TODOS SOMOS ÍNDIOS
Agora somos todos índios
Agora somos todos índios
Nós, brancos, estamos hoje tão desamparados quanto os ianomâmis
Nós, brancos, estamos hoje tão desamparados quanto os ianomâmis
FSP 23.abr.2020
FSP 23.abr.2020
Bruce Albert
Bruce Albert
No dia 9 de abril, a Covid-19 fez sua primeira vítima entre os ianomâmis. Trata-se de um adolescente de 15 anos, originário de uma comunidade da bacia do rio Uraricoera (RR), massivamente invadida por garimpeiros. Apresentando sintomas respiratórios característicos, o jovem, desnutrido e anêmico em razão de crises sucessivas de malária foi, ao longo de 21 dias de sofrimento, encaminhado em vão de uma instituição sanitária a outra, sem nunca ser submetido a um teste de Covid-19.
No dia 9 de abril, a Covid-19 fez sua primeira vítima entre os ianomâmis. Trata-se de um adolescente de 15 anos, originário de uma comunidade da bacia do rio Uraricoera (RR), massivamente invadida por garimpeiros. Apresentando sintomas respiratórios característicos, o jovem, desnutrido e anêmico em razão de crises sucessivas de malária foi, ao longo de 21 dias de sofrimento, encaminhado em vão de uma instituição sanitária a outra, sem nunca ser submetido a um teste de Covid-19.
O teste só foi realizado no dia 3 de abril, após nova hospitalização, quando já estava em estado crítico, sendo necessário interná-lo na UTI. Faleceu em 9 de abril, vítima da incúria dos serviços de saúde locais, tornando-se possivelmente um “super-transmissor” da doença, já que passou três semanas circulando entre os membros de sua comunidade, seus amigos e diversos agentes de saúde. Paira sobre os ianomâmis, assim, a ameaça iminente de um novo desastre sanitário.
O teste só foi realizado no dia 3 de abril, após nova hospitalização, quando já estava em estado crítico, sendo necessário interná-lo na UTI. Faleceu em 9 de abril, vítima da incúria dos serviços de saúde locais, tornando-se possivelmente um “super-transmissor” da doença, já que passou três semanas circulando entre os membros de sua comunidade, seus amigos e diversos agentes de saúde. Paira sobre os ianomâmis, assim, a ameaça iminente de um novo desastre sanitário.
Esse povo já sofreu várias epidemias letais de doenças virais a cada nova entrada dos brancos em suas terras: com a Comissão de Limites, nos anos 1940, com o Serviço de Proteção aos Índios, nos anos 1950, com os missionários evangélicos, nos anos 1960 e, nos anos 1970, com a abertura da estrada Perimetral Norte. A partir dos anos 1980, e regularmente desde então, seu território vem sendo invadido por hordas de garimpeiros –hoje são cerca de 25 mil— que, muito provavelmente, estão na origem deste primeiro caso letal de Covid-19, além de propagarem gripes, malária, tuberculose e doenças sexualmente transmissíveis.
Esse povo já sofreu várias epidemias letais de doenças virais a cada nova entrada dos brancos em suas terras: com a Comissão de Limites, nos anos 1940, com o Serviço de Proteção aos Índios, nos anos 1950, com os missionários evangélicos, nos anos 1960 e, nos anos 1970, com a abertura da estrada Perimetral Norte. A partir dos anos 1980, e regularmente desde então, seu território vem sendo invadido por hordas de garimpeiros –hoje são cerca de 25 mil— que, muito provavelmente, estão na origem deste primeiro caso letal de Covid-19, além de propagarem gripes, malária, tuberculose e doenças sexualmente transmissíveis.
O caso do jovem ianomâmi constitui, portanto, um símbolo trágico da extrema vulnerabilidade na qual se encontram hoje os povos indígenas frente à alta virulência desta nova doença. Já maciçamente contaminados pelos brancos, que arrancam freneticamente de suas terras minérios, madeira ou animais selvagens, sem acesso a uma assistência sanitária digna deste nome, os ianomâmis estão novamente abandonados à sua própria sorte e condenados à dizimação na indiferença quase total.
O caso do jovem ianomâmi constitui, portanto, um símbolo trágico da extrema vulnerabilidade na qual se encontram hoje os povos indígenas frente à alta virulência desta nova doença. Já maciçamente contaminados pelos brancos, que arrancam freneticamente de suas terras minérios, madeira ou animais selvagens, sem acesso a uma assistência sanitária digna deste nome, os ianomâmis estão novamente abandonados à sua própria sorte e condenados à dizimação na indiferença quase total.
Mas, frente a esta pandemia, algo subitamente mudou. Nós, brancos, estamos hoje tão desamparados frente à Covid-19 quanto os ianomâmis frente às epidemias letais e enigmáticas (“xawara a wai”) que nosso mundo lhes inflige há décadas. Pouco sabemos desta doença; não temos imunidade, remédios ou vacina para enfrentá-la. Só resta nos confinar com nossas famílias, na esperança de sair ilesos, com a mesma ansiedade e impotência que os ianomâmis sentiam quando se isolavam, em pequenos grupos na floresta, para tentar escapar de Xawarari, o espírito canibal da epidemia.
Mas, frente a esta pandemia, algo subitamente mudou. Nós, brancos, estamos hoje tão desamparados frente à Covid-19 quanto os ianomâmis frente às epidemias letais e enigmáticas (“xawara a wai”) que nosso mundo lhes inflige há décadas. Pouco sabemos desta doença; não temos imunidade, remédios ou vacina para enfrentá-la. Só resta nos confinar com nossas famílias, na esperança de sair ilesos, com a mesma ansiedade e impotência que os ianomâmis sentiam quando se isolavam, em pequenos grupos na floresta, para tentar escapar de Xawarari, o espírito canibal da epidemia.
Essa catástrofe sanitária agora comum, causada pela emergência de um novo vírus favorecida pelo desmatamento e pela mercantilização dos animais selvagens, deve hoje, mais do que nunca, nos induzir a repensar o rumo de nosso mundo.
Essa catástrofe sanitária agora comum, causada pela emergência de um novo vírus favorecida pelo desmatamento e pela mercantilização dos animais selvagens, deve hoje, mais do que nunca, nos induzir a repensar o rumo de nosso mundo.
Ao destruir cegamente as florestas tropicais, sua biodiversidade e os povos indígenas que as habitam com sabedoria, o “povo da mercadoria” (como nos rotulou Davi Kopenawa), acaba virando contra si mesmo as consequências de sua predação desenfreada, tornando-se assim a vítima final de sua própria hybris. Essa é a mensagem que os xamãs ianomâmis tentam nos transmitir há décadas.
Ao destruir cegamente as florestas tropicais, sua biodiversidade e os povos indígenas que as habitam com sabedoria, o “povo da mercadoria” (como nos rotulou Davi Kopenawa), acaba virando contra si mesmo as consequências de sua predação desenfreada, tornando-se assim a vítima final de sua própria hybris. Essa é a mensagem que os xamãs ianomâmis tentam nos transmitir há décadas.
De fato, torna-se cada dia mais claro que o destino trágico que reservamos aos ianomâmis —e a todos os povos indígenas— terá sido apenas uma prefiguração do que estamos hoje nos infligindo, desta vez em escala planetária. Como Lévi-Strauss o anunciou, profeticamente, enquanto denunciava “o regime de envenenamento interno“ no qual estamos nos afogando: “(…) doravante todos índios, estamos fazendo de nós mesmos o que fizemos deles”.
De fato, torna-se cada dia mais claro que o destino trágico que reservamos aos ianomâmis —e a todos os povos indígenas— terá sido apenas uma prefiguração do que estamos hoje nos infligindo, desta vez em escala planetária. Como Lévi-Strauss o anunciou, profeticamente, enquanto denunciava “o regime de envenenamento interno“ no qual estamos nos afogando: “(…) doravante todos índios, estamos fazendo de nós mesmos o que fizemos deles”.
Bruce Albert
Bruce Albert
Antropólogo, trabalha com os ianomâmis desde 1975
Antropólogo, trabalha com os ianomâmis desde 1975