07ªPARTE

TERCEIRA PARTE: O IDEAL DAS FRATERNIDADES – 1º CAPÍTULO: IRMÃOZINHOS DE JESUS

(Escrita em El -Abiodh-Sidi-Cheikh, 07/02/1948)

“Desejaria ajudá-lo, Irmãozinho de Jesus, a realizar aquilo que seu nome encerra de verdade sobre sua vida e aquilo a que ele o obriga”.

O Pe. De Foucauld muito amou esse nome, porque exprime o ideal que enchia o seu coração.

Queremos ser Irmão de Jesus por meio de toda a nossa vida. Não nos demos a um ideal, nem a uma perfeição, mas a uma Pessoa bem viva, a um Deus, que é nosso irmão, porque é homem também. “O Cristo Jesus resume para nós toda a razão de ser de nossa vida”.,

Nossa finalidade essencial é “aprender a viver no meio do mundo uma amizade total e verdadeira por Jesus. É ele que é amado antes de tudo, é por ele que trabalhamos,(...) penamos e sofremos”. É para atendermos ao chamado de Seu Amor que queremos ficar horas a Seus pés para amá-lo como nosso Deus, amigo e irmão, “como tão bem o soube fazer o Padre de Foucauld.

O primeiro esforço = encontro pessoal com Cristo, que não deixará que nos extraviemos. A ele entregamos nossa vida. Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida.

Em seguida= nossa vida deve tender a simplificar-se numa união com Jesus vivo na Eucaristia, Evangelho, nos irmãos. É por causa dele que nos daremos inteiramente às pessoas, principalmente às mais oprimidas, injustiçadas, suas preocupações, fadigas e trabalho. Jesus nos ama e O encontramos nelas.

Hoje são tantos os problemas simultâneos que se entranham em valores de todas as ordens, e esmagam as pessoas em suas fraquezas e limitações. O cristão se empenha por amor nessa gigantesca tarefa, ou seja, lutar para “fazer cessar a injustiça na terra e instaurar nela condições de vida não só humanas, mas também cristãs.”

Nessa tarefa não se pode “perder de vista Jesus, o Cristo, sem o qual, o mundo já não terá nenhum sentido.(...) A tentação é grande, até mesmo para o cristão e para o apóstolo, de já não ter mais tempo de olhar Jesus e de amá-lo por ele mesmo” (=gratuitamente).

Nosso papel é esse: ser o “olhar” da humanidade presente pousado em Jesus, ser uma presença permanente, delegado da multidão que esquece e portador diante dele de sua adoração, pedidos, queixas e faltas”. Onde você estiver, estará perto de Jesus”. Na procura obscura de seu amor, porque é Ele que é a única fonte de sua vida.

“O Padre de Foucauld ensina-nos a ir diretamente a Jesus, a viver por ele a simplicidade, com todo o nosso amor, depois de tê-lo encontrado no Evangelho”. Simplificar a nossa vida. Conduzir-nos ao essencial. Nunca houve a pretensão de que esta seria uma “nova espiritualidade”.

Apesar de simples, não é um caminho facilitado, nem contornável, no que se refere às exigências às vezes brutais do Evangelho. A impaciência do amor encurta o caminho tomado que sobe reto e leva, sem desvios, ao fim. Nisso ele é discípulo de S. Francisco de Assis, João da Cruz, Sta. Teresinha de Lisieux.

Há uma única maneira de amar e doar-se: a que conduz até o heroísmo do dom de si. Os meios necessários: método, exercícios, disciplina ascética, que sejam simples e apropriados para conseguir estabelecer em si o perfeito amor de Deus e de seus irmãos, trazendo tudo novamente ao essencial. Imitar Jesus, seu “bem-amado Irmão e Senhor”.

O Irmãozinho deve tomar o mesmo caminho do Ir. Carlos: seguir a Jesus generosa, paciente e às vezes heroicamente. Não vamos adquirir milagrosamente remédio para as nossas fraquezas e para as nossas lentidões, buscando outra espiritualidade ou multiplicando as leituras. Acabamos complicando tudo de medo de viver o Evangelho. “Continuemos a ser simples e, corajosamente, um Irmãozinho de Jesus. É unicamente por Ele e para Ele que devemos viver.

COMO DEVEMOS AMAR

“Não temos outra coisa a fazer, entre os seres humanos, que amá-los, não com um amor qualquer, mas com todo o amor que Deus tem por eles.” Nisso consiste nossa única e principal tarefa.

Libertar, purificar, aumentar nossa capacidade de amar e nossa ternura humana e entregá-las ao Amor misterioso de Cristo, para que ele nos permita, de fato, amar profundamente, realmente, todas as pessoas sem exceção e amar cada um dos que se aproximam de nós, pelo que eles são, por eles mesmos” (gratuitamente).

VOCÊ É PEQUENINO!

Bem pequenos somos, diante de tais exigências. Isso não nos deve esmagar, mas nos colocar nas forças de Jesus.

Radical incapacidade que se transforma num abandono de criança certo de ser atendido à custa de oração, desejo, perseverança e humildade. Tornar-se pequenino. Nada é impossível para Deus. Pequeninos também diante das pessoas.

Servidores inúteis que preferem ser tratados como tais. Nenhuma tarefa definida de apostolado ou de ministério, nenhum rendimento mensurável que engrandeça nossa vida!

Religiosos totalmente consagrados a Jesus, mas com aparência muitas vezes de não o sermos. Pobrezinho. Operário trabalhador como os outros. Tratado como os outros, em qualquer país ou região. Sempre no último lugar. Somos da classe dos pobres. Amar toda sua servidão e sofrimento.

Para que isso seja verdadeiro, o coração deve ser humilde, livre de todo amor próprio, entregue sem reserva ao amor do Crucificado. “É obra de toda uma vida, que precisa ser recomeçada cada manhã.”

“Descobrir Jesus, amar a Jesus, viver por Ele, ser literalmente devorado, sem descanso, por um grande desejo de amar a todos com a verdadeira ternura de um irmão, ter ambição de não ser na terra senão um pequenino, um pobre operário que ninguém conhece: Eis o que significa o seu nome, Irmãozinho de Jesus, e o que você deve, todos os dias, esforçar-se para realizar em sua vida,entregando-se num humilde e confiante abandono à ação do Espírito de Amor”. (El-Abiodh- Sidi- Cheikh, 07/02/1948)

CAPÍTULO 2 DA 3ª PARTE:- SALVADORES COM JESUS

“O evangelho é uma vida”. Simples, rapidamente exprimido, mas tudo consiste em vivê-lo. Isso não se faz num só dia. Os mesmos problemas que temos, nos parecem sempre novos. É como o ser vivo que é, ao mesmo tempo o mesmo e constantemente novo.

Relendo o que lhes dizia antes da fundação da Fraternidade Operária sobre nossa vocação contemplativa, tenho a convicção de ter descoberto tudo de novo. As dificuldades encontradas, as alegrias e os sofrimentos dos irmãos. Se tiver que repetir-lhes as mesmas coisas, será de um outro modo, correspondendo de maneira concreta às suas necessidades.

O QUE É A VIDA DE NOSSAS FRATERNIDADES.

Tenho dificuldade de explanar esse assunto de maneira clara,quando as dúvidas que se me colocam são sobre “gênero de vida”, “horário” ou “atividades”. Não se trata disso! Não consigo exprimir numa fórmula todo o nosso ideal. Nossa vida parece complexa e contraditória em alguns elementos, à primeira vista. O Irmãozinho deve:

-Ser ao mesmo tempo um trabalhador e um homem de oração.

-Guardar o silêncio e ao mesmo tempo estar presente às preocupações e aos cuidados de seus camaradas e seus irmãos.

-Um contemplativo desapegado de tudo, mas na liberdade de um certo uso de tudo.

“Todas essas antinomias aparentes devem ser resolvidas na simplicidade do princípio interior de nossa vida. É este princípio que é preciso definir. O resto não é senão a consequência.”

Amor>semelhança, conformidade, participação de todos os sofrimentos, dificuldades, dureza da vida. Amar sem julgar nem distinguir um do outro. Essa necessidade do amor é que está no fundamento de toda a vida do Pe. De Foucauld.

“Participar da vida por amor e sobretudo dos sofrimentos e das durezas dessa vida: é tudo o que desejamos fazer”. Amar a Jesus , participando de todos os seus sofrimentos e trabalho de Salvador. Amar as pessoas, participar da vida dos pobres, dos que sofrem, simplesmente por amor. Sem finalidade. Não pode ser de outro modo.

DEUS SALVADOR.

Jesus significa “Deus Salvador”. Exprime toda a razão de ser do Cristo. Jesus é o Salvador pela Cruz. Nossa “vocação à participação do sofrimento redentor é essencial, e se nos recusarmos a nos entregar totalmente a ela, nossa vida de Irmãozinhos deixa de ser verdadeira”. Clareza de ideal. Sem ilusões, É isso que Deus nos pedirá no decurso de nossa vida. Participação nos sofrimentos que deveriam salvar o mundo.

Só aprendemos a participar desse sofrimento aos poucos, durante a nossa vida. Não se trata de nos acharmos capazes dele, mas de estarmos conscientes do sentido da Cruz em nossa vida, e de aceitar, alegre e generosamente, que Jesus nos faça entrar em seu trabalho. Estarmos prontos para acolher o sofrimento, compreender seu valor e pouco a pouco amá-lo, com um estado permanente de ânimo. Espírito de imolação.

TENTAÇÕES

1ª)- De desânimo. “Somos desesperadamente fracos diante do menor sofrimento. Ficamos entristecidos, esmagados pelo menor fracasso de ordem moral, paralisados pela menor fadiga corporal, enfastiados da oração diante da menor dificuldade interior, feridos pela menor falta de atenção.” Isso recomeça diariamente! “ Como podemos, pois, pensar, aderir verdadeiramente à participação da cruz de Jesus? Como nos colocarmos nesse espírito de imolação, quando recuamos diante do mínimo esforço, ou cedemos ainda à preguiça do corpo?” Como doar-nos todos os dias ao Cristo?

É preciso pedir a Jesus que nos torne, por amor, capazes de participarem de seu sofrimento redentor! Desejo verdadeiro e profundo”! Repetir incansavelmente ao Cristo esse desejo com a audácia de S. Pedro e dos filhos de Zebedeu.

Em seguida terem a humildade, a simplicidade de se abandonarem a Jesus com a confiança terna, tranquilidade que se unindo a ele serão capazes de suportar, e depois de amar a Cruz. Depois, entregar-se com coragem à tarefa, com vontade, para colaborar com a ação de Deus em sua vida.

Trata-se de querer soltar as amarras, de fazer um esforço alegre, real, numa matéria que lhes seja acessível, e serem verdadeiros, ou seja, não se verem mais corajosos do que são, nem desejarem por imaginação suportar cruzes e provações mais pesadas do que as que atualmente são capazes, nem de se julgarem incapazes de um esforço mais corajoso do que o que até hoje deram prova.

Esforço alegre. Dar não com tristeza, mas com alegria. Por amor a Jesus. Onde há amor, há verdadeira alegria. Não fazer dos sofrimentos cotidianos uma tragédia. Transformando em cruzes vivas esses nadas de cada dia, que se tornam pesados pela repetição, abraçaremos também as cruzes maiores, que às vezes demora a chegar e podem nos encontrar desprevenidos.

Olhos fixos na cruz de Jesus e não sobre a própria cruz. Perdendo-se de vista é que vocês se tornarão leves. “Não são os sofrimentos ou as dificuldades em si mesmos que têm qualquer valor redentor, mas a disposição à sua oblação, o amor que suscitam e seu grau de união à paixão de Cristo. Nossa vida tende a inserir-se, com todos os nossos sofrimentos pessoais, na grande Paixão de Jesus e na do mundo inteiro. É nessa direção que é preciso olhar.”

Os sofrimentos de Jesus talvez são palavras que nada mais evoquem sobre nós. Redescobrir essa grande realidade em todo o seu verdadeiro sentido.

Devemos tomar consciência da ligação real entre a cruz sangrenta de Jesus crucificado e nosso dia de hoje. “A Paixão está presente em cada instante de nossa vida. Essa presença deve mudar tudo”.

Tomar consciência também da miséria e do sofrimento da humanidade (O Pe. René Voillaume enumera os variados sofrimentos do mundo).

À vista de todos os sofrimentos da humanidade, o que é para você o peso de um dia? “É preciso reconhecerem que seu sofrimento pessoal é muito pouca coisa, mas que tudo é, entretanto, poderoso, se servir de ligação entre a cruz do Cristo e toda essa massa, muitas vezes informe, da dor humana.

Não se deixem esmagar nem pelos seus sofrimentos, nem pelo dos outros. Acolham-nos com coragem e simplicidade. O sofrimento não deve gerar em vocês tristeza deprimente, sensível, que aniquila as forças da alma e o verdadeiro impulso do amor. Deve gerar em vocês a força e a paz, que trazem sempre a união realizada com o Cristo. Nada de tristeza exagerada diante do próprio sofrimento ou de outrem.

Não se amargurar. Conservar a paz e a mansidão. Não deixar a amargura nem o azedume invadir-nos por causa dos nossos próprios sofrimentos, seja por causa justa ou injusta. Geralmente provém do amor próprio ferido, ou num resto de orgulho insuficientemente dominado. Não lancemos a culpa nas costas dos outros.

Não desanimar diante dos próprios fracassos (haverá tantos!) - deve haver um completo e humilde desapego de si mesmos. Só esse desapego absoluto é a condição primeira e insubstituível de toda ação eficaz do Espírito Santo em vocês.

Só seremos plenamente salvadores com o Cristo Crucificado, na medida em que o deixarmos verdadeiramente reviver em nós seus próprios sentimentos. Nisto está todo o mistério do Sagrado Coração.

As orações e ações cotidianas unem-se na mesma realidade: nossa vida com Jesus Crucificado, e Jesus sofrendo em seu Corpo Místico. É o nascimento de uma nova vida.

“Por um lado nos voltamos para Jesus para suplicar-lhe a descer em nós e, por outro, procuramos humildemente suportar as cruzes e partilhar os sofrimentos, fazendo valer as graças recebidas, e dando a Jesus, por nossa coragem, a prova da veracidade de nosso amor”. Sem a oração é impossível que o espírito de imolação desça em nós, e isso seria presunção; sem a prova de nossa coragem na cruz nossa oração corre o risco de ser apenas uma ilusão. É todo esse conjunto que constitui a participação no trabalho redentor de Jesus na Cruz.

IMOLAÇÃO SADIA

A disposição de viver esse estado de imolação é fundamental, desde que seja sadia, verdadeira e estabelecida na fé de Cristo.

Está sempre subjacente à oração de vocês, ao seu trabalho, aos mil acidentes de seus dia. Pode utilizar tudo, tudo transfigurar, fazer frutificar tudo para o bem dos que amamos. Já não há nada mais de inútil em nossos dias; já não há mais monotonia, nem tristeza, nem fracasso, pois se isso tudo acontecer, será fecundo.

Sob o ponto de vista humano, até a Paixão de Cristo foi um fracasso. A vida doentia e a morte prematura de Santa Teresinha foi um fracasso. A vida do Pe. De Foucauld, com seus sonhos desmoronados, com sua morte em tamanrasset, foi um fracasso. “Não excluo dessa transfiguração pelo amor, nossos fracassos e nossas limitações morais, contanto que acabem num cântico de humildade e de abandono.

Esse estado de imolação não se alcança num dia só. É preciso trabalhar desde já para alcançá-lo. Despertar e exercer nossa Fé na Paixão de Jesus, em seus sofrimentos, misericórdia. Pelas nossas orações cotidianas, procuremos a luz, pelo evangelho. Transformemos por um ato de fé sempre repetido nossas adorações difíceis, numa comunhão simples e verdadeira de nosso ser, com toda sua miséria, com Jesus presente na Eucaristia.

Olhemos, em seguida, para nossa vida em sua mediocridade, com esse mesmo olhar de fé, durante o dia todo, oferecendo tudo a Deus.

Nossas relações com nossos irmãos deve ser uma fonte de alegria, de fecundidade. Saibamos nos esquecer. Acolhamos nosso irmão em sua dor ou miséria, assim como nosso amigo, nosso colega de trabalho, ou um desconhecido. Procuremos oferecê-las ao Cristo Crucificado e encaremos assim o esforço de ascese e mortificação que se impõe à nossa vida.

A MISSA

Esse estado de doação ao sofrimento, por amor, que se torna, pouco a pouco, habitual, graças aos nossos esforços, e à ação do Espírito Santo, nada mais faz senão explicar o caráter de vítima com o Cristo, imprimido em nossa alma pelo Batismo.

É na Missa que exercemos liturgicamente esse caráter, oferecendo-nos realmente com Jesus, diariamente, realizando ao máximo essa comunhão com o Cristo crucificado e oferecido.

Pela consagração do pão e do vinho, toda a Paixão de Jesus, toda sua oblação está aí presente, com toda sua veracidade, com sua pungente e imensa realidade, para unir-nos a ela, penetrando-a, e levar sua força através do nosso dia. Aí está a fonte do nosso espírito de imolação, se a vivenciarmos na nossa fé, humildemente, com confiança, recomeçando sempre.

NO CORPO MÍSTICO

Os laços misteriosos que nos unem ao Corpo Místico são percebidos por nós nesse espírito de sacrifício pelos outros. No plano do mundo do trabalho e da construção da cidade humana, devemos viver o aspecto oculto, mas infinitamente mais real e mais fecundo, da solidariedade humana, que é a solidariedade de todos em Cristo. Nossa doação exterior terá mais sentido se nos inserirmos no meio de nossos irmãos, com esse espírito de imolação, de reparação, de completa solidariedade espiritual.

“Seremos verdadeiramente um deles, na medida em que a pureza de nosso ideal cristão o permitir. Sofreremos com o que os faz sofrer, amaremos o que eles amam, com eles aspiraremos a mais justiça e verdade.” Para que isso aconteça, é preciso a substituição espiritual diante de Deus: “Oferecer-se em resgate por seus irmãos”, Pura realidade, que abrangerá toda a sua vida, na medida em que estiverem em comunhão com a Paixão de Jesus, se vocês se deram, de fato, em “pura perda de si mesmo”, ao Cristo Crucificado.

“Vocês devem ter compreendido melhor, agora, como é que, estabelecendo a alma nesse estado de imolação, conseguirão realizar a unidade em suas vidas, que se tornam assim como que um só ato voltado para Deus, uma só oblação vivida a cada instante. Por causa disso é que nossa vida é verdadeiramente contemplativa. Mas é contemplativa no espírito de reparação, de redenção, que lhe confere sua tonalidade particular “ (El Abiodh Sidi-Cheikh, 09/02/1948

6º CAPÍTULO DA 3ª PARTE – POBREZA

“Jesus viveu pobre, amou os pobres e proclamou-os bem-aventurados. O Pe. De Foucauld amou e desejou a pobreza apaixonadamente. Todos os santos amaram a pobreza, e nela encontraram uma libertação, uma alegria e uma possibilidade de dom de si mesmos a Deus, na humildade, q somente poderão compreendê-la aqueles que tiveram tal experiência.”

“Queremos também, seguindo o exemplo do Pe. De Foucauld, e como ele, viver como pobre: por imitação de Jesus e por amor aos pobres.” O problema, porém, é complexo. “ Há pobreza e pobreza.” Uma delas “ é simples despojamento, privação, ausência de bens materiais, ausência forçada mas sem que seja por amor”. A outra é a pobreza cristã: “pobres em espírito”. “Há na pobreza um elemento espiritual e um material: a pobreza tem um corpo e uma alma. Se não se compreender bem isso a gente irá por um caminho errado e se exporá a muitas dificuldades de realização ou mesmo a desvios.”

Fatos:

-a dificuldade de vida dos que ganham muito pouco; -as restrições que isso comporta; -a insegurança do dia seguinte; -a previdência social tão parca; -a ameaça de falta de trabalho; -as dificuldades de habitação; Isso é verdadeira pobreza, quando não é lamentável miséria e privação do estritamente necessário.

“Aí está a parte material da pobreza: o espírito nem sempre está aí. Essa pobreza é suportada, mas é muito raramente desejada e amada. Recobre, frequentemente, uma avidez de desejos e de posse e que é, às vezes, tanto mais violenta quanto as riquezas, dinheiro e os prazeres que este traz, atraem ainda mais quando não foram experimentados.

Um rico que gozou até à saciedade todos os prazeres que a fortuna pode dar, percebeu muitas vezes o caráter decepcionante e limitado desta. Muitas vezes o desejo prende mais às coisas do que a própria posse”.

Há outra pobreza, a religiosa, que e situa num outro plano. “Trata-se, antes de tudo, de libertar a alma do instinto de propriedade por meio do voto religioso.

“Esse despojamento interior (...) será acompanhado de uma liberdade no uso das coisas e de um padrão de vida que escandalizam muitas vezes,porqu nem sempre refletem a pobreza interior da alma, o que faz com que tantos homens custem a acreditar que essa pobreza seja possível”.

Além disso há toda “uma segurança no fato de se pertencer a uma comunidade, a certeza do dia seguinte, a ausência total de cuidados por tudo o que diz respeito ao lado material da vida: alimentação, habitação, doença.” Esses cuidados recaem sobre os superiores, mas a maioria dos religiosos estão livres deles. Os que lutam e sofrem pela vida do dia a dia não compreendem mais a superioridade da vida religiosa e poderiam dizer que “são os religiosos que fazem o voto de pobreza e os fiéis que o praticam”.

É preciso que a renúncia seja real, “tendo em vista um dom mais absoluto de si mesmo a Deus, e não de uma evasão egoísta das responsabilidades do trabalho e dos cuidados cotidianos. Uma tal atitude seria odiosa”, negação de uma autêntica vida contemplativa.

Há, entretanto, muitos abusos que justificam o ataque à pobreza religiosa: o “nível do padrão de vida, o conforto exagerado de certos conventos”, o “caráter espaçoso e monumental das construções, a extensão e beleza dos jardins”, o “quadro agradável que somente a riqueza pode dar a uma família”.

A pobreza individual do religioso é “puramente teórica, pois a comunidade a que pertence tem a possibilidade de proporcionar-lhe um quadro de vida com que somente uma família rica poderia beneficiar-se”. Muitos jovens atuais acabam se afastando da vida religiosa justamente em busca de uma vida de pobreza mais autêntica.

“O que pensar de tudo isso? E como devemos conceber nossa pobreza,seguindo o exemplo do Irmão Carlos de Jesus”, que saiu da Trapa justamente por ter sido “devorado por essa ânsia de uma pobreza total, a exemplo do Cristo e pelo amor dos mais pequeninos?”

É preciso distinguir entre os diferentes motivos que possam levar alguém a abraçar o estado de pobreza e também distinguir entre a pobreza em espírito e a pobreza material, ou seja, entre a virtude de pobreza e o estado efetivo de pobreza.

O TER

Tendemos a nos completar com objetos exteriores a nós, o que chamamos o “ter”. O homem tende a “fixar-se nas coisas possuídas em vez de dominá-las a fim de obrigá-las a servir unicamente para o aperfeiçoamento último de seu ser espiritual de filho de Deus.”

Centraliza sua vida no TER, escraviza-se às coisas possuídas, por mais mesquinhas e materiais que sejam (cf. Lucas 12,15). Nessas condições, o ter passa a ser obstáculo e não um instrumento de aperfeiçoamento de nosso ser.

A virtude da pobreza consiste justamente em saber usar as coisas que nos são necessárias e úteis sem nunca nos deixarmos acorrentar por nenhuma delas: a liberdade espiritual completa em face de qualquer coisa que não seja o próprio Deus.

Essa pobreza se estende aos bens espirituais, como nossos conhecimentos intelectuais, das criações de nossa imaginação, da arte, até certo ponto de nossa espiritualidade e das próprias graças de oração.

“Trata-se aqui da pobreza do espírito, sem a qual é impossível entrar definitivamente no reino de Deus, sem a qual o amor de Cristo não pode reinar em nós: nenhuma exceção nem restrição pode ser acrescentada à necessidade dessa disposição, à qual a morte deve trazer seu último acabamento. Somente uma alma absolutamente pobre poderá ver a Deus face a face, depois da morte.” Sem essa pobreza, “a pobreza material perde todo sentido cristão, torna-se privação inútil ou restrição que oprime.”

O voto de pobreza visa atingir a deformação em nós do instinto de propriedade, maior obstáculo à essa pobreza de espírito. O voto, entretanto, refere-se apenas às coisas materiais e visíveis. “Como é difícil não ser possuído pelas coisas, quando se as possui e quando se pode usar delas sem discernimento!”

“O voto de pobreza diz respeito à renúncia absoluta e radical a qualquer uso do direito legítimo que possui todo homem de praticar ato de propriedade”.

Jesus fala sobre isso em Mc 10,23-26, ou seja, do perigo das riquezas. O voto de pobreza, ligado ao da obediência, “tem por finalidade fazer adquirir uma virtude interior, estabelecer o coração numa liberdade total: não define nem regula por si mesmo o uso das coisas, ou seja, o grau de pobreza material efetiva.

Mas o “espírito de pobreza e a liberdade na posse é, pois, coisa impossível às forças humanas”. “”Para os homens isto (salvar-se) é impossível, mas não para Deus, porque para Deus todas as coisas são possíveis” (Mc 10,23-26).

“É necessária a graça de Deus,como também, para praticar o despojamento de uma autêntica pobreza cristã.

As diferenças na prática da pobreza de instituto para instituto são legítimas ( o autor compara um instituto missionário com uma congregação monástica). Somente os abusos devem ser condenados. Não se deve julgar de fora para dentro. Que o Irmãozinho não julgue ninguém nem condene. A pura privação material, sem o espírito da pobreza de Cristo, não tem nenhum valor: é um corpo sem alma, uma pobreza morta.

SIMPLICIDADE DE VIDA

“Em relação a todas as coisas criadas devemos desejar ter em nosso coração as mesmas disposições de Jesus. Queremos ser pobres como Ele quis ser; é preciso, pois, aprender do Evangelho a maneira de ser pobre.”

“Jesus não despreza nenhuma das coisas simples, naturalmente boas, úteis ou necessárias ao homem. Mas só as usa na medida em que são necessárias. O que mais nos impressiona na atitude de Cristo é a sua soberana liberdade a respeito de todos os bens num nível de vida de uma grande sobriedade de posses(...) Ele quis ser pobre, simplesmente pobre, sem afetação.” Jesus não possuiu nada. Vida pública de três anos de andarilho. Não se ocupa de coisas materiais, mas também não recusa nada. Aceita o que lhe dão para comer e se abriga como pode. Dias em que não come e outros em que toma parte em refeições abundantes. Tanto passa a noite em alguma casa qualquer como ao relento. Bebe vinho e o consegue milagrosamente nas Bodas de Caná. Usa livremente tudo. Preocupa-se pelo bem-estar de seus amigos.

Os 30 anos de Nazaré marcam o nível de vida divinamente escolhido pelo Cristo: um modesto operário, nem miséria nem prosperidade. Mas atenção! Um artesão da Palestina tinha o que era necessário para viver, mas sem nenhuma necessidade fictícia para satisfazer, como um operário médio tem atualmente. A extrema simplicidade dos costumes da época não distraía o homem de seu verdadeiro destino, e o permitia ser plenamente ele mesmo em face do seu Criador. Atualmente servidões cada vez mais numerosas acorrentam nossos contemporâneos!

É preciso ver os riscos do progresso com clarividência, pois “ele prossegue numa perspectiva de mística materialista, que torna o ambiente ainda mais dissolvente para as forças do espírito”.

“Teremos que dar em silêncio o exemplo de uma pobreza que seja verdadeiramente a pobreza de Cristo”. Não podemos nos basear os bens que um operário tem, sejam quais forem! “Faz parte de nossa vocação e de nosa missão dar um testemunho de pobreza,” e que ela não se torne insípida! Devemos gritar o evangelho pela nossa vida!” O único motivo para participarmos dessas atividades de descanso que os outros têm, seria por razão de caridade ou de apostolado (coisa que para nós deve ser rara).

Se quisermos permanecer fortes e livres, o fermento de pobreza cristã de que o mundo tem necessidade para conservar o sentido do Espírito de Deus no gozo de tantas facilidades e o uso de técnicas, em si materializantes, “deveremos, com todas as nossas forças, dar o exemplo de uma grande simplicidade de vida, sem rigidez,mas sem moleza,” sem julgar os outros, eliminando o mais possível as necessidades artificiais. Amar a todos, mas estarmos no meio deles como a imagem viva do Cristo pobre.

“A pobreza de Jesus é mais do que a pobreza simplesmente operária: ela é outra coisa. Mas é verdade que no uso das coisas ordinárias, necessárias à vida cotidiana, devemos nos basear no que faria uma pobre família de trabalhadores”.

POBREZA ALEGRE

Tal deve ser a pobreza de Jesus, libertação do espírito. A alegria floresce nos santos, mesmo os mais pobres. Alegria = coração livre. Aprender com essa alegria a superar todo desejo e toda cobiça. Pertencermos apenas a Deus. Nem sempre teremos essa alegria: ela é fruto de uma vitória sobre nós mesmos, quando supõe luta. Ter alegria na privação. Preferir ter menos do que mais. “Uma privação sem alegria não é sã, não está no espírito de Cristo.

A pobreza conforme o Evangelho é um abandono de si próprio nas mãos de Deus e de sua Providência. Abandono de criança que move a solicitude paterna de Deus. Para isso é preciso tê-la experimentado. Pobreza como uma renúncia deliberada e efetiva de todas as garantias humanas e de toda a avareza. Confiança ilimitada em Deus (Lc 12,29-30; Mt 6,26).Que os apoios que temos não a enfraqueçam!

Tirar de nossa vida a avareza e a preocupação pelo futuro. Quanta falta de caridade é encoberta sob a desculpa da pobreza religiosa! Não fazer mais reservas do que convém! O que chamamos economizar é, muitas vezes, mesquinharias e avareza disfarçada! E cuidado com o instinto da velhice em fazer mais reservas, mesmo de remédios, do que mais nos convém. Dar e emprestar a quem pede (Mt 5,42).

POBREZA AUTÊNTICA

“Uma pobreza que se tornar dureza de alma para com os outros, descuido para com os fracos ou doentes, austeridade sem alegria, não é pobreza que procede do Amor, não é pobreza de Cristo” Mt 26,10-14; Mc14,6-10; Jo 12,7-8- os 300 dinheiros de perfume espalhados sobre os pés e a cabeça de Jesus - nos ensinam que “há circunstâncias em que uma autêntica pobreza cristã não deve saber calcular, nem somar, pois procura, como no Cristo, tomar a forma de um uso soberanamente livre das coisas e do dinheiro, ao serviço do amor.”

POBREZA IMITAÇÃO DE JESUS

Amor pelos pobres, sim, mas antes e em primeiro lugar, pobreza como imitação de Jesus. Conventos externamente ricos podem abrigar religiosos generosamente pobres, que não se incomodam com o quadro exterior, mas podem dar uma falsa concepção de pobreza evangélica ao povo, que não pode julgar senão no aspecto externo e com parâmetros próprios.

Por outro lado, um estado de privações e de preocupações que levam a um estado próximo da miséria, perda da liberdade da alma, do sentido da oração e da alegria do espírito, não pode ser desejado nem abraçado voluntariamente; quando for imposto, só pode ser suportado por amor. Ex.: num cárcere ou num campo de concentração; nunca devem ser buscados, nem por amor.

“A pobreza do Irmãozinho deve ser a resultante desse duplo desejo de imitar Jesus e de abraçar o estado de vida dos pobres, dos mais desamparados” Olhos fixos em Jesus! Contemplação!

ESTADO DE POBREZA COMPREENSÍVEL

Não basta ter a vida de um pobre trabalhador para se um verdadeiro pobre de Jesus. Só com luta interior estabeleceremos no coração o desapego d todas as coisas, de qualquer desejo, avareza, inveja, a estarmos sempre prontos para dar e para emprestar aos outros, a nada reservar a nós mesmos, a amar o trabalho e a dar-se a ele sem perder a liberdade que é dada pelo abandono à Providência, sem medo do futuro, feliz de sofrer às vezes o despojamento. Não se deixar prender por pequenas coisas. Ser radical nas pequenas renúncias pedidas no noviciado para ensinar-nos a “capacidade de renúncia ao espírito de propriedade, capacidade que vocês consagrarão por voto e que estará na base de sua pobreza e que será sua alma”.

Surgirão depois as dificuldades mais concretas: pôr tudo em comum, fraternalmente, na união e afeição mútua. A dificuldade difere para cada um, dependendo do tipo de vida que tinha antes, mas pobre ou menos pobre. Frio e insuficiência da alimentação. Encontrar o equilíbrio (=cada Fraternidade). A vida de oração. Tamanho pequeno do local. Barulhos da vizinhança.

“Cada um terá que sacrificar um pouco sua maneira de conceber a pobreza ou a vida religiosa. Unidos na mesma procura da pobreza.” O amor fraterno e a união resultante dele são realidades mais preciosas que a pobreza material.

VIVER COMO UM TRABALHADOR ASSALARIADO

Ou como humilde artesão > insegurança, dificuldades de vida. Conciliar as condições precárias de vida com as exigências de uma Congregação que deve ter suas casas de formação e um mínimo de administração central. Resumo da organização econômica adotada pelo autor:

-é proibido a todas as Fraternidades capitalizar dinheiro ou receber rendas;

-As Fraternidades de formação e de direção constituem o primeiro grupo, separado economicamente das outras Fraternidades.

-A Casa-Matriz pode ter reservas de dinheiro para despesas gerais de formação, estudo, viagens, instalações de oratórios nas Fraternidade. Mantida pelas doações dos irmãos, donativos e esmolas que poderão ser solicitadas.

-O segundo grupo = todas as outras Fraternidades.

-viver do seu trabalho

-suportar todas as dificuldades oriundas do desemprego, doença, greves, sem nenhum auxílio exterior.

-Não receber esmolas, nunca. Exceção: organização do oratório, despesas do culto e, excepcionalmente, para auxiliar os pobres do bairro ou um companheiro de trabalho.

-Casas alugadas.

-Contribuição à Casa-Matriz sempre que possível e uma cota determinada para manutenção dos irmãos que estudam.

-Possível auxílio a um irmão obrigado a atender às necessidades de seus parentes.

-Instalação sóbria. Estritamente só o necessário;

-Guardar a menor quantia possível de dinheiro;

-Pode-se ajudar outras Fraternidades necessitadas e Irmãozinhos doentes, mas no mesmo nível que os trabalhadores pobres.

-Dar aos mais pobres o que tiver de supérfluo.

-Roupas pobres sempre limpas. Podem ser remendadas.

-Qualquer gasto só com autorização do responsável;

-Fraternidade pobre, mas alegre e acolhedora.

-Cada irmão deve conservar para si sua austeridade;

-Ajustar a alimentação conforme o estado de saúde dos irmãos.

-Não ter medo de receber as visitas e amigos, oferecer-lhes algo, mesmo que isso falte para o dia seguinte.

A POBREZA ORGULHOSA E ENDURECIDA

É uma pobreza morta que nos afasta de Jesus. A verdadeira pobreza será também um dos caminhos da oração e do silêncio interior, doçura, que seja meiga para o sofrimento, alegre, generosa, sempre disposta a emprestar ou a dar.

Pacífica. Não há nela nenhum temor, pois é antes de tudo um abandono de criança entre as mãos do Deus - Amor e Pai. ( El-Abiodh Sidi-Cheikh, 19/03/47).