DOSSIÊ COMPLETO

DOSSIÊ COMPLETO

Compilado por Magda Mello


Dom Casaldáliga: os 3 “Ps” do Pedro

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs,

vice-presidente do SPM – Rio de Janeiro, 8 de agosto de 2020

P A S T O R

Vindo do outro lado do mar, trouxe no corpo e na alma a marca da liberdade;

manteve redobrada solicitude sociopastoral diante dos pobres e dos excluídos,

usando a palavra e o bastão não para golpear as ovelhas perdidas e indefesas,

mas para afugentar os lobos fortes, ferozes e famintos por trabalho humano;

dedo em riste e língua afiada contra o latifúndio e as cercas, a tirania e a ditadura,

na proteção dos povos indígenas, dos camponeses e das comunidades quilombolas.

Homem de Deus, do tempo e dos oprimidos; do Xingu, das águas e da Amazônia,

defensor da vida em todas as suas formas e da preservação do meio ambiente,

sentinela sempre alerta à vida onde ela encontrava mais frágil e ameaçada.

P R O F E T A

Chegou com o sonho do Reino de Deus, da Pátria Grande, do novo céu e nova terra;

e logo fez-se porta-voz da Teologia da Libertação e das Comunidades Eclesiais e Base,

das Pastorais Sociais, da defesa dos Direitos Humanos e das organizações populares.

Combatente intrépido do “bom combate” e companheiro de todos os caminhantes,

percorreu rios e igarapés, veredas e estradas, visitando vilas, povoados e comunidades.

“Discípulo missionário” do profeta itinerante de Nazaré, incansável na vinha do Mestre;

nas terras devastada pela violência dos senhores, com seus capatazes, grileiros e jagunços,

pôs-se decididamente ao lado de posseiros, migrantes e pequenos produtores,

e como na palma da mão, possuía o mapa das comunidades ribeirinhas,

sem medo das ameaças, armadilhas, artimanhas e armas dos fortes e poderosos.

P O E T A

Da Catalunha trouxe também a sensibilidade artística, com acentuada veia poética,

olhar estético para as águas e os peixes, as estrelas, as flores e os frutos da Amazônia,

mas também para as dores e sofrimentos dos povos que ali viviam e trabalhavam,

nutrindo sonhos, lutas e esperanças na construção de uma “terra sem males”.

Poeta da biodiversidade, de todos os povos e raças, das múltiplas e variadas culturas,

interprete misterioso do divino e do humano, da terra e do céu, da selva e da cidade,

formado que era na escola do silêncio e da escuta, do cotidiano e da Palavra,

impregnado na sabedoria e no segredo de uma espiritualidade multicultural,

aberta e transparente aos caminhos e valores de cada pessoa e suas descobertas.

Pedro: pastor, profeta e poeta

Trocando o velho continente pelas terras novas e viçosas das Américas,

supera a “globalização da indiferença”, como alerta o Papa Francisco,

pela cultura da acolhida, do encontro, do diálogo e da solidariedade,

deixando para traz qualquer tipo de preconceito, xenofobia ou discriminação;

mestre e aluno, aluno e mestre – pronto sempre ao intercâmbio de saberes,

aprendizado livre e recíproco que a todos e todas enriquece.

Através do outro, pavimenta o caminho para o Totalmente Outro,

através do diferente, descortina o horizonte para o Transcendente.

Ao devolvermos o corpo do profeta Pedro à Terra-mãe

meditação íntima e sofrida de Marcelo Barros

O salmo 139 diz:

“Não te eram ocultos os meus ossos,

Quando, em segredo, eu estava sendo formado,

E o meu corpo era tecido nas profundezas da terra (verso 15).

Essas palavras refletem a convicção antiga do povo bíblico de que o ser humano era concebido no útero materno, depois era misteriosamente assimilado pela terra que lhe assegurava os ossos e devolvido ao útero materno quando o ventre começava a crescer.

Apesar de que esta crença nos pareça mítica e distante, contém esta intuição que a ciência contemporânea descobriu que nossos ossos contêm elementos químicos que estão na terra e em outros planetas.

As espiritualidades indígenas, de tal forma, retomam esta visão que afirmam que, ao sepultarmos nossos entes queridos, nós os plantamos na mãe Terra. E Pedro quis ser enterrado no cemitério indígena dos karajá às margens do Araguaia, debaixo de um imenso pequizeiro e diante de uma grande cruz de madeira, que nos traz o martírio de muitos povos indígenas, para os quais a Cruz trazida pelos conquistadores foi instrumento de morte, violência e genocídio cultural e religioso.

Pedro, querido irmão e mestre, não sei se conseguiria estar aí presente com os irmãos que plantam seu corpo. De todo modo, mesmo de longe, te planto para sempre em minha vida. E te ofereço não apenas simbolicamente minha pele, meus pés, meu pensamento e minha voz.

Os dias que me restam viver quero consagrá-los a continuar a missão que nos é comum. Agora que estás na plenitude do reino, junto com meus outros mestres e mestras do coração, saibas que aprendi de ti a espiritualidade dos mártires da caminhada e quero ser um deles.

Aprendi de ti a espiritualidade ecumênica e prometo viver cada palavra de fé nela mergulhado. E continuarei sim a lutar por uma Igreja profética do amor que não permite hierarquias sagradas e diferenças de consagração entre irmãos e irmãs batizados.

Obrigado por me ensinar isso e seguimos juntos na comunhão dos santos e santas. Dá meu abraço a Tomás, a Dom Helder, Dom José Maria, Dom Fragoso, Mãe Stella, as irmãs Agostinha e Maria Letícia e tantos outros da nossa família ampliada que estão juntos contigo.

Quem é Pedro Casaldáliga?

Pe. Nelito Dornelas

Aos 8 de agosto de 2020, na festa de São Domingos de Gusmão, fundador da ordem dos dominicanos o mundo se despede do bispo emérito de São Félix do Araguaia - MT, Dom Pedro Casaldáliga, o bispo místico, poeta e profeta que revolucionou a Igreja e a sociedade por causa do Evangelho. Ele mesmo o afirma: Jesus sem a Causa de Jesus, que é o Reino, seria um passado a mais. O mal não será perder o trem da História, mas sim, perder o Deus vivo que viaja nesta terra.

Pedro escreveu 59 livros na área da mística, espiritualidade, poesia, teologia e pastoral. Produziu 22 obras de arte na música, vídeos e filmes. Foi condecorado e homenageado com 30 prêmios nacionais e internacionais e ameaçado de morte várias vezes.

Ele é um missionário da Congregação dos Filhos do Imaculado Coração de Maria, os Claretianos, fundada por Antônio Maria Claret (1807 - 1870), bispo de Santiago de Cuba e canonizado por Pio XII, em 1950. Por causa de suas posições de reformas na Igreja e na sociedade e seu compromisso com a causa dos negros sofreu várias ameaças de morte e foi vítima de quatro atentados.

Para saber quem é Pedro é só ler seu livro testemunho: O credo que deu sentido à minha vida, escrito na maturidade dos seus 40 anos e por ocasião de sua chegada ao Brasil, na bacia do Araguaia, Oeste de Mato Grosso, em julho de 1968. Outra obra testemunhal que é uma radiografia de sua alma é Espiritualidade da Libertação, publicada em 1992, com 290 páginas, em parceria com José Maria Vigil, traduzida e editada em toda América latina, Caribe, Europa, Estados Unidos, África e Ásia.

Pedro nasceu em 1928, em Balsareny, região da Catalúnia, Espanha, no seio de uma família católica. Conheceu uma violenta repressão, cujo tio Luis, que era padre, foi martirizado, juntamente com mais dois companheiros, em 1939. Este episódio está na origem de sua vocação.

Por ser dotado de dons artísticos para a poesia, a crônica, o cinema, o teatro e a música, ao ser ordenado padre claretiano, Pedro assume várias missões compatíveis com seus dons. Tornou-se educador, mestre de noviços, redator de revista, liderança dos Cursilhos de Cristandade e missionário junto aos operários, migrantes e refugiados. Ao ser enviado para Guiné Bissau, para um trabalho evangelizador e humanitário, descobriu as entranhas do Terceiro Mundo e se colocou à disposição para seguir em missão para o Brasil.

Pedro se estabelece numa comunidade missionária na região do Araguaia, em julho de 1968. Aos 13 de março de 1970, o Papa Paulo VI cria a Prelazia de São Félix do Araguaia, numa área de 150 mil km2, nomeando Pedro Casaldáliga como seu primeiro bispo prelado. Aos 23 de outubro de 1971, Pedro foi ordenado bispo ao ar livre, às margens do rio Araguaia, por Dom Fernando Gomes dos Santos, arcebispo de Goiânia e Dom Tomás Balduíno, então bispo de Conceição do Araguaia e assistida por outros bispos da região.

Pedro, atuando como missionário naquela região, encontrou em São Félix do Araguaia um pequeno povoado com apenas 600 habitantes. Em todo território da Prelazia não havia nenhuma escola, um único hospital para atender aos indígenas, com apenas um médico. Faltava na região toda espécie de infraestrutura: estradas, saneamento, energia elétrica, água tratada, telefone. Faltavam assistências básicas à população e havia fome crônica, doenças endêmicas, exploração de mão de obra, trabalho escravo, violência, altos índices de mortalidade infantil, analfabetismo generalizado e prostituição. Nessa região existia um latifúndio com 700 mil hectares, maior do que o Distrito Federal.

Coerente com a opção assumida e profundamente comovido com a miséria e marginalização, Pedro decidiu, como bispo, não utilizar nem mitra, nem báculo, nem anel. No convite da ordenação episcopal expôs claramente sua opção. Tua mitra será um chapéu de palha sertanejo, o sol e a lua, a chuva e o sereno, o pisar dos pobres com quem caminhas e o pisar glorioso de Cristo, o Senhor. Teu báculo será a verdade do Evangelho e a confiança do teu povo em ti. Teu anel será a fidelidade à Nova Aliança do Deus Libertador e a fidelidade ao povo desta terra. Não terás outros escudos que a força da Esperança e a liberdade dos filhos de Deus. Não usar outras luvas que o serviço do amor.

O trabalho pastoral de Pedro e de sua equipe concentrou-se nas seguintes áreas: catequese, celebrações da fé, educação, fundando um colégio público em São Félix, cuidados com a saúde, sobretudo com a prevenção de doenças, reivindicações de direitos, defesa dos direitos humanos e da natureza, luta pela terra e a causa indígena. Aos 12 de agosto, no trigésimo sétimo aniversário do martírio da líder camponesa Margarida Maria Alves, Pedro Casaldáliga é sepultado às margens do rio Araguaia no cemitério dos índios Karajá, em São Félix do Araguaia. Que seu corpo descanse em paz nestas terras sagradas!

Dom Pedro Casaldaliga

Pe. Waldemir Santana

A história humana é crepuscular luzes e sombra s se misturam. Quando mais sombra? Quando mais luzes? Dificilmente o sabemos quando estamos imersos no cotidiano. De vez em quando, deparamo-nos com pessoas irradiantes que nos nutrem de esperanças. E isso percebemos mais claramente quando elas se apagam. Ficam atrás delas a esteira luminosa que ainda continua e a ausência do fogo gerador.

Aconteceu-nos neste sábado dia 08, vivenciar tal experiência. Dom Pedro Casaldáliga encerrou sua rica caminhada terrestre entre nós, deixando pegadas de luz para muito tempo. Exemplo de pastor, saudades somam-se em torno dele. Mas, dolorosa adversativa, o silencio do corpo nos dói porque os sentidos necessitam de reforço. E este já não existe. Ficamos mais pobres. A Igreja do Brasil e da América Latina vai se privando de geração maravilhosa de luminares. Só nos resta a esperança de que outra nasça, mesmo que nos custa descobri-la.

Dom Pedro, profeta e poeta, traduziu em muitas palavras sua postura fundamental de vida. Com os anos, os adjetivos e advérbios se esfolham. Fica a árvore dos verbos e substantivos na solidez básica. As aparências e vaidades se desfazem para permanecer a substância resistente da vida.

Dom Pedro, um arguto pastor, de percepção profunda e perspicaz, foi a encarnação viva de Jesus na pessoa dos pobres, dos excluídos. Sempre acreditou que a chama que a teologia da libertação acendeu ninguém conseguirá apagar. Quando lhe perguntaram o que sobrou da teologia da libertação, ele respondeu com muita sabedoria: ¨sobrou Deus e os pobres¨. Homem de fé e de compromisso com a verdadeira e única causa importante: criar os espaços de Deus, presente neste mundo na pessoa de Jesus Cristo, nos pequenos, nos excluídos, nos pobres. Primou todo seu pastoreio comprometido com a causa da libertação. E isso, ele o fez com coragem, amor e dedicação. Aqui está um exemplo de vida para as novas gerações de bispos.

Como profeta, ele conseguiu enfrentar todos os seus algozes com a força revolucionária do Evangelho. Ele semeou de luz os caminhos escuros de São Felix do Araguaia. Sempre preocupado com a situação dos pobres, não se cansava, mesmo diante de incompreensões e acusações injustas, de bradar que uma Igreja que abandona os pobres não tem futuro.

Assumiu como linha de vida o perfil traçada pela Epístola aos Filipenses, ao referir-se ao Verbo Encarnado (Fl. 2, 5-11). Teria tudo caminhar entre nós no esplendor da divindade, na leveza soberana daquele por que , em quem e para quem tudo foi criado. E Paulo nos diz que se ¨esvaziou¨ para assumir a condição de escravo. Não se prevaleceu de nada e viveu o cotidiano sem privilégio, sem milagres para si, sem nenhuma imposição, evidentemente, longe de toda arrogância. Olhando para Jesus Cristo, assim vivendo entre nós, Pedro Casaldáliga o seguiu no despojamento radical de todas as suas glórias para simplesmente viver próximo dos pobres, miseráveis, sofridos e marginalizados.

Que diferença de tantos bispos que tropeçam nos tapetes das vaidades, dos trajes elegantes, das convenções mundanas, da empáfia do poder! Andava ele pobremente vestido, metido na humildade do falar, do olhar, do conversar com as pessoas. Cada um que se aproximava dele era infinitamente grande e ele o infinitamente pequeno. E quanto menor fosse na vida dos valores da sociedade de consumo e da aparência, maior era para ele. A grandeza dos pequenos o comovia. A pequenez dos grandes o fazia sofrer. Muito parecido com Jesus.

O legado de Dom Pedro Casaldáliga é a coerência de vida, de desapego e sentido humanitário iluminado pela fé. Esse luminoso seguidor de Jesus, recebeu o título de ¨Doutor Honoris Causa¨da Unicamp. Mas o melhor título, ele recebeu dos pobres, dos iletrados que é o ¨Doutor Pauperis Causa¨. Que o exemplo de Pedro Casaldáliga fique em nossa memória e nos anime a seuir o mestre maior de todos nós, Jesus Cristo.

Pedro Casaldáliga, ¨Pater Pauperum Vocatus¨

Eu Vi Pedro Casaldáliga no Céu

Mozart Noronha

No dia oito de agosto de 2020 eu tive um sonho. Estava na fronteira do céu e havia um imenso painel mostrando tudo o que lá estava acontecendo. Eu vi o céu todo enfeitado com centenas de flores silvestres. Os anjos corriam pelo campo e brincavam com diversos animais e acariciavam as cobras que espreitavam os acontecimentos enroladas nos galhos das árvores. Parecia-me a Cidade Santa do Apocalipse.

Do centro da Praça Celestial corria o Rio da Vida e o Espírito de Deus surfava sobre as águas. Eu vi Jesus Cristo ao lado de Maria. Ela representava todas as mulheres do mundo em todos os tempos. Estava vestida de azul celeste. Jesus vestia um manto cor de rosa aberto no peito onde podiam ser vistas as marcas da tortura. Com as mãos estendidas ele mostrava os sinais dos cravos.

Eu vi no Rio que Deus transformara em altar se formando um arco-íris com todas as cores. Eu vi que no céu não havia bandeira nem hino nacional. Eu vi o Apóstolo Pedro convidando todos os apóstolos e anunciando que a festa ia começar. Com eles estavam as mulheres apóstolas que foram testemunhas da ressurreição.

Estavam todos paramentados com vestes litúrgicas simples feitas com pano de estopa e usavam estolas vermelhas para uma grande celebração em memória de todas as pessoas que sofreram o martírio. Foram lembradas as pessoas mártires do Corona vírus. Nesse momento Deus chorou. Eu vi os padres Josimo, Henrique, João Bosco Penido Burnier, Frei Tito de Alencar, Margarida Maria Alves, Irmã Dorothy Mae Stang, Dandara e Zumbi dos Palmares, Dom Oscar Romero e todas as pessoas que perderam a vida pela causa da justiça e estão lembradas nas bem-aventuranças de Jesus.

Eu vi que estavam também presentes Dom Hélder Câmara, Dom Adriano Hipólito, Dom Tomás Balduíno, Dom Valdir Calheiros Novaes e muitos outros padres e leigos. Como no céu não tem religião eu vi entre os presentes os pastores luteranos Dietrich Bonhoeffer e Breno Schumann, o pastor batista Martin Luther King e o artífice da não violência ativa Mahatma Gandhi ao lado de Dom Desmond Tutu,, da Igreja Anglicana.

Eu vi todos os humanistas, mesmo os que disseram não acreditar em Deus, mas dedicaram todos os seus talentos em defesa de um mundo mais humano e mais justo, sem exploradores e sem explorados.

Eu vi e ouvi a voz do silêncio durante um minuto.

A grande celebração teve início com Beethoven acompanhando um grande coral que tocava a Nona Sinfonia. Eu vi um interlúdio com Johann Sebastian Bach tocando Jesus Alegria dos Desejos Humanos, depois que Deus impetrou a bênção para todos os seres humanos e todos os animais, Hendel regeu um coral que cantou em todas as línguas o seu Aleluia.

Eu vi a concretização do vaticínio do Profeta Isaías: “O lobo e o cordeiro pastarão juntos.

Eu vi logo depois uma grande confraternização com uma roda de samba. Eu vi Pixinguinha, Noel Rosa, Cartola e Beth Carvalho. Eu vi cantando Lupicínio Rodrigues. Eu vi Adoniran Barbosa entoando Iracema, ao lado de Elis Regina. Eu vi Luiz Gonzaga tocando um xaxado com a sua sanfona branca, abraçado com Dominguinhos.

Eu vi Deus chamar Dom Pedro Casaldáliga para subir em um púlpito rubro em forma de cruz para fazer uma análise da atual conjuntura brasileira. Enquanto Dom Pedro falava, com o seu chapéu de palha, e por Deus sendo reconhecido Santo, eu vi mulheres indígenas que distribuíam anéis de tucum.

Dom Pedro Casaldáliga, quando fores orar ao lado de Nosso Senhor Jesus Cristo, não esqueças deste teu admirador que acaba de despertar do seu sonho para continuar vivo no “vale da sombra da morte.” Eu não quero te dizer adeus, mas à Deus!

Mozart Noronha, pastor luterano (IECLB), orientador espiritual da Creche Bom Samaritano que atende famílias das favelas do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho, Zona Sul do Rio de Janeiro.

A Chegada de Casaldáliga no Céu

Jetro Cabano Fagundes

Farinheiro do Marajó e de Ananin

Dom Pedro Presente!

Depois de ter combatido

Bom Combate Pastoral

Dom Pedro foi recebido

No Reino Celestial

Numa mística cantada

Cantoria de Chegada

Tipo Hino Eclesial

De Doroty Stang linda

Lá no Portal Eternal

Recebeu as boas vindas

Numa alegria total

De Antônio Conselheiro

Canudense Guerrilheiro

Teve abraço especial

No Portão do Paraíso

Casaldáliga recebeu

O mais lindo dos sorrisos

Que pela terra viveu

De Evaristo da candura

Que peitou a ditadura

Em um livro que escreveu

Guerreiros dos mais valentes

Tavam na recepção

Do passado, do presente

Que por peitarem dragão

Findaram sendo matados

Como Oscar Romero amado

De vermelho coração

Um dos Santos mais valentes

Foi receber nosso irmão

Hélder Câmara sorridente

Defensor de cidadão

Padre Bruno valoroso

Um Cabano corajoso

É claro que faltou não

Por ali tantos posseiros

Que tombaram neste chão

Acolheram este guerreiro

Que mais afrontou patrão

Presente os determinados

Da "Trinca de Advogados"

Paulo, Gabriel, João

Na acolhida do guerreiro

Lá estava quem tombou

Como Líder Seringueiro

Pela causa que abraçou

Chico Mendes Nativista

Pelos Ambientalistas

E a Mãe Terra que amou

No acolher do Araguaíno

Ele nunca iria faltar

Lendário Padre Josimo

Morto por denunciar

Com seus chinelos surrados

Este chão tão concentrado

Que patrão ama grilar

Guerrilheiros do Araguaia

Que aqui na região

Tombaram peitando a laia

Dos golpistas da nação

Acolheram o Bispo ousado

E sentindo-se vingados

Pela fé, libertação

Quando viu o Senhor Cristo

Dom Pedro, na ocasião

Disse: por teu Santo Escrito

Eu cumpri tua Missão

Fiz o que tu lá fizeste

Combati o mal, a peste

Até na religião

Senhor, na vida terrena

Só busquei te imitar

Naquela vivência plena

De nunca me preocupar

Em ser latifundiário

Um igrejeiro sanguinário

Que a pobres manda matar

E como bom de pelejas

Eu testifiquei então

Que é lá dentro das Igrejas

Que Teus inimigos tão

Tanto que nos últimos dias

Idolatram um tal messias

Certo vulgo Capitão

Pedro alçou voo com seu anel de tucum.

Ricardo Rezende Figueira

Hoje é sábado, 8 de agosto de 2020.

Pedro, como gostava de ser chamado, alçou vôo. Foi ao encontro do Amado. Teve sua Páscoa. Quantas lembranças.

Conheci-o provavelmente em 1977. Tinha chegado ao Araguaia com meus 24 anos e muita esperança. Fui trabalhar em Conceição do Araguaia. O Rio Araguaia levava até São Félix do Araguaia, 750 km rio acima. Ali morava um bispo santo e corajoso. O Pedro. O Casaldáliga. Magro, gestos contundentes e carinhosos e olhar firme, sandálias de borracha.

Pedro poeta, jornalista, escritor, padre, bispo. Quando sagrado bispo preparou um documento onde colocava contra a parede a ditadura e seus projetos. Denunciou as mortes, a concentração da terra e o trabalho escravo em um documento contundente e se tornou uma referência ainda hoje nos estudos sobre o campo brasileiro e a escravidão contemporânea. Amaldiçoou o latifúndio e foi um dedo na ferida provocada pelas autoridades civis, militares e eclesiásticas.

Catalão, nunca retornou ao seu país de origem. Não entrava em avião e, decidiu, a Prelazia não possuía carro. Os deslocamentos pastorais eram realizados de bicicleta, a cavalo, de ônibus. Mas João Paulo II, em 1980, cobrou sua visita. A visita ‘ad limina’ deve ser feita por todos bispos de cinco em cinco anos a Roma. Finalmente Pedro saiu do Brasil e tomou um avião e foi ver seu irmão mais velho, o bispo de Roma.

A partir daí começou a empreender visitas aos irmãos da querida America Latina. Foi a América Central algumas vezes. Sua presença sempre foi questionadora. Achava que o papado devia ser simplificado e despojado. Escreveu cartas ao Papa. Mesmo os que divergiam dele de alguma forma, admiravam-no pela sinceridade e coerência.

Pedro, com cada um, era uma atenção. E era firme. Não cedia se estava em questão o pobre, o sofredor, o posseiro ou o peão. Era abertamente parcial em favor do mais fraco e fragilizado.

Pedro era uma referência para os que se dedicavam a um projeto de igreja encarnada, voltada para os esquecidos e perseguidos. E era um tempo de grandes bispos na fidelidade ao evangelho no Brasil: dom Helder Câmara, dom Waldir Calheiros, dom Tomás, dom Luis Fernando, dom Luciano Mendes, dom Aloisio e Ivo Lourcheider, dom Adriano Hipólito... Eram muitos e eram perseguidos. E com alguns nos encontrávamos com freqüência nas reuniões da Comissão Pastoral da Terra, como dom Tomás Balduino, dom Celso Pereira, dom Moacyr Grechi e dom Pedro. Diversos responderam processo político militar na ditadura, como dom Estevão Cardoso de Avelar. Eram muitos, mas Pedro se destacava na franqueza, na coragem e na austeridade pessoal.

Tive a benção de estar com Pedro em muitos encontros em diversas partes. Em reuniões, celebrações, assembléias e manifestações públicas em Goiânia, em Miracema do Norte, em Porto Nacional, em Belém, em São Geraldo do Araguaia, em Conceição do Araguaia e em São Felix do Araguaia.

Estive em sua casa algumas vezes. A primeira, em 1979, quando fui pedir para que me auxiliasse a preparar o texto de minha ordenação sacerdotal. Viajamos juntos algumas vezes e me admirava de sua capacidade de escrever poemas no ônibus; de escrever livros e textos nas circunstâncias mais adversas – no calor, em local de movimentação de muita gente e barulho .

Grande orador, seduzia-nos pelo exemplo e pela palavra.

Diversas vezes ele nos apoiou. Especialmente quando matavam camponeses como fizeram com o Gringo. Ele, solidário, se deslocava para Conceição do Araguaia ou Itaipava. Estava conosco.

Foi ao julgamento dos padres franceses e posseiros em Belém. De lá, tomamos o ônibus e fomos para São Geraldo do Araguaia, no Pará. Uma viagem de 700 quilômetros. Trocamos de ônibus em Araguaína, no Tocantins. Entre Araguaína e Xambioá, a Polícia Federal parou o ônibus e, rispidamente, nos obrigou a descer e vasculharam tudo que tínhamos. Estavam atrás de faixas, de cartazes, de panfletos “subversivos”. Sabiam que íamos inaugurar a igreja do Cristo Libertador em São Geraldo.

Em determinado momento, um policial reconheceu dom Pedro e lhe disse meio sem graça: “- Dom Pedro, desculpe. Se coloque no meu lugar.” O bispo se aproximou do policial, colocou as duas mãos sobre os seus ombros, olhou-o com afeto e respondeu: “- Meu filho, você está me pedindo algo difícil: como me colocar em seu lugar?”

Era, de fato, difícil, por ser ditadura, a polícia censurava, invadia e queimava casas, prendia com violência, torturava, servia a um projeto governamental que favorecia a concentração fundiária, a morte de posseiros e indígenas, ao trabalho escravo, à destruição do meio ambiente.

Pedro conheceu a perseguição e a morte esteve sempre próxima dele. Nos seus braços magros e frágeis recebeu o padre João Bosco Penido Burnier. A bala talvez fosse para ele. O policial se equivocou.

O bispo parecia pobre demais, pequeno demais, magro demais, para ser bispo.

Hoje, a igreja ficou mais pobre na palavra profética e na coerência. Pedro partiu na sua Páscoa e que olhe por nós, pelos indígenas, camponeses, posseiros, aflitos, enfermos. Olhe pelo Brasil na sua pandemia e na sua dor.

O anel de Tucum brilhara esta noite de forma mais intensa.

PEDRO CASALDALIGA E A ROMARIA DOS MARTIRES DA CAMINHADA

Luigi Zadra

No ano 1986 participei da primeira romaria dos mártires da caminhada em Ribeirão Cascalheira, na região do Araguaia. Dom Pedro Casaldaliga lançou o convite para todos os cantos do Brasil para os romeiros participarem da inauguração do santuário dos mártires. Eram anos de muita violência e perigo para as lideranças, sobretudo para o povo mais pobre que lutava por terra e direitos.

Muitas pessoas de lugares distantes do brasil nos congregamos em Ribeirão para firmar nossa fé e esperança motivados pelo testemunho dos mártires. A noite anterior da celebração saímos numa grande romaria que varou a madrugada rumo ao santuário dos mártires.

Dom Pedro quis que os padres e bispos presentes vestissem a batina para que o povo pudesse perceber a presença dos pastores no meio do rebanho. Eu não tinha batina e dom Pedro me tinha emprestado uma. La pelas duas da madrugada umas senhoras que caminhavam ao meu lado e se revezavam carregando uma criança de colo me perguntaram se não tinha calor com aquela batina e à minha negativa continuamos caminhando.

Mas pouco depois insistiram de novo na pergunta e aí me dei conta que elas queriam me pedir a batina para embrulhar a criança porque a madrugada estava fria. Sem reclamar tirei a batina que se tornou na hora o agasalho abençoado do neném Era uma coisa sem precedentes, me deixou desarmado e me motivou para pensar durante as horas seguintes sobre o sentido daquele gesto.

Na chegada ao santuário lá pelas seis horas quando o sol já estava si firmando devagar no horizonte, me devolveram a batina que, era de se esperar, estava toda molhada do xixi do menino. Pensei: este é o sentido mais profundo e simples da missão da Igreja, servir para cuidar das necessidades do povo, para cuidar da vida dos pobres.

A batina por tempo demais foi o símbolo do poder dos clérigos, da Igreja, que distancia e separa do povo de Deus. Ao contrário o poder verdadeiro está no serviço da profecia. Tudo, estruturas, recursos, palavras, documentos deve estar a serviço da vida e tudo deve se encharcar das lagrimas, suor e desespero do povo sofrido.

Acredito que aquele menino agora com 34 anos se teve sorte naquelas bandas, nunca soube de ter sido embrulhado, agasalhado na batina de um santo. Mas não importa porque como disse o nosso mestre a esquerda não deve saber o que faz a direita.

Acho que o Pedrinho, como era apelidado por muitos carinhosamente, usou toda sua força moral, seu profetismo para amparar, cobrir, agasalhar as feridas do seu rebanho. Naquela noite eu senti e vivenciei o sentido da missão da igreja povo deu Deus com seus pastores.

Pedro foi mártir também porque derramou muitas lagrimas com sabor de sangue perante os muitos crucificados que cruzaram sua vida, fecunda vida de amor destemido e imenso que nos animou e motivou a todos. Agora tu estas eternamente conosco, companheiro de caminhada na construção do Reino.

𝐓𝐑𝐈𝐁𝐔𝐓𝐎 𝐀 𝐏𝐄𝐃𝐑𝐎 𝐂𝐀𝐒𝐀𝐋𝐃𝐀𝐋𝐈𝐆𝐀: 𝐏𝐑𝐄𝐓𝐎 𝐕𝐄𝐋𝐇𝐎 𝐃𝐎 𝐀𝐑𝐀𝐆𝐔𝐀𝐈𝐀

(𝐔𝐌𝐀 𝐄𝐒𝐏𝐄𝐂𝐈𝐄 𝐃𝐄 𝐁𝐈𝐒𝐏𝐎 𝐄𝐌 𝐄𝐗𝐓𝐈𝐍ÇÃO)

𝒫ℯ. 𝒢ℯℊℯ

Foste embora, Pedro valente...

Por que partiste de repente?

Oh, Casaldáliga diferente:

bispo, mártir e profeta ardente

Por que cantaste pra subir, Preto Velho do Araguaia?

Baixe outro vez no terreiro da gente

Missa dos Quilombos, presente!

Faça o teu povo contente

Oh, bispo tão diferente

Pedro com jeito da gente

Preto velho do Araguaia

Fique,

não parta,

não deixe,

não saia

Caminhe sempre com a gente

Tuas sandálias vão à frente

Poeta do continente

Punho cerrado insurgente

Anel de tucum potente

Pedro velho do Araguaia!

Onde estão os Pedros Casaldáligas?

Ana Helena Tavares*

A pergunta que dá título a esse texto é uma indagação, quase um clamor,

que passei a ouvir desde que, muito atrevidamente,

resolvi escrever uma biografia do eterno bispo do Araguaia,

falecido no último sábado, dia 08 de agosto, aos 92 anos.

Como respondê-la é algo que me angustia.

Acredito que as pessoas são profundamente influenciadas pelo contexto de suas épocas. Nesse sentido, para ousarmos dar uma resposta, é preciso pontuar antes de tudo que a formação de Pedro, jeito informal como o bispo gostava de ser chamado, é fruto de três grandes acontecimentos que o moldaram como ser humano e pavimentaram sua fé.

O primeiro foi a guerra civil espanhola, que devastava sua terra natal durante sua infância. As cortinas da casa do menino Pere, forma como se grafa seu nome em catalão, estavam sempre cerradas. E ele era uma criança curiosa, de olhos arregalados, que queria sempre abrir aquelas cortinas. Para ele, a guerra foi, em suas palavras, uma “escola superior de jornalismo”, pois ali ele aprendeu a perguntar, mas em muitos momentos as conversas eram só para os adultos e ele era obrigado a se calar. Rebelde desde sempre, chegou a participar de uma rádio clandestina durante a guerra.

Outro acontecimento que o influenciou foi a revolução cubana. Em 1967, um ano antes de vir para o Brasil, Pedro participou, em Roma, do Capítulo Geral dos Claretianos, sua congregação. Naquele ano, Ernesto Che Guevara era assassinado. Já conhecido entre seus pares pela luta por um mundo mais justo, Pedro foi apelidado de Che pelos participantes daquele encontro e a cela onde ele dormia foi chamada de Sierra Maestra.

Temos, então, que Pedro foi marcado por uma guerra e uma revolução. Mas não só. Um evento religioso de proporções mundiais, o Concílio Vaticano II, soprou ventos que sacudiram profundamente aquele jovem missionário. O Papa João XXIII, na encíclica Mater e Magistra, publicada meses antes da abertura do concílio, inspirou-se em Êxodo 3 para lançar o método “ver, julgar, agir”. “Eu vi o sofrimento do meu povo, ouvi os seus clamores, desci para libertá-lo”. É a base da Teologia da Libertação e foi o que Pedro praticou ao longo da vida, seja na Espanha, na África ou no Brasil. E, como ele deixou registrado em um de seus poemas, fez isso “até as últimas consequências”.

Voltamos, então, à pergunta do título, reformulando-a. Quem são hoje as pessoas que vão até as últimas consequências na luta pela libertação do ser humano? Onde estão? Bem, eu posso afirmar que conheço muitas. E grande parte delas conheci por causa do Pedro. É gente que semeia esperança. Gente de todas as áreas. E muitos, muitos jovens.

É bem verdade que a maioria dos representantes que temos hoje na política institucional e partidária nos faz crer que essas pessoas não existem. O mesmo acontece se olharmos os líderes religiosos. No entanto, não comungo com aqueles que acreditam estar tudo perdido. Assim como o Vaticano II trouxe bons ventos para os jovens religiosos dos anos 60, o papado de Francisco, muito celebrado por Pedro, e eventos como o Sínodo da Amazônia, um bálsamo para os que sonham com o mundo que o bispo sonhou, podem exercer papel semelhante.

Não há em vista nenhuma revolução como a cubana, mas tenho certeza de que nos morros cariocas há alguns moleques que vivem numa casa de portas, janelas e cortinas sempre fechadas com medo da guerra civil permanente. Quem sabe um desses não vai ter vontade de abrir tudo e de viver numa casa sem muros. E quem sabe não será capaz de entender que a casa é o mundo – a Casa Comum. E quem sabe não vai querer que nessa casa tenha pão para todos.

Nesse moleque vive Pedro Casaldáliga. Como vive no índio que perdeu o pai por Covid. Como vive no entregador de aplicativo que é destratado por morador de condomínio de luxo. Pedro vive naqueles que abraçam as causas que ele abraçou, mas, principalmente, vive em todos aqueles que a sociedade gostaria que morressem.

*Ana Helena Tavares é jornalista, conselheira da ABI. Autora do livro “Um bispo contra todas as cercas – A vida e as causa de Pedro Casaldáliga” (Vozes, 2019).

Para Pedro, o ultraleve de Deus, do amigo Paulo

Paulo Suess

Profeta, posseiro

do tempo que aras

com pena de poeta

e asas de ultraleve.

Missionário místico,

maracá do Reino,

mártir de raspão,

testemunha sempre.

Peregrino das Américas,

veleiro em alto-mar

onde paz e tempestade

se abraçam no perdão.

Sinal de contradição,

sino de esperança

desde o mundo indígena

badalando indignação.

Irmão dos pobres,

raiz com asa

cata-vento de Deus

romeiro sem casa.

Trigo perdido

na margem do Araguaia

utopia nas encruzilhadas

da memória do povo.

Apareceste entre os humanos

em tempo de vacas magras,

lutaste para virar o mundo,

ao avesso, para todos.

Trocaste a carreira pelo Caminho,

a correria pela caminhada,

o grito pela canção -

Quixote e Macunaíma.

Lutaste por terra para viver,

sonhaste vinho para todos

e pão - como tua vida -

consagrado, repartido.

Das pedras fizeste

caminhos e pontes,

das perdas e dores

novos horizontes.

Pedro, divina energia

pedra preciosa

dom de Deus,

presente, Eucaristia.

PEDRO PEDRA VIVA/E

Chico Machado

“São Félix não seria a mesma, não fosse a presença deste homem, e o tanto que fez por estas bandas de cá do Mato Grosso. Na verdade, tais pessoas são aquelas, que sempre se incomodaram com o jeito profético de Pedro ser, anunciando, mas denunciando as forças da morte que, permanentemente, atuaram por aqui. Com certeza, este não é o pensamento de peões, indígenas, posseiros e ribeirinhos, povos da floresta, que tem em Pedro um defensor intransigente de suas causas.

Pedro é um homem forte, apesar da sua estatura franzina. Um baobá fincado no deserto. Sua tenacidade é manifesta no seu próprio modo de ser. Também se manifesta nos seus escritos, em suas poesias. A sua fidelidade às suas causas passam também pela sua espiritualidade. Pedro é um homem de oração. Um grande místico, a exemplo do escritor, sacerdote e teólogo nicaraguense, Ernesto Cardenal e do monge trapista Thomas Merton. Um homem de Deus, profético como foi São Oscar Romero de América.

Impressionou-me muito o jeito de Pedro rezar. Nas primeiras horas do dia, lá estava ele na capela, nos fundos de sua casa, numa atitude contemplativa. Mesmo se dormisse tarde, era o primeiro que levantava para estar em oração. Eu, um jovem sacerdote, ficava admirado de ver tanta intimidade na sua relação com Deus. Também, para enfrentar os embates do cotidiano, tinha que ter consigo uma força superior, extra. E eu, pensando comigo, será que um dia chegarei ao menos próximo deste nível? Muita pretensão esta minha, eu sei.

Como fui vitimado pelo mosquito da malária, nos meus seis primeiros meses de vida na prelazia, tive que, deixar temporariamente as “desobrigas”, para tratar desta moléstia terrível. Desta forma, passei uma temporada em sua casa. Antes, passei primeiro pela “decepção” ao lhe comunicar que estava com malária. Simplesmente ele me disse: agora você foi batizado em Mato Grosso! Ele falava de experiência própria, pois teve uma dezena delas. Naquela época era muito comum ser premiado pelo mosquitinho.

O estágio que fiz em sua casa valeu como um mestrado nas coisas da vida desta igreja. Morar na casa de Pedro foi um privilégio, mas também um grande desafio. Se demorasse um pouquinho mais de chegar para almoçar, corria-se o risco de ficar sem comida. Isso porque, quem chegasse por ali, sabia que tinha um prato para saciar a sua fome. O sertanejo sabia disso, assim como os indígenas. Sua casa vivia permanentemente aberta e, quem chegava, adentrava por ali para ver o padre Pedro, como todos o chamavam, mesmo depois de ordenado bispo.

Foi ali que presenciei uma cena que marcou a minha vida para sempre. Num dado dia, um senhor do sertão, veio ter com ele. Ficaram numa conversa por horas, em sua capela. Depois, Pedro nos contou o teor daquela conversa ao pé de orelha. Aquele senhor era um pistoleiro que fora contrato para tirar a vida de Pedro. Feito a emboscada e, estando com ele na mira, desistiu quando viu a figura franzina daquele bispo a sua frente. Deixou a arma no mesmo lugar e embrenhou-se fugitivamente na floresta, posto que não poderia mais aparecer, uma vez que seria transformado em queima de arquivo. Estava ali naquele dia, para contar tal feito, pedindo que o bispo o batizasse, já que não o era.

Pedro e sua fidelidade extrema. Nunca vi alguém tão fiel às suas causas e convicções. Um homem pobre com os pobres. Lembro-me da dificuldade que foi convencê-lo da necessidade de se ter uma geladeira em casa. A tia Irmã Irene Franciscine que o diga. Televisão então, nem pensar. Pedro, um homem das palavras fortes. Ultimamente, vinha insistindo sempre nestas quatro palavras que, a seu ver, se intercalam entre si. Fé, esperança, teimosia e utopia. Vive todas elas, mas enfatiza a teimosia. No dizer dele, devemos ser sempre teimosos, quanto a vivencia de nossa fé, no seguimento da testemunha fiel, Jesus de Nazaré. Pedro, pedra viva! Pedro vive em cada um e cada uma que o admira e o tem como modelo de ser humano. Volta logo, Pedro!”

Testemunho Profético

Frei Betto

DOM PEDRO CASALDÁLIGA (1928-2020)

Dom Pedro celebrava o Dia de Finados no mais pobre cemitério de São Félix do Araguaia (MT). Ali jazem os restos mortais de indígenas e trabalhadores atraídos à Amazônia pelo sonho de uma vida melhor. Muitos deles, além de verem suas expectativas frustradas, foram abatidos a bala.

O bispo manifestou ao povo e aos agentes pastorais da prelazia: “Escutem com ouvidos atentos. Vou falar algo muito sério. É aqui que eu quero ser enterrado.”

Para descansar / eu quero só esta cruz de pau / como chuva e sol; / estes sete palmos e a Ressurreição! (Poema “Cemitério do Sertão”, de Dom Pedro)

Atacado há anos pelo mal de Parkinson, ao qual se referia como “Irmão Parkinson”, Pedro, aos 92 anos, sofreu uma piora em seu estado de saúde na primeira semana de agosto. Os recursos em São Félix são precários, e a indigência é agravada pela pandemia do novo coronavírus. A congregação claretiana, à qual Pedro integrava, decidiu transferi-lo para Batatais (SP), onde seria melhor atendido. No sábado, 8 de agosto – festa de São Domingos, espanhol como Pedro – ele transvivenciou pouco depois de 9h da manhã. Seus confrades cumpriram o desejo dele de repousar no cemitério Karajá.

Pedro chegou ao Brasil, como missionário, em 1968, em plena ditadura militar. Veio implantar o Cursilho de Cristandade. Porém, ao se deparar com a exploração dos peões nas fazendas da Amazônia, fez uma radical opção pelos pobres. Trabalhadores desempregados e sem escolaridade se afundavam nas matas em busca de melhores condições de vida, atraídos pela expansão do latifúndio na região amazônica. Literalmente arrebanhados nas cidades, caíam na arapuca do trabalho escravo. Não tinham alternativas senão adquirir provimentos e roupas nos armazéns da fazenda, a preços exorbitantes que os prendiam nas malhas de dívidas impagáveis. Se tentavam fugir, eram perseguidos pelos capatazes, assassinados ou levados de volta, chicoteados, e muitas vezes mutilados, com uma das orelhas cortada.

Pedro nomeado bispo

São Félix é um município amazônico do Mato Grosso, situado em frente à Ilha do Bananal, numa área de 36.643 km2. Na década de 1970, a ditadura militar (1964-1985) ampliou a ferro e fogo as fronteiras agropecuárias do Brasil, devastando parte da Amazônia e atraindo empresas latifundiárias empenhadas em derrubar árvores para abrir pastos ao rebanho bovino.

Casaldáliga, pastor de um povo sem rumo e ameaçado pelo trabalho escravo, tomou-lhe a defesa e entrou em choque com grandes fazendeiros; empresas agropecuárias, mineradoras e madeireiras; políticos que, em troca de apoio financeiro e votos, acobertavam a degradação do meio ambiente e legalizavam a dilatação fundiária sem exigir respeito às leis trabalhistas.

Em 13 de maio de 1969, o Papa Paulo VI criou a Prelazia de São Félix do Araguaia. A administração foi confiada à congregação dos claretianos e, de 1970 a 1971, padre Pedro Casaldáliga foi o primeiro administrador apostólico da nova prelazia. Logo em seguida, nomeado bispo. Adotou como princípios que haveriam de nortear literalmente sua atividade pastoral: “Nada possuir, nada carregar, nada pedir, nada calar e, sobretudo, nada matar”. No dedo, como insígnia episcopal, um anel de tucum, que se tornou símbolo da espiritualidade dos adeptos da Teologia da Libertação.

Na Carta Pastoral de 1971, “Uma Igreja da Amazônia em Conflito com o Latifúndio e a Marginalização Social”, Pedro posicionou, ao lado dos mais pobres, a recém-criada prelazia: “Nós – bispo, padres, irmãs, leigos engajados – estamos aqui, entre o Araguaia e o Xingu, neste mundo, real e concreto, marginalizado e acusador, que acabo de apresentar sumariamente. Ou possibilitamos a encarnação salvadora de Cristo neste meio, ao qual fomos enviados, ou negamos nossa Fé, nos envergonhamos do Evangelho e traímos os direitos e a esperança agônica de um povo que é também povo de Deus: os sertanejos, os posseiros, os peões, este pedaço brasileiro da Amazônia. Porque estamos aqui, aqui devemos comprometer-nos. Claramente. Até o fim”.

Poeta e profeta

Cinco vezes réu em processos de expulsão do Brasil, Casaldáliga morava em um casebre simples, sem outro esquema de segurança senão o que lhe asseguram três pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Calçando apenas sandálias de dedo e uma roupa tão vulgar como a dos peões que circulavam pela cidade, Casaldáliga ampliou sua irradiação apostólica através de intensa atividade literária. Poeta renomado, trazia a alma sintonizada com as grandes conquistas populares na Pátria Grande latino-americana. Ergueu sua pena e sua voz em protestos contra o FMI, a ingerência da Casa Branca nos países do Continente, a defesa da Revolução Cubana, a solidariedade à Revolução Sandinista ou para denunciar os crimes dos militares de El Salvador e da Guatemala.

Certa ocasião, fez uma longa viagem a cavalo para visitar a família de um posseiro que se encontrava preso. Chegou sem aviso prévio. Diante de um prato de arroz branco e outro de bananas, a filha mais velha, constrangida, desculpou-se à hora do almoço: “Se soubéssemos que viria o bispo teríamos feito outra comida”. A pequena Eva, de sete anos, reagiu: “Ué, bispo não é melhor que nós!” Esta lição ele guardou, e sempre praticou, evitando privilégios e mordomias.

Quando os Karajá iam à cidade, vindos da Ilha do Bananal, o pouso era sempre na casa do Pedro. Ali comiam, tomavam água, descansavam das andanças por São Félix.

Fundador da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Casaldáliga admitia que a sabedoria popular era a sua grande mestra. Indagou a um posseiro o que ele esperava para seus filhos. O homem respondeu: “Quero apenas o mais ou menos para todos”. Pedro guardou a lição, lutando por um mundo em que todos tenham direito ao “mais ou menos”. Nem demais, nem de menos.

Pedro em Cuba

Em setembro de 1985 viajei a Cuba com os irmãos e teólogos Leonardo e Clodovis Boff. Informamos a Fidel que Dom Pedro se encontrava em Manágua, participando da Jornada de Oração pela Paz. O líder cubano insistiu para que o levássemos a Havana. Tão logo desembarcou na capital de Cuba, a 11 de setembro, foi conduzido diretamente ao gabinete de Fidel, na época interessado na literatura da Teologia da Libertação. Pedro observou com a sua fina ironia: “Para a direita é preferível ter o papa contra a Teologia da Libertação do que Fidel a favor”.

Na mesma noite, discursou na abertura de um congresso mundial juvenil sobre a dívida externa: “Não é só imoral cobrar a dívida externa, também é imoral pagá-la, porque, fatalmente, significará endividar progressivamente os nossos povos”.

Ao reparar que os sapatos do prelado estavam em péssimo estado, Chomy Miyar, secretário de Fidel, lhe ofereceu um par novo de botas. “Deixo os meus sapatos ao Museu da Revolução”, brincou Dom Pedro.

Fomos juntos para a Nicarágua no dia 13 de setembro de 1985. Ali participou de inúmeros atos contra a agressão do governo dos EUA à obra sandinista e batizou o quarto filho de Daniel Ortega, Maurice Facundo.

Em sua segunda viagem a Cuba, em fevereiro de 1999, Casaldáliga declarou em público, em Pinar del Río: “O capitalismo é um pecado capital. O socialismo pode ser uma virtude cardeal: somos irmãos e irmãs, a terra é para todos e, como repetia Jesus de Nazaré, não se pode servir a dois senhores, e o outro senhor é precisamente o capital. Quando o capital é neoliberal, de lucro onímodo, de mercado total, de exclusão de imensas maiorias, então o pecado capital é abertamente mortal”.

E enfatizou: “Não haverá paz na Terra, não haverá democracia que mereça resgatar este nome profanado, se não houver socialização da terra no campo e do solo na cidade, da saúde e da educação, de comunicação e da ciência”.

Em conversa com Dom Pedro certa ocasião, ele me disse:

- Penso na frase de Jesus: “haverá fé sobre a Terra quando eu voltar?” Haverá, mas não na sua palavra. Fé no mercado, o grande demiurgo. Só de pensar que, de cada três economistas premiados com o Nobel nos últimos trinta anos do século vinte, dois eram da Escola de Chicago... Portanto, a Academia Sueca acreditou nos modelos matemáticos criados para favorecer a especulação financeira e voltados a considerar a humanidade somatória de indivíduos motivados apenas por interesses pessoais e envolvidos na mais renhida competição com seus semelhantes.

Hoje, só vão à igreja aqueles que não têm recursos para frequentar os templos de consumo. O novo lugar do culto é o centro comercial, o Shopping Center, considerado a porta de entrada no Paraíso, pois ali não há mendigos, lixo, crianças de rua, ameaças; tudo refulge em brilho paradisíaco. Somos todos fiéis seguidores do catecismo publicitário. Ele nos incute a convicção de que a salvação individual passa pelo consumo. Excluído não é quem tem pecado; é quem não tem dinheiro. Herege não é quem discorda dos dogmas da Igreja, mas quem se opõe aos dogmas do capitalismo. Apóstolo não é quem abjura a fé cristã, e sim quem professa outra crença convencido de que fora do mercado não há salvação.

Sucessão

Em 2003, ao completar 75 anos, Casaldágica apresentou seu pedido de renúncia à prelazia, como exige o Vaticano de todos os bispos, exceto ao de Roma, o papa. Em 2005, o Vaticano nomeou o sucessor. Antes, porém, enviou-lhe um bispo que, em nome de Roma, pediu que ele se afastasse da prelazia, de modo a não constranger o novo prelado. Dom Pedro não gostou do apelo e, coerente com o seu esforço de tornar mais democrático e transparente o processo de escolha de bispos, recusou-se a atendê-lo. O novo bispo, frei Leonardo Ulrich Steiner, pôs fim ao impasse ao declarar que Dom Pedro era bem-vindo a São Félix.

Ameaças

Dom Pedro foi alvo de várias ameaças de morte. A mais grave em 1976, em Ribeirão Cascalheira, em 12 de outubro – festa da padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida. Ao chegar àquela localidade em companhia do missionário e indigenista jesuíta João Bosco Penido Burnier, souberam que, na delegacia, duas mulheres estavam sendo torturadas. Foram até lá e travaram forte discussão com os policiais militares. Quando o padre Burnier ameaçou denunciar às autoridades o que ali ocorria, um dos soldados esbofeteou-o, deu-lhe uma coronhada e, em seguida, um tiro na nuca. Em poucas horas o mártir de Ribeirão Cascalheira faleceu. Nove dias depois, o povo invadiu a delegacia, soltou os presos, quebrou tudo, derrubou as paredes e pôs fogo. No local, ergue-se hoje uma igreja, a única no mundo dedicada aos mártires.

Por suas posições evangélicas, Pedro era acusado de “bispo petista”. Nunca se importou com as acusações que sofria. Sabia que era o preço a pagar por não defender os privilégios dos latifundiários. Na campanha presidencial de 2018, um dia antes do primeiro turno da eleição, uma carreata pró Bolsonaro desfilou pela cidade e o buzinaço se acentuava ao passar diante de modesta casa do bispo.

Ninguém encarna e simboliza tanto a Teologia da Libertação quanto Dom Pedro. Ele se tornou referência mundial dessa teologia centrada nos direitos dos pobres.

Militante da utopia

Pedro era poeta. A poesia era a sua forma preferida de expressão e oração. Deixou-nos vários livros com poemas de sua lavra, verdadeiros salmos da atualidade.

Uma de suas músicas preferidas era esta versão de Chico Buarque e Ruy Guerra de “O homem de la Mancha”, espetáculo musical: “Sonhar mais um sonho impossível, / lutar quando é fácil ceder, / vencer o inimigo invencível, / negar quando a regra é vender”. Ele pedia à advogada e agente de pastoral Zezé para cantá-la na capela.

Pedro nasceu em uma família pobre, de pequenos agricultores, na Catalunha. Em 1940, aos 12 anos, levado pelo pai, ingressou no seminário disposto a se tornar missionário. Aos 24, foi ordenado sacerdote, em maio de 1952.

Em seu último ano de formação pastoral, na Galícia, manteve contato com operários e migrantes, muitos trabalhadores em fábricas de tecidos. Ganhou as alcunhas de “padre dos malandros” ou “pai dos desvalidos”. Após a passagem pela cidade fabril, sua próxima parada foi Barcelona. Aos 32 anos, foi para a Guiné Equatorial, então colônia espanhola, para implantar os Cursilhos de Cristandade. Ali ele percebeu que o modelo europeu de Igreja não deveria ser exportado para as nações periféricas.

Como bispo no Brasil, Pedro nunca usou nenhum distintivo que o diferenciasse das outras pessoas e o identificasse como prelado.

Me chamarão subversivo. / E lhes direi: eu o sou. / Por meu Povo em luta, vivo. / Com meu Povo em marcha, vou / Tenho fé de guerrilheiro / E amor de revolução.” (“Canção da Foice e do Feixe”)

Agora tenho plena consciência de que conheci um santo e profeta: Pedro Casaldáliga. Santo por sua fidelidade radical (no sentido etimológico de ir às raízes) ao Evangelho, e profeta pelos riscos de vida enfrentados e as adversidades sofridas.

Frei Betto, O paraíso perdido – viagens ao mundo socialista (Rocco).

Morre Pedro Casaldáliga, a pedra no sapato do autoritarismo brasileiro

Leonardo Sakamoto

Colunista do UOL

08/08/2020 10h54

RESUMO DA NOTÍCIA

Dom Pedro Casaldáliga, bispo católico radicado no Brasil desde 1968

Pedro Calsadáliga, expoente da Teologia da Libertacão, é considerado um dos mais importantes defensores dos direitos humanos do país.

Foi um dos principais defensores dos povos indígenas e ribeirinhos e dos camponeses e trabalhadores rurais da Amazônia desde a ditadura militar.

Casaldáliga foi responsável por algumas das primeiras denúncias por trabalho escravo contemporâneo que ganharam o mundo no início da década de 1970.

Aos 84 anos, teve que deixar sua casa pelas ameaças de morte sofridas em decorrência do governo ter retirado invasores da terra indígena Marãiwatsédé

Pedro Casaldáliga, bispo emérito de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso, e um dos maiores defensores dos direitos humanos do país, morreu aos 92 anos, às 9h40 deste sábado (8), em Batatais (SP), onde havia sido removido para tratamento médico devido a problemas respiratórios.

A informação foi comunicada pela Prelazia de São Félix do Araguaia (MT), a Congregação dos Missionários Filhos do Imaculado Coração de Maria (Claretianos) e a Ordem de Santo Agostinho (Agostinianos). Ele havia testado negativo para covid-19.

Num ano em que o Brasil já ficou 100 mil vezes menor por conta de uma doença estúpida, a morte de Pedro consegue deixar um vazio profundo. Ele não era apenas um defensor da vida, mas a representação viva da resistência ao autoritarismo.

Nascido na Catalunha como Pere Casaldàliga, chegou ao Brasil em 1968. Desde então, subvertendo o Evangelho de Mateus, capítulo 16, versículo 18, Pedro não foi apenas a pedra em torno do qual edificou-se uma igreja na Amazônia, mas a pedra no caminho dos planos da ditadura e de seus sócios na iniciativa privada de passar por cima dos direitos e da vida de camponeses, ribeirinhos, indígenas, quilombolas.

Foi dele a primeira denúncia por trabalho escravo contemporâneo que ganhou o mundo no início da década de 1970. Essa mão de obra foi largamente utilizada em empreendimentos agropecuários na ocupação da região, com a cumplicidade dos militares.

Por conta de sua atuação contra a ditadura e a violência de grileiros, madeireiros, garimpeiros e grandes produtores rurais passou boa parte da vida marcado para morrer. Foi alvo de processos de expulsão do país. Poeta e escritor, tornou-se uma das principais vítimas da censura baixada pelos verde-oliva durante os anos de chumbo.

"Malditas sejam todas as cercas! Malditas todas as propriedades privadas que nos privam de viver e amar! Malditas sejam todas as leis amanhadas por umas poucas mãos para ampararem cercas e bois, fazerem a terra escrava e escravos os humanos", escreveu.

Para entender o que é a longevidade da luta de Pedro: aos 84 anos e doente, teve que deixar sua casa em São Félix do Araguaia por conta das ameaças surgidas em decorrência do governo brasileiro, finalmente, ter começado a retirar os invasores da terra indígena Marãiwatsédé, Nordeste de Mato Grosso - ação pelo qual sempre lutou.

Governos nunca foram competentes para garantir os direitos dos povos indígenas. Agora, temos um que é abertamente contra a demarcação de novos territórios. E Pedro, mesmo enfrentando um Parkinson avançado, manteve-se na trincheira contra a necropolítica.

"Ele conseguiu, pela denúncia intrépida e pelo testemunho arriscado, pela profecia inconveniente, pela poesia cortante, pela mística e pela espiritualidade que encarnava, contagiar a muitos e muitas. Contagiar a nós da Comissão Pastoral da Terra (CPT), do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), dos movimentos sociais, lutadores por um outro mundo justo, fraterno e possível", diz frei Xavier Plassat, da CPT. Pedro ajudou a criar ambas as instituições, vinculadas à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Foi um dos expoentes da Teologia da Libertação - linha progressista da igreja católica que acredita que a alma só será livre se o corpo também for, que tem sido uma pedra no sapato de quem lucra com a exploração do seu semelhante na periferia do mundo. Na prática, esses religiosos realizam a fé que muitos não querem ver materializada a partir do livro sagrado do cristianismo.

Para traduzir o que ela significa, nada como uma citação atribuída a outro gigante, Hélder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife, que também lutou contra a ditadura e esteve sempre ao lado dos mais pobres: "Se falo dos famintos, todos me chamam de cristão, mas se falo das causas da fome, me chamam de comunista".

Pedro não ensinou que solidariedade significa uma forma distorcida de caridade, como uma política de distribuição de sobras - o que consola mais a alma dos ricos do que o corpo dos pobres. Mas que solidariedade passa por reconhecer no outro e na outra seus semelhantes e caminhar junto a eles. Ou seja, não é doar migalhas, mas compartilhar o pão, produzido com diálogo e respeito. "Nada possuir, nada carregar, nada pedir, nada calar e, sobretudo, nada matar", assumiu Pedro como lema de vida. Tão simples, tão poderoso.

Pedro nunca voltou para a Espanha. Até porque ele era brasileiro. Nasceu por engano em outro continente.

Pessoas assim não morrem, não podem morrer. Não tenho a mesma fé que Pedro, mas não tenho dúvida que ele atingiu a imortalidade.

Seu corpo será velado, a partir das 15 horas deste sábado, na capela do Claretiano, em Batatais. E, antes de ser velado e sepultado em São Félix do Araguaia, também passará pelo município de Ribeirão Cascalheira (MT).

PEDRO CASALDÁLIGA, PRESENTE

Luiz Alberto Gomez de Souza

Pedro Casadáliga, santo, profeta e poeta nos acompanha agora na casa do Pai.

O último da grande geração dos Padres da Igreja que marcaram com luz a América Latina.

Está sendo velado na casa dos seus claretianos em Batatais, depois passará por Ribeirão Cascalheira, onde enfrentou a repressão, para dormir definitivamente em São Félix, às margens de seu mágico Araguaia.

E tempo de festa na sua chegada aos céus. Lembramos um poema de Manuel Bandeira, Pedro abrindo de par em par as portas das quais é guardião: "Entra Pedro, tua casa te espera.".

Foi ficando leve, leve, como uma pétala levada pelo vento da história.

Não é necessária confirmação canônica, ele é e já era em vida, Santo.

Soam suas duras palavras:

"Malditas sejam todas as cercas! Malditas todas as propriedades privadas que nos privam de viver e amar! Malditas sejam todas as leis amanhadas por umas poucas mãos para ampararem cercas e bois, fazerem a terra escrava e escravos os humanos".

Nada como relembrar o soneto em que revela sua identidade:

"Si no sabeis quien soy. Si os desconcierta

la amálgama de amores que cultivo:

una flor para el Che, toda la huerta

para el Dios de Jesús. Si me desvivo

por bendecir una alambrada abierta

y el mito de una aldea redivivo.

Si tiento a Dios por Nicaragua alerta,

por este Continente aún cautivo.

Si ofrezco el Pan y el Vino en mis altares

sobre un mantel de manos populares

sabed del Pueblo vengo, al Reino voy.

Tenedme por latinoamericano,

tenedme simplemente por cristiano,

si me creéis y no sabéis quien soy!"

Vida sem fronteiras, derramando misericórdia, clamando por justiça, em união mística com o Pai.

Dali nos acompanhe nesta quadra triste de nossa história.

Não rezamos por ele, que vive a plenitude. Pedimos que reze por nós e pela América Latina ferida.

Que lindo!!!

Em prantos!

Pe Júlio Lancelotti

Que as palavras do irmão Padre Júlio Lancelotti, se façam ecoar por toda a Terra, para que todo o povo de Deus, tenha no coração, para a eternidade, o exemplo de vida e ideal cristão, advindos da coerência, luta, testemunho, profetismo , ternura e irmandade, vividos por este Profeta da Vida e da Caminhada.

Que o legado desse Pedro dos pobres, dos indígenas, dos excluídos e marginalizados, se faça vivos no interior de nossas igrejas e na vida de todos aqueles que anseiam e lutam por um novo Céu e uma nova Terra, que seus pés descalços e sua Estola de retalhos, nos ajude a despojar de nossas igrejas e celebrações, todos os penduricalhos, preconceitos e discriminações, que nos privam de viver e de amar, pois assim o canto forte do Pai nosso dos pobres e marginalizados, nos anuncia que a igreja se faz povo, naqueles e naquelas, que mesmo diante de todas as tentações do poder e do dinheiro, a vida e o direito dos pobres se faz prioridade!

Bendito seja Pedro!

Bendito seja sua vida!

Bendito seja Deus na vida do povo que em Jesus Cristo se faz comunhão!

Pedro Casaldaliga, mesmo morto em seu caixão nos ensina mais ainda a sermos irmãos.

Gratidão!!!

O bom odor de Pedro

“Bem aventurados vós, os pobres” (Lc 6,20)

“Na dúvida, fique do lado dos pobres” - (Pedro Casaldáliga)

O sábado, 08 de agosto, amanheceu mais cinzento pois Pedro partiu. Sim, Pedro. Era assim que ele gostava de ser chamado, pelo nome de batismo, sem nenhum título. Sem ele, o Brasil ficou mais sombrio, mais silencioso, mais inodoro e mais órfão. Por sua consciência política e sua coragem de denúncia, Pedro foi ameaçado, perseguido, jurado de morte, mas não recuou. Resistiu e prometeu que morreria de pé como as árvores da floresta. Tombado pelo cansaço da vida e não por uma bala de revólver, o bispo do Araguaia morreu martirizado pela doença de Parkinson, nos ensinando que é preciso alimentar a utopia de uma terra sem males, onde todos têm os direitos garantidos e não há explorador nem explorado.

O jovem Pedro veio da Espanha para anonimamente servir os pobres do Brasil. Mas, como o amor exala bom odor (2Cor 2,14-16), logo Pedro ficou conhecido pelo perfume da fé que exalava. Seu cheiro bom encantou mulheres e homens sofredores, que viram nele uma espécie de pai dos pobres. Esse título,em outros tempos dado a são Vicente de Paulo, cabe bem ao bispo do Araguaia. Sua caridade, porém, percorreu caminhos bem diferentes da difundida por Vicente, cuja filantropia imediata saciava a fome dos famintos e socorria os desabrigados. Pedro encarnou a vida do pequeno, do menor de todos, do mais insignificante dos humanos.

Despojou-se de todo conforto, de toda segurança, de toda regalia, ao modo franciscano. Viveu junto dos explorados do Araguaia e se fez um deles. Mas também a comparação com o Pobrezinho de Assis não faz jus à vida de Pedro. Talvez Pedro pudesse ser comparado ao santo Oscar Romero, mártir da América Latina, cruelmente assassinado no altar, cuja vida foi unida à de Cristo num só sacrifício. Mas, apesar da mesma bravura, os dois bispos se distinguem. A poesia de Pedro, sua vida às margens do Araguaia, e sua sensibilidade para questões urgentes do nosso tempo, fazem-no uma pessoa singular.

Pedro inaugurou um novo modelo de santidade que não cabe nos moldes canônicos da Igreja. Sua via de santificação foi a resoluta decisão política de enfrentamento dos exploradores e de defesa dos subalternizados, a começar pelas populações originárias. Suas causas ultrapassavam os muros da eclesia e se faziam incômodas para os grandes da Terra. Seu modo de ser cristão era único, seu apostolado episcopal era inusitado e sua visão de igreja era inconveniente. Sua piedade era rebelde, sua religiosidade subversiva e sua fé, escandalosa.

Quando ninguém nas igrejas falava de direitos dos indígenas ou de respeito aos deuses dos quilombos, Pedro, criava o CIMI e a pastoral da Terra. O bispo poeta fazia ecoar seus versos em favor dessa gente sem voz. A famosa missa dos quilombos, musicada por Milton Nascimento, fez história. Tornou-se peça de teatro e incomodou os poderosos por ocasião da ditadura.

Quando nas igrejas ainda não se falava de defesa do meio ambiente, nem havia o Francisco de Roma escrevendo a Laudato Si, Pedro protegia as matas, os bichos e toda espécie de vida. Amaldiçoava as queimadas, as cercas e o direito de possuir a terra, entendida como dom de Deus para a vida de todos.

Quando nas igrejas ainda não se falava da maldição do garimpo e da indústria madeireira, Pedro levantava sua voz nos advertindo acerca dos perigos de exaurir a terra, de derrubar as matas e de poluir os rios. Enfrentou, junto aos pequenos agricultores e posseiros, os poderosos que querem exaurir o solo e ser donos das águas.

Quando nas igrejas não se falava de agricultura orgânica, nem dos males causados pelos defensivos agrícolas, Pedro abominava os agrotóxicos e preservava as sementes autóctones.

Quando nas igrejas não se falava ainda da falência do modelo econômico capitalista, Pedro sonhava com um mundo fraterno no qual o dinheiro não era senhor, nem o mercado seu reino. Colocou em versos sua paz inquieta; tornou conhecida sua indignação e inconformidade com os esquemas de privilégio de alguns em detrimento da escravidão de uma multidão.

Por tudo isso e muito mais, Pedro é um tipo de santo que não pode ser canonizado. Sua vida não pode ser enjaulada na política de privilégios que a Igreja estabelece para declarar uma vida como santa aos olhos dos crentes. Canonizar Pedro seria privatizar sua vida pública, estabelecer direitos autorais sobre seus escritos, conformar sua poesia rebelde aos devocionismos católicos, calar sua voz profética. O bispo de punhos cerrados não combinaria com os santos de mãos postas.

Duvido que Pedro aceitaria fazer dois milagres para garantir sua santidade. O bispo rebelde do Araguaia, que não assinou a penalidade do silêncio obsequioso imposto pelo papa João Paulo II, boicotaria toda tentativa de usar seu nome para promoção da Igreja institucional. Aquele que viveu pobre e morreu pobre reviraria no seio da terra se visse um só tostão ser gasto no processo de sua canonização.

E, ainda, Pedro detestaria que sua vida ganhasse cercas – todas elas malditas no dizer do pobre do Araguaia – e ele não pudesse mais ser sinal para todos, católicos e não católicos, crentes e não crentes. Por fim, canonizar Pedro seria ferir sua honra colocando à frente de seu nome um título. Na sua kênose, Pedro desprezou toda titulação e somente como Pedro queria ser chamado.

Além do mais, parece no mínimo estranho cultuar inquisidores canonizados pelos papas Pios e Pedro ao mesmo tempo. Seria constrangedor Pedro e são João Paulo II no mesmo altar; o primeiro rompendo com todo laço com os grandes do mundo e o segundo aliado a presidentes de impérios e monarcas conservadoras. Não dá para imaginar Pedro e santos monarcas, como Luiz da França ou santa Helena, empenhados nas mesmas causas terrenas. A não ser que o céu esteja dividido em departamentos e que cada santo – como um deus do Panteon – cuide de uma causa específica, não há lugar para Pedro no mundo dos santificados. Haveria dissenso no céu, porque o rebelde do Araguaia não se calaria nem mesmo no estágio das beatitudes divinas.

Por tudo isso, defendo com ardor que não empenhemos um processo de canonização para esse homem de Deus. E muito menos proclamemo-lo como santo súbito, coisa que os integristas e conservadores gostam de fazer com seus líderes piedosos e defensores da doutrina. Mantenhamo-lo sempre Pedro do Araguaia. Sem mais. Assim deve ser; assim deve ser lembrado. Respeitemos sua rebeldia!

*Pedro, profeta, presente!*

Helder Salomão

08 de agosto de 2020

_Pere._

_Pedro._

_Profeta._

Partiu de além-mar

para fazer do Brasil sua casa

e viver a missão com os pobres.

Bispo do povo,

homem do chapéu de palha

e das sandálias simples.

Companheiro das caminhadas

sempre presente nas lutas,

poeta da esperança.

_Viveu radicalmente o evangelho._

_Incomodou os poderosos_

_com sua palavra profética_

_e seu testemunho de fé._

_Caminheiro da alegria,_

_amigo fiel dos peregrinos,_

_servidor dos povos indígenas_

_e comunidades ribeirinhas_

_nas lutas em defesa da floresta,_

_pelos direitos dos mais fracos,_

_pela terra e pela vida._

Levantou sua voz corajosa

para denunciar sem medo

o latifúndio e a ditadura,

os “patriotas” fake news.

Irmão dos sem terra

em marcha por justiça

e pela liberdade

da pátria grande.

_Pere da Catalunha._

_Pere Casaldáliga._

_Pedro do Araguaia._

_Pedro, profeta universal._

_Brasileiro de verdade._

_Seguidor de Cristo._

_Irmão dos pequenos._

_Profeta da libertação!_

*Pedro, profeta,*

*presente!*

A tristeza, no a-Deus de Pedro, é fecunda, queima, interpela e compromete

Edward Guimarães

Pedro Casaldáliga - este dom preciso de Deus, profeta da opção pelos pobres e da justiça do Reino - testemunhou e anunciou com a totalidade de sua vida e com profunda coerência evangélica, a VIDA NOVA de quem foi libertado pela graça em Jesus de Nazaré, para amar e servir, desde os mais pequeninos e marginalizados.

Talvez por isso, Pedro, como os demais homens e mulheres que foram profetas na história, foi muito amado e odiado.

Pedro foi amado pelas vítimas, pobres, vulneráveis, excluídos e marginalizados, pelos que seguem Jesus e acolhem o seu Evangelho e pelos que assumem a centralidade do amor e da justiça. Ele foi também muito odiado e ameaçado, como inimigo, pelos que defendem o latifúndio, a acumulação, a dominação dos indígenas, dos negros e dos empobrecidos e que defendem, aristocraticamente, com unhas e dentes, os privilégios de sua classe ou de casta.

Estes rotulavam Pedro como bispo vermelho, socialista, comunista, marxista, subversivo e revolucionário. Aqueles reconheciam nele o companheiro de caminhada, o Evangelho vivo, o poeta da espiritualidade e santidade do Reino, o comunitarista fraterno-sororal da justiça e da igualdade.

Pedro influenciou toda uma geração de cristãos e de pessoas de boa vontade, comprometida com a dignidade da vida, com a opção pelos pobres e marginalizados, com os direitos humanos, com a igual cidadania para todos, com a partilha e a justiça social, com o Estado Democrático de Direito e concretizador das políticas públicas desde os que mais precisam.

Tomara que agora, como Jesus Ressuscitado, Pedro continue a influenciar as novas gerações na construção do Reino da fraternidade-sororidade e da justiça social.

Louvo muito a Deus pela graça de ter conhecido, em meados dos anos 80, o testemunho vivo e a pessoa de Pedro, este sacramento vivo da práxis libertadora de Jesus, da espiritualidade do seguimento e da fraternidade-sororidade do Reino.

Por ter conhecido Pedro e seus muitos companheiros e companheiras de luta e caminhada na Igreja dos pobres e nas pastorais sociais, na Igreja católica, evangélica e pentecostal, mas também os muitos "desigrejados", apaixonados pelo seguimento do Profeta da Galileia e a justiça do Reino, nos movimentos populares, e por ter comungado, na Palavra e na Eucaristia, das lutas dos pobres contra a pobreza, dos seus fracassos e vitórias, há 34 anos fiz também a opção pelos pobres e oprimidos, assumi a mesma aliança de cuidar e defender a dignidade da vida. Aliança simbolizada no anel de Tucum, mas renovada em cada experiência de partilha e de luta em defesa da vida e da casa comum.

Louvado seja Deus porque Pedro Casaldáliga vive, plenificado na Trindade de Amor e Justiça, em cada um de nós!

Pedro, sua vida valeu a pena e o seu legado continuará vivo e estaremos juntos na luta até que se realize a utopia da Terra sem males que, agora, você já participa com tantos outros irmãos e irmãs em Deus, na glória do justo!

Amém


PEDRO TU ME AMAS?

Areolino Santana

A pergunta de Jesus

Depois da ressurreição

Tocou no seu Casaldáliga

E gerou sua conversão

Nascido em Barcelona

Onde um dia foi ordenado

Veio migrado ao Brasil

Como Bispo foi sagrado

Em defesa dos pequenos

A sua vida virou luta

Seja um morador de rua

Um mendigo, uma prostituta

Hoje foi enfim chamado

Para o Reino do Senhor

Onde achou a porta aberta

Por ser um merecedor

Aqui vai uma ação de graças

Com meu reconhecimento

A você meu bravo guerreiro

Embora em triste momento

A separação é mais difícil

Quando se sabe o valor

Da pessoa que vimos partir

Para os braços do Senhor

A nossa prece é um pedido

De que possamos encontrar

Nossos amigos e heróis

E de novo nos abraçar

Vai Pedrinho Casaldáliga

Tua memória é incentivo

Que a defesa dos mais fracos

Seja pra nós um bom motivo

Que aumente nossa força

Que eleve a nossa voz

Que nos dê o compromisso

Que vimos vivo em vós

E São Félix do Araguaia

Está com um imenso vazio

Que está atingindo o mundo

Com atingiu nós é o Brasil

A pergunta que Jesus fez

Por Pedro foi respondida

Não só com as palavras

Mas com entrega da vida

Pedro Casaldáliga, Profeta da Esperança, Presente em nossa caminhada!

Cebs do Brasil por Thiesco Crisóstomo

8 de agosto de 2020

“No final do meu caminho me dirão: –

E tu, viveste?

Amaste?

E eu, sem dizer nada,

abrirei o coração cheio de nomes”

(Dom Pedro Casaldáliga).

Hoje, a Igreja do Brasil e da América Latina se despedem de um grande Profeta. Dom Pedro Casaldáliga faz a sua Páscoa junto a Deus, e nos deixa uma vida e missão de dedicação ao povo, especialmente aos mais pobres e marginalizados/as, aos povos indígenas, pelos direitos humanos. Seu testemunho foi sempre pautando a libertação daqueles e daquelas que são oprimidos/as, assumindo em seu projeto de vida e missão a missão de Jesus: “pois ele me ungiu para anunciar a boa notícia aos pobres: enviou-me para proclamar a libertação aos presos e, aos cegos, a recuperação da vista ; para dar liberdade aos oprimidos e proclamar um ano de graça do Senhor” (Lc 4, 18-19).

Dom Pedro Casaldáliga, profeta da esperança, sempre viveu o Evangelho de Jesus em sua plenitude e radicalidade, doando a vida até às últimas consequências, denunciando e organizando o povo contra as garras do latifúndio, contra o sistema que mata e marginaliza. Pedro, que com seu lema episcopal “HUMANIZAR LA HUMANIDAD”, anunciou uma igreja próxima, cuidadosa com a vida do povo, responsável também pela libertação. E sua vida pedra, sustento e base para a Igreja da Libertação. A Vida de Pedro é um projeto de vida, projeto vivo de Reino de Deus, é profecia de um novo mundo possível. Seu ministério é presença de Deus na vida do povo.

Queremos como Comunidades Eclesiais de Base, Pastorais, movimentos, centros e institutos, que tanto fomos inspirados e inspiradas pela vida de Dom Pedro prestar as nossas homenagens e também assumir seu compromisso de não deixar cair a profecia anunciada e encarnada na sua vida. Que sua memória, que a intensidade de sua vida nos inspire sempre mais a caminhar para o Reino de Deus, vivo no meio do povo, gerando sempre a libertação! Que o seu testemunho nos faça sempre dar seguimento à causa da justiça, comprometidos e comprometidas com seu povo. Que ele rogue por nós!

“Nós somos o povo da esperança, o povo da Páscoa. O outro mundo possível somos nós! A outra Igreja possível somos nós! Devemos fazer questão de vivermos todos cutucando, agitando, comprometendo. Como se cada um de nós fosse uma célula-mãe espalhando vida, provocando vida.” (Dom Pedro Casaldáliga, julho de 2011)

Dom Pedro Casaldáliga, profeta da Esperança, Presente em nossa caminhada!

Assinam esta carta: ABEF – Articulação Brasileira para a Economia de Francisco | AFES – Ação Franciscana de Ecologia e Solidariedade | APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil | Ateliê15 | Cajueiro Centro de Juventude | Cáritas Brasileira | Católicos/as contra o Fascismo | CBJP Comissão Brasileira Justiça e Paz | CEBI – Centro de Estudos Bíblicos | CEBs – Comunidades Eclesiais de Base | CIMI – Conselho Indigenista Missionário | CNLB – Conselho Nacional do Laicato do Brasil | Coletivo Empatia Franciscana | Coletivo Enjel – Juventudes e Espiritualidade Libertadora | Comissão Pastoral da Terra | Grito dos Excluídos | Instituto Catarinense de Juventude | IPDM – Igreja – Povo de Deus – em Movimento | Irmandade dos Mártires da Caminhada | Iser Assessoria | JUFRA – Juventude Franciscana | Juventudes Fé e Ciência | Movimento Católico Global pelo Clima | Movimento Nacional Fé e Política | MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra | Pastoral da Criança | Pastoral Operária | PJ – Pastoral da Juventude | PJE – Pastoral da Juventude Estudantil | PJMP – Pastoral da Juventude do Meio Popular | PJR – Pastoral da Juventude Rural | Rede Brasileira de Institutos de Juventude | SINFRAJUPE | Vida e Juventude – Centro Popular de Formação da Juventude | 6ª SSB – 6ª Semana Social Brasileira.

Pedro, o profeta da vida transformada em poesia

Marcelo Barros

“Combati o bom combate, terminei a corrida, guardei a fé” (II Tm 4, 7).

Para quem conheceu de perto e teve a graça de conviver com Pedro Casaldáliga, não será fácil ver o mundo sem ele. Afinal, desde que, como padre ainda jovem, chegou em São Félix do Araguaia, em outubro de 1971, penso que nunca ninguém o encontrou sem de alguma forma ficar marcado. No contato com ele, as pessoas abertas ao apelo divino da justiça e da paz receberam sempre alento e força. Aqueles que, por interesses pessoais ou por alienação da vida, não aceitaram o anúncio do reino, o rejeitaram. Alguns o odiavam. Diante dele e de sua palavra e suas posturas proféticas, era quase impossível ficar indiferente.

A quem, na busca espiritual, teve a graça de encontrá-lo ao menos uma vez e mais ainda para muitos de nós que tivemos o privilégio de conviver com ele ou acompanhá-lo na missão, Pedro sempre testemunhou o amor divino como força transformadora das pessoas e da sociedade.

Neste momento de sua Páscoa definitiva, muitos irmãos e irmãs vão lembrar coisas bonitas que viveram com ele. Outros tecerão elogios a seus poemas e a seus escritos que “sempre dão o que pensar”, como ele intitulou um dos volumes de seu diário nos anos 80.

Pode ser que, depois de alguns dias, eu consiga escrever mais alguma coisa. Hoje, a emoção ainda não me deixa escrever, sem misturar as letras com as lágrimas da saudade, da gratidão imensa e da ação de graças a Deus por ter, durante anos decisivos da minha vida, podido ter nele um irmão mais velho, um conselheiro espiritual e um mestre de vida.

Junto com Dom Tomás, foi ele que fez a mim, a Filipe Leddet e a Pedro Recroix, retomar o projeto de um mosteiro ecumênico e inserido no meio dos pobres quando pensávamos que, na Igreja Católica, não conseguiríamos. De fato, no começo dos anos 2000, aquele projeto tinha mesmo se tornado bem mais difícil.

No entanto, em 1984, Pedro e Tomás nos aconselharam a recomeçar de forma nova o estilo de vida monástica inserida que os monges franceses começaram em 1961 em Curitiba. A partir dali, o mosteiro da Anunciação do Senhor foi um sinal ecumênico e pascal para as Igrejas do Brasil e para os movimentos sociais. Como gostaria de encontrar o poema de Pedro sobre os monges de pés descalços cujo mosteiro é o mundo.

Nesta vigília de oração, tento me lembrar o que aprendi com Pedro nos anos em que convivi com ele na Pastoral da Terra, quando ia assessorar a prelazia ou quando algumas vezes viajamos juntos e fizemos retiros em comum. É uma riqueza que não dá para resumir e que é bom recordar porque não é uma herança apenas para mim e sim para toda a Igreja e a caminhada a partir de uma espiritualidade libertadora.

Alguns elementos desta herança espiritual:

1 - Pedro nos ensinou e nos propôs a viver a fé, descentrados de nós mesmos e da própria Igreja. Ele vivia uma adesão contínua e total a Jesus Ressuscitado no estilo de uma Santa Teresa de Ávila, mas manifestando-o presente nas pessoas mais pobres, na opção pela justiça e pela libertação de todos/as. Pedro expressava isso ao dizer: Absoluto mesmo só Deus e a fome do povo.

2 – Desde o começo do seu ministério, Pedro insistia: Igreja é sempre e principalmente Igreja local. Ah, se Pedro pudesse ter estado no Sínodo da Amazônia e nos revelado como já nos anos 70, ele propunha “amazonizar” a Igreja.

3 – Pedro nos passou o amor apaixonado aos povos indígenas e este amor se manifestava em todo o seu estilo de vida, até o fato de querer ser enterrado no cemitério Karajá às margens do Araguaia.

Não tenho como neste momento não retomar com carinho filial um dos seus poemas que fala da morte, mas também da ressurreição como rota de vida:

Enterrem-me no rio,

Perto de uma garça branca.

O resto já será meu.

E aquela correnteza franca

Que eu, passando, pedia,

Será pátria recuperada.

O êxito do fracasso.

A graça da chegada.

A sombra-em-cruz da vida

Sob este sol de verdade

Tem a exata medida

Da paz de um homem morto...

E o tempo é eternidade

E toda a rota é porto!

Pedro Casaldáliga: Oração: meu corpo como comida

PEDRO CASALDÁLIGA: DEUS PASSOU PELO BRASIL

Maria Clara Lucchetti Bingemer

Estive com Pedro Casaldáliga pessoalmente em duas ocasiões. Na primeira, eu era estudante de graduação em teologia na PUC-Rio e um colega, estudante jesuíta, me disse: Dom Pedro Casaldáliga está na PUC. Corremos para vê-lo no auditório do RDC. A impressão foi marca indelével que até hoje me acompanha. A pequena estatura e o corpo magro ocupavam espaço estreito no grande auditório.

Quando abriu a boca, aquele homem de compleição frágil agigantou-se e incendiou a sala inteira com sua voz de trovão e sua língua de profeta. Saí ungida e comecei a buscar avidamente seus escritos e poesias para conhecê-lo melhor.

Uma segunda vez encontrei-o em Itaici, em congresso de teologia promovido pelos Passionistas sobre a Cruz no mundo de hoje. Pedro viera de ônibus, recusando a passagem de avião oferecida pelos organizadores. O moderador da mesa o apresentou relatando esse fato. Diante dos aplausos que se seguiram, o bispo fez um gesto para que aquilo cessasse. E disse: “Isso não tem nada de extraordinário. Deveria ser normal”. Sua oratória de profeta calou fundo em um auditório sedento de verdade e de pathos teológico.

Depois disso não mais o vi em pessoa, mas seguia-o sempre: quando foi a Roma para audiência com o então cardeal Ratzinger; quando a mídia filmava seus depoimentos, declarações e testemunhos; quando foi à Nicarágua acompanhar Miguel d´Escoto em sua greve de fome. Impressionava-me a radicalidade de sua vida impregnada de evangelho, seu amor profundo pelo Deus de Jesus, sua lucidez diante de uma realidade injusta e oprimida que ele tentava denunciar e transformar.

Sua poesia sempre foi para mim profundamente inspiradora. Em sua pessoa era visível a síntese feliz e indissolúvel entre mística e política que sempre busquei em meu itinerário teológico e hoje ainda me alimenta em meu trabalho. Porém, um de seus poemas me acompanhou especialmente. Trata-se de “Deus é Deus”, que uso frequentemente no início de cada curso sobre o Deus da Revelação que venho ensinando há quase quarenta anos.

Ali o poeta e profeta busca dizer em versos quem é o Deus que inspira e move sua vida. E começa por seu próprio ofício de poeta: “Eu faço versos e creio em Deus; meus versos andam cheios de Deus como pulmões estão cheios de ar vivo”. Mas outros poetas, que Pedro humildemente reconhece fazerem versos melhores que os seus, como Drummond, não creem em Deus. Deus não é somente a beleza. Assim também o Che (Ernesto Che Guevara), figura muito admirada pelo bispo, deu a vida pelo povo, mas não via a Deus na montanha. Deus não é apenas a Justiça. E Pedro afirma: “Não poderia conviver com os pobres se não topasse com Deus em seus farrapos, se não estivesse Deus como uma brasa queimando meu egoísmo lentamente”.

O poeta se refere, em seguida, aos cantores que içam suas bandeiras e soltam a voz mas não referem seu canto a Deus. “Eu só sei cantar dando seu nome. Deus não é somente a alegria”. Os sábios pesquisam e “caminham imperturbavelmente contra o rosto de Deus fazendo história, desvelando mistérios e perguntas”. Pedro reconhece humildemente: “Eu não seria capaz desses caminhos se não estivesse Deus como uma aurora rompendo minha névoa e meu cansaço. Deus não é somente a verdade”.

Nesse poema, o bispo que durante sua vida teve um chapéu de vaqueiro como mitra, o anel de tucum e um calo nas mãos como anel episcopal e um bastão tosco como báculo, exprime quem não é seu Deus. Não é nenhuma das mediações que lhe permitem experimentá-lo: a beleza, a justiça, a verdade, a alegria. O Deus que anima e move o bispo catalão, que dedicou boa parte de sua vida ao Brasil, se revela como Mistério Santo que a tudo dá sentido. E Pedro termina o poema proclamando quem é seu Deus: “Beleza sem ocaso, Verdade sem argumentos, Justiça sem retornos, Amor inesperado, Deus é Deus simplesmente!”

Neste momento, a Igreja do Brasil chora a partida de seu profeta e poeta, do pastor que confirmava esperanças e acendia vocações com o fogo de suas palavras e de sua vida. Enterrado ao lado dos pobres, em um obscuro cemitério da sua querida diocese São Félix do Araguaia, Pedro não será mais visto, ouvido, tocado por nós. Mas suas palavras e sobretudo seu testemunho permanecem conosco para sempre.

Em 1980, quando assassinaram Monsenhor Romero em El Salvador, Ignacio Ellacuria dele dizia: “Com Monsenhor Romero, Deus passou por El Salvador”. Agora, nós, em lágrimas, mas cheios de gratidão a Pedro e Àquele que o criou, o chamou e o enviou, dizemos: “Com Pedro Casaldáliga, Deus passou pelo Brasil”. Que essa certeza nos anime durante os tenebrosos momentos que o país vive agora. Amém e obrigada por tudo Pedro.

Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Mística e Testemunho em Koinonia” (Editora Paulus), entre outros livros

Caminhando com Dom Pedro Casaldáliga

Patrus Ananias

Há 20 anos, sob a liderança do Padre Paulo Gabriel, integrei um grupo que saiu de Belo Horizonte para irmos a Ribeirão Bonito, hoje município de Ribeirão Cascalheira, Prelazia de São Félix do Araguaia. Ali, em 1975, foi assassinado o Padre João Bosco Penido Burnier. Ele estava ao lado de Pedro Casaldáliga. Confundiram os dois. Eles queriam matar o Pedro.

Fomos lá celebrar os 25 anos dessa Páscoa. Viajamos uma noite inteira. Um dia inteiro. Entramos pela outra noite e chegamos com o outro dia amanhecendo. No encontro com Pedro, eu lhe disse.

– Estou a caminho da Prelazia de São Félix há quase 30 anos. Uma jornada que começou no meu coração, quando li, em 1971, a sua Carta Pastoral profética – “Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social.”

Amigos muito queridos, colegas de geração e de sonhos, fizeram de fato a belíssima caminhada e foram partilhar a experiência profética que se materializava nos sertões de Mato Grosso. O testemunho e os ensinamentos de Jesus ganhavam vida. Eu os acompanhava longe dos olhos, muito próximo do coração.

Prefeito de Belo Horizonte, tive a alegria de encontrá-lo e conversamos longamente na Casa dos Agostinianos, no Barreiro. Ele me retribuiu a visita e foi abençoar o nosso trabalho na prefeitura.

Fui visitá-lo algumas vezes em São Félix, partilhamos a mesa, rezamos juntos. Procurei, a exemplo de Maria, guardar os seus ensinamentos no coração e na memória. Voltarei agora aos seus livros. “Creio na Justiça e na Esperança” marcou-me também profundamente, ainda nos anos 1970. Voltarei as suas poesias, aos belos textos escritos sobre ele.

Pedro continua vivo e andarilho entre nós. Continua caminhando “Descalço sobre a Terra Vermelha”. Pedro Casaldáliga sempre vivo!


(31) 3318-1313 | ananiaspatrus@gmail.com | Escritório de Belo Horizonte: R. Santa Luzia, 238, bairro Santa Efigênia - BH/MG.

EU SOU A MINHA ESPIRITUALIDADE

D. Pedro Casaldáliga, cmf

Eu gostaria de insistir num aspecto que pode abranger muitos aspectos. A primeira ideia forte: eu sou a minha espiritualidade, eu não tenho espiritualidade! Sou a espiritualidade, porque a minha espiritualidade é toda a minha vida. O que eu sou, o que eu faço, o que eu suporto, o que eu conquisto, o que eu anseio, a minha esperança, tudo isso é a minha espiritualidade!

Com todas as circunstâncias de família, de comunidade, na hora concreta do país, do mundo, eu sou a minha espiritualidade. Gostaria que esta expressão, com todo o seu conteúdo, ficasse nas mentes e nos corações de cada um de vocês.

Dentro disso, evidentemente especificamos, há muitas espiritualidades. Toda pessoa que viver, com certa intimidade, com certa profundidade, motivada por ideias maiores, por anseios, por ideais, por causas, é uma pessoa que tem espiritualidade. Inclusive pode chegar ao ponto de não ter uma referência religiosa, mas são valores que acabam sendo religiosos também.

Nós, fundamentalmente, e, é lógico, somos espiritualidade cristã, mais explicitamente no seguimento de Jesus. É bom que revitalizemos essa perspectiva essencialmente cristã, a única, o seguimento de Jesus. Também a espiritualidade d’Ele foi a sua vida, que centramos no mistério da Páscoa, morte e ressurreição. Se dará depois traços particulares, homem e mulher, família, estudos, saúde, experiências, fracassos, o dia-a-dia. Eu gosto de insistir também, eu sou o dia de hoje! Também na espiritualidade é necessário ser bem realistas, não apenas sonhar espiritualidades, mas vivenciar a espiritualidade.

Três traços maiores para uma espiritualidade autêntica: que não seja infantil, que não seja dispersa, que não tenha horas de espiritualidade, casos de espiritualidade, mas que seja a minha vida toda.

As 3 características são:

1. Personalizada – não posso viver a minha espiritualidade como se fosse apenas uma herança. Os meus pais me deixaram a herança do batismo, eu sou cristão, entrei numa Ordem religiosa, a Ordem tem os seus conselhos, as suas regras. Eu tento seguir o barco. Deve ser uma espiritualidade personalizada, crítica e autocrítica, assimilada na minha pessoa, com tudo o que eu sou. Poderíamos dizer que eu sou integralmente a minha espiritualidade. Personalizada, ou seja, adulta. Há muita espiritualidade infantil. Os livros de espiritualidade ao longo da história da Igreja, com muita frequência tem sido miméticos, infantis. Vinculados de certas regras, certas leis, certas práticas que Jesus condenou explicitamente nos farisaísmos, nos doutores da lei. E nós temos vivido, com muita frequência, uma espiritualidade despersonalizada. Carregando uma espiritualidade que nos gostam, que nos exigem e que não estamos praticando de modo mais rotineiro.

2. Integradora – já dissemos isso, afirmando “eu sou a minha espiritualidade”. Deve integrar toda a minha pessoa, meu corpo, meu sexo, minha fantasia, meu entendimento, meu trabalho, meu lazer, integrar minha vida de homem, de religioso, de novo, velho, com doença, com provas. Integradora. De fato, o que está se buscando em tantos livros, e ensaios e teorias, com respeito à espiritualidade, com nome ou outro nome, o que está se buscando é a conciliação de uma certa integração que seria também a paz no sentido bíblico da palavra, essa plenitude de uma pessoa.

3. Solidária – eu sou a minha espiritualidade com, e aí vem todo aquele que é próximo. A espiritualidade neste sentido será muito personalizada, mas não muito isolada, egoísta. Se dá também nestas procuras de novos métodos, de novas celebrações, de novas igrejas inclusive. Se dá o risco de procurar a própria espiritualidade só, sem contar com as espiritualidades e a pessoa do próximo. Então, a espiritualidade solidária, na diaconia do reino, profeticamente, historicamente e aí sim, a vida religiosa e consagrada, tem muito a corrigir, tem muito a reassumir. Todos temos experiências de termos vivido épocas de um modo muito ensimesmado, satisfeitos talvez, de sentir aquele calorzinho da consolação, mas esquecendo que a espiritualidade cristã é diaconia, serviço, é ministério, é doação, autodoação em comunidade, em família, em sociedade.

Três características maiores então, para essa espiritualidade que sou eu, que devo ser eu. Espiritualidade personalizada, adulta, harmônica, integradora de todo o meu ser, de todas as minhas horas, de todos os meus problemas, de todas a minhas soluções, possibilidades. Integradora e solidária, na diaconia do reino, historicamente, profeticamente. E ainda vocês diriam, parece que são traços que cabem em qualquer espiritualidade, mesmo fora do cristianismo. É certo, cabe! Cada vez mais deve haver o diálogo inter-religioso e entendemos que esse diálogo abrange também a espiritualidade do próximo com o qual dialogamos.

Mas nós, nessa espiritualidade toda, personalizada, integradora, solidária, vivenciamos o mistério pascal. O bispo mártir Angeleli da Argentina, pedia muito aos seus padres e agentes de pastoral, ao povo, à sua Igreja, que fossemos cada vez mais, uma Igreja Pascal, com tudo o que o mistério da Páscoa comporta.

Vivendo no contexto latino-americano, ou seja, sentindo e assumindo que somos América Latina, não somos Europa, não somos Ásia, não somos África, somos a nossa América num contexto que é continental, que supõe reconhecer, recordar e assumir muitas lutas, muitos martírios, muitas vitórias, muitas esperanças.

Com esses traços característicos de uma espiritualidade latino-americana hoje, Medelín está aí como um espelho, um farol. Medelín com tudo o que significa: a opção pelos pobres, a reassunção do testemunho dos mártires e um espírito livre e libertador.

Espiritualidade da libertação é uma espiritualidade especificamente historicizada. Como a maioria de vocês sabem, Novo e Antigo Testamento, conta a história do povo de Israel, a história de Jesus e de sua Igreja.

A espiritualidade latino-americana é uma espiritualidade política também. Explicitamente política, que é o único modo de viver a história comprometidamente e construindo a história nova. Um abraço para vocês, seguiremos muito unidos. É a Páscoa.

Nota: este texto foi transcrito de um vídeo compartilhado nas redes sociais. Trata-se do fragmento de um CD chamado “Pedro, Povo e Poesia” http://pedropovoepoesia.blogspot.com/ . (Transcrição de P. Nilton Cesar Boni cmf).

DE REVOLUCIONÁRIO PARA REVOLUCIONÁRIO

Carta abierta de Pedro Casaldàliga a Fidel Castro| São Félix do Araguaia, 10 de diciembre de 1996

Fidel:

Una vez más recibo invitación de Cuba y una vez más he de contentarme con enviar un mensaje. De corazón, eso sí.

Hoy te lo dirijo a ti, personalmente y tuteándote, para quitarle hasta el menor atisbo de ceremonia. Como corresponde a compañeros de luchas y de esperanzas.

Espero no escandalizar demasiado ni a la derecha ni a la izquierda.

Estos días has sido noticia mayor, también en Brasil. Con titulares como éste: «Un ateo en el Vaticano».

Y de eso quería hablarte, a ti y a todos los compañeros y compañeras que están ahí en esta hora histórica de tus 70 años, del proceso cubano y de la macrodictadura neoliberal.

Recuerdo, todavía con emoción, la carta que te entregamos, en 1985, Betto, los hermanos Boff y yo, escrita para ti por el patriarca de la Solidaridad y los Derechos Humanos, el cardenal Paulo Evaristo Arns, arzobispo de São Paulo. «Aunque Vd. se declare increyente -te decía él- yo le pido que rece por mí…».

Fidel, a estas alturas de tu vida y la mía y de la marcha de nuestros pueblos y de las iglesias más comprometidas con el Evangelio hecho vida e historia, tú y yo podemos muy bien ser al mismo tiempo creyentes y ateos.

Ateos del dios del colonialismo y del imperialismo, del capital ególatra y de la exclusión y el hambre y la muerte para las mayorías, con un mundo dividido mortalmente en dos. Y creyentes, por otra parte, del Dios de la Vida y la Fraternidad universal, con un mundo humano único, en la Dignidad respetada por igual de todas las personas y de todos los pueblos.

Con esta fe, abrazo a todo el pueblo de Martí, en la esperanza de su victoria sobre el bloqueo inicuo, en la defensa de sus conquistas sociales y en la consolidación de una democracia sin privilegiados y sin excluidos, con Pan y con Espíritu, con Justicia y con Libertad; en la hermosa patria de la Isla y en toda la Patria Grande de Nuestra América.

No te doy la bendición porque tengo dos años menos que tú y es a los mayores a quienes corresponde bendecir…

Te abrazo, como compañero de camino.

Pedro Casaldàliga,

obispo de São Félix do Araguaia, MT, Brasil

ORAÇÃO A SÃO FRANCISCO, EM FORMA DE DESABAFO

D. Pedro Casaldáliga

Compadre Francisco

como vais de glória?

E a comadre Clara

e a irmandade toda?

Nós, aqui na Terra,

vamos mal vivendo,

que a cobiça é grande

e o amor pequeno.

O Amor divino

é mui pouco amado

e é flor de uma noite

o amor humano.

Metade do mundo

definha de fome

e a outra metade

de medo da morte.

A sábia loucura

do santo Evangelho

tem poucos alunos

que a levem a sério.

Senhora Pobreza,

perfeita alegria,

andam mais nos livros

que nas nossas vidas.

Há muitos caminhos

que levam a Roma;

Belém e o Calvário

saíram de rota.

Nossa Madre Igreja

melhorou de modo,

mas tem muita cúria

e carisma pouco.

Frades e conventos

criaram vergonha,

mas é mais no jeito

que por via nova.

Muitos tecnocratas

e poucos poetas.

Muitos doutrinários

e menos profetas.

Armas e aparelhos

trustes e escritórios,

planejam a história,

manejam os povos.

A mãe natureza

chora, poluída

no ar e nas águas,

nos céus e nas minas.

Pássaros e flores

morrem de amargura,

e os lobos do espanto

ganharam as ruas.

Murchou o estandarte

da antiga arrogância.

são de ódio e lucro

as nossas cruzadas.

Sucedem-se as guerras

e os tratados sobram;

sangue por petróleo

os impérios trocam.

O mundo é tão velho

que, para ser novo,

compadre Francisco,

só fazendo outro...

Quando Jesus Cristo

e Nossa Senhora

venham dar um jeito

nesta terra nossa,

compadre Francisco,

tu faz uma força,

e a comadre Clara

e a irmandade toda.

PROVA -Pedro Casaldáliga, Antologia Poética

A solidão, por fim,

longínqua e próximo.

A solidão total.

Onde estão os caminhos conhecidos?

Onde está a alegria, companheiros?

É a ultima véspera?

Por que me abandonaste?

Apalpo-me e não me encontro.

Miro-me nos espelhos ao meu alcance

e não me reconheço.

Por ora, calai-me o nome que tinha!

Será que me batizam em águas de pobreza

os amigos chamados outrora, tantas vezes?

Me espera, na manhã,

algum caminho novo?

Deixei-me o pão cozido sobre as cinzas!

Como o Rei que Tagore viu em sonhos,

chega o Senhor, carregado de exigências,

por todas as beiras...

Agora é ainda noite. Cerrada noite.

A rede pende no túnel do desvão minúsculo,

deixando apenas o preciso espaço

para retirar um morto.

Pedro Casaldáliga, Antologia Poética