11ª PARTE

CAPÍTULO 2 DA 4ª PARTE:

O DILACERAMENTO DO AMOR (Aix, 03/08/1947).

O mundo atual está todo voltado para um mundo novo a construir, mas com horizontes puramente terrestres. A influência dos materialismos ateus torna-se cada dia mais penetrante. Perdeu-se o sentido de Deus pessoal e vivo, transcendente a tudo o que existe, tudo o que foi criado. Deus é, muitas vezes, reduzido à evolução do mundo. “Esse clima influi sobe a mentalidade profunda da própria geração cristã, cujo cristianismo tende a consumar-se numa retomada de consciência das leis de uma fraternidade humana total.(...) Esse anseio de unidade dos homens e de sua fraternidade no amor marcará toda espiritualidade cristã do nosso século, até mesmo a espiritualidade contemplativa”.

Esse tipo de orientação no plano das realizações institucionais e sociais oferece riscos, que não foram suficientemente previstos, e já se sente desvios iminentes ou já começados. Um desses riscos é reduzir a doutrina de Cristo apenas à busca da paz, na unidade e fraternidade de uma civilização humana terrestre. “Daí a esquecer a relatividade de nosso estado e de nosso destino em face do Cristo, e de Cristo em face de Deus-Trindade, como também o caráter teocêntrico de toda religião e do próprio mundo, falta só um passo. E muitas vezes esse passo é dado inconscientemente.”

“O mundo cristão moderno está ameaçado de perder o sentido da adoração, o sentido da contemplação totalmente gratuita da Soberana Beleza e do Soberano Amor, porque perdeu, talvez, o sentido de sua profunda e total relação ao Cristo, Verbo Encarnado e Filho de Deus. Só se sentirá a necessidade da oração pra soerguer e vivificar a vida do homem. Será sentida muito menos como o ímpeto de um amor que vai direto ao Criador de todas as coisas e ao Amor encarnado, sem levar em consideração qualquer utilidade tangível. Esqueceu-se o sentido da oração pura e gratuita. Ela parece uma perda de tempo, num mundo em que a complexidade e a urgência das tarefas a realizar arrasta o homem numa verdadeira orgia de superatividade”.

Isso é decorrente da perda do sentido do silêncio e da separação do mundo por amor de Deus, exigências psicológicas de todos os que buscam a oração e a adoração. “Só se quer rezar, agindo. Só se quer dar a Deus uma ação orante”. Talvez o motivo seja a busca da eficiência tangível e terrestre em favor do homem: tendência ao “ativismo”, “primado de uma ação transitiva”, que muitas vezes é um verdadeiro culto à técnica humana, uma espécie de adoração ao que é feito pela mão do homem.

Deixa-se de falar de Jesus Cristo como Pessoa distinta , objeto pessoal de amor, vivendo atualmente junto do Pai, e falar-se-á na presença misteriosa de Cristo na humanidade. Mais se serve de Cristo do que se serve a Cristo. “Prefere-se ir a Jesus através do homem”, tendo em vista a unidade e a paz.

Sem dúvida que tudo isso é cristão, se tirarmos os exageros acima mencionados, e essa atitude marca a espiritualidade de nosso século, influindo até mesmo na oração dos contemplativos. A gravidade do assunto está em insistirmos exclusivamente sobre essa procura de Cristo através e em função do nosso irmão, mesmo que não oponhamos Deus e nossos irmãos.

O amor de que fala São João nos leva, através do silêncio e da separação da ordem criada, a Jesus Filho de Deus, na adoração e na oração gratuita que são o termo de todo amor a Deus. Não se deve opor ação e contemplação, mas há tipos de cristãos e de vocações diferentes. “Nos santos, a tensão entre as duas exigências de amor chega a tal ponto, que há, constantemente, no fundo de sua alma, o dilaceramento doloroso entre o céu e a terra, sinal certo de uma plenitude total de amor a Deus e aos homens”, reflexo do “dilaceramento infinitamente misterioso e sereno que produziu, na alma de Jesus, Filho do homem e Redentor, a absoluta claridade de amor da visão beatífica.”

Um Irmãozinho deve tender a esse dilaceramento, ao consagrar-se totalmente à missão que lhe é própria. “Trata-se do nosso dom a Jesus, tal como Ele é, na sua pessoa mesma que é principal, e se nós encontramos Jesus no Seu Corpo Místico que são os nossos irmãos, é justamente porque já encontramos Jesus vivo. Por seu amor é que o nosso coração arde de tal modo por nossos irmãos, e nós sempre compreenderemos que o mais que lhes poderemos dar é deixar-nos consumir por esse amor, em pura perda de si, diante dele”.

“Precisamos adorar, contemplar, rezar, amar, entregar-nos à imolação da cruz (...) em nosso nome e em nome de nossos irmãos”. Inserir-nos ocultamente no meio do povo com os olhos fitos em Cristo. Vocês só compreenderão sua vocação quando sentirem “nascer em si esse dilaceramento causado pela nostalgia de viver com Ele, de o encontrar, sozinho, no silêncio e na separação do que é criado.”

“Jesus amado apaixonadamente, eis o que deve primar em nossa vida e é o que devemos mostrar às pessoas pelo fato concreto, pelo que nós somos.” Nossa ação passa através de Cristo, fruto da oração e da imolação de todo o nosso ser. Não escolhemos meios humanos de amar nossos irmãos de de lhes provar o nosso amor: basta amá-los com o coração de Deus. “Para nós, não passa de uma tentação esse desejo constante de querer agir sobre o homem recorrendo a processos determinados, de querer conquistá-lo por qualquer meio humano, de querer ter uma influência, desejando, a casa instante, medi-la e calcular seus resultados tangíveis. Estes, pouco nos importam. O Padre de Foucauld não poderia registrar nenhum resultado. Nossa tarefa especial é prolongar e realizar, no seio do mundo atual e nas novas condições de vida, esta eterna missão de contemplação de Deus na Igreja.”

O mundo tem necessidade de aprender de novo a adorar e a amar Cristo por Ele mesmo, e é por isso que “nossa vida religiosa sai do claustro e pretende inserir-se no próprio seio de uma humanidade que sofre”, como definiu o Padre de Foucauld: uma vida monástica autêntica, fora do claustro e vivida no meio do trabalho cotidiano da humanidade. Nossa presença deve ser a de homens de oração, inserindo-a como um fermento na massa humana, mostrando que é possível ainda adorar e rezar nas condições de vida a que são condenados os homens de nosso século.

Redescobrir o valor do silêncio e da separação do criado, em meio do barulho dos trabalhos industriais, sem se separar dos irmãos. “Usar do mundo como se não usasse”, como diz S. Paulo, o que supõe uma completa separação e transformação interior. “Nossa vida deve provar que a oração continua possível e necessária em nosso tempo, e que Jesus pode ser amado e adorado em Si mesmo, tão apaixonadamente como há vinte séculos na Galiléia”. É uma vida bela, mas muito exigente.

Só seremos verdadeiros na vida de fé. A simplicidade de nosso relacionamento com este mundo, irradiando e testemunhando Jesus.

Tirem para si mesmos e para os irmãos todas as consequências das realidades invisíveis entre as quais vocês vivem e onde a fé lhes dá entrada. Intimidade mais viva com Jesus. Maior tomada de consciência de seus deveres de adoradores e de “consagrados” em nome dos irmãos. Exigências de silêncio e de renúncia impostas por essa ascensão na fé. “Tudo vocês devem receber de Cristo, por meio de sua Igreja: vocês receberão no silêncio do humilde e na separação do obediente (...). Como eu desejaria ver em todos essa paixão do dom completo no amor, no abandono de si, na humildade e na obediência que de um Padre de Foucauld fez um santo. Não há outro caminho”!

CAPÍTULO 3 DA 4ª PARTE.

NAZARÉ.

(Nazaré, 27/06/1948).

O autor comenta que teve quatro dias plenos de silêncio e solidão em Nazaré, em plena zona militar e a alguns quilômetros dos postos Sionistas. Ofereceu a Jesus Operário todas as Fraternidades presentes e futuras. Andar, pisar e contemplar o lugar que ele contemplou durante trinta anos é uma graça inexprimível. Entretanto é muito diferente daquela Nazaré de seu tempo. “ As pesadas e tão imponentes construções de mosteiros e conventos, emergem, como fortalezas, da massa das humildes casas e parecem um tanto chocante no meio da modesta aldeia. A gente afasta delas o olhar, com certa tristeza, e os volta, mais à vontade, para as ruelas mal calçadas, tortuosas, que sobem e descem entre pobres casas da velha cidade. As estradas asfaltadas, os fios elétricos, os automóveis e os ônibus, as camisas americanas dos jovens nazarenos, tudo isso choca menos”: Nazaré está bem enraizada e presente no seu século.

O autor comenta a escravidão da vida operária em Nazaré. “Quase todos os homens, levados bem cedo em caminhões, iam, antes da guerra, trabalhar nas usinas de Haiffa, a 15 quilômetros daqui.” Comenta também o clima de guerra que havia nessa sua estada lá, em junho de 1948, e descreve os trajes dos militares, suas metralhadoras, os refugiados, que fizeram triplicar a população, e comenta: “Nazaré carrega, como se estivesse resumido em si, um pouco de tudo o que faz o peso da vida cotidiana de cada homem neste mundo atual. Acima de tudo, entretanto, persiste a calma, a paz e a doçura única que emanam do céu e do campo da Galiléia: Nazaré continua serena e silenciosa no seu sofrimento. A lembrança de Jesus, de sua Mãe, de seu pai, dos seus vizinhos está aqui, presente em toda parte. E ela não nos deixa. Também está aqui a lembrança do Padre de Foucauld, ainda mais próxima de nós, bem viva na memória de todos os que o viam circular, com passos apressados, bem junto aos muros e saudando profundamente os transeuntes que ele conhecia.”

O autor continua a descrever certas construções, como o Convento das Crianças, e conclui: “Nazaré não me decepcionou, porque de todo esse ambiente se exala um encanto e uma graça incomparáveis. Melhor do que em qualquer outro lugar, eu aí compreendi a vocação da Fraternidade: ela é um tesouro que Jesus, adolescente e operário, pobre entre os pobres, nos lega por intermédio do seu humilde Irmãozinho Carlos de Jesus.

APROFUNDAMENTO

O que eu compreendi aqui é algo que se deve viver, e isso só Jesus pode dar a vocês, no íntimo do coração. “É preciso não complicar nunca as coisas. A vida de Jesus foi simples: simples deve ser a nossa.” Ninguém aí vive essa vida religiosa inteiramente perdida na humilde pobreza cotidiana das famílias da aldeia, com a qual sonhou o Pe. De foucauld, e estou certo que um dia haverá Irmãozinhos em Nazaré. Só que as Fraternidades não vão aparecer, e ninguém ao chegar deverá vê-las.

Isto aqui tem o valor de um lugar único de nossa vida de oração. Aspectos essenciais de nossa vida:

-o silêncio exterior de ação de uma vida toda voltada para Deus em uma oração de adoração e reparação;

-uma presença na amizade ao trabalho, dificuldades, pobreza dos homens de nosso século.

São duas tendências só aparentemente contraditórias. Elas são nossa razão de ser. Muitas vezes “será posta em dúvida a utilidade e a razão de ser da vida de vocês, separada pela castidade e a oração. Quererão que vocês sejam mais como todo mundo(...) e se dediquem à atividade de um verdadeiro apostolado organizado. “ Vão achar a vida de vocês um tanto inútil!

“A vida contemplativa, enclausurada ou não, não é outra coisa senão a antecipação do que deve ser um dia o estado de vida de toda a criatura humana(...). Se não for assim, ela não tem sentido”. Ela é “uma antecipação, na terra, da vida gloriosa”.

“Por que permanecer casto? (...) a única (razão humana da verdadeira legitimidade do voto de castidade) é a da antecipação”. Em Lucas 20,34-36 Jesus diz que um dia a castidade será o estado de todas as pessoas, após a ressurreição. Nada mais justifica a vida consagrada, “do que o fato de ser simplesmente uma antecipação da visão beatífica”.

“A vida das Fraternidades causará um choque, surpreenderá, não será compreendida e este será o sinal mesmo da necessidade de sua presença”: a Fraternidade deve ser um testemunho vivo e uma antecipação concreta, se bem que imperfeita, do Reino futuro de Jesus e do destino glorioso de todas as pessoas”. Esta é uma necessidade própria de nosso mundo atual.

“Nossa missão no meio das pessoas é uma missão, sendo, ao mesmo tempo, uma necessidade de amor. Eis porque é preciso crer totalmente em nossa vocação.” É uma necessidade a presença de Jesus no meio dos pobres, afirmando o mistério transcendente de sua Divindade e de seu Reino, e de seu amor pela nossa miséria e penosa condição. Não tenham medo de seguir essa vocação. Vida de oração e de adoração própria, diferente da de um monge enclausurado. Talvez a vida de vocês será mais dura, mais dolorosa, mais cheia de lutas.

A oração de vocês será verdadeiramente a oração do povo que clama para Deus do fundo de sua miséria. Vejo as Fraternidades presentes em todos os meios e povos. “Tenham um ideal de vida que jamais seja rígido, que saiba adaptar-se a todas as situações, a todos os meios sociais. Nossa perfeição religiosa está muito mais na procura desse constante cuidado de permanecermos humildemente fraternos, para com todos, do que na de uma regularidade exterior. Os Irmãozinhos se espalharão por toda a parte. Eu vejo, cada vez mais nitidamente, a fisionomia diversa das Fraternidades: as da África do Norte, as da França, as do Oriente, do Líbano, da Palestina, do Egito, da Rússia e de outras partes, Fraternidades operárias, rurais, de montanha, nômades, de estudos, de adoração, marítimas, em terras de missão, mais empenhadas num esforço de caridade e de elevação do nível de vida. Todas devem irradiar a oração, a pobreza simples e corajosa, e o amor fraterno.”

Devem completar-se umas as outras material e espiritualmente. A diversidade está, também no temperamento de vocês. “Não se trata de satisfazer os caprichos ou as originalidades individuais, mas de orientar, em pleno equilíbrio humano e sobrenatural, Irmãozinhos generosamente prontos a todas as renúncias, por mais profundas que sejam, para que realizem sua vocação.”

Cada um tem suas possibilidades. Não se iludam a esse respeito. Temos nossos limites, impostos pelo nosso temperamento, pela nossa saúde e pela nossa educação. “O que é essencial é que cada um queira aceitar-se tal qual é (...). Estamos dispostos a aceitar tudo: o sofrimento, a doença, as contradições, a morte, o martírio, não porém os próprios limites de que sofremos, porque desejaríamos ser diferentes do que somos”.

“É preciso que impregnemos nossa vida cotidiana daquela simples e completa atenção de amor que permitiu a Maria emprenhar tudo num instante que poderia passar como tantos outros se ela não estivesse bastante alerta. A cada instante nós somos o que somos e é assim, sem vaidade nem pretensão, com amor e humildade, que nós devemos tomar-nos e darnos ou deixar-nos tomar de maneira imposta pelo momento de vida que nos é outorgado. Fora disto, tudo é ilusão e veleidade. Aceitar a vida não é nada: aceitar-se a si mesmo com seus limites atuais, eis tudo”.

O autor termina comentando algo de seus quatro dias em Nazaré, concluindo o capítulo assim: “Eu quereria simplesmente ser menos indigno das graças que Jesus aqui me concedeu”.

4º CAPÍTULO DA 4ª PARTE

POBREZA E AMOR

(16/10/1948)

“ Nós devemos permanecer infinitamente fiéis ao próprio pensamento de Jesus e, ao mesmo tempo, às solicitações concretas de nosso amor por aqueles que sofrem injustiças e despojamento. É, pois, à luz de uma compreensão cada vez mais profunda do Evangelho, - que precisamos descobrir de novo cada dia - , que se deve formar pouco a pouco, no fundo do nosso coração, em nosos reflexos, em nossos julgamentos, numa palavra, em todo o nosso comportamento, o verdadeiro pobrezinho de Jesus, tal qual Ele o quer, tal qual ele o ama”.

“Essa pobreza é cheia de alegria e de amor, e precisamos evitar de opormo-nos a ela que é coisa delicada e divina, uma caricatura humana que teria talvez as aparência dela, poderia a alguns parecer como mais “materialmente” autêntica, mas estaria ameaçada de acabar em dureza, em julgamentos sumários, em condenações, em desunião, em quebra de caridade”.

“Seremos pobres porque em nós está o espírito de Jesus, porque sabemos que Deus é infinitamente simples e pobre de toda posse e sobretudo porque, tal como Ele, nós queremos amar os pobres e partilhar sua condição”. Sejamos pobres, se não quantitativamente, pelo menos qualitativamente.

“Se a pobreza de vocês não for um semblante do amor, não é autenticamente divina. As exigências da pobreza não podem estar acima das exigências da caridade: desconfiem das caricaturas por demais humanas da pobreza. A tentação do pobre é a inveja, o ciúme, azedume do desejo, a condenação daqueles que possuem mais do que ele; vocês não estão completamente isentos desse risco, senão talvez por vocês mesmos, ao menos por compaixão dos pobres que ressentem confusamente os ataques desse mal”.

Fazer ouvir com firmeza as justas reivindicações dos oprimidos, mas sem perder o amor e sem condenar. Coração tão vasto como o mundo! Nunca julgar (Lc 6; Mateus 7). Nunca condenemos os ricos dos quais não conhecemos nem as intenções nem o coração. Condenar, sim, os abusos dos regimes políticos, mas nunca o nosso irmão.

Todos devem sentir-se em casa na Fraternidade, tanto o patrão, como o mais pobre operário, se bem que, pelo nosso estado de vida, vão para este as nossas preferências. Não nos iludamos com os slogans das lutas de classe. O tabernáculo é a arma que encontramos para vencer as revoltas que sentimos pelas injustiças. “O mais das vezes, será no silêncio que nós teremos de carregar essa ferida da injustiça e oferecê-la a Deus como um sacrifício de Redenção.

POBREZA EFETIVA

“Em cada Irmãozinho há um pobre por amor, e essa pobreza deve realizar-se na ida concreta que, para um certo número de vocês, será uma vida de trabalho”. Também em cada um de vocês há um missionário, um enviado de Cristo e de sua Igreja. “Não fechem a sua vocação nos estreitos limites de uma pobreza de trabalhador. As Fraternidades devem ir, mundo a fora, por todos os países e junto a todas as raças, levar um testemunho vivo do Cristo das bem-aventuranças.”

O autor coloca aqui uma série de dificuldades, como a língua, teologia,viagens, primeiras instalações... “tudo isso deve ser feito numa jubilosa confiança na Providência que faz milagres, na submissão total ao ritmo da expansão que o Senhor quiser para nós, e no ardente desejo do amor que tende a se difundir. Não limitem suas ambições. Se, por vocação, você deve ficar escondido numa usina da França, não esqueça seus irmãos que, em nome da Igreja, irão, para longe, levar a mesma mensagem”.

Isso se faz com alguns recursos, que devemos aceitar da cristandade, já que o peso dessa missão é desproporcional aos recursos de pobres trabalhadores.

Preservem-se do espírito de avareza. Que a preocupação exagerada de ganhar a vida só pelo trabalho não apague em vocês a generosidade, a fé confiante total nas promessas de Jesus: “procurai o Reino de Deus e o resto vos será dado por acréscimo”

Quando vocês ajudarem alguém, o dinheiro deve ser tirado do seu salário ou da pensão de estudante, conforme for o caso: privar-se do necessário por amor a um mais pobre do que nós. Saiam do horizonte pessoal e se coloquem sobre o plano que deve ser a Fraternidade.

Quando vocês sofrerem por ainda não serem suficientemente pobres, lembrem-se de que “a pobreza perfeita, como o perfeito amor, é irrealizável aqui na terra em toda a sua medida divina”. Os fatores de equilíbrio: contemplação e ação, oração e caridade fraterna, força e doçura, vida oculta silenciosa e disponibilidade às pessoas, tensão no equilíbrio mas nunca instalação numa solução de facilidade.

Os elementos da pobreza de Cristo, de que devem viver nossas Fraternidades são, antes de tudo, essencialmente os seguintes: desapego, vida efetivamente pobre, amor dos pobres, que devem sentir-se em casa em nossas Fraternidades, fé capaz de transportar montanhas, confiança na Providência.

Desapego: a todo bem criado, ao dinheiro, ao trabalho. Preparar-se para só pertencer a Deus “raiz do espírito de unidade que deve constituir o laço indissolúvel das Fraternidades.

Vida efetivamente pobre: seguindo o padrão que exige a vocação de vocês.

O amor dos pobres, nossos preferidos, gostar de estar na companhia deles, que eles possam sempre sentir-se em casa nas Fraternidades. Sinal que nunca enganará. Mais importante que os outros dois. É preciso que o ambiente da Fraternidade seja pobre e simples para que um pobre aí se possa sentir em casa, mas será sobretudo porque ele sentirá o amor de um coração realmente fraterno.

Fé capaz de transportar montanhas- e a confiança na Providência, que ousa tudo esperar, tudo pedir, tudo aceitar, tudo empreender para que reinem, no mundo, o Amor de Cristo. “Quando estiverem convencidos de que Jesus lhes pede alguma coisa, não parem jamais no meio do caminho por uma questão material ou por medo de faltar o dinheiro. Não tenham o espírito calculador. É preciso crer no milagre, e que cada um tenha no fundo do coração com uma humildade de criança, uma fé tal como a que o Cristo pede: “Tende fé em Deus. Em verdade eu vos digo que aquele que dissesse a esta montanha: levanta-te e joga-te no mar, e não hesitasse em seu coração, mas cresse que isto aconteceria, isto aconteceria de fato. Eis por que eu vos afirmo: tudo o que pedirdes, rezando, crede que o obterás , e isto vos acontecerá” (Marcos 11,22-24)

5º CAPÍTULO DA 4ª PARTE

NATAL (22/12/1948)

O Natal se impõe à nossa lembrança como o dia por excelência, uma família unida no amor de uns para com os outros, “particularmente quando este é um reflexo autêntico do amor com que Deus amou o mundo, através de Seu Filho, o Menino que no s nasceu neste dia”.

Sintam-se mais próximos uns dos outros, numa verdadeira alegria! Como crianças felizes que ainda recebem presentes e são mimadas sem segundas intenções. “Em face do dom da vida divina que nos é feito esta noite pelas mãos da Santa Virgem Maria, saibamos comportar-nos como crianças, na avidez de um desejo que se torna cheio de loucas ambições,pela espontaneidade confiante do amor e o esquecimento de nossa indignidade. É assim que Deus nos quer e nos ama.”

Não tenham escrúpulos de sentirem essa alegria, “enquanto, ao lado de vocês existe a imensa miséria do mundo e a agonia cruciante de milhões de seres. É verdade. O mistério da Natividade do Verbo é a única fonte de esperança para todos os homens: vocês terão e já têm a missão de testemunhá-lo.”

Recebam em si esse mistério. Deixem-se despojar, empobrecer, purificar e transfigurar por ele. “Nenhuma oposição existe entre a pureza da alegria de vocês e o sofrimento de outras pessoas: o que há é que nós somos um só corpo e que, em vocês e por vocês, a alegria do Natal está um pouco mais enraizada no seio da humanidade. O mundo precisa aprender de novo a alegria pura e simples de um coração pobre, humilde e inteiramente consagrado a Deus e ao amor: ele só o reaprenderá se nós nos deixarmos invadir por ela”. Os sofrimentos da humanidade não fez calar o canto “Magnificat” de Maria. “Não tenham medo de estar menos presentes aos irmãos e aos seus sofrimentos enquanto, na alegria, vocês estiverem totalmente presentes ao Deus que se dá a vocês sem medida”.

Deve crescer entre vocês a amizade para com nosso mui Amado Irmão e Senhor Jesus. Ele está sempre presente em cada Fraternidade, na medida da generosidade de vocês. “É Ele quem tudo deve unir e oferecer a seu Pai pela redenção do mundo. Os que mudaram de Fraternidade puderam perceber isso.

Um dos fatores dessa unidade é o próprio mistério da obediência em cada um de nós. Somos o Corpo Místico de Cristo. Nossa unidade do amor é horizontal e vertical: com Deus e com os irmãos. A obediência é a força de nossa unidade, a solidez autêntica e realista de nosso amor e de nosso apeo a Cristo, e essencial para a plenitude de nossa vida fraterna.

Uma Fraternidade não é uma justaposição de irmãos, mas um corpo vivo, unido organicamente, em uma só cabeça, que é Cristo. Essa unidade se faz pela obediência, no plano da caridade, da pobreza, da renúncia e do trabalho, numa atitude oposta à desobediência inicial. A realização concreta da obediência nas coisas mais simples, prolonga a presença misteriosa de Jesus em sua Igreja, toda humana e toda divina, terrestre e transcendente ao mesmo tempo.

Um grande obstáculo a isso é a nossa “teimosia congenital, e quase inexplicável, em tudo julgar e compreender do nosso ponto de vista e em função de nosso temperamento e de nosso s preconceitos” que inclui nossos julgamentos e a vista certa das coisas.

É preciso agir simultaneamente contra estas causas: estreiteza de inteligência, falta de largueza de visas, preconceitos, inexperiência da vida e dos homens, amor próprio. Precisamos ver a presunção que está “na raiz de inúmeros de nossos julgamentos ou dessas tomadas de posição abruptas que rompem a unidade, ferem o amor, acabam com a alegria e nos tornam menos disponíveis ao Cristo e aos nossos irmãos. Isto se verifica nas relações de vocês entre si, entre as Fraternidades e com os meios que devemos assumir e compreender.”

Compreender as pessoas, por mais diferentes que sejam. Sermos testemunhas que não tenham um “espírito curto”. Ser cada um consciente de suas estreitezas e seus limites. Não se perder em discussões estéreis sobre pontos sem importância, falsos problemas, situações que nem preciso explicar. Não julguem inconsideradamente, Saibam dar a todos um humilde amor fraterno.

Amem a verdade que repousa sobre toda instituição religiosa e sobre todas as pessoas e procurem amá-la. “ O que eu condeno aqui não é a simplicidade de troca de pontos de vista entre vocês, mas a presunção de certos julgamentos endurecidos e definitivos.“ Dou como exemplo o modo superficial como muitos julgaram a fisionomia da Fraternidade de estudos. (O autor comenta sobre essa Fraternidade de estudos e seus membros e conclui:).

“Não se trata de transformá-los em intelectuais,-- isto não pertence à vocação de Irmãozinhos – mas de torná-los capazes de serem portadores da verdade e de simpatizarem com almas de cultura diferente da de vocês.(...) A cultura da inteligência e da fé sempre ficará, queiramos ou não, na base mesma de nossa vida espiritual, e não é verdade, se for autêntica e banhada de verdade, que ela seja um perigo para a simplicidade de nossa vida de fé com Deus, nem para a humildade de uma vida plenamente vivida entre os pobres, na participação de seus trabalhos e de suas misérias.”

Não caiam no erro de simplificações grosseiras de certos problemas. Viver entre os pobres não significa se nivelar mediocremente para não sermos notados. Não podemos recusar de sermos portadores de uma luz que faz a todos mais homens e mais filhos de Deus! Estamos entre duas exigências: a de sermos humildes e pequenos e ao mesmo tempo, sermos luz que ilumina as trevas.” e isto porque não podemos deixar de ser o que de nós faz necessariamente o amor de Cristo, Verdade e Vida.

Entreguemo-nos totalmente à ação do Espírito Santo para não nos “afastar de nossa tarefa essencial que é de ser um orante silencioso na oba da Redenção, todo consagrado ao amor”. “Não é possível ser um verdadeiro Irmãozinho de Jesus sem o heroísmo de uma generosidade absoluta que deve oferecer ao trabalho da graça um coração e uma alma despojados de tudo(...). É sem limites que vocês devem morrer com Cristo e com Ele serem obedientes, humildes e despojados de todo apego a qualquer coisa que seja”.

“Não tenham medo da própria fraqueza: é Jesus e só Ele que, por sua graça, realizará isto em e com vocês. Entreguem-se a Ele na fé e na alegria de amá-lO, e Ele executará sua obra em vocês, dia após dia”. Não somos nós que fazemos isso, mas nós simplesmente entramos no “trabalho de Jesus”. Vivam na alegria e na gratidão de terem sido chamados por Deus.

“Nossas Fraternidades devem trazer a contemplação do mistério de amor de Jesus até o âmago de toda a vida moderna e para todas as atividades legítimas. A sobrecarga de ação, a amplidão de um mundo a construir, tudo isso ameaça esmagar o homem e o cristão, penetrando-o de uma mística materialista, se ele não reencontrar plenamente sua vocação de contemplativo, parte integrante e vital de seu ser de filho de Deus.”

AS DUAS TENTAÇÕES DA CRISTANDADE

Uma delas é a de “separar o destino da cristandade do destino do mundo por um movimento de retirada, os cristãos fechando-se num “pequeno resto”, vivendo na expectativa do advento do reino espiritual de Jesus nas suas almas e na vida futura.”

Outra é a “tentação, para o cristão , de se empenhar com todo o seu ser em todas as atividades científicas, econômicas, sociais e políticas, para influir, num sentido cristão, nas estruturas do mundo de amanhã, com o perigo de reduzir o cristianismo, de fato senão de direito, a ser apenas a melhor solução dos problemas terrestres e a perder o sentido do reino espiritual, o sentido da transcendência da missão de Jesus, de adoração e da finalidade divina sobrenatural de toda a humanidade”.

Não sucumbir a nenhuma dessas tentações. Vencê-las, superando uma e outra na plena realização de sua vocação de homem e de filho de Deus.

É no meio dessa luta que entram as Fraternidades. Vamos levar a contemplação para o meio da cristandade. “Eis por que a nossa oração não poderia assemelhar-se à de um eremita ou a de um trapista: ela não terá desta a silenciosa e imóvel adoração, fruto da separação efetiva e total das coisas criadas. Ela deveria erguer-se, antes, como uma adoração suplicante, pedada dos sofrimentos da humanidade e de suas misérias e será como a repercussão em nossa alma do drama que, neste momento, se passa nas zonas missionárias da Igreja. O risco enfrentado para inserir a oração, a adoração e a contemplação da divindade de Jesus no meio mesmo da cristandade militante, ameaçada do perigo de limitar seus horizontes aos limites da terra, marcará nossa vida de oração com um tom de luta, talvez mais dolorosa”.

“Nós sabemos que nos oferecemos para isso, para obter, por este constante esforço de ficarmos ao lado de jesus e de preservarmo-nos da tentação de agir por meios puramente humanos; e apesar de nossa presença em pleno meio de vida,para obter para nossos Irmãos empenhados na vanguarda do combate pela salvação da humanidade, a graça própria, na Igreja, de nossas Fraternidades: o estilo ao mesmo tempo contemplativo e engajado de nossa vida, pretende ser, de si, uma oferenda, uma adoração em nome de nossos irmãos e um fermento, na terra, do reino espiritual.”

“Nós queremos emprenhar-nos em participar do peso do sofrimento e da luta aos quais os cristãos não têm o direito de fgir, para obter que nossos Irmãos sejam preservados da primeira tentação. “

“Nós queremos conservar nossas vidas na pureza totalmente autêntica da gratuidade, simplesmente oferecida só a Jesus na renúncia a toda ação humana rebuscada e organizada, para obter que nossos Irmãos sejam preservados da segunda tentação.”

“ Assim é que nós colocamos no centro de nossa alma o essencial do drama que, neste momento, se desenrola na Cristandade, para vivê-lo em espirito de reparação e procurar-lhe um desfecho dentro da luz total do reino espiritual de Jesus aqui na terra.”