à antropóloga cultural Margaret Mead (+ 1918) o que ela considerava ser o primeiro sinal de civilização em uma cultura. O aluno esperava que a antropóloga falasse a respeito de anzóis, panelas de barro ou pedras de amolar. Mas não. Mead disse que o primeiro sinal de civilização numa cultura antiga era a evidência de alguém com um fêmur (osso da coxa) quebrado e cicatrizado.

Mead explicou que no reino animal, se você quebrar a perna, morre. Você não pode correr do perigo, ir até o rio para beber água ou caçar comida. Você é carne fresca para os predadores. Nenhum animal sobrevive a uma perna quebrada por tempo suficiente para o osso sarar. Um fêmur quebrado que cicatrizou é evidência de que alguém empregou tempo para ficar com aquele que caiu, tratou da ferida, levou a pessoa à segurança e cuidou dela até que se recuperasse. “Ajudar alguém durante a dificuldade é onde a civilização começa” disse Mead.



A ÉTICA DO CUIDADO NA FRATERNIDADE PRESBITERAL


Devemos sempre reconhecer a Fraternidade Presbiteral como Lugar teológico, não como mera estratégia de ação pastoral. Ela é o primeiro e mais crível anúncio do Evangelho. Daí o necessário senso de pertença à Arquidiocese.

Proximidade espiritual, no afeto, não está condicionada à proximidade física: Ex.: Judas e seu beijo... 

Aprendemos naqueles meses que é necessário afastar-nos para sermos próximos, para colocar a vida do outro no centro dos nossos cuidados (Jo 10,10). 

Aqui faz-se oportuno escuta o Papa Francisco em sua mais recente Encíclica:


“Sentar-se a escutar o outro, caraterístico dum encontro humano, é um paradigma de atitude receptiva, de quem supera o narcisismo e acolhe o outro, presta-lhe atenção, dá-lhe lugar no próprio círculo. Mas «o mundo de hoje, na sua maioria, é um mundo surdo... Às vezes a velocidade do mundo moderno, o frenesi impede-nos de escutar bem o que outro diz. Quando está a meio do seu diálogo, já o interrompemos  e queremos replicar quando ele ainda não acabou de falar. Não devemos perder a capacidade de escuta » (Fratelli Tutti, 48)


A forma jesuânica de vida é comunitária, fundamenta uma existência em comunhão. Isso se aplica à existência sacerdotal de modo especial. Todos nós pela ordenação tomamos parte de um só ordo e somos cooptados a um presbitério: CO-IRMÃOS. 

Dom Aloísio Lorscheider e a “diocesanidade” do presbítero: “A Diocese não é uma realidade puramente sociológica. Ela é uma realidade transcendente, sobrenatural”.  Mas quando nos falta o olhar da fé....

O PRESBITÉRIO é um dos elementos fundamentais na identidade e espiritualidade do padre Diocesano. O “caminhar juntos” (sinodos) não como mera estratégia para a maior eficácia e funcionalidade do serviço pastoral e evangelizador: é elemento constitutivo e essencial do próprio anúncio. Laços, não da carne ou do sangue, mas os da Graça sacramental da Ordem” (PDV 74). 

Santo Hipólito (+235) nos recorda que o gesto de imposição das mãos é também sinal de acolhida no presbitério da Igreja Particular. Há uma pertença comum aí sinalizada, comunicada.  A “consanguinidade espiritual” de que nos fala São João Paulo II na Pastores Dabo Vobis.


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