Sob a orientação do Pe. Regis Brasil, do presbitério de Pelotas, de 6 a 13 de janeiro, na Casa de Retiro Santa Fé, em São Paulo, realizou-se mais um retiro da fraternidade do Ir. Carlos de Foucauld. O que segue são apontamentos feitos, pelo Pe. Manoel Godoy durante o retiro e não transcrição literal do mesmo.
Partiu-se da síntese feliz que o Concílio apresenta sobre o conteúdo e o significado da vida presbiteral: o presbítero, a exemplo de Cristo, é profeta, sacerdote e rei (pastor).
1. Jesus Profeta: o revelador do Pai (Jo 1,18). Estar no seio do Pai, manifesta a consciência da comunhão trinitária que tinha Jesus; revelação daquele movimento interno que há na Trindade. É a vinda do Revelador deste movimento interno trinitário até nós que nos possibilita ter acesso também ao interior da Trindade. Ele vem a nós para que possamos ir a Ele. “Para nós, existe um só Deus, o Pai, do qual vêm todos os seres e para o qual nós existimos. Para nós também existe um só Senhor, Jesus Cristo, pelo qual tudo existe e nós igualmente existimos por ele” (1Cor 8,6). Sentido de nossa caminhada histórica: caminhamos para Ele, vamos até Ele, pois nossa existência só aí encontra a razão.
A manifestação privilegiada do Pai entre nós se dá na pessoa do pobre e é por isso que Jesus exulta de alegria: “Eu te louvo Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas dos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos” (Mt 11,25).
Essa foi a experiência que permitiu aos primeiros cristãos afirmarem que puderam tocar a Deus, apalpa-lo com as mãos: “O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos e o que as nossas mãos apalparam da Palavra da Vida – vida esta que se manifestou, que nós vimos e testemunhamos, vida eterna que a vós anunciamos, que estava junto do Pai e que se tornou visível para nós -, isso que vimos e ouvimos, nós vos anunciamos, para que estejais em comunhão conosco. E a nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo. Nós vos escrevemos estas coisas para que a nossa alegria seja completa” (1Jo 1,1-4).
Este Jesus, revelador do Pai, é chamado de Profeta: “Senhor, vejo que és um profeta” (Jo 4,19). Assim, a multidão o reconhecia: “Este é o profeta Jesus, de Nazaré da Galiléia” (Mt 21,11). “Este é verdadeiramente o profeta, aquele que devia vir ao mundo” (Jo 6,14; 7,40). Desta forma, Jesus é o cumpridor da palavra do Pai; aquele que plenifica o profetismo anunciado: “O Senhor teu Deus suscitará para ti, do meio de ti, dentre os teus irmãos, um profeta como eu: é a ele que deverás ouvir” (Dt 18,15).
Como comunidade de seguidores de Jesus, a Igreja é também chamada a anunciar o conteúdo profético da missão de Jesus, a revelar o rosto do Pai na história. Como disse Jesus a Filipe: “Quem me vê, vê o Pai”, a Igreja deve estar apta a dizer: “Quem me vê, vê a Jesus, vê os sinais do seu Reino”. A Igreja é chamada a anunciar o Reino: “Completou-se o tempo, e o Reino de Deus está próximo” (Mc 1, 15). Este foi o ministério de Jesus e deve ser o de seus seguidores.
Tornar o Reino explícito, por meio de sinais visíveis, como enviado do Pai, no Espírito, é o conteúdo profético da missão de Jesus (Lc 4, 18-21). Este é o mistério de Deus revelado ao mundo por Jesus. A revelação interna da Trindade transborda no Filho e nos associa ao Filho Jesus. Associa a si aqueles aos quais foi enviado, aumentando o círculo trinitário, fazendo-nos filhos no Filho (Jo 1, 35ss). O anúncio vai tomando o sentido comunitário. Também nossa vida deveria ser um grito constante: “Encontramos o Messias” (Jo 1,41). O anúncio do Evangelho é um imperativo que se nos impõe nossa condição de seguidores de Jesus: “Ai de mim, se eu não anunciar o evangelho” (1Cor, 9, 16).
Esse anúncio, a Igreja o faz principalmente na Eucaristia. Esta é um anúncio profético eclesial e tem a dimensão pessoal na vida de cada batizado. É o culto entendido na linha de uma profecia existencial: “Eu vos exorto, irmãos, pela misericórdia de deus, a vos oferecerdes em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus: este é o vosso verdadeiro culto”. Isto vivido de tal forma que faz o cristão assumir um novo modo de existir. “Não vos conformeis com este mundo” (Rm 12,1-2). Vida inteiramente nova, nos moldes das bem-aventuranças (Mt de 5 a 7). Vida nova marcada pelo novo modo de ser que Cristo anuncia, sendo sal e luz do mundo (Mt 5,13ss.). Sal e luz do mundo: existência profética!
O ministério ordenado está profundamente ligado ao ministério da Palavra, no âmbito da profecia. Anúncio da Palavra é dimensão de todo o batizado, mas de maneira muito especial o é de todo ministro ordenado... “Ai de mim!”. “... o nosso anúncio do evangelho aconteceu entre vós não só com discurso, mas com poder, com Espírito Santo e com muita força de persuasão” (1Tss 1, 5). Divulgação da Palavra, expansão do espaço revelador da profecia, movimento que suscita novas comunidades, desperta novos colaboradores... “... os que se afadigam” (1Tss 5, 12). Os colaboradores são os que se afadigam no meio do povo, anunciando a Palavra, formando novas comunidades para que a Palavra continue gerando a vida no meio dos pobres.
União indissolúvel há entre a Palavra e o ministério. O serviço da Palavra é dimensão intrínseca do ministério ordenado. Somos, na expressão de Donald Cozzens , guardiães da Palavra. Guardar a Palavra está no centro da espiritualidade do presbítero-profeta. Em tempos de perigo fundamentalista, deve ficar claro que a Palavra de Deus não responde plenamente a nossas perguntas humanas, mas o relato da presença salvadora de deus na história humana é o relato de salvação e misericórdia. Como guardião e divulgador da Palavra, deve ficar claro com sua vida que o ministro primeiramente escutou humildemente a Palavra do Senhor que anuncia.
Irmão Carlos, não podendo servir à Palavra explicitamente, fez uma bela e magnífica síntese da vida do ministro ordenado e do serviço à Palavra: “É preciso gritar o Evangelho com a vida”. Daí a urgência do verdadeiro testemunho.
A Evangelii Nuntiandi faz uma magnífica reflexão sobre a urgência do testemunho na evangelização. Nosso modo de viver deveria levar as pessoas a indagarem: por que vivem assim? “E que o mundo do nosso tempo que procura, ora na angústia, ora com esperança, possa receber a Boa Nova dos lábios, não de evangelizadores tristes e desencorajados, impacientes ou ansiosos, mas sim de ministros do Evangelho cuja vida irradie fervor, pois foram os que receberam primeiro em si a alegria de Cristo, e são aqueles que aceitam arriscar a sua própria vida para que o Reino seja anunciado e a Igreja seja implantada no meio do mundo” . Portanto, somos chamados ao serviço da Palavra não como meros funcionários de uma instituição, mas na alegria do testemunho, com todo o entusiasmo de quem por amor a Ela não poupa nem mesmo a própria vida. O fervor, o entusiasmo é a característica maior dos grandes evangelizadores, individuas e/ou coletivos.
Auge do testemunho entusiasta: a Eucaristia. Não temos o direito de celebrar a Eucaristia, matando-lhe a dimensão profética da Palavra anunciada e celebrada. Segundo o testemunho de Dom Jayme Chemello, quem salvou a celebração dos 500 anos em Porto Seguro foi o índio. Tudo estava preparado para matar a profecia da Palavra, mas eis que ela ressurge na voz do índio. Este quebrou o protocolo. Quando lhe disseram que não havia tempo para sua fala, ele respondeu: “O tempo é de Deus e Deus também é de repente”. A missa preparada para ser um grande espetáculo foi despojada de sua espetacularidade pelo índio, que a tornou verdadeiramente um culto agradável a Deus, fazendo emergir a dimensão profética da Palavra. Foi, assim, resgatada a dimensão profética da eucaristia. Esta não pode se desligar, mas marcar a descontinuidade temporal, a profecia. A eucaristia não é confirmação de novos conformismos, não é legitimação da mentira recoberta de sagrado. É memória da cruz do Senhor. É profecia.
O eixo da dimensão profética de nosso ministério: caminhar para Cristo, e assim, caminhar para o Pai. É preciso resgatar as experiências proféticas de anúncio que há no meio do povo, a exemplo do que faz Alfredinho Kunz, na Burrinha de Balaão, relatando a postura de Antonieta, atendente do INSS. Frente à arrogância de um comandante da polícia, que queria passar na frente de outras pessoas na fila. Ao ser barrado por Antonieta, ele lhe diz: “Você sabe com quem está falando?”. E ela lhe contesta: “Sei sim. O senhor é o comandante da polícia, responsável por inúmeras sessões de tortura. Aquele que torturou fulano, sicrano e tantos outros”. É preciso que haja muitas Antonietas no meio do povo a facilitar que os opressores se vejam frente a frente consigo mesmos.
Rezemos:
Deus, nosso Pai,
dá-nos um coração sensível para percebermos tua presença,
nos gestos mais humildes, mais simples do povo,
no seu dia-a-dia.
Sabemos que essas experiências de anúncio de Tua bondade
nos ajudam a reforçar o nosso seguimento
às Palavras do Teu Filho,
que nos conduzem a Ti.
2. Contemplação do rosto do Cristo Sacerdote.
Para efeito meramente didático, separamos as três dimensões do ministério do Cristo: Profecia, sacerdócio e realeza (pastoreio), mas ele é único, indivisível.
Somos filhos no Filho: nosso sacerdócio encontra n’Ele o porto, o fim (telos). Vamos nos servir do texto neotestamentário conhecido como Carta de Paulo aos Hebreus. Na realidade, não se trata de uma carta, nem de Paulo, nem aos hebreus. Trata-se, sim, de um texto do círculo Paulino e tem uma conotação mais homilética. Hebreus não existem na Palestina do tempo de Jesus. Os interlocutores deste texto são judeus convertidos, familiarizados e saudosos do culto antigo e do sacerdócio de Israel. Na realidade, deveríamos tremer diante do mistério, mas quando encontramos o Menino, ficamos desconcertados: ou aderimos, ou ficamos na saudade da segurança dos ritos antigos. Este é o dilema destes judeus convertidos.
O texto nos coloca diante de duas novidades: 1) Chamar a Jesus de Sumo Sacerdote; 2) Tratar o sacerdócio de maneira inteiramente nova, em relação ao Primeiro Testamento. Fala de uma forma de realizar plenamente o sacerdócio levítico, que o Primeiro Testamento não deu conta de fazer. Já não se trata mais do velho sacrifício de bodes e carneiros, mas o próprio sacerdote Jesus entra no santuário, revestido do próprio sangue.
O último bastião da resistência cultural é a religião, pois esta é a alma de um povo. O autor do texto aos hebreus tenta mostrar a ineficácia do sacerdócio levítico, que todo ano repete o sacrifício e não consegue a salvação. Jesus não é um sacerdote a esse modo. Não é da tribo de Levi, morre na cruz por um efeito jurídico, não ritual. Cruz como ato de maldição, que separa de Deus, não une, não re-liga. Jamais Paulo usaria a palavra sacerdote, sacerdócio, pois tinha medo de evocar a cultura do Primeiro Testamento no contexto da novidade cristã. Mas, é normal que a Igreja releia o mistério de Jesus e o veja como cumpridor de todas as promessas; projete n’Ele um Moiséis, um sacerdote. Porém, o texto aos hebreus o apresenta não como qualquer sacerdote e sim como um sacerdote inteiramente novo. Um sacerdote digno de confiança nas coisas que concernem a Deus (Hb 2,17). Aquele que é digno de confiança, não precisa ser da tribo de Levi. Algumas traduções colocam Jesus como fiel a Deus, mas o sentido exato é confiável, digno de confiança (Hb 3, 2). Ao colocar Jesus na linha de Melquisedeque, emerge um sacerdote sem pai, sem mãe, sem genealogia. Jesus não precisava disso para justificar seu sacerdócio. Ele é sacerdote para sempre por ser Filho de Deus, não por pertencer a esta ou aquela raça, linhagem ou tribo. Este era um sacerdócio de separação. Para entrar em contato com as realidades sagradas, os levitas são postos à parte: não têm herança entre os filhos de Israel (Nm 18,23). Na linha do sacerdócio de Aarão, a separação é ainda mais acentuada, por meio dos ritos de consagração, descritos no Êxodo e no Levítico (Ex 28-29; 38; 40,12-15; Lv 8). Os ritos, as vestes, os costumes serviam para separar o sacerdote do povo. Jesus, porém, estava nu na cruz (a tradição que lhe colocou alguns panos). Jesus não se afasta, mas se faz solidário conosco: fez-se em tudo semelhante aos irmãos (Hb 2,17). Entrou de uma vez por todas no santuário, revestido do seu próprio sangue
O rito do sacerdócio levítico só serve para fazer memória do pecado, não da graça. O pecador sai do rito ainda mais pecador. Missão nossa hoje é zelar pelo simples e necessário nas celebrações. Despojarmo-nos. Não enredarmos nas pompas. Jesus, na hora sacerdotal, estava nu. O sacerdócio de Cristo nos inspira para o exercício do sacerdócio hoje.
O texto aos hebreus ressalta também a relação de Cristo como sacerdote e a casa de Deus. “Com esse termo, ‘casa’, o texto ao s hebreus evoca todo o tema do Templo de Deus, construído materialmente, depois destruído e reconstruído espiritualmente na glorificação de Cristo”. O corpo de Cristo glorificado é a nova casa de Deus. A união dos dois termos: casa de Deus e fé em Cristo barra o caminho à concepção individualista da fé. Assim, pois, “a adesão de fé tem necessariamente duas dimensões: põe os crentes em relação pessoal com Deus, graças à mediação de Cristo glorioso, mas, ao mesmo tempo, faz entrar numa casa, isto é, comunidade animada pela fé”.
O sacerdócio de Cristo é. pois, um sacerdócio existencial do qual todos participamos devido ao batismo. O culto se transforma em vida, é a própria existência como culto; em outras palavras, a vida toda em Cristo e não apenas o culto: “Tudo o que disserdes ou fizerdes, que seja sempre no nome do Senhor Jesus, por ele dando graças a Deus Pai” (Cl 3,17).
O ministério ordenado faz no lugar de Cristo o que Ele não pode mais fazer, devido à sua dimensão escatológica, pois ele já não pertence mais à história. Somos ordenados no Espírito, para o serviço da humanidade. A diaconia apostólica se faz na eucaristia, no aprofundamento do mistério eucarístico. Daí a urgência em recuperarmos os sentidos quenóticos e diaconais do ministério sacerdotal. O sacerdócio comum dos fiéis está em relação necessária com o sacerdote ordenado, que deve estar a serviço daquele. Sacerdócio ordenado, de oficio, supõe o sacerdócio existencial.
Albert Vanhoye joga luz na compreensão do sacerdócio de Cristo à luz do texto aos hebreus: “Quem quer entender bem o sacerdócio cristão deve, ante de tudo, contemplar Cristo, porque Cristo transformou completamente e renovou o sentido do sacerdócio e, no fundo, há somente um único sacerdote cristão, que é o próprio Cristo”.
Importa ainda ressaltar que o verdadeiro e perfeito sumo sacerdote, segundo o texto aos hebreus, é o Cristo da glória. Somente por meio de sua paixão e ressurreição O Cristo estabelece plenamente a mediação. “Sobre a terra, antes de sua paixão, Jesus não se achava ainda em condições de perfeito Mediador, porque nem sua relação com Deus, nem sua relação com os homens haviam atingido sua perfeita realização”. Estas duas relações só encontram sua realização plena em Cristo com a paixão e entrada na glória. “... elas estão unidas perfeitamente uma à outra, recobrem-se e compenetram-se, uma vez que a relação de Cristo glorificado com Deus é fundada no dom que fez de si mesmo aos homens, e reciprocamente a relação de Cristo atingiu sua perfeição graças a uma total adesão ao amor que vem de Deus (Hb 2,10; 5,7-9; 10,9-10). Assim o Cristo realiza, com uma plenitude até então inconcebível, o ideal sacerdotal”.
É na instituição da Eucaristia que essa dimensão ganha toda a força, pois aí se revela a consciência plena de Cristo, que entrega sua vida: “Tomai e comei... Tomai e bebei... Meu corpo e meu sangue vos dou”. Quando repetimos este gesto, estas palavras, falamos em nome de Cristo, mas também em nosso nome. O nosso sacerdócio só é existencial como o de Cristo se também estivermos dispostos a entregar nosso corpo, nosso sangue, para que o povo tenha vida e a tenha em abundância. Somente assim podemos superar o ritualismo e transformar nosso ministério num serviço digno de fé e de confiança.
3. Contemplando o rosto de Cristo, Bom Pastor.
Jesus se revela como o Bom Pastor (Jo 10) por sua prática de profunda misericórdia pelo povo: “Ao ver as multidões, Jesus encheu-se de compaixão por elas, porque estavam cansadas e abatidas, como ovelhas que não têm pastor” (Mt 9,36). Diante desse grande desafio, Jesus percebe que falta gente para enfrenta-lo devidamente: “A colheita é grande, mas os trabalhadores são poucos” (Mt 9, 37). E, segundo Marcos, ao constatar o sofrimento do povo, Jesus “começou a ensinar-lhes muitas coisas” (Mc 6, 34). Importante constatar a dinâmica da cena: Jesus vê, analisa e toma uma decisão.
Para uma meditação mais alongada, conferir outros textos paralelos: Nm 27,16-17; 2Cr 18,16; Zc 10,2; 1Rs 22,17; Jr 50,6; Ez 34.
Ao ver hoje a realidade, tiramos as mesmas conclusões: os pobres continuam dispersos, como ovelhas sem pastor. Basta um olhar nas estatísticas sobre a violência no país. Quantas mortes de inocentes!
Ter compaixão, saber sofrer com. Jesus, diante da realidade e movido pela misericórdia, toma iniciativas: parte para a formação de novos trabalhadores. Ele não fica parado diante do sofrimento do povo. Age. Interessante observar que os pastores não eram proprietários. Eram cuidadores de ovelhas. À distância dos donos, sofriam as tentações de roubar a lã, a carne. Por isso, eram malvistos, eram malditos. Daí o contraste forte: Jesus, o Bom Pastor, diante de uma categoria considerada maldita, os maus pastores.
Com um breve recorrido pela Bíblia, podemos levantar os inúmeros verbos que são utilizados para designar a função do pastor. Há trabalhos nesta área feitos por Elena Bosetti. O que segue é uma síntese de um belo trabalho dela.
I. No antigo Oriente, antes da formação literária do Primeiro Testamento, a atribuição do título de pastor à divindade já era conhecida na cultura egípcia e na Mesopotâmia. É aí que Israel busca elementos para produzir sua teologia (O sol é meu pastor!).
II. O pastor no Primeiro Testamento. Embora a aplicação desta terminologia a Javé seja muito antiga, a encontramos poucas vezes no Primeiro Testamento. As atividades atribuídas a ação pastoral de Javé podemos agrupá-las em quatro grandes funções, expressas pelos verbos:
a) Guiar e conduzir: não é paternalismo, nem autoritarismo, mas serviço indispensável. Sem pastor, o povo se dispersa, se dissolve.
- o pastor é aquele que caminha à frente das ovelhas: plano político, ético e religioso (Gn 48,15 e 49,24ss; Sl 23; 28; 48; 77; 78; 80: Javé é meu pastor, guia-me para as águas tranqüilas, conduz-me por caminhos de justiça (23,23).
- impede que o povo seja levado ao matadouro.
Os profetas colocam o tema do pastor no contexto do novo Êxodo (Os 4,16; Is 40,1; 49,10)
- Conduzir e guiar revelam a profunda experiência de Israel de ser guiado por Javé. O núcleo dessa experiência e o êxodo (Ex 15,13)
- o populismo acha que o povo por si mesmo tem condições de sobreviver.
b) Providenciar alimento: apascentar significa procurar e prover alimento, água e encontrar caminhos seguros para a vida do rebanho: o Senhor é meu pastor, nada me falta (Sl 23).
- no deserto, o maná e as codornizes (Ex 16,12ss); 23,5
O Senhor é quem “prepara a mesa” no deserto; somos rebanho do pasto de Javé: Sl 74,1; 79,13; 95,7; 110,3.
- Os profetas falam de Javé que provê: Is 14,30; 49,9-10; Ez 34,14ss; Sf 2,7.
- Daí-lhes vós mesmos de comer Mc 6,37
c) Vigiar, defender, libertar do perigo: Javé não só reúne o seu rebanho, também procura (Ez 34,16). Acusa os falsos pastores de não procurarem a ovelha perdida (Ez 34,4). É um outro momento da caminhada do Povo de Deus, não se trata mais de libertá-lo da escravidão, mas sim reuni-lo, pois está disperso (Jr 31,8; Is 40,11 e Mq 2,12).
Deus-guarda: (Sl 121,3-8)
V3. ..... o teu guarda jamais dormirá
V4. ......não dorme nem cochila o guarda de Israel.
V5. ..... Javé é teu guarda,
V7a. ... Javé te guarda de todo o mal,
V7b. ... Ele guarda a tua vida,
V8. ..... Javé guarda a tua partida e chegada
d) Fazer aliança: O pastor egípcio reúne, mas não vai em busca (Aristocrata).
- aspecto afetivo do pastor com seu rebanho; vive sua função, não como mercenário, mas como quem ama.
- é o âmbito da pura gratuidade, da paciência incondicionada, da ternura e amizade (Sl 79,13; 95,7; 100,3).
- é o núcleo do Sl 23: EU-TU (23,4).
- quando conhecerão que sou Javé?
- processo de conhecimento e amizade (Ez 34,27).
III. O pastor no NT.
- No judaísmo tardio, a profissão de pastor não gozava de nenhum prestígio.
- mercenários, bandidos, fraudulentos: sem direitos civis.
- desta forma, como chamar a Deus de “meu pastor” ?
- exceção em algumas passagens para Javé, Messias, Moisés ou Davi: esse contraste espelha a realidade da própria vida de Jesus, que veio chamar os pecadores, curar os doentes, conviver com os impuros “reunir as ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 15,24.10,6).
- Jesus é o Bom Pastor: vai ao encontro das multidões cuja dispersão, fraqueza e abatimento o comovem profundamente (Mt 9,35-36 e Mc 6,34); a mesma expressão no Primeiro Testamento: Nm 27,16-17; 1Rs 22,17; 2Cr 18,16; Jr 50,6; Zc 10,2.
- ao encontrar a ovelha perdida carrega-a nos ombros e a traz de volta com ternura materna, não xingando, nem chicoteando, mas acariciando.
- A práxis do Bom Pastor: Jesus é o pastor messiânico prometido no Primeiro Testamento; é o revelador da misericórdia de Deus, o mediador universal da salvação e o selo definitivo da aliança; é o Caminho, a Verdade e aVida (Jo 14,6): da sua práxis aprendemos as entranhas da misericórdia: (Mt 9,35-36 e Mc 6,34) = compaixão - da indignação ética à práxis da justiça e desta à paixão até às últimas consequências: “tendo amado os seus, que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1). A práxis do Bom Pastor é uma ação plena em prol do cumprimento da totalidade da justiça. Esta perspectiva nos remete a LC 4, 16-21: o discurso inaugural na sinagoga de Nazaré.
- O Espírito que o consagrou é a caridade (amor pastoral):
- a relação de Jesus com a multidões empobrecidas e esvaziadas de sua memória e utopias, testemunha a fome e sede de justiça que Ele mesmo experimenta na medida em que se aproxima, comove-se e se compadece (profunda relação entre a misericórdia e a fome e sede de justiça).
- o amor pastoral é cheio de afeto e comunhão interpessoal ao mesmo tempo que pleno de compromisso público (social e político).
A atitude de Jesus o Bom Pastor é a grande chave de leitura para entendermos o que o Concílio Vaticano II afirma sobre a caridade pastoral como eixo da espiritualidade presbiteral. “Dirigindo e apascentando o povo de Deus, são animados pela caridade do Bom Pastor a dar a vida pelas ovelhas, preparados até para o supremo sacrifício” (PO 13). “Desempenhando assim o papel de Bom Pastor, encontrarão no próprio exercício da caridade pastoral o vínculo da perfeição sacerdotal, que levará sua vida e ação a uma unidade” (PO 14).
4. Voltar ao entusiasmo do primeiro amor (Ap 2,4).
Cumpriu-se o tempo (Mc 1,14-20). Trata-se de uma releitura do Primeiro Testamento: tudo o que estava sendo preparado, tudo o que tinha sido disposto por Deus, chega à plenitude em Jesus. Esgotou-se o tempo, o prazo de espera. Este tempo novo é marcado pelo anúncio do Reino. Anuncia e realiza sinais do Reino. Esse anúncio obedece, em Jesus, uma prática libertadora. Ele tinha um diagnóstico claro da realidade. Aí realiza o momento máximo: anda com pecadores, doentes, excluídos, pois tem consciência de que não são os sãos que precisam de médico. Provoca, assim, uma ruptura com a concepção de reino baseado na lei. Esta tinha se tornado um processo de tolhimento, não mais um pedagogo para ajudar o povo a crescer. Com seu comportamento, Jesus cria uma polêmica e provoca ruptura com os guardiães da lei. O anúncio e prática do Reino têm uma continuidade e descontinuidade com o Primeiro Testamento. Jesus não legitima o templo. O Reino é liberdade e reinado de Deus. Não um messianismo. Jesus revela o que acontece quando é Deus quem reina. Reinado de Deus dá vigor às palavras dos profetas, na prática de Jesus. Tudo o que Ele faz são sinais do que deverá acontecer definitivamente quando Deus reinar. A alegria do pobres é o sinal mais visível, pois são eles os primeiros a receberem e a acolherem o reinado de Deus. Para ser reinado de Deus tem que começar de baixo. A mulher adúltera é vítima do cumprimento da lei; quando encontra o olhar daquele que a liberta, sente lhe abrir um horizonte novo. Os pobres acolhem a Jesus como Palavra forte, que tem autoridade e é libertadora. Por isso, afirmam: Ele é profeta e vem de Deus.
Por outro lado, Jesus vai encontrando oposição. A cruz não pode ser reduzida a um só momento; ela foi sendo talhada nas inúmeras perseguições que marcaram a caminhada de Jesus. No Calvário se dá o ponto culminante deste processo. Mas a Igreja proclama na Páscoa: a cruz não é a última palavra. Fazendo isso, assume o compromisso de continuar na história a manter vivos os sinais do Reino; os mesmos que conduziram Jesus à cruz.
A Igreja é sacramento do Reino, mistério da Trindade, como afirma o Concílio Vaticano II: “A Igreja é o povo reunido na unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (LG 4). Esta Igreja se dá verdadeiramente em todas as legítimas comunidades locais de fiéis, ainda que pequenas e pobres ou vivendo na dispersão, pois aí está presente o Cristo, por cuja virtude elas se consociam à Igreja una, santa, católica e apostólica (LG 26). A eclesiologia que emerge da Lúmen Gentium dá um salto sobre todo o juridicismo e coloca a Igreja sob o signo do Espírito.
Vale a pena aqui reproduzir parte de uma estupenda homilia, recordada também por Y. Congar, feita por Ignacio Hazim, metropolita ortodoxo de Lataquia (Siria), por ocasião da abertura da Conferência ecumênica de Upsala, em agosto de 1968. Estas palavras nos ajudarão compreender o que significa realmente conceber a Igreja sob o signo do Espírito. Significa olhar profeticamente para o futuro de Deus, que irrompe continuamente em nosso presente mediante o Espírito: “A Novidade cristã não tem sua explicação no passado, mas no futuro. É evidente que a ação do Deus vivo não pode ser senão uma ação criadora. A maravilha do Deus que se revela em Abraão, Isaque e Jacó está no fato que o seu ato criador vem do futuro. É um ato profético. Este Deus vem ao mundo para encontrá-lo. Está diante de nós e chama, arrasta, envia, liberta e faz crescer... O evento pascal, realizado uma vez para sempre, de que forma se torna nosso, na atualidade? Por meio daquele que é o seu próprio artífice, desde as origens até a plenitude dos tempos: o Espírito Santo. Ele é pessoalmente a novidade que atua no mundo. Ele é a presença do Deus-conosco, unido ao nosso espírito (Rm 8,16). Sem ele, Deus fica longe, Cristo permanece no passado, o Evangelho é letra morta, a Igreja uma simples organização, a autoridade é um despotismo, a missão é propaganda, o culto simples lembrança e o agir cristão é uma moral de escravos. Mas, no Espírito e numa synergia indissociável, o cosmos se levanta e geme no parto do Reino, o homem luta contra o mal, o Cristo ressuscitado está presente, o Evangelho é potência vital, a Igreja é comunhão trinitária, a missão é Pentecostes, a autoridade é serviço libertador, a liturgia é memorial e antecipação, o agir humano é divinizado” (Jo 16,13) .
O teólogo Segundo Galiléia, em uma bela meditação, nos dá outra pista para, depois de acolhermos as notas da Igreja, segundo nossa fé comum, pensarmos nas notas da Igreja latino-americana (conferir o quadro anexo), que não negam as outras, e sim as complementam. Essas notas nos ajudam a ter uma compreensão melhor da afirmação de que a Igreja é um “mysterium luna”, pois não tem luz própria e deve refletir sempre a luz que é Cristo. Essa concepção nos liberta da consciência prometeica, que nos faz pensarmos que somos nós os libertadores. É o Senhor que nos liberta, também da economia, da política... O Reino tem uma reserva escatológica: tem um pé bem firme no chão e outro levantado pronto para o passo seguinte. É um já e um ainda não. Nunca o Reino se esgotará nos processos históricos, mas seus sinais visíveis são as condições de vida dos pobres.
Em todos os processos históricos, os pobres são sempre os mais prejudicados; daí que eles aprendem a esperar só em Deus. Por isso, eles serão sempre os termômetros de qualquer sistema político. Como eles vivem atestam ou não a legitimidade de qualquer governo.
2.1. IGREJA: DISCÍPULA E SACRAMENTO DE JESUS BOM PASTOR
POVO: necessidades e valores
DIMENSÕES DA VIDA DO POVO
COMUNIDADE: atitudes e serviços
PRÁTICAS DA COMUNIDADE EVANGELHO: fé-reflexão e testemunho
MANIFESTAÇÕES DO MISTÉRIO DO REINO
NECESSIDADES BÁSICAS
Vítima da exploração da economia neoliberal
sofrimento – solidariedade
miséria – misericórdia
Igreja SAMARITANA – Diakonia
Tem compaixão e partilha com os pobres
Consola os aflitos, alivia as dores
Acolhe os sofredores e cura os doentes
Encontra o Ressuscitado, tocando as chagas dos irmãos.
OS ROSTOS DO CRISTO SOFREDOR
(Puebla 31-40; Mt 25, 31-46)
O MESSIAS DOS POBRES, SERVIDOR
(Mc 6,34-44)
O PAI MISERICORDIOSO
(Lc 15,11-32; 10,25-37; Jo 4,1-42)
ESPAÇO E ACOLHIDA E FRATERNIDADE
Povo disperso
confiança – amizade
afeto – festa
Igreja CASA – COMUNIDADE – Koinonia
Acolhedora: diálogo – encontro que humaniza
Íntimas relações interpessoais – comunhão
Responsáveis uns pelos outros
Igreja toda ministerial
O AMOR DO PAI E DOS IRMÃOS
(Mt 23,8-12; 1Jo 4,7-21)
O RESSUSCITADO NA COMUNIDADE
(At 2,42-47; 4,32-37; Lc 10,38-42)
OS FRUTOS – CARISMAS DO ESPÍRITO
(1Cor 12,12-31; Rm 8,1-13)
AJUDA DE DEUS E ENCONTRO COM ELE
Escuta da Palavra
Oração – sacramentos
Igreja SANTUÁRIO – Liturgia
Espaço para Deus – Arca da Aliança
Ícone da Trindade – a melhor comunidade
Escola de oração na vida
Eucaristia: fonte e cume da Igreja
MARIA, OS SANTOS, OS FALECIDOS
MÁRITRES DA CAMINHADA
(Hb 11,1-39; Ap 7,2-14; Lc 1,46-55)
DEUS SANTO – DEUS DA VIDA
(Jo 10, 7-18; Rm 8, 31-39)
CORPO DE CRISTO – TEMPLO DO ESPÍRITO
(Ef 4,1-16; Rm 12,3-8; 1Cor 6,19-20)
DIREITOS HUMANOS
Organização política
Luta para construir a nova sociedade
Igreja PROFECIA – Martyria
Denuncia: injustiça e opressão
Anuncia: Esperança do Reino de Deus
Exigência: conversão e ação transformadora
DEUS- LIBERTADOR DOS POBRES
faz justiça aos explorados (Ex 3- profetas)
JESUS ANUNCIADOR DO REINO
sinal de contradição (Lc 4,14-30; 7, 18-30)
ESPÍRITO SANTO – PARÁCLITO DA VERDADE
(Mc 13,11; Jo 14,17.26; Jo 15,26; Rm 8,26)
ABERTURA E RESPEITO
Encontro com o diferente – pluralismo
Sementes do Verbo em todas as culturas
Inculturação
Igreja MISSIONÁRIA – Kerigma/Diakonia
Discípula de Jesus e peregrina
Missão: ao encontro das pessoas
Evangelho inculturado
Policêntrica – ecumênica
SERMÃO DA MONTANHA
Projeto do mundo novo (Mt 5-7)
Lava-pés: autoridade – serviço ( Mc 10,42-44; Jo 13,1-17)
Pentecostes: Igreja – assembléia das comunidades locais
(Mt 28,16-20; At 2,1-47)
2.2. ORAÇÃO
OFERTÓRIO DE UM DIA DE DESERTO
Senhor Jesus
Como Família da Fraternidade do Irmão Carlos fizemos, neste Dia de Deserto uma experiência mais profunda de encontro:
Cada um consigo próprio e, todos, convosco Redentor nosso.
Como frutos do deserto com sentido encontrarmos uma fonte inesgotável de solidariedade para com os sem terra, sem teto, sem trabalho – todos feridos em seus direitos humanos.
Na peregrinação do dia, fomos nos propondo, de alguns modos ser companheiros de caminhada para juntos alcançar a terra prometida, onde o leite e o mel sejam fartos para saciar a todos...
Como sinal da peregrinação pelo nosso “Saara” cada irmão e irmã foi encontrando um símbolo para apresenta-lo no grande ofertório da Eucaristia.
Levaremos para nosso ministério existencial as lições que as pessoas, os sinais e a vivência deste dia especial trouxeram para nosso ministério de ofício e, especialmente, para as novas páginas de nossa vida.