D. EUGÊNIO- 2015

A EXPERIÊNCIA DE DEUS EM FOUCAULD


Dom Eugênio Rixen - Bispo de Goiás

O convite para conduzir o retiro

Quando me pediram para animar o retiro das Fraternidades Sacerdotais “Jesus Caritas” nos dias 06 a 13 de janeiro na casa Bethânia em São João Batista, perto de Florianópolis (SC) senti uma mistura de alegria e medo. Mas aceitei este novo desafio!


Fundamentação dos conteúdos para o retiro


A primeira preocupação foi tentar descobrir qual era a experiência religiosa do beato Carlos de Foucauld. Ele fala muito da sua conversão, escreve bastante sobre suas conversas com Jesus, tem muitos comentários de textos bíblicos, principalmente dos Evangelhos, mas não explica sua experiência religiosa.


Sabendo que pouco depois da sua conversão resolveu assumir a vida trapista, o compromisso mais radial que ele encontrou na época, procurei me aprofundar na espiritualidade de São Bernardo. A grande ajuda que tive para compreender a espiritualidade do Irmão Carlos foi a leitura do livro de Lode van Hecke sobre “o desejo” na experiência religiosa, uma releitura de São Bernardo.


Depois, quis abordar alguns aspectos muito significativos da espiritualidade do Irmão Universal, como a oração, a castidade, a morte e a ressurreição. Inspirei-me nos escritos, redigidos pelo próprio Irmão Carlos, durante um retiro que fez em Nazaré (1897), depois que deixou a vida de trapista. Em seus escritos vemos claramente sua radicalidade evangélica. Querendo imitar Jesus, porque a medida do amor é a imitação. Irmão Carlos quis ser pobre como; considerou-O como o único esposo da sua vida e procurou a intimidade com Ele através da oração contemplativa. Ensinou-nos que, mesmo a oração vocal e a meditação devem levar à contemplação.


Suas últimas meditações tratam da morte e da ressurreição de Jesus. Os escritos que apresentamos do Irmão Carlos são de várias épocas, mas mostram seu desejo de ser mártir e, ao mesmo tempo, sua vontade de continuar vivendo para fazer o bem.


A vivência do retiro


Nas primeiras reflexões procurei aprofundar o que se entende por experiência de Deus. Já que o irmão Carlos, depois de sua conversão em Paris (1886), viveu no mosteiro trapista de nossa Senhora das Neves, na Ardèche (França) e depois na trapa de Akbér na Síria (1890 – 1896), tentei conhecer melhor a espiritualidade cisterciense. Descobri que se trata de um caminho místico marcado por um profundo conhecimento de si, pela humildade, a escuta e o amor; uma espiritualidade que humaniza. Viver na intimidade com Deus vai bem além de simples emoções passageiras e de estudos racionais. Amar a Deus é, antes de tudo, um desejo, um querer, um apostar.


Depois, tivemos várias reflexões, sempre a partir dos próprios escritos do Irmão Universal. O irmão Carlos fala da oração contemplativa, da oração vocal e da oração meditativa. Valoriza muito o primeiro tipo de oração quando escreve que todos os tipos de oração devem levar à contemplação. Disse que ela é um diálogo familiar, um terno derramamento da alma.


A pobreza evangélica é outra preocupação em seus escritos. Irmão Carlos afirma categoricamente a imitação de Jesus: já que o Mestre viveu no despojamento, o discípulo deve, ele também, se desapegar radicalmente dos bens materiais.


Pouco conhecidos são os textos que tratam da castidade. Para o Irmão Carlos, “quando amamos com todo o nosso coração, com toda a nossa alma, com todo o nosso entendimento, com todas as nossas forças, o acompanhamento deste Bem-amado não somente basta para nossa existência, mas qualquer outra coisa se torna desnecessária”. Jesus é a grande paixão da nossa vida, que nenhum outro amor pode substituir. Dom Pedro Casaldáliga completou esta ideia quando disse que o amor pelo pobre e a sua libertação facilita a entrega total ao projeto do Reino.


A espiritualidade da cruz e da morte marcou também profundamente o irmão Carlos. Quem não tem medo de morrer, também não tem medo de sofrer e lutar. Somos chamados a viver na própria carne o mistério pascal: “quando podemos sofrer e amar, podemos muito”. Eis o caminho do martírio.


No dia do deserto, fomos convidados a escutar a voz interior, lá onde Deus nos fala no mais profundo de nós mesmos. Descobrir a sua vontade é o caminho do discipulado.


Convidei os participantes a meditar igualmente sobre algumas ideias da exortação apostólica “Evangelii Gaudium” do Papa Francisco. Este texto é um chamado à conversão, bem dentro das grandes intuições do irmão Carlos: “uma Igreja pobre e com os pobres.”


A presença da comunidade terapêutica “Betânia”, fundada pelo padre Léo nos ajudou a não nos afastar dos “pequenos”, os preferidos de Deus.


Desejo que este boletim possa ajudar a fazer frutificar o que foi semeado no retiro!


TEXTO 1

CARLOS DE FOUCAULD E A ESPIRITUALIDADE DE SÃO BERNARDO


Algumas reflexões tiradas do livro de Lode van Hecke, O desejo na experiência religiosa - O homem reunificado. Releitura de São Bernardo, Paris, Ed. Cerf, 1990, p. 140-208.


1. Não é o espiritual que aparece primeiro


São Bernardo nos ensina que, como criaturas de Deus, em nossa base humana somos, também, animais. E em nossa vida espiritual “não é o espiritual que aparece primeiro, mas, sim o que é animal (animalis), e só depois o espiritual”.


· Enquanto ser finito, o homem é reduzido a possibilidades limidas então, a alma tem a tendência a deixar-se levar pela sua própria vontade, sem levar em conta a Vontade de Deus.


· Pelo pecado, o homem caiu da semelhança para a desemelhança (vive ou faz coisas piores que os animais).


· Por isso, o amor humano se desenvolve, primeiramente, em favor de si mesmo, e, só depois, se orienta para Deus. É uma etapa difícil de passar, mas, é o primeiro passo de uma evolução normal.


· 1Cor 15,46.


2. O conhecimento de si mesmo


· É no coração do homem que Deus é servido e adorado, pois é no coração do homem, nós o sabemos, que Ele mora.


· Alguém que não tem um senso suficiente da interioridade não pode encontrar a sua felicidade em Deus.


· O conhecimento de si mesmo (conhecer o animal que somos) é o primeiro passo e a condição indispensável para quem deseja chegar à contemplação.


· O conhecimento de si mesmo começa quando “o homem toma consciência que ele é só um homem”.


· O homem só irá para Deus mediante a lucidez que tiver sobre si mesmo.


· Santo Agostinho dizia: “Deus, faça que eu me conheça e que Tu me conheças!"


· São Bernardo nos sugere para insistir, em nossos pedidos a Deus, apenas aquilo que continua nos influenciando de maneira nefasta e que, consequentemente, ainda não conseguimos “extirpar” totalmente de nossa vida. Nesta condição, a referência ao passado, mesmo se for amarga, poderá dar frutos.


· “Mesmo sendo pecador, eu não posso ter aversão a outro pecador, nem desprezar um doente, já que eu também me sinto atingido pela doença”.



3. A humildade


· “A humildade é o desprezo da sua própria excelência”.


· Quem é humilde “não se engana sobre si mesmo, achando-se maior do que é realmente” (1).


· É assim que nós compreendemos a definição de humildade: quem acredita na sua própria superioridade, não é capaz de relacionamento. Quem pensa ser autossuficiente, considerando-se como o seu próprio criador: como poderá viver em comunhão, sendo que não tem nada para receber?


· A humildade é a base indispensável, “o alicerce para todo o edifício espiritual”.


· A importância da humildade como condição de acesso à experiência religiosa nos parece consistir nisso: ela é a verdade que faz o homem sair do seu isolamento, que o liberta do seu egocentrismo e o coloca em relação com Aquele que é a própria fonte da sua vida.


· “Eis a solidão que é aquela dos orgulhosos, eles se consideram como únicos e só têm um desejo: serem vistos como únicos e exclusivos”.


· “A pureza do coração consiste nessas duas coisas: na busca da glória de Deus e do interesse do próximo”.


· “É bom para mim ter conhecido a humilhação” (Sl 118,71).


· Três são elementos na humildade:


ð Estar enraizado na vida real, com suas manhãs e suas tardes, suas consolações e suas provações.


ð Fazer a experiência de um abandono filial a Deus, a cada vez que o controle da sua vida escapar de tuas mãos, pois Ele te dará novas forças.


ð Perseverar na fé, tanto nas dificuldades da vida como nos momentos de graças.


· A humildade não consiste em satisfazer-se com a sua pequenez, nem em supervalorizar os dons recebidos.


· A humildade que estiver distante da verdade não é digna de ser louvada.


· “A plenitude da humildade parece culminar nisto: que a nossa vontade, como convêm, seja submissa à vontade de Deus”.


· “E necessário submeter-se à vontade de Deus, se desejamos conhecer a paz”.


· “De fato, quanto mais a bondade de Deus ultrapassar, em grandeza e ternura, a bondade de qualquer ser humano, mais se manifesta que o seu jugo ultrapassa, em doçura, todos os outros fardos”.


· São Bernardo compara essa leveza dos fardos às asas dos pássaros em voo: “Quanto maior e mais volumosas forem suas asas, mais leve será o seu voo”.


· “São Bernardo nos convida a desviarmos nossas preocupações da busca de nossa própria perfeição para fixarmos o nosso olhar em Deus, como nosso centro de gravidade”.


· São Bento e São Bernardo atacam a raiz mais profunda do problema humano: sua recusa, sua solidão e o desvio da sua liberdade, pois é precisamente ali que se encontra a urgência de sua salvação.


4. A escuta na fé

· “A fé é o voltar-se do coração para Deus”.


· “Se converter é aumentar dentro de si o conhecimento de Deus, mas também a capacidade de amar (porque o amor dá ao conhecimento sua dimensão experimental)”.


· “Sem o amor, a fé não sobrevive por muito tempo”.


· “A voz de Deus só é perceptível no silêncio”


· Enquanto o homem bastar-se a si mesmo, ele não se compromete numa busca de fé. Somente a experiência do seu fracasso quebra a sua autossuficiência e dá uma chance à fé.


· Sem o alimento recebido do exterior, o desejo de Deus se enfraquece e morre.


· A fé não consiste, primeiramente, em ver, mas sim em escutar e obedecer.


· “Quando, nos ouvidos da alma, a voz de Deus começa a ressoar, ela começa a criar confusão, terror, julgamento; mas logo, se você não desviar sua atenção, ela dá a vida, abranda, aquece, ilumina e purifica”.


· “Acredito, por minha própria experiência, que a vida na floresta nos ensina algo a mais do que as coisas que aprendemos nos livros: as árvores e os rochedos nos ensinam o que não podemos ouvir dos professores”.


· Há uma influência recíproca entre a Palavra e a experiência de vida. Sem a Palavra que interpreta e expressa o sentido da experiência vivida, nunca conseguiríamos falar sobre uma experiência religiosa.


· A palavra de Deus é uma sabedoria de vida. Mas ela é mais do que uma sabedoria profana. Ela oferece uma vida divina. Para encontrar a flor do trigo, é necessário triturar a casca exterior que a envolve em seu segredo.



5. O Cristo e o Santo Espírito


· “A contemplação é fruto da misericordiosa descida do Verbo de Deus até a nossa natureza humana, pela graça, e ela eleva a nossa natureza humana até o próprio Verbo, pelo amor de Deus” (João Scot Orígene).


· “Se você quiser se unir ao Cristo deverá segui-lo, pois atingirá seus objetivos com maior rapidez seguindo-o, do que lendo livros que falam d’Ele”.


· O amor a Jesus Cristo contém três graus. Estes graus correspondem a três elementos constitutivos do homem: a afetividade, a razão e a vontade.


· “Constatando que os homens tornaram-se radicalmente carnais, Deus lhes manifestou na carne uma ternura tão grande, que é necessário ser muito duro de coração para não amá-Lo com uma inteira e total afeição... Deus então se fez carne e se mostrou digno de ser amado, a ponto de testemunhar um amor que ultrapassa qualquer pessoa: Ele deu a vida por nós”.


· Mas, um amor que consiste somente no calor de um sentimento, corre o risco de ser passageiro e não durar muito tempo.


· “Então é necessário que o discernimento venha em socorro do amor. Esta ajuda nos permite procurar, atentamente, o sentido interior dos mistérios. Assim, estaremos sempre prontos a dar a razão da nossa esperança a todo aquele que no-la pedir” (cf. 1Pd 3,15).


· Seria um erro considerar a emoção como prova de um grande amor. Ela é somente um primeiro passo. Por outro lado, ignorar completamente os sentimentos para garantir a objetividade, na busca do amor, seria, igualmente, um erro do mesmo tamanho.


· Em sua meditação, São Bernardo observa, com um cuidado especial, o dinamismo do amor humano, e começa a contemplação de Deus pelo amor manifestado na humanidade de Jesus... É por isto que Jesus é nosso exemplo por excelência.


· 1Cor 1,24; Lc 9,35; Jo 1,14; 15,4-5; Rm 8,32; Hb 2,10; 1Jo 3,13.


· “Mesmo que tenhamos conhecido Cristo segundo a carne, agora, já não o conhecemos assim” (2Cor 5,16).


· “Em Cristo, reconheçamos que somos amados. Graças ao Espírito, recebemos a força de amar. E para amar, a oportunidade nos é dada pelo Cristo e o ‘amar’ pelo Espírito”.


· O nosso relacionamento com Deus passa pela mediação de Jesus Cristo, mas a intensidade com a qual vivemos esta relação é obra do Espírito Santo, que age em nós.


· São Bernardo atribui ao Espírito Santo três funções principais:


ð O Espírito da verdade


ð O Espírito da libertação e da força


ð O Espírito da unidade


6. Do medo ao amor


· Bernardo fala constantemente de experiência, mas, ele se interessa muito pouco pelas experiências extraordinárias. Em sua opinião, a Palavra anunciada e proclamada deve ser recebida na fé e vivenciada com perseverança.


· A experiência religiosa consiste na passagem do medo para o amor e, pode ser simbolizada na passagem da condição de escravo e de assalariado para a condição de filho. O escravo age por medo e o assalariado por interesse pessoal. Mas o filho age por amor.


· Um medo, que não encontre seu lugar no movimento de conversão e de amor a Deus, é ruim e somente produzirá o afastamento do homem em relação a Deus. O medo deforma a imagem de Deus insistindo, quase que exclusivamente, na justiça divina (de um Deus justiceiro, que castiga os erros).


· Este medo produz: uma determinação, uma tristeza imoderada, rancor, horror, desprezo e desesperança.


· Mas existe um medo bom, que é fecundo e obtém facilmente a misericórdia para qualquer pecador, não importando o tamanho de seu pecado. Este medo produz: a humildade, a doçura, a paciência, a longanimidade e a esperança. No entanto, o medo e, toda forma de interesses egoístas, devem ser ultrapassados.


· O caminho do amor é caminho da gratuidade.


· “Então, procuremos o Senhor constantemente”.


· “Devemos colaborar para esta passagem do medo para o amor, mas não podemos realizá-la pelas nossas próprias forças. Semelhante ao milagre em Caná da Galiléia, ‘quando os potes estejam cheios de água!’ O Senhor deu a ordem para encher os potes, mas, a ação de transformar a água em vinho não é nossa. É o Senhor mesmo quem o faz”.


· É por causa da consciência de saber-se e sentir-se amado que o homem não tem vergonha de amar também.


· O homem que ama assimila esta palavra da Escritura como sendo sua própria: “Não seja o que eu quero, ó Pai, mas sim o que o Senhor quer” (Mc 14,36).


· O homem, então, pode louvar a Deus, porque “cantar é amar”.


· A adesão a Deus implica a penosa transformação do nosso desejo humano em desejo divino.


· “Não há oposição entre a gratuidade e o desejo da felicidade”, pois “na identificação com Deus, o desejo não é suprimido, mas completado, isto é, elevado ao seu mais alto grau”.


7. A união


· É, somente, no final da nossa peregrinação terrestre que a fé se transformará em conhecimento e o desejo, em amor.


· Unitas spiritus:


ð “Aquele que se une ao Senhor forma, com Ele, um só espirito» (lCor 6,17).


ð São Bernardo evidencia o fato de não termos o domínio desta experiência. Diz que apenas temos consciência dela, e, apesar de toda a evidência, ela não consiste numa união total. Ela nos está reservada para a vida futura.


ð Quanto mais buscamos o Espirito Criador com assiduidade, tanto mais Ele se afasta rapidamente.


· O esposo e a esposa:


ð Constantemente a Igreja é comparada à esposa de Cristo, como vemos a afirmação na carta aos efésios: “Ele queria apresentar a si mesmo uma Igreja resplandecente, sem mancha nem rugas” (Ef 5,27).


ð Nas suas cartas, São Bernardo compara seu destinatário como o amigo do esposo, conforme vemos em São João (cf. Jo 3,29).


ð Do mesmo modo São Bernardo diz que a boca, pela qual o beijo da contemplação se cumpre, é a Palavra.


ð União sim, mas não fusão; realização de um relacionamento, mas sem anulação da identidade.


ð O amor para com o Criador não exclui o amor pela criação. Ele o contém!


ð “Nós amamos espiritualmente quando, por amor, consideramos o que é útil para os nossos irmãos, como mais importante que as nossas ocupações espirituais”.


ð A obediência e o amor abrem um caminho para chegar a Deus. Um caminho bem mais seguro que a busca de um gozo espiritual.


ð “Não precisa viver sozinho, aquele que é capaz de conduzir os outros para a vida”.


ð Por isso, a prática da Vontade de Deus e a gratuidade do amor são dois dos temas que Bernardo desenvolverá muito.


Conclusão: a experiência religiosa


· O homem de hoje está em busca de uma espiritualidade que funcione como antídoto a um racionalismo que está esvaziando a religião do seu primeiro sentido e da sua força vital.


· O amor humano é somente uma resposta a este primeiro amor: “Quem é justo, senão aquele que, em resposta, dá o seu amor para Deus, que já o ama?”


· “Se você quiser conhecer o Cristo, siga-o, pois conseguirás atingir seu objetivo com maior rapidez seguindo-o, do que lendo livros falando d’Ele”.


1. Encontro com Bernardo


· Com Bernardo, este movimento encontra a sua origem na busca de Deus, considerado como uma necessidade vital e que, finaliza no amor desinteressado, cuja expressão mais forte é a imagem do esposo e da sua bem-amada. “O amor perfeito é fruto do desejo”.


· Eis a situação do homem na sua existência temporal: “Esperando, o justo vive da fé. Esperando, o justo tem sede de Deus, como a corça está à procura de água viva” (Rm 1,17 e Sl 41,2).


· O desejo do homem deverá aprender que só encontrará o objeto da sua busca na medida em que o seu amor chegar a ser suficientemente desinteressado.


· “Há, também, a experiência extática (êxtase), mas ela é excepcional e dura pouco tempo. De fato, Deus fica livre e sua vinda não depende de nossos esforços para encontrá-Lo. No nível de nossos sentimentos, Deus permanece constantemente como o grande ausente”.


· Deus está presente no homem Jesus. Enquanto homem, Ele é próximo de nós. Ele é nosso “irmão” e, neste sentido, toca a nossa afetividade. Mas, ao mesmo tempo, Ele é Deus, e, para descobrir o mistério da sua divindade, nós devemos ser capazes de fazer abstração deste puro sentimento afetivo, para escutar a mensagem que Ele nos anuncia por meio de suas palavras e seus atos. Jesus é a Palavra de Deus. É Ele quem nos revela o Pai.


2. Perguntas a Bernardo


· Sobre a relação pessoal do homem com Deus, São Bernardo afirma que “jamais terminaremos nossa busca de Deus, mesmo quando já O tenhamos encontrado”.


· “No lugar do paraíso que nós havíamos perdido, Cristo nos foi dado como Salvador”.


· A sociedade moderna está descristianizada, isto é, não dá tanta importância ao cristianismo. Este é o contexto concreto, com seus dados positivos e negativos, no qual a mensagem cristã deve ser anunciada de novo.


· São Bernardo dizia: “seria estranho apresentar a Boa Nova, tendo como ponto de partida a imagem de um Deus aterrorizante”. Uma imagem de Deus, assim, seria falsa, desastrosa.


· Um dos problemas atuais é a culpabilidade. “O homem moderno é fortemente marcado por uma imagem negativa de si mesmo”.


· No entanto, São Bernardo é o expoente de toda uma tradição que é, em primeiro lugar, uma mística do amor.


3. Questões de Bernardo


· Cancelar o tema do medo de Deus significaria esvaziar a conversão em si mesma, a qual nós temos sublinhado a importância. O mérito de São Bernardo é justamente mostrar o quanto o amor é um caminho de conversão.


· A experiência religiosa não se refere, em primeiro lugar, nem necessariamente, a fenômenos extraordinários. Ela “nasce no mesmo lugar onde o cristão vive a sua vida quotidiana”.


· A palavra da Escritura, escutada e vivenciada, é realmente uma palavra de vida.


· Vivendo o amor ao próximo, como Cristo o fez, a experiência religiosa ajuda a visualizar o quanto o projeto de Deus, na sua relação com o homem, é portador de salvação.


· Mas a busca de uma emoção afetiva faz parte do amor interessado.


· Jesus Cristo é o único caminho e o término da viajem. Por isso, São Bernardo afirma que a experiência cristã é a imitação do Cristo e a comunhão com Ele.


· Quanto às experiências místicas e extraordinárias, São Bernardo diz que é melhor não tê-las, do que faltar à caridade.


Textos bíblicos: Lc 18,9-14; Fl 3,7-14; 1Sm 3,1-16; Jo 15,1-17


NOTA:


(1) “in neutro ipsius de se iudicium falli potest, videlicet ut aut maius aliquid putet esse quam sit, aut a se esse quod sit”


TEXTO 2

A ORAÇÃO (1)


Escrito em Nazaré no dia 11 de novembro de 1897.


As suas orações devem ser de várias formas, meu filho. A mais necessária é a contemplação; em seguida a meditação; depois vêm as orações vocais, e entre elas, as melhores são aquelas que a Igreja aprova e recomenda com insistência que pessoas rezem constantemente, ou seja, o ofício divino, o rosário, a via sacra, etc... (é papel do diretor [espiritual] indicá-las quando as leis da Igreja nada prescreverem).


A contemplação é o diálogo íntimo da alma com Deus: nada mais que isto; a contemplação não é uma meditação propriamente dita e nem uma oração falada: mas ela acompanha as duas, em maior ou menor grau.


A meditação é a reflexão cuidadosa sobre alguma verdade ou algum dever que o espírito procura aprofundar aos pés de Deus: a meditação é sempre, às vezes mais e às vezes menos, misturada com a contemplação, porque é preciso pedir a ajuda de Deus, de tempos em tempos, para conhecermos o que procuramos, e também para gozar da sua presença e “não ficar muito tempo tão perto d’Ele sem lhe dizer nenhuma palavra de ternura...”


A oração vocal consiste em recitar ou ler algumas fórmulas aprovadas pela Igreja, ou com certeza piedosas. Estas fórmulas contêm, necessariamente, uma parte de contemplação; porque quando as rezamos, ou pensamos no sentido natural do que as palavras dizem, e então dialogamos com Deus a cada vez que elas se dirigem a Ele. Ou seja, estamos fazendo contemplação quase o tempo todo (da mesma maneira que fazemos quando, recitando os salmos, dizemos para Deus o seu conteúdo), ou então quando os recitamos prestando atenção no sentido das palavras, mas acomodando-as a algum assunto particular (como por exemplo, rezando os salmos do ofício, aplicando-os todos à paixão do Nosso Senhor). Assim nossa oração vocal torna-se uma mistura de contemplação e de meditação; ou então não pensamos no sentido das palavras quando rezamos, mas as recitamos meditando-as ou contemplando-as no coração (da mesma maneira que recitamos o rosário meditando os quinze mistérios), aqui sempre há contemplação.


Todas estas orações são necessárias; a contemplação é a mais suave, a mais necessária; aquela que atinge o nosso íntimo, e na qual podemos nos sustentar por mais tempo. Não precisamos ter medo de rezar bastante, quando nos sentimos fervorosos... é necessário rezar sempre, mesmo quando nos sentimos menos fervorosos, na aridez espiritual, mas quando estivermos assim, é melhor consagrar menos tempo neste tipo de oração e escolher outro exercício de piedade que podemos fazê-lo melhor, como a meditação, a oração vocal ou uma leitura. Uma vez escolhido o tipo de oração, não devemos começar e parar, porque o diabo aproveitará para nos enganar e nos fazer abandonar tudo, nem persistir indefinidamente quando percebemos que nada podemos fazer; pois após um certo tempo, a impotência prolongada nos indicará, muitas vezes, que Deus quer que nós usemos menos de tempo para este exercício piedoso e gastemos mais tempo em outros exercícios espirituais; “não é preciso desistir sempre, nem querer perseverar a tudo custo... Aqui, a experiência e a discrição são necessárias... Um bom diretor dirá o que é preciso fazer”(2), conforme nos fala Santa Teresa D’Avila.


Mas todos os dias é preciso reservar certo tempo à contemplação propriamente dita, a esta oração pura que é, simplesmente, um diálogo familiar, uma terna efusão da alma com Deus... Este tempo poderá ser muito curto ou extremamente prolongado dependendo dos casos, mas é necessário lhe consagrar um bom tempo, e procurar prolongá-lo cada vez mais, na medida em que os deveres e a obediência o permitirem... Neste sentido, é preciso consultar um bom diretor espiritual, sobretudo no início...


É necessário praticar o tanto quanto possível, todos os dias, a meditação. Isto nem sempre é possível: a doença, importantes e numerosas ocupações podem, às vezes, excepcionalmente, torná-la impossível. Mas é necessário que, a cada dia em nossas vidas, reservemos um tempo para a meditação. Isto é absolutamente necessário para conhecer os nossos deveres, conhecer as verdades da religião, os exemplos e ensinamentos do Nosso Senhor, que são a regra da nossa vida...


Sem meditação somos iguais a um navio sem bussola e sem leme. Não sabemos como agir, para onde ir, o que fazer (precisaria de um milagre para chegar ao porto, nem mesmo um rebocador seria suficiente), porque a meditação é necessária para provar a nós mesmos que devemos nos deixar conduzir e, consequentemente, decidir...


Igualmente, precisamos fazer a oração vocal tanto quanto possível, todos os dias. Uma doença grave poderia torná-la impossível durante um pouco de tempo, mas isto é muito raro. A oração vocal tem grandes benefícios: ela nos une intimamente ao que a Igreja diz, aconselha e, às vezes, ordena. A maior parte do tempo ela é tirada dos livros sagrados, e consequentemente, é a própria Palavra de Deus.


Não saberíamos como falar dignamente com Deus, se não tivesse nos servido com suas próprias palavras; palavras que Ele mesmo nos deu exatamente para isso, e que a Igreja nos recomenda vivamente para dizê-las em espírito de oração... Pois, quando estamos vivendo uma aridez espiritual, muito mornos, muito tentados, ou ainda quando nosso corpo está doente e nosso espírito enfraquecido, muitas vezes nos encontramos incapazes de permanecer um mínimo de tempo rezando ou meditando...


Na verdade, sempre podemos fazer uma contemplação, porque para isto basta pensar em Deus e dizer-lhe que o amamos; mas enfim, mesmo para falar assim com Deus, e continuar pensando n’Ele tanto quanto possível, quando estamos vivendo uma grande aridez espiritual, ou, sobretudo, uma doença, ajuda bastante rezar preces vocais curtas... Então bendizemos a Deus por ter nos dado este socorro das orações vocais, que ajudam o nosso espírito enfraquecido, propondo-lhe pensamentos piedosos nos momentos em que a tentação, a aridez, a fraqueza, as preocupações, a desordem, a doença nos tornam incapazes de ficar pensando.


As orações vocais também ajudam a manter nosso espírito fiel na oração, e nos impede de ficar divagando nestes tempos de grande fraqueza ou de desordens. Elas são uma grande ajuda em certos tempos...


É preciso ter um bom repertório de orações para rezá-las diariamente:


- “Você age corretamente, meu filho, rezando diariamente a liturgia das horas, o rosário e a via sacra, mas não te preocupes e não te aflija se, porventura, algum impedimento sério te impedir de rezá-las, mas reze-as fielmente quando não tiver nenhum impedimento sério. Estas orações me agradam, me honram, eu aprovo que você as rezes, pois elas são um pequeno buquê que me ofereces. Consequentemente, não olhes para elas como se fossem coisas indiferentes e reze-as com cuidado, exatidão e zelo, como uma coisa que me dá grande prazer... Se você não as reza com muito zelo, nem com cuidado e exatidão, é porque não sabe o quanto elas me agradam, tanto em si mesmas, como em sua boca... Elas são muito santas em si mesmas, é a palavra do Espírito Santo e a lembrança das minhas alegrias, das minhas dores, da minha paixão e das minhas glórias: que palavras e que perfumes divinos! Então, rezando estas orações, não é um pequeno presente que você esta me oferecendo, mas um divino, um belíssimo presente, mesmo que sejas tão pequenino... Você é uma criancinha, mas, em minha bondade, eu te permito de colher as mais lindas rosas no meu maravilhoso jardim para oferecê-las a mim, de maneira que mesmo sendo tão pequenina, você pode me fazer um maravilhoso buquê de meia-hora ou quarenta e cinco minutos, e, sobretudo, se for de um pouco mais de tempo ainda... Você me entende?... E este buquê em tuas mãos me agrada, meu querido, meu bem-amado, porque apesar de você ser tão pequenino e cheio de defeitos, você é meu filhinho, e consequentemente, eu te amo. Eu te criei para o céu. Meu Filho único te resgatou pelo seu sangue, e mais ainda meu filhinho, Ele te adotou como irmão, Eu te amo. E enfim, você escutou a sua voz e pode dizer a ti mesmo o que Eu mesmo disse: “Se Eu te amei tanto quando você ainda não me conhecia, quanto mais agora que você se reconhece pobre e pecador e deseja me agradar”. Você vê, apesar de eu ser bem grande e você bem pequeno, muito bonito e você muito feio, muito rico e você muito pobre, muito sábio e você muito ignorante, de viver nas maravilhas do céu e você muito pouco amado, apesar disto tudo, eu gosto do buquê quotidiano de tuas orações, dos teus buquês de rosas na parte da manhã e da tarde; eu gosto deles porque estas rosas, que eu te permito colher no meu jardim, são belas, e faço questão disto porque Eu te amo meu filhinho, mesmo que você seja pequenino e cometa erros.”


Obrigado, obrigado, obrigado, meu Deus! Como tuas palavras são suaves e tão claras, e como elas me mostram e me esclarecem o que eu ainda não tinha visto... Obrigado, obrigado, obrigado, Meu Deus! Percebo o quanto o Senhor é bom, o quanto eu precisava deste ensinamento e como o Senhor me corrige suavemente! Eu merecia censuras, mas tuas palavras são divinamente suaves! Obrigado, obrigado, obrigado! Socorrei-me, Senhor, para que eu possa aproveitar delas: Contigo, por Ti e para Ti. Amém.


Resoluções: A cada dia dar fielmente para Deus o buquê de rosas que Ele espera de seus filhinhos: contemplação, liturgia das horas, rosário, via sacra, meditação... fazer a mesma coisa todos os dias, mas nos dias de feriados ou outros dias, em que terei mais tempo do que de costume, eu aumentarei, não as orações vocais nem o tempo da meditação, mas sim o tempo da contemplação... Nos feriados dividirei meu tempo livre entre a contemplação e as santas leituras, prolongando a contemplação o máximo de tempo possível que o bom Deus me permitir fazê-la fervorosamente, até mesmo o dia inteiro...


Organizar o meu tempo da maneira seguinte: as orações Matinas ao levantar... Em seguida a Meditação... depois as Santas leituras... Na hora do Ângelus, o Ângelus seguido das invocações “Ó Maria concebida sem pecado”, depois o Rosário, a Via sacra, as Laudes, a oração das 9h, contemplação se tiver tempo antes da Missa... Missa, Ação de graças... a oração das 12h, a oração das 15hs, as Vésperas Às 16h30, no inverno, às 17h na primavera e no outono, 17h30 no verão, as invocações quotidianas da Ave Maria para diversas intenções, em seguido leitura mais ou menos longa, enfim contemplação até a minha saída da capela. Ao entrar na minha cela, disciplina e uma série de seis “Pai Nosso”, Ave Maria e glória, e uma leitura piedosa... Após a colação ou no retiro, meditação sobre a festa do dia seguinte, em enfim, as Completas.


Durante o trabalho manual e nas recitações das Aves Maria para diversas intenções... durante as refeições. No início de cada ofício, pedir, muitas e repetidas vezes, a intercessão de Santa Madalena e Santa Tereza D’Avila para me ajudar a rezar bem... Minha mãe Santa Madalena, bendita Santa Tereza, peguem minhas decisões, ofereçam-nas ao Bom Deus, e se elas lhe agradam, me ajudem a segui-las com todo meu coração. Ajudem-me a ser igual a vocês, para que eu reze sem cessar e agrade o mais possível meu Bem-amado Mestre, nele, por Ele e para Ele. Amém


Leituras bíblicas: Mt 6,5-15; Lc 1,46-56; Lc 10,21-24; Sl 63(62); Sl 42 (41).


NOTAS:


(1) Charles de Foucauld, “La dernière place” – Retraite à Nazareth, Ed. Nouvelle Cité, Montrouge, 2002, pg. 173-179.


(2) Tereza de Ávila, Livro das Fundações, XVIII,7 e Livro da Vida, XXII,18.


TEXTO 3

A CÚRIA E O CORPO DE CRISTO


Discurso integral proferido pelo Papa à Cúria Romana em 22 de dezembro de 2014


“Tu estás acima dos querubins, tu que transformaste a miserável condição do mundo quando te fizeste como nós” (Santo Agostinho).


Amados irmãos,


Ao final do Advento, encontramo-nos para as tradicionais saudações. Dentro de alguns dias teremos a alegria de celebrar o Natal do Senhor; o evento de Deus que se faz homem para salvar os homens; a manifestação do amor de Deus que não se limita a dar-nos algo ou a enviar-nos uma mensagem ou alguns mensageiros, doa-se-nos a si mesmo; o mistério de Deus que toma sobre si a nossa condição humana e os nossos pecados para revelar-nos a sua Vida divina, a sua graça imensa e o seu perdão gratuito.É o encontro com Deus que nasce na pobreza da gruta de Belém para ensinar-nos a potência da humildade. Na realidade, o Natal é também a festa da luz que não é acolhida pela gente “eleita”, mas pela gente pobre e simples que esperava a salvação do Senhor.


Em primeiro lugar, gostaria de desejar a todos vós – cooperadores, irmãos e irmãs, Representantes pontifícios espalhados pelo mundo – e a todos os vossos entes queridos um santo Natal e um feliz Ano Novo. Desejo agradecer-vos cordialmente, pelo vosso compromisso quotidiano ao serviço da Santa Sé, da Igreja Católica, das Igrejas particulares e do Sucessor de Pedro.


Como somos pessoas e não números ou meros nomes, lembro de maneira especial os que, durante este ano, terminaram o seu serviço por terem chegado ao limite de idade ou por terem assumido outras funções ou ainda porque foram chamados à Casa do Pai. Também a todos eles e aos seus familiares dirijo o meu pensamento e gratidão.


Desejo juntamente convosco elevar ao Senhor um vivo e sentido agradecimento pelo ano que está a acabando, pelos acontecimentos vividos e por todo o bem que Ele quis generosamente realizar mediante o serviço da Santa Sé, pedindo-lhe humildemente perdão pelas faltas cometidas “por pensamentos, palavras, obras e omissões”.


E partindo precisamente deste pedido de perdão, desejaria que este nosso encontro e as reflexões que partilharei convosco se tornassem, para todos nós, apoio e estímulo a um verdadeiro exame de consciência a fim de preparar o nosso coração para o Santo Natal.


Pensando neste nosso encontro veio-me à mente a imagem da Igreja como Corpo místico de Jesus Cristo. É uma expressão que, como explicou o Papa Pio XII “brota e como que germina do que é frequentemente exposto na Sagrada Escritura e nos Santos Padres”. A este respeito, São Paulo escreveu: “Porque, como o corpo é um todo tendo muitos membros e todos os membros do corpo, embora muitos, formam um só corpo, assim também é Cristo” (1 Cor 12,12).


Neste sentido, o Concílio Vaticano II lembra-nos que “na edificação do Corpo de Cristo há diversidade de membros e de funções. Um só é o Espírito que, para utilidade da Igreja, distribui os seus vários dons segundo as suas riquezas e as necessidades dos ministérios (cf. 1 Cor 12,1-11)”. Por isto “Cristo e a Igreja formam o “Cristo total” - Christus totus -. A Igreja é una com Cristo».


Nos faz bem pensar na Cúria Romana como sendo um pequeno modelo da Igreja, ou seja, um “Corpo” que procura séria e quotidianamente ser mais vivo, mais sadio, mais harmonioso e mais unido em si mesmo e com Cristo.


Na realidade, a Cúria Romana é um corpo complexo, composto de muitos Dicastérios, Conselhos, Departamentos, Tribunais, Comissões e de numerosos elementos que não têm todos a mesma tarefa, mas são coordenados para um funcionamento eficaz, edificante, disciplinado e exemplar, não obstante as diferenças culturais, linguísticas e nacionais dos seus membros.


Em todo o caso, sendo a Cúria um corpo dinâmico, ela não pode viver sem alimentar-se e sem cuidar de si mesma. De facto, a Cúria – como a Igreja – não pode viver sem ter uma relação vital, pessoal, autêntica e sólida com Cristo. Um membro da Cúria que não se alimenta quotidianamente com semelhante Alimento tornar-se-á um burocrata (um formalista, um funcionalista, um mero empregado): um ramo que pouco a pouco seca, morre e é lançado fora. A oração diária, a participação assídua nos Sacramentos, de modo especial, da Eucaristia e da reconciliação, o contacto quotidiano com a Palavra de Deus e a espiritualidade traduzida em caridade vivida são o alimento vital para cada um de nós. Que todos nós tenhamos bem claro que sem Ele nada poderemos fazer (cf Jo 15, 8).


Consequentemente, a relacionamento vivo com Deus alimenta e fortalece também a comunhão com os outros, ou seja, quanto mais estivermos intimamente unidos a Deus tanto mais estaremos unidos entre nós, porque o Espírito de Deus une e o espírito do maligno divide.


A Cúria é chamada a melhorar-se, a melhorar-se sempre e a crescer em comunhão, santidade e sabedoria a fim de realizar plenamente a sua missão. No entanto, ela, como qualquer corpo, como todo corpo humano, está sujeita também às doenças, ao mau funcionamento, à enfermidade. E aqui gostaria de mencionar algumas destas prováveis doenças, doenças curiais. As doenças mais costumeiras na nossa vida de Cúria. São doenças e tentações que enfraquecem o nosso serviço ao Senhor. Creio que nos ajudará a ter o “catálogo” das doenças – nas pegadas dos Padres do deserto, que faziam tais catálogos – do qual falamos hoje: ajudar-nos-á na nossa preparação ao Sacramento da Reconciliação, que será um passo importante na preparação de todos nós para o Natal.


1. A doença do sentir-se “imortal”, “imune” ou até mesmo “indispensável” descuidando dos controles habitualmente necessários. Uma Cúria que não faz autocrítica, que não se atualiza e nem procura melhorar é um corpo enfermo. Uma simples visita aos cemitérios poderia nos ajudar a ver os nomes de tantas pessoas, algumas das quais pensassem talvez que eram imortais, imunes e indispensáveis! É a doença do rico insensato do Evangelho, que pensava viver eternamente (cf. Lc 12,13-21) e também daqueles que se transformam em patrões, sentindo-se superiores a todos e não ao serviço de todos. Esta doença deriva muitas vezes da patologia do poder, do “complexo dos eleitos”, do narcisismo que se apaixonada pela sua própria imagem e não vê a imagem de Deus impressa na face dos outros, principalmente dos mais fracos e necessitados. O antídoto para esta epidemia é a graça de nos sentirmos pecadores e de dizer com todo o coração: “Somos servos inúteis. Fizemos o que devíamos fazer” (Lc 17,10).


2. Outra doença: a doença do “martismo” (que vem de Marta), da atividade excessiva: ou seja, daqueles que mergulham no trabalho, descuidando, inevitavelmente, “da melhor parte”: sentar-se aos pés de Jesus (cf. Lc 10,38-42). Por isto Jesus convidou os seus discípulos a “descansar um pouco” (cf. Mc 6,31) porque descuidar do descanso necessário leva ao estresse e à agitação. O tempo do descanso, para quem cumpriu a sua missão, é necessário, obrigatório e deve ser levado a sério: passar um pouco de tempo com os familiares e respeitar as férias como momentos de recarga espiritual e física; é necessário aprender o que ensina o Eclesiastes: “Há um tempo certo para tudo” (Ecl 3,1-15).


3. Há ainda a doença do “empedernimento” mental e espiritual, ou seja, daqueles que possuem um coração de pedra e são de “dura cerviz” (At 7,51-60); daqueles que, com o passar do tempo, perdem a serenidade interior, a vivacidade a audácia e escondem-se atrás das folhas de papel, tornando-se “máquinas de práticas” e não “homens de Deus” (cf. Hb 3,12). É perigoso perder a sensibilidade humana, necessária para nos faz chorar com os que choram e alegrar-se com os que se alegram! É a doença dos que perdem “os sentimentos de Jesus” (cf. Fl 2,5-11) porque o seu coração, com o passar do tempo, se endurece e torna-se incapaz de amar incondicionalmente o Pai e o próximo (cf. Mt 22,34-40). Ser cristão, com efeito, “significa ter os mesmos sentimentos de Jesus Cristo” (Fl 2,5), sentimentos de humildade e de doação, de desapego e de generosidade.


4. A doença da planificação excessiva e do funcionalismo. Quando o apóstolo planifica tudo minuciosamente e pensa que, fazendo uma perfeita planificação, as coisas avançam efetivamente, ele se tornando um contabilista ou um comerciante. É importante preparar tudo muito bem, mas sem jamais cair na tentação de querer conter e conduzir a liberdade do Espírito Santo, que é sempre maior, mais generosa do que toda a programação humana (cf. Jo 3,8). Cai-se nesta doença porque “é sempre mais fácil e confortável acomodar-se nas próprias posições estáticas e imutáveis. Na realidade, a Igreja mostra-se fiel ao Espírito Santo na medida em que põe de lado a pretensão de regulamentá-Lo e de domesticá-Lo… - domesticar o Espírito Santo! - Ele é frescor, fantasia e novidade”.


5. A doença da má coordenação. Quando os membros perdem a comunhão entre si e o corpo perde a sua funcionalidade harmoniosa e a sua temperança, torna-se uma orquestra que produz barulho, porque os seus membros não cooperam e não vivem o espírito de comunhão e de equipe. Quando o pé diz ao braço: “não preciso de ti”, ou a mão à cabeça: “quem manda sou eu”, causa mal-estar ou escândalo.


6. Há também a doença do “alzheimer espiritual”: ou seja, o esquecimento da “história da salvação”, da história pessoal com o Senhor, do “primeiro amor” (Ap 2,4). Trata-se de uma perda progressiva das faculdades espirituais que num intervalo mais ou menos longo de tempo causa graves deficiências à pessoa, tornando-a incapaz de exercer atividades autônomas, vivendo num estado de absoluta dependência de seus pontos de vista, muitas vezes imaginários. É o que vemos naqueles que perderam a memória do seu encontro com o Senhor; naqueles que não têm o sentido deuteronômico da vida; naqueles que dependem completamente do seu presente, das suas paixões, caprichos e manias; naqueles que constroem em torno de si barreiras e hábitos, tornando-se, sempre mais escravos dos ídolos que esculpiram com as suas próprias mãos.


7. A doença da rivalidade e da vanglória. Quando a aparência, as cores das vestes e as insígnias de honra se tornam o objetivo primordial da vida, esquecendo as palavras de São Paulo: “Não façam nada por competição nem por desejo de receber elogios, cada um considere os outros superiores a si mesmo. Que cada um procure, não o próprio interesse, mas o interesse dos outros” (Fl 2,1-4). É a doença que nos leva a ser homens e mulheres falsos, e a vivermos um falso “misticismo” e um falso “quietismo”. O mesmo São Paulo os define como “inimigos da Cruz de Cristo”, porque se envaidecem da própria vergonha e só têm prazer no que é terreno” (Fl 3,19).


8. A doença da esquizofrenia existencial. É a doença daqueles que vivem uma vida dupla, fruto da hipocrisia típica do medíocre e do progressivo vazio espiritual, que nem doutoramentos e nem títulos acadêmicos podem preencher. Uma doença que atinge frequentemente aquele que, abandonando o serviço pastoral, se limitam às questões burocráticas, perdendo, assim, o contato com a realidade e com as pessoas concretas. Deste modo, criam um seu mundo paralelo onde colocam à parte tudo o que ensinam severamente aos outros e começam a viver uma vida oculta e muitas vezes dissoluta. A conversão é muito urgente e indispensável para esta gravíssima doença (cf. Lc 15,11-32).


9. A doença das bisbilhotices, das murmurações e das críticas. Já falei muitas vezes desta doença, mas nunca é demais. É uma doença grave, que começa de forma simples, talvez por duas bisbilhotices apenas, e se apodera da pessoa, transformando-a em “semeadora de cizânia” (como satanás), e em muitos casos “homicida a sangue frio” da fama dos seus colegas e confrades. É a doença das pessoas covardes que, não tendo a coragem de falar diretamente, fazem fofocas pelas costas. São Paulo nos adverte: “Fazei todas as coisas sem murmurações nem críticas a fim de serdes irrepreensíveis e íntegros” (Fl 2,14-18). Irmãos, guardemo-nos do terrorismo das maledicências!


10. A doença de divinizar os chefes: é a doença daqueles que cortejam seus superiores, esperando obter a benevolência deles. São as vítimas do carreirismo e do oportunismo, que honram as pessoas e não a Deus (cf. Mt 23,8-12). São pessoas que prestam serviço, mas vivem pensando exclusivamente no benefício que vão receber e não no que devem dar. São pessoas mesquinhas, infelizes e movidas apenas pelo seu próprio egoísmo (cf. Gal 5,16-25). Esta doença também pode atingir os superiores, quando eles cortejam alguns de seus colaboradores com o desejo e mantê-los submissos, leais e dependentes psicologicamente, mas o resultado final é uma verdadeira cumplicidade.


11. A doença da indiferença para com os outros. Quando cada um pensa somente em si mesmo e perde a sinceridade e o calor das relações humanas. Quando o mais experiente não coloca o seu conhecimento ao serviço dos colegas menos experientes. Quando se tem o conhecimento de alguma coisa e o esconde para si mesmo, em vez de partilhar positivamente com os outros. Quando, por ciúme ou por astúcia, se sente alegria ao ver o outro cair, em vez de erguê-lo e encorajá-lo.


12. A doença da cara fúnebre. Ou seja, das pessoas grosseiras e sisudas que pensam que, para ser sérias, é preciso pintar o rosto de melancolia, de severidade e tratar os outros – principalmente os que consideram inferiores – com rigidez, dureza e arrogância. Na realidade, a severidade teatral e o pessimismo estéril são muitas vezes sintomas de medo e de insegurança. O apóstolo deve esforçar-se por ser uma pessoa amável, serena, entusiasta e alegre, que transmite alegria por toda parte onde quer que se encontre. Um coração repleto de Deus é um coração feliz que irradia e contagia com alegria a todos os que estão à sua volta: é o que se vê imediatamente! Não percamos, portanto, aquele espírito jovial, bem humorado, e até auto irônico, que nos torna pessoas amáveis, mesmo em situações difíceis. Quanto bem nos faz uma boa dose de humorismo saudável! Far-nos-á muito bem recitar muitas vezes a oração de São Thomas More: rezo-a todos os dias; me faz bem.


13. A doença de acumular: quando o apóstolo procura preencher um vazio existencial no seu coração, ele acaba acumulando bens materiais, não por necessidade, mas só para sentir-se seguro. Na realidade, nada de material poderemos levar conosco, porque “a mortalha não tem bolsos” e todos os nossos tesouros terrenos – mesmo que sejam presentes – não poderão preencher aquele vazio; pelo contrário, torná-lo-ão cada vez mais exigente e mais profundo. A estas pessoas o Senhor repete: “Dizes: sou rico, enriqueci e nada me falta – e não percebes que és infeliz, miserável, pobre, cego e nu ... seja fervoroso e mude de vida” (Ap 3,17-19). A acumulação só pesa e freia inexoravelmente o caminho! Lembro-me de uma anedota: outrora os jesuítas espanhóis descreviam que a Companhia de Jesus era como a “cavalaria ligeira da Igreja”. Lembro-me de um jovem jesuíta que, de estava se mudando e, enquanto carregava num caminhão os seus muitos bens: bagagens, livros, objetos e presentes, ouviu um velho jesuíta, que o observava, dizer com um sorriso sábio: e esta seria a “cavalaria ligeira da Igreja?” As coisas que trasportamos e carregamos em nossas mudanças são um sinal desta doença.


14. A doença dos círculos fechados onde a pertença ao grupinho se torna mais forte do que a pertença ao Corpo e, em algumas situações, ao próprio Cristo. Esta doença também começa com boas intenções, mas com o passar do tempo, escraviza os membros do grupinho, tornando-se um câncer que ameaça a harmonia do Corpo e causa tanto mal – escândalos – especialmente aos nossos irmãos mais pequeninos. A autodestruição ou o “fogo amigo” dos companheiros é o perigo mais sorrateiro. É o mal que atinge a partir de dentro; e, como diz Cristo, “todo o reino dividido contra si mesmo será destruído”(Lc 11,17).


15. E a última: a doença do proveito mundano, dos exibicionismos, quando o apóstolo transforma o seu serviço em poder e o seu poder em mercadoria para obter lucros mundanos ou mais poder; é a doença das pessoas que procuram, insaciavelmente, multiplicar seu poder e, para isso, são capazes de caluniar, de difamar e de desacreditar os outros, até mesmo nos jornais e nas revistas. Naturalmente, para se exibirem e demonstrarem que são mais capazes do que os outros. Também esta doença faz muito mal ao Corpo, porque leva as pessoas a justificar o uso de todo e qualquer meio, contanto que atinja o seu objetivo, muitas vezes em nome da justiça e da transparência! Isto me faz recordar um sacerdote que chamava os jornalistas para lhes contar – e inventar – coisas privadas e reservadas dos seus confrades e paroquianos. Para ele a única coisa importante era aparecer nas primeiras páginas, porque assim se sentia “forte e fascinante”, causando muito mal aos outros e à Igreja. Pobrezinho!


Irmãos, estas doenças e tais tentações são naturalmente um perigo para todo cristão, para toda a Cúria, para toda Comunidade, Congregação, Paróquia, Movimento eclesial e podem nos atingir tanto em nível individual como comunitário.


É necessário esclarecer que somente o Espírito Santo - a alma do Corpo Místico de Cristo, como afirma o Credo Niceno-Constantinopolitano: “Creio... no Espírito Santo, Senhor e que dá vida” - pode curar qualquer uma destas enfermidades. É o Espírito Santo que sustenta todo o esforço sincero de purificação e toda boa vontade de conversão. É Ele que nos faz compreender que cada membro participa da santificação do Corpo ou do seu enfraquecimento. É Ele o promotor da harmonia: “Ipse harmonia est”, diz São Basílio. E Santo Agostinho observa: “Enquanto uma parte está ligada ao corpo, a sua cura não é impossível; mas uma parte que foi cortada não pode nem ser curada e nem tratada”.


O restabelecimento também é fruto da tomada de consciência da doença e da decisão pessoal e comunitária de tratar-se, suportando pacientemente e com perseverança a terapia.


Somos chamados, portanto – neste tempo de Natal e durante todo o tempo do nosso serviço e da nossa existência - a viver “segundo a verdade e na prática sincera da caridade, crescendo em todos os aspectos, em direção à Cristo, que é a Cabeça. Ele organiza e dá coesão ao corpo inteiro através de uma rede de articulações, que são os membros, cada um com sua atividade própria, para que o corpo cresça e construa a si próprio no amor” (Ef 4,15-16).


Queridos irmãos!


Certa vez li que os sacerdotes são como os aviões: são noticia somente quando caem, mas há tantos que voam. Muitos criticam e poucos rezam por eles. É uma frase muito simpática, mas também muito verdadeira, porque delineia a importância e a delicadeza do nosso serviço sacerdotal e o grande mal que um só sacerdote que “cai”, pode causar a todo o Corpo da Igreja.


Portanto, para não cair nestes dias em que nos preparamos para a confissão, peçamos à Virgem Maria, Mãe de Deus e Mãe da Igreja, que cure as feridas do pecado que cada um de nós traz no seu coração e que ampare a Igreja e a Cúria a fim de que sejam sadias e sanadoras; santas e santificadoras para a glória do seu Filho e para a nossa salvação e do mundo inteiro. Peçamos a Ela que nos faça amar a Igreja como o Cristo, seu Filho e nosso Senhor a amou, e que tenhamos a coragem de nos reconhecer pecadores e necessitados da sua misericórdia e que não tenhamos medo de abandonar a nossa mão entre as suas mãos maternais.


Desejo um santo Natal a todos vós, às vossas famílias e aos vossos colaboradores. E, por favor, não vos esqueçais de rezar por mim! Obrigado de coração!



TEXTO 4

A POBREZA (1)


Escrito em Nazaré no dia 11 de novembro de 1897.


Ó, meu Senhor Jesus, eis agora a questão da divina pobreza! Ó, como é importante que seja o Senhor mesmo a me ensinar a vivê-la! O Senhor que tanto a amou! Desde o Antigo Testamento, o Senhor mostrou sua predileção por ela... Em sua vida mortal, o Senhor a fez sua companheira fiel... e a deixaste como herança eterna para os santos, para todos aqueles que querem Te seguir, e para todos aqueles que querem tornar-se seus discípulos...


O Senhor ensinou a amar a pobreza com os exemplos de toda a sua vida, glorificando-a, santificando-a, proclamando-a necessária com suas palavras.. O Senhor escolheu como pais pessoas pobres e trabalhadoras... O Senhor nasceu numa gruta que servia de celeiro para os animais... O Senhor foi “pobre e trabalhador desde sua infância”(2)... Seus primeiros adoradores foram os pastores... Em sua apresentação no templo e na purificação de sua Mãe se fez a oferta dos pobres... o Senhor viveu trinta anos como pobre operário aqui em Nazaré, que tenho honra de conhecer, e onde tenho a alegria indizível, profunda, inexpressível, a felicidade de juntar e recolher estrume... Depois, durante sua vida pública, o Senhor viveu de esmolas no meio dos pobres pecadores que escolhestes como discípulos, “sem uma pedra onde descansar a cabeça”.


Para Santa Tereza d’Ávila o Senhor disse que: “muitas vezes dormiste no sereno porque não encontrou nenhum teto onde pudesse abrigar-se”(3)...


No calvário, o Senhor foi despojado das suas roupas, seu único bem, e os soldados tiraram a sorte para ver quem ficaria com elas... o Senhor morreu nu e foi sepultado, por esmola, no túmulo de um estrangeiro. “Felizes os pobres! O Senhor disse ... Se quiserem ser perfeitos, vendam tudo o que possuem, doem aos pobres, e sigam-me... ai de vós, ricos!... É mais difícil um rico entrar no reino dos céus do que um camelo passar pelo buraco de uma agulha!... Felizes os que têm fome! Felizes os que choram! Vendam o que vocês possuem, doem tudo em esmolas e vocês terão um tesouro no céu... Não fiquem preocupados para saber o que vocês comerão nem como vocês se vestirão, procurem o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo mais vos será acrescentado... Não tenha medo, pequeno rebanho, o vosso Pai te deu um reino,... os pássaros têm ninhos e as raposas tocas, mas o Filho do homem não tem um lugar para repousar a cabeça... O pobre Lázaro foi acolhido no braços de Abraão, mas o rico foi enterrado no inferno... Quem deixar, por causa de mim, a sua casa, os seus campos e os seus pais, receberá cem vezes mais neste mundo e no céu, na vida eterna... Dê a quem te pede, empreste a quem te implora, sem esperar nada em troco... Tudo o que você der a um destes pequeninos, é para mim que você estará dando, tudo aquilo que não fizer para eles, é para mim que vocês não estará fazendo... Àquele que quiser pegar teu manto, dê-lhe também a tua túnica... Não resistam ao mal!”


Meu Senhor Jesus, como não ficará rapidamente pobre aquele que, Te amando com todo o seu coração, sofre por sentir-se mais rico que o seu Bem Amado!... Meu Senhor Jesus, como não ficará pobre o mais breve possível aquele que, pensando que tudo aquilo que se faz a um destes pequeninos, é para o Senhor que estará fazendo, e que tudo o que recusar de fazer para eles, é para o Senhor que não estará fazendo. Ele aliviará todas as misérias ao seu alcance!...


Como fará o possível para empobrecer aquele que recebe com fé as palavras do Senhor: “Se quiseres ser perfeitos, vendam o que vocês têm e dêem-no aos pobres... Felizes os pobres... Quem deixar seus bens por causa de mim receberá, aqui na terra, cem vezes mais e no céu a vida eterna”... E tantas outras coisas! – Meu Deus, eu não sei como pode ser possível para certas almas verem o quanto o Senhor é pobre e desejarem ser ricas, imaginando-se maiores do que seu mestre, o seu Bem Amado; não querendo fazer tudo o que depende delas para assemelharem-se a vós, em tudo, principalmente no seu rebaixamento; eu quero muito que elas Te amem, meu Deus, mas, contudo, acredito que falta alguma coisa na maneira delas amarem, e em todo caso, eu não posso conceber o amor sem uma necessidade, uma necessidade imperiosa de conformidade, de semelhança e, principalmente, de partilhar todas as dores, todas as dificuldades e todas as durezas da vida... Ser rico, viver confortavelmente e tranquilamente de minha riqueza, enquanto você foi pobre, viveu sofrendo penosamente num trabalho duro! Da minha parte eu não posso meu Deus... Não posso amar assim... “Não é conveniente que o servo seja maior que o Mestre” nem que a esposa seja rica enquanto o Esposo é pobre, voluntariamente e perfeitamente pobre...


Santa Tereza d’Ávila, cansada de tanto resistir para que aceitasse dinheiro para o seu mosteiro em Ávila, às vezes quase aceitava, mas quando voltava para seu oratório e olhava a cruz, caia ao pés de Jesus, nu sobre esta cruz, e lhe suplicava a graça de nunca ter tanto dinheiro, e ser tão pobre quanto Ele... – Eu não julgo ninguém, meu Deus, os outros são vossos servos e meus irmãos e eu só devo amá-los, fazer-lhes o bem e rezar por eles; mas para mim é impossível entender o Amor sem procurar me assemelhar a Ele, sem partilhar as dores e sofrimentos, sem o desejo ardente de conformar minha vida a Ele, e sem a necessidade de partilhar todas as cruzes...


Então, não entendo como podemos Te amar sem desejar ser tão pobre quanto o Senhor o é, e sem tornar-se tão pobre quanto o Senhor, a menos que o Senhor não o queira... Também não entendo qualquer amor pelo Senhor, sem se lembrar de suas palavras no Evangelho de Mateus, no capítulo 25, “Aquilo que vocês fizerem a um destes pequenos, é para mim que estão fazendo... aquilo que vocês não fizerem para eles, é para Mim que vocês não estarão fazendo” porque, se recebemos estas palavras com simplicidade e fé, deveremos dar, distribuir o que temos com os pobres enquanto existirem pobres na terra. Agindo assim, nos tornaremos mais pobres que os pobres: foi isto que fizeram os santos: São Francisco, com seus primeiros companheiros e tantos outros santos. É a caridade para contigo, meu Deus, a quem nós nos doamos enquanto nos doamos aos outros: esta caridade para contigo, que é nosso primeiro dever, pede isto... A caridade para com o próximo que é o segundo dever conduz, da mesma maneira, ao mesmo resultado...


O desejo de perfeição, da salvação da sua própria alma, também conduz a este mesmo fim: “Se vocês desejam ser perfeitos vendam tudo o que vocês possuem...” Quem deixar sua casa, seus campos por causa de mim, receberá cem vezes mais nesta vida, e no futuro, a vida eterna”... “como é difícil para um rico se salvar!”... “Vendam o que vocês possuem e ajuntem tesouros no céu”: assim o Senhor nos conduz, por todos os caminhos, à santa pobreza...


O amor a Jesus, o amor ao próximo, o amor por nossa própria salvação; todos os três nos conduzem, igualmente, à pobreza e à pobreza perfeita, completa, semelhante à de nosso Senhor, “sem um lugar onde repousar a cabeça”...


O amor de Jesus nos conduz à pobreza por dois caminhos. Primeiro: a necessidade de imitá-lo e de partilhar as suas dores, segundo: o dever de aliviar seu sofrimento...


O amor ao próximo também nos conduz à pobreza pelo dever de aliviar suas necessidades...


O amor por nossa alma nos obriga a viver a pobreza porque Jesus fez da pobreza absoluta o primeiro degrau da perfeição, a primeira condição para se tornar seu discípulo... Como o Senhor quer, meu Deus, esta pobreza, já que a praticaste de tal maneira, que quiseste tomá-la como uma coisa muito bela, e nos inculcá-la pelos vossos exemplos e as vossas palavras como uma coisa muito bela e muito saudável, e por assim dizer, indispensável, sem a qual é impossível de Te amar e amar o próximo e quase impossível de salvar-se! E de fato os seus benefícios são imensos: o pobre que não tem nada, não ama nada nesta terra, tem a alma tão livre!... Para ele, tudo é igual: tanto faz ser enviado aqui ou acolá, pouco lhe importa, ele não tem nada e nem quer ter nada em lugar nenhum... Em todos os lugares, encontrará aquele de quem tudo espera, Deus que sempre lhe dará tudo, se for fiel. E isto é melhor para a sua alma, conforme a palavra de Deus: “buscai o reino de Deus e tudo o mais lhe será dado em acréscimo”.


Leituras bíblicas: Mt 5,1-12; Mt 6,19-34; Mc 10,17-31; Tg 5,1-6


NOTAS:


(1) Charles de Foucauld, “La dernière place” – Retraite à Nazareth, Ed. Nouvelle Cité, Montrouge, 2002, pg. 188-192


(2) Cf. Sl. 87,17.


(3) Tereza d’Ávila, Livro da Vida, V,33,12.


TEXTO 5

A CASTIDADE (1)


Escrito em Nazaré no dia 11 de novembro de 1897


Meu Senhor Jesus, diga para mim o que eu preciso pensar desta divina virtude... Preciso muito aprender isso do Senhor! Eu, que sou tão miserável, tão terreno, enlameado. Como é importante que seja o Senhor mesmo a me iluminar para que eu possa entender algo da beleza desta virtude celestial.


– “Meu filho, fui casto, escolhi uma mãe, um pai para me sustentar, um precursor e um discípulo amado, todos vivendo a castidade. Eu quis que em minha religião todos os sacerdotes e todas as almas que se consagrassem a mim, vivessem em castidade... No céu, as virgens têm uma auréola particular... Poucos são os santos que, em certo momento de suas vidas, senão sempre, não viveram na castidade...”


O primeiro mandamento consiste em amar a Deus acima de tudo... Quando amamos alguém assim, aceitaríamos casar-nos com outra pessoa? Não disse que aqueles que se casam não me amam, e sim que se eles me amassem com tal predileção eles não se casariam... Quando amamos alguém com todo o coração, com toda a alma e com todo o nosso espírito e com todas as nossas forças, a companhia desta pessoa bem-amada não somente basta, mas todo e qualquer outra pessoa se torna desnecessário. Aquele que realmente me deu todo o seu coração não pode desejar casar-se, isto lhe seria odioso: ele me pertence, e, portanto, como ele poderia se entregar a outro? Isto seria infidelidade! Quando amamos apaixonadamente, não podemos seguir a dois mestres e nem ter duas paixões... Para aquele que me ama de verdade, que me ama apaixonadamente, o meu amor é um laço sagrado, um casamento, e todo pensamento, toda palavra, toda ação contrária à castidade é uma infidelidade ao Esposo... A virgindade e a castidade não são, simplesmente, o estado de vida de uma pessoa que não se casou, mas é muito mais que isso, é o estado de vida de uma alma casada com o Esposo Bem-amado, com o Esposo perfeito, perfeitamente belo, perfeitamente santo, perfeitamente amável... E, este estado de vida é o estado normal, justo, verdadeiro, para o homem, porque a verdade e a justiça consistem em que ele me olhe e me veja como Eu Sou, que ele se apaixone pela minha beleza, me ame apaixonadamente, e me dê inteiramente todo o seu coração, de maneira que qualquer outra união lhe seja impossível, odiosa, e seja para ele uma infidelidade ao amor apaixonado com o qual ele se comprometeu a me amar.


‘Entreguem para Deus o que é de Deus’, isto, certamente, nada mais é que adorar a Deus em todo momento, dizer-lhe que o amamos, colocamo-nos em adoração diante do sacrário, de tal modo que não sobre nenhum espaço em nossa vida, nem em nosso coração, por um esposo terreno...


‘Vinde e veja o quanto o Senhor é suave’... Quando experimentamos o quanto o Senhor é suave, como podemos ficar desejando outra coisa que não seja passar apaixonadamente toda a nossa vida contemplando-O, adorando-O, procurando em tudo fazer somente a Sua vontade, longe das vaidades do mundo? Como podemos achar tempo, ou um instante que seja, para se dedicar a um marido/esposa?... Não. Todo o nosso tempo é para Ele, o Rei dos reis. Ele seduziu para sempre o nosso coração, nós o amamos e não queremos um amor terreno. Temos um Bem-amado em nosso coração e não sobra lugar para outro...


‘Aquele que não se casa preocupa-se somente com as coisas do céu e em como agradar a Deus... Já aquele que se casa fica dividido: ele quer agradar a Deus, mas, ao mesmo tempo, ele precisa preocupar-se com as coisas do século e em como agradar seu esposo/esposa...’


Nós, que vislumbramos o céu, morremos para o mundo... Nós queremos ser unicamente de Deus: Ele basta para o nosso coração. Nossos corações é que são insuficientes para lhe devolver todo o amor e a adoração que Ele merece... Não queremos ser divididos, mas ser inteiramente d’Ele... Amaremos os outros, como nossos irmãos e irmãs, por causa d’Ele, aos seus pés... mas seremos só para Ele... inteiramente entregues para Ele, totalmente para Ele... Conforme dizia Santa Tereza D’Ávila: ‘Minhas filhas, será que não basta ser totalmente para Deus’(2)...


Nós somos esposas, verdadeiramente casadas... esposas d’Ele porque assim o desejamos. E Lhe prometemos fidelidade para sempre... Como é humilde e suave que Ele, o Rei do céu, aceite como suas esposas cada uma destas almas pobrezinhas que se oferecem a Ele... Por vezes, é difícil encontrar um noivo na terra. No entanto, isto é tão pouca coisa perto d’Ele: um noivo terrestre é como cinza e pó, uma coisa ou quase nada!... Mas Ele, o Rei do céu, sempre podemos tê-Lo como noivo, se o quisermos... Ele aceita cada uma das almas: a mais pobre, a mais desprezada, a mais culpada, a mais suja, enfim, todas aquelas que se oferecem a Ele com o coração sincero... Ele as aceita todas e se entrega a cada uma delas!... Ó meu Deus, como o Senhor é tão bom!...


E a castidade consiste nisto: ser as esposas do Rei dos reis. Óh! como sorriem de piedade estas felizes esposas, vendo outras almas procurando esposos na terra! Isto é incompreensível aos olhos delas! Podemos escolher a Deus e acabamos escolhendo o homem! Podemos escolher o céu, mas escolhemos a terra! É uma loucura... a loucura daqueles que não vivem pela fé... É a fé que faz a vida da esposa de Cristo... ela vive na luz, ela sabe, ela vê... Ela vê que ela é a esposa de Jesus, a esposa do Rei dos reis, que o seu futuro é divino, que ela é bem-aventurada, que sua vida será um eterno Magnificat, que sua felicidade é incompreensível... que a loucura daqueles que, podendo escolher o céu, escolhem a terra é uma escolha infeliz e monstruosa... Eles, pobres habitantes do mundo, não vêem isto. Eles não ‘vivem pela fé’ e nem são iluminados por essas verdades. Eles andam nas trevas profundas. O que é nada lhes parece algo e o que é tudo, não lhes inspira nenhum desejo... O que não passa de um sonho, eles pensam que é a realidade. O que tem unicamente o ser, o que é para sempre, lhes parece um sonho... Eis ai a diferença entre a ‘vida de fé’ e a vida segundo o mundo, conforme a razão humana... Que luz, que esplendor, que bem-aventurança, que grandeza de um lado, pois subimos ao céu!... E do outro lado, que noite, que miséria, que erros, que pequenez, pois rastejamos semelhantes a insetos cegos!... Óh, como é bom, meu Deus, o Senhor ter me esclarecido com a vossa luz, ter-me colocado dentro deste dia tão puro, onde as verdades brilham iluminadas pelos raios de luz que de Ti emanam! Como o Senhor é bom! Obrigado pelas graças que o Senhor me concedeu! Óh, como estou feliz! Obrigado, meu Deus, por de me ter tirado desta lama tão suja e fedida que contamina o mundo, onde os que Te procuram, o fazem tateando. Meu Deus, obrigado por ter me colocado nesta luz tão pura! O que é que fiz para merecer isto? Obrigado, obrigado! Como eu estou feliz! Como o Senhor é tão bom!...


E você sente que deve agir de tal maneira, de forma invejável até, mas que é preciso te preservar do menor e do mais imperceptível pensamento contrário à castidade, por mais delicado que ele seja. Mais ainda, você deve preservar a castidade de toda palavra ou ação, porque é nela que se encontra a essência da fidelidade devida ao seu Bem-amado, a este Esposo que você ama apaixonadamente. E Ele também te ama apaixonadamente. Esse amor, Ele te provou morrendo para ti, te dando tantas graças e, enfim, te aceitando. E, além disso tudo, te chamando para ser sua noiva, sua esposa, no tempo e na eternidade, na claridade brilhante da fé e na felicidade infinita da glória.


Compromissos: agradecer constantemente o meu divino Esposo pela infinita graça que me fez, iluminando a minha vida com a certeza da fé e me fazendo ver o que significa ser esposa do Rei do céu... Agradecer-lhe sempre, muitas vezes, por ter me chamado e acolhido como sua esposa, Ele, que é tão grande, e eu, que sou tão pequeno... – Quero preservar-me, com uma determinação invejável, para não cometer nenhuma destas faltas, principalmente as mais imperceptíveis, seja em pensamento, em palavra ou ação, contra a castidade, porque são faltas diretamente cometidas contra a fidelidade que eu devo ao meu Esposo... E, vou me cuidar também para ficar horrorizado com tais faltas, para não cometê-las, por causa do compromisso de amor que tenho pelo meu Esposo.


Leituras bíblicas; Jeremias 20,7-9; Cântico dos Cânticos 3,1- 5,1; João 4,7-21


NOTAS:


(1) Charles de Foucauld, La dernière place" - Retraite à Nazareth, Ed. Nouvelle Cité, Montrouge, 2002, p. 183-188.


(2) Tereza de Ávila, Memoriais, IV, 14.


TEXTO 6

ASSUNTO DE FÉ, CONQUISTA DIÁRIA


Por ser uma opção, o celibato, em princípio, não poderia ser imposto. Entretanto, a atual legislação da Igreja Romana exige de seus sacerdotes o celibato. Ser sacerdote, hoje, na Igreja Romana é também ser célibe.


Fique a constatação, conscientemente sentida.


O Espírito e a História poderiam alterar a legislação, um dia. Hoje, um sacerdote católico é, deve ser, um célibe generoso.


Não por disciplina apenas, pois ninguém conseguirá ser célibe por disciplina só. Por fé, por espiritualidade, em vivência evangélica.


O celibato sacerdotal é um assunto de fé.


Somente na fé pode ser vivido com elegância, na alegria, como testemunho.


Não se trata de uma simples continência do sexo-coração, carne, fecundidade, paternidade. Trata-se de uma resposta "maior" a um chamado, de um seguimento "mais radical", de um serviço "mais disponível". Sem pretender, com isso, diminuir em nada outras respostas, outros modos de seguimento, outros serviços igualmente eclesiais. É "maior" a resposta para quem assim é chamado. O celibato sacerdotal - dom e mistério - é uma vocação peculiar dentro da grande vocação cristã.


Jon Sobrino, o jesuíta basco, teólogo em El Salvador, sublinhou oportunamente que o celibato bem vivido configura toda a pessoa do célibe. Não se pode ser célibe por partes, dicotomicamente, em tempos, até um certo tempo. Ser ou não ser: eis a oblação!


O celibato é uma "realidade totalizante da pessoa", uma forma de vida cristã "em relação com Mistério globalizante de Deus, em relação com a exigência globalizante do Reino".


O ser todo, toda a atuação, as reações e os relacionamentos de um célibe, que viva generosamente seu celibato, adquirirão um jeito celibatário.


A vida cristã supõe, demanda, uma crescente conversão, com exigências, rupturas e "escândalos". A vida cristã de um sacerdote célibe demanda uma conversão ou metanóia, que atinge o sexo e o amor em profundidade radical e reclama exigências e rupturas e provoca o evangélico escândalo.


Nem sequer dentro da Igreja entendem alguns o celibato. Como não entendem a vida contemplativa. Ou a opção real pelos pobres. Dentro ou fora, para muitos, o celibato é uma loucura mesmo. A loucura da Cruz, o escândalo do Reino. Nós sabemos que se pode amar o mundo como Deus amou, até o ponto de lhe entregar seu próprio Filho, sem se conformar "com este mundo".


Nem por isso o celibato haverá de ser uma mutilação despersonalizante, que nunca seria cristã, por não ser humana.


Devemos reconhecer que os métodos tradicionais de defesa e formação da castidade ou do celibato nem sempre foram equilibrados. Para ser casto ou célibe não é preciso renunciar à amizade, à comunicação, à alegria expansiva, à ternura. Secularmente a literatura anticlerical encontrou argumentos, por vezes fundados, para caricaturar o célibe como um solteirão ríspido, como um solitário amargurado, como a negação do amor e da vida. O que deveria ser testemunho virou blasfêmia.


Esses métodos, entretanto, conservam validez substancial no que se refere a certas exigências conaturais à castidade ou ao celibato.


- a oração,


- a humildade,


- a modéstia,


- o sacrifício,


- o jejum,


- a devoção mariana...


Por que não? Nem tudo é antiquado nessa provada antiga experiência. Há valores permanentes na espiritualidade, que não se circunscrevem a uma época ou a uma cultura. Ainda temos a carne e o coração dos padres do deserto...


Os antigos mestres da vida espiritual insistem, carregados de experiência, em vincular a humildade à castidade. Não se é célibe por um ato de vontade superior, que consegue prescindir olimpicamente das baixas necessidades da comum condição dos humanos...


O celibato é um assunto de fé e, por isso, um dom que se recebe humildemente, que se pede na oração, que se defende com ascética fidelidade, que se partilha - se protege - numa comunidade célibe ou que acredita no celibato. Porque se o celibato não é, não pode ser, uma mutilação despersonalizante, sim é uma dura renúncia. Eunucos pelo Reino, dizia Jesus, com violenta palavra, que poucos podem "ouvir". Uma pobreza que despoja, que humilha e até marginaliza, que não é reconhecida facilmente, (às vezes, porque o celibato de muitos, durante anos, séculos, não foi tão coerente e perdeu a credibilidade! Não é o voto, mas a vida que faz o célibe. Não é a lei, mas a alegria da entrega é que dá o testemunho).


Essa renúncia dói, doerá a vida inteira. Somente a morte - esse último sacramento universal - coroará na paz gloriosa a tensão ‘de uma vida celibatária’.


Não se é célibe de uma vez por todas, mesmo sendo-se fiel diariamente. O celibato é um processo de fidelidade, como a própria fé:


- A alegre fidelidade célibe de cada dia,


dai-nos hoje, Senhor!


Renúncia e não mutilação, disse. Em todo caso, como lembrou alguém, na vivência do Evangelho mais do que o homem "todo", pretendemos o homem novo, que é mais! Todos os argumentos que se vêm aduzindo a favor ou contra o celibato, apelando à psicologia, à realização pessoal, à convivência social, à natureza, não podem ignorar a graça.


O Novo Testamento nos apresenta o celibato na pessoa de Jesus e em sua palavra, como um jeito novo, que o Reino possibilita e exige às vezes. Paulo acredita que o celibatário pode cuidar mais dedicadamente "das coisas do Senhor", "de como agradar ao Senhor" (lCor 7,32) E pensando assim, crê "ter o Espírito de Deus".


Reproduzir celibatariamente a vida de Jesus célibe é, sem dúvida, um carisma que. não pode faltar à Igreja. Estar mais livre para o Reino, deixando "casa, mulher, filhos", "negar" o próprio corpo, o sexo, a realização natural do amor, pelo Corpo de Cristo, por causa do Reino, vale a pena, é evangélico, liberta, salva. O celibato é também uma maneira “martirial” de dar testemunho, de "perder a vida", encontrando-a mais larga, melhor partilhada, mais universal. Pode ser um "amor maior" o celibato verdadeiro.


Dois poemas meus tentaram dizer isso tudo. Um soneto, em espanhol, dedicado "a unos muchachos que aspiram a ser célibes":


"... No es que dejéis el corazón sin bodas.

Habréis de amarlo todo, todos, todas,

discípulos de Aquel que amo primero

Perdida por el Reino y conquistada,

será una paz tan libre como armada,

será el Amor amado a cuerpo entero".


E uma "cantiga menor":

"Quem não tem o seu amor,

pode não amar ninguém...,

mas pode amar a todos

também!"


Jon Sobrino explicitava a opção do celibato:

- como seguimento agradecido, por amor

- como paixão pela Missão

- como protesto contra "o pecado do mundo": a erotização, a exploração, a miséria, o consumismo, a privatização dos bens, o hedonismo, a insultante fartura dos privilegiados...


No passar "da própria realização pessoal para a libertação dos oprimidos", a Espiritualidade da Libertação dá um novo conteúdo bem nosso, tipicamente latino-americano, de Terceiro Mundo, ao celibato vivido como santidade também política, historicamente "ubicada". O Continente "da morte e da esperança", "a Civilização do amor" e "da pobreza" necessitam de total e livre disponibilidade dos célibes sinceros. Anunciando "os bens futuros", o celibato pelo Reino exige a partilha dos bens presentes; ajuda a fazer da vida toda uma eucaristia: acolhida, escuta, louvor, mesa, comunhão, serviço, Páscoa.


Tudo o que o celibato tem de renúncia exige de compensação, que não será precisamente uma fraudulenta sublimação freudiana. Viver a paixão do Reino, "servir ao Senhor com alegria, caminhar para Ele jubilosos", viver numa comunidade fraterna, partilhar, se sentir bem no meio do povo, fazer de sua família a própria família, trabalhar pastoralmente com entusiasmo, ler, estudar, descansar também e brincar, manter o bom humor... Não havendo uma básica harmonia de vida, dificilmente haverá uma vivência harmônica do celibato. A carne em ordem, em ordem o coração, o tempo e as coisas em ordem. O celibato não comporta uma bagunça existencial.


Sentindo-me celibatário, pensando no celibato dos companheiros de caminhada, escrevi um dia, rodando por essas estradas do Mato Grosso, este poema, que poderia resumir, cantando, o que ensinei na prosa corrida deste texto:


CANTIGA CÉLIBE


Na noite donzela, o dia rapaz, brava porém bela

crio a minha Paz.


Vivo solidão,

mas gerando Povo.

E o meu coração

envelhece novo.


Noivando a Esperança

noivei todo amor.

Ganhei toda herança

na Cruz do Senhor.


Indo só, eu venho

Recolhendo os meus.

E a Pátria que tenho

é o rosto de Deus.


Pedro Casaldáliga - Bispo de São Félix do Araguaia - MT - Julho de 1988.



TEXTO 7

RESSURREIÇÃO E ASCENSÃO DE JESUS (1)


Escrito em Nazaré no dia 11 de novembro de 1897.


Meu Deus, eis que as doçuras aumentam! Primeiro era Jesus crucificado que o Senhor queria que eu contemplasse, agora é Jesus ressuscitado e subindo aos céus. Inspire-me, meu Deus, única fonte de todo bem...


Faça com que meus pensamentos sejam de acordo com a Tua vontade, segundo esta vontade que desejo no mundo... Meu Deus, eu deixo tudo, tudo, tudo, eu não peço nada, nada, nada, exceto o cumprimento de Tua bendita e bem amada vontade: por Ti, contigo e em Ti.. Mas, meu Deus, o Senhor é tão bom que, quanto mais eu perco por sua causa, mais eu ganho! Pois a Sua vontade contém todos os bens que eu preciso, todos as verdadeiros bens deste mundo (a santidade), e todos os bens do outro mundo (a glória eterna)...


Meu Deus, como o Senhor é Bom! E como é verdade que aquele que deixa tudo e Te segue, recebe o cêntuplo neste mundo e a vida eterna, no outro!... É assim que estou me sentindo neste momento em que estou fazendo a doce experiência deste bendito retiro espiritual em Nazaré, neste ninho tão doce que o Senhor me preparou e onde me escondeu tão bem.


O Senhor ressuscitou e subiu aos céus! Agora está em sua gloria! O Senhor não sofre mais e nunca mais sofrerá. O Senhor está feliz e o será por toda a eternidade...Meu Deus, se eu Te amo, como eu devo ser feliz! Se é para agradar ao Senhor, eu desejo isso acima de tudo. E como devo me alegrar, como devo ficar satisfeito e feliz por isso. Meu Deus, o Senhor é eternamente feliz! Nada Te falta!


O Senhor é infinitamente e eternamente feliz. Eu também sou feliz, meu Deus, porque é ao Senhor que eu amo acima de tudo, principalmente, soberanamente, incomparavelmente mais que todas as outras coisas juntas. Posso até dizer que o Senhor é meu único amor, já que, por tua causa, não amo todas as outras coisas (porque é a Tua vontade, e porque a bondade que me impulsiona é uma virtude divina, uma perfeição divina, que é a Sua própria essência, que é o Senhor mesmo. Consequentemente é meu dever seguir e escutar. Escutar a bondade é, ainda, Te escutar, Te seguir no caminho, porque a Bondade é o Senhor mesmo)... Porque eu Te amo assim, meu Deus, eu posso dizer seguramente que nada me falta, que sou feliz, que estou no céu, que não importa o que acontecer comigo ou no mundo inteiro, eu sou feliz por causa de Tua felicidade.


Ainda sinto falta de alguma coisa. Portanto, por obediência às tuas ordens, e por imitação de teus exemplos, e por respeito e amor pelos Teus filhos bem amados, e por respeito e amor com Tuas criaturas e por obediência ao que a bondade nos pede, eu devo desejar o céu não somente por causa do Senhor, mas também por causa de mim e por todas as almas humanas do presente e do futuro... Eu sinto esta falta, do mesmo jeito que o Seu coração a sentia neste mundo.... Isto me faz suspirar, e deve me fazer suspirar e trabalhar toda minha vida... Mas, enfim, este amor humano, este amor por mim mesmo, e este desejo de buscar a felicidade estão em segundo plano. O mais importante ocupa um lugar tão importante, que o resto está misturado nele e é como um nada ao lado do tudo, um átomo ao lado do infinito. Este “mais importante”, o soberano, este tudo é o Senhor, meu Deus, é o vosso amor, é a vossa felicidade ó meu divino Salvador! O Senhor é feliz para sempre! De fato, resta-me desejar minha felicidade e a dos outros homens...


Mas quem somos nós em comparação ao Senhor? Que lugar devem ocupar, na verdade e no meu coração, todos os homens juntos, ao lado de seu Criador? E o que é finito diante do infinito? Provavelmente estes assuntos são objeto de Teu amor e devem também, ser objeto do meu amor. Mas sou tão pequeno perto do Senhor! Como um átomo ao lado do Ser soberano, do Criador de tudo, daquele que É! Como o Senhor é feliz.... Eu não tenho o direito de falar que minha felicidade é absolutamente perfeita, enquanto estou aqui no mundo e o Senhor quer que eu doe um pouco do meu coração à todos os homens, seus filhos. Mas, se isto não é absolutamente perfeito, está bem próximo de ser! A que ponto se aproxima da felicidade e tende à ela! Junto ao Senhor, tudo desaparece. Eu não devo esquecer estas criaturas que o Senhor ama, mas elas são tão apagadas, tão pequenas diante de Ti, meu Deus! Ó meu Deus, como o Senhor é feliz! Eu ainda sinto falta de alguma coisa, e o Senhor quer que seja assim, mas não é! É Tua vontade que eu sinta falta de alguma coisa, mesmo que não possa tê-la e que eu esteja próximo, vendo a Tua felicidade de Ser Perfeitamente feliz! Obrigado pela Tua glória, obrigado por Tua ressurreição, obrigado por Tua ascensão, obrigado por sua imensa glória “agimus tibi gratias propter magnam gloriam tuam”(2), obrigado, obrigado, obrigado! Como sou feliz! O Senhor é a Felicidade sem fim. Eu sou feliz! Como eu sou feliz!


NOTAS:


(1) Charles de Foucauld, La dernière place” – Retraite à Nazareth, Ed. Nouvelle Cité, Montrouge, 2002, p. 86-89.


(2) “Nós te agradecemos por tua imensa glória!”


TEXTO 8

«QUANDO A GENTE PODE SOFRER E AMAR, A GENTE PODE MUITO»

Dois textos escritos no dia 01/12/1916:

· «Quando a gente pode sofrer e amar, a gente pode muito... Isto é verdade, a gente jamais amará suficientemente; mas o bom Deus, que sabe de qual lama Ele nos fez e que nos ama muito mais do que uma mãe ama seu filho, nos falou, Ele que não mente, que não rejeitará aquele que vai a procura dEle » (Carta a Marie de Bondy).


· «Nunca devemos hesitar para pedir os cargos aonde o perigo, o sacrifício, a dedicação, são os maiores: a honra, deixarmos ela para quem a deseja, mas, o perigo, o cansaço, sempre peçamos a Ele. Cristãos, devemos dar o exemplo do sacrifício e da dedicação. Isto é um principio obrigatório ao qual temos de ser fiel a vida inteira, com simplicidade ». (Carta a Louis Massignon)


“Quem arriscar-se de entrar nos caminhos de lama da vida... vai se salvar” (cf. Papa Francisco).


No decorrer de nossas vidas, percebemos que, quando mais nos comprometemos com os pobres, quanto mais carregamos as cruzes com eles, mais nos aproximamos de Jesus, e mais sofremos também!


4º conselho de Jesus: quem tem vergonha de mim, eu também terei vergonha dele, diante de meu Pai.


O desejo de morrer


· « Ó ! como eu queria morrer, meu Deus, para não mais pecar, para parar de ser infiel! Ó! Meu Deus. Tem mais outras coisas que devem me fazer desejar a morte, mas aquela é a causa que fica na frente de todas neste momento... Que venha rapidamente esta hora em que nunca mais Ter entristecerei » (03/04/1898)


O pensamento da própria morte nos ajuda a relativizar muitas coisas em nossas vidas, e a ser mais humildes.


São Paulo nos diz: “tudo considero como perda por causa do Cristo” (Fl 3,7-14) e se identifica cada vez mais com a morte de Jesus.


· « Se a doença, o perigo, a visão da morte batem na porta, que o desejo da nossa dissolução para ver Jesus se reaviva. A doença, o perigo, a visão da morte, é o chamado: 'Eis que esta vindo o Esposo, saiam na frente dEle !' Espero logo estar unido para sempre (...) com Ele que nós unicamente amamos, que é toda a nossa vida, todo o nosso desejo, todo o nosso bem, todo o nosso amor, unido ao Nosso Bem-Amado Senhor Jesus » (Diretório)




O desejo de ser mártir


Em 1902, o irmão Carlos escreve várias vezes sobre este seu desejo...


· « Se vocês sabiam o quanto eu desejo terminar a minha pobre e miserável vida, tão mal iniciada e tão vazia, daquela maneira que Jesus disse na noite da Ceia que não tinha amor maior do que dar a sua própria vida por aquilo que a gente ama... Disto, sou indigno, mas eu o desejo tanto! » (08/06/1902)


· « Vivas hoje como se, nesta noite, tu devias morrer mártir »


· « Viver cada dia como se fosse o último e investir nele o melhor de si mesmo, isto já é dar sentido a sua vida ».


O desejo de viver


· « Não posso dizer que desejo a morte; outrora, a desejava; agora, vejo tanto bem para fazer, tantas almas sem pastor, que desejaria, sobretudo fazer um pouco de bem e trabalhar um pouco pela salvação destas pobres almas : mas o bom Deus ama elas mais do que eu e Ele não precisa de mim. “Que seja feita a sua vontade...» (20/07/1914).


· «... me ensine a viver e morrer com as suas últimas palavras nos lábios e no coração: « Meu Deus, suspiro por Você, eu queria deixar a vida para convosco estar unido, mas se ainda estou útil aqui na terra, não me recuso ao trabalho » (11/11/1897).


Quem reduz sua vocação a ser funcionário da Igreja, não vai muito longe!


· « Ver que me torno velho e que estou descendo o declive, isto me dá uma perfeita alegria: isto é o começo desta dissolução que fica boa para mim. Mas, eu queria que a vontade unisse-se mais ao Esposo na medida em que mais se aproxima esta hora, quando ouviremos: Ex iste obviam Ti! Saiam na frente d’Ele » (30/10/1903).


Nossa vocação é amar. Todos podemos amar.


Como o grão lançado na terra


· « Quando o grão de trigo que cai na terra e não morre, ele fica só; se morrer, ele dá muitos frutos. Não morri, então sou só. Rezem pela minha conversão, afim de que morrendo, eu dê frutos ». (15/12/1904)


· « Meu Senhor Jesus, que disse: 'Ninguém tem maior amor que aquele que dá a sua própria vida pelos seus amigos', de todo o meu coração, desejo dar a minha vida por vós. Agora, eu Lhe peço: mas, não a minha vontade, e sim a sua. Eu Lhe ofereço a minha vida: faça de mim o que mais vos agradará. Faça que eu morra glorificando a Vós o mais possível... Meu Deus, perdoe os meus inimigos, dê-lhes a salvação! Amem ».


· « Igual ao grão do Evangelho, devo apodrecer na terra, no Saara, para preparar as futuras colheitas. Tal é a minha vocação ».


Textos bíblicos: Rm 6, 5-11; Gl 2,20; Jo 11,20-27; Jo 6,54-58


TEXTO 09

A EUCARISTIA (1)

Escrito em Nazaré no dia 7 de novembro de 1897.


Meu Senhor Jesus, o Senhor está vivo no céu, na Santa Eucaristia, em Tua Igreja, nas almas dos fiéis... No céu e na Santa Eucaristia o Senhor está todo inteiro, homem e Deus, corpo e alma... Por tua graça, o Senhor está em tua Igreja e na alma dos fiéis, pois Deus é onipresente.


O Senhor está no céu, na sua infinita glória, rodeado de anjos e santos dos quais é a fonte da felicidade... Eles vêem no Senhor, meu Deus, o seu supremo bem, e o vêem como seu salvador bem amado. Eles vêem unidos em Tua única pessoa, meu Deus, o Deus infinito, que é o seu tudo e o tudo de todas as coisas, e o mais belo dos Filhos dos homens, inefavelmente unido e formando contigo, uma só pessoa...


O Senhor nos chama, nos espera, nos estende a mão e nos sustenta, e nos apoia para que nós também possamos aproveitar desta felicidade, para que “estejamos onde o Senhor está” e para que vivamos no céu, aos teus pés, na eternidade... Que alegria saber que o Senhor é tão feliz! Que alegria ser chamados pelo Senhor para compartilhar desta bondade inefável. Como somos felizes! Como o Senhor é bom!


O Senhor está na Santa Eucaristia, meu Senhor Jesus! O Senhor está aqui, a um metro de mim, neste sacrário! Teu corpo, Tua alma, Tua humanidade, Tua divindade, o Teu ser todo inteiro está aqui, em suas duas naturezas! O Senhor está perto, meu Deus, meu salvador, meu Jesus, meu irmão, meu esposo, meu Bem-amado! O Senhor não estava mais próximo da Virgem Maria, durante os nove meses que ela O carregou em seu ventre, do que de mim, agora, quando O recebo em minha língua na Santa comunhão.


O Senhor não estava mais próximo da Virgem Maria e de São José na Gruta de Belém, na casa em Nazaré, na fuga para o Egito, durante todos os instantes desta sagrada vida familiar, do que de mim, agora, tantas vezes diante deste sacrário!


Santa Maria Madalena não estava mais perto do Senhor, sentada aos seus pés em Betânia, do que eu aqui aos seus pés neste altar! O Senhor não estava mais perto dos seus apóstolos, quando estava sentado no meio deles, do que perto de mim neste momento, meu Deus!...


Como estou feliz, muito feliz, muito feliz! Ficar sozinho em minha cela e conversando com o Senhor no silencio da noite, é uma bênção, meu Senhor; e o Senhor está aqui como Deus, assim como por Tua graça; entretanto, ficar em minha cela quando eu poderia estar diante do Santíssimo Sacramento é agir como se Santa Maria Madalena, quando o Senhor estava em Betânia, tivesse abandonado seu corpo bem amado deixando-o sozinho e tivesse ido para o quarto onde ficaria sozinha, pensando no Senhor.


Beijar os lugares que o Senhor santificou com sua vida mortal: as pedras do Getsemani e do Calvário, o chão do caminho da Cruz, as ondas do Mar da Galileia, tudo isso é agradável e piedoso, mas preferir isto ao sacrário é abandonar a Jesus vivo e próximo de mim, deixá-lo sozinho e ir, sozinho, venerar as pedras mortas onde Ele não está. É deixar o quarto onde Ele está, abandonando sua divina companhia para ir beijar a terra de um lugar onde Ele já foi um dia, mas não está mais.


Abandonar a adoração, diante do sacrário para ir venerar as imagens dos santos é deixar Jesus vivo e próximo de nós, e ir num outro lugar onde ele não está e rezar diante do seu retrato.... passar o tempo em que o nosso dever, sua vontade, nos permite ir a outros lugares que diante do sacrário, é pensar que há coisas melhores no mundo do que estar aos seus pés; é poder ir nos colocar de joelhos, poder ir perto d”Ele, mas não o fazer; é uma triste falta de amor, sem calor. É uma grande loucura acreditarmos que há alguma coisa melhor para a gloria de Deus do que estar aos seus pés. Jesus é a fonte de todo bem: se Ele nos permite ir aos seus pés, então vamos! O proveito da alma, sua glória, é que nós O amemos tanto quanto possível. Amá-Lo o mais possível é tudo o que precisamos, é tudo o que Ele precisa no tempo e na eternidade...


O nosso dever cotidiano pode nos forçar, e infelizmente nos obriga constantemente, a estar longe d’Ele. Mas quando não há uma obrigação que nos afaste do sacrário, quando há dúvida e incertezas, então, vamos em frente, este é o lugar onde o Amor nos chama e o primeiro mandamento é para amar..... Lembre-se meu filho dos anos que se passaram.... Recorda as lições que Eu te dei... Quando se ama, não se sente bem, perfeitamente bem, empregando todo o tempo para ficar perto daquele a quem amamos? Não é o tempo melhor empregado, salvo aquele onde a vontade, o bem do ser amado nos chama em outros lugares... Faça assim... Sempre que minha vontade (que no meu amor se confunde com meu bem, isto não é para o Senhor uma pequena alegria) não te buscando em outros lugares, O Senhor vem até mim, como na casa de Maria e José, de Madelena, em Bethânia e permanece ai tão longo tempo quanto minha vontade te permitir ... Esta é a única coisa necessária(2)... porque é a conduta e a maneira do amor agir ... fica meu filho, fica ao pé da Hóstia Consagrada, onde quer que ela esteja. Aproxime-se dela o mais que puder, tanto quanto minha vontade te permitir: se minha vontade te separar da Hóstia Consagrada, vá, vá embora feliz por estar fazendo minha vontade, mas triste, e não muito feliz, por estar deixando meu corpo dado por você, meu coração que te ama, minha alma humana tão santa. Vá embora, mas volte assim que minha vontade te permitir novamente. Aproxime-se de mim tanto quanto Eu te permitir, aos pés do sacrário, da Hóstia consagrada exposta para adoração, do altar onde se celebra a missa; todos os outros lugares por mais santos, santificados e acolhedores que sejam, são pedras mortas, uma terra morta; teu Jesus não está lá...


Em todo lugar onde estiver a Hóstia Consagrada, ali está o Deus vivo, é teu Salvador tão real como quando Ele estava vivo e falando na Galileia e na Judeia ou como Ele está agora no céu... Aproxime-se d’Ele recebendo-O constantemente na santa comunhão: não deixe de comungar nenhuma vez por tua falta. Uma comunhão é mais que a vida, mais que todos os bens do mundo, mais que o universo inteiro, é Deus Ele-mesmo, é meu Jesus! Você pode me preferir à qualquer coisa, você pode, se me amar pouco, perder voluntariamente a graça que Te dou de entrar assim em tua vida!...


Ame-me de todo teu entendimento, de todo teu coração e com toda a simplicidade do teu coração. Considere que, na Hóstia Consagrada, Eu estou todo inteiro, Eu, teu Jesus, e em nenhum outro lugar estarei, senão for o céu...


Venha, fique comigo aos meus pés, bem pertinho de mim tanto quanto possível, durante cada momento de sua vida, enquanto minha vontade não te pedir claramente para ir em outros lugares.... Não me encontrarás em nenhum outro lugar, nem mais, nem tanto que aqui, porque estou aqui, Eu, seu tudo, Eu, o tudo de tudo... O que vocês vão encontrar em outros lugares, santuários, devoções para todos os gostos, romarias aos santos e peregrinações, solidão, silêncio? Mas o que é tudo isto perto de mim? A criatura ao lado do Criador, as pedras mortas ao lado do Deus vivo, um nada ao lado do tudo...


Venha meu filho, venho, eu estou aqui, Eu, teu Jesus, que chama seus filhinhos.... Venha com toda simplicidade do teu coração, descanse um pouco sobre o meu peito, dê-me todo seu amor, Eu estou aqui, o tudo... todos os outros lugares da terra são o vazio e o nada. Ao pé de cada sacrário, em toda Hóstia consagrada está o infinito: Eu, seu Deus, seu amor, seu Jesus, seu tudo, seu esposo Bem-amado e divino, seu fim supremo, tudo que te é mais precioso sobre a terra e nos céus, seu Salvador que te ama, que te chama, que te espera e pede seu amor, que quer te convencer que só há uma coisa necessária: amá-Lo, ficar a seus pés, contemplando-o, amando-o e escutando a sua voz, como o amado ajoelhado aos pés de sua amada, como Madalena, sempre que sua vontade não mandá-la para outro lugar mais longe...


Quanto ao sacerdócio, não te direi nada neste momento, meu filho; você já tem uma boa parte, guarde-a e seja muito feliz e agradecido com ela, permanecendo sempre obediente à minha vontade... Considere que, sendo padre, você poderá ter, e provavelmente terá, menos tempo para permanecer aos pés do altar.


NOTAS:


(1) Charles de Foucauld, “La dernière place” – Retraite à Nazareth, Ed. Nouvelle Cité, Montrouge, 2002, pg. 90-95.

(2) Cf. Lc 10,42.