03ª PARTE

CAPÍTULO 4- A ORAÇÃO DOS POBRES.

(Escrito em Jerusalém, Jardim das Oliveiras, Sexta-feira, 27/07/1951).

“O que der a sua vida por amor ao Evangelho, a salvará” (Mc 8,35).

Pe. René Voillaume diz que nessa noite fora rezar na “obscuridade silenciosa e deserta do santuário de Getsêmani e se angustia com o pensamento da missão de oração das Fraternidades e da sua importância para cada Irmãozinho e Irmãzinha.” Como ele disse no capítulo anterior, nossa oração deveria ser a dos pobres. Dos que penam e sofrem. Escreve este capítulo nesse local.

Relata também algumas visita feitas a Irmãozinhos e Irmãzinhas que vivem na penúria, no Líbano, em Hmond, Jordânia, Beirut, no Saara (Nômades), os marítimos, os do Chile, que moram em favelas, chamadas lá de “Cogumelos” (Callampa).

Diz o padre: Suas cartas me mostram as suas dificuldades, constantemente renovadas, muitas vezes inexplicáveis, em que vocês se deixam envolver por uma caridade sincera para com os homens.

Sejam equilibrados nas atitudes! Em certos casos, ir ao heroísmo, na caridade, mas “Seria preciso também saber preservar as condições essenciais à vida dos irmãos”.

Algumas condições são necessárias para um mínimo de intimidade entre vocês, e outras pra que vocês se mantenham fiéis à sua missão de “permanentes na oração”. É dessa vida de oração que eu lhes falo nesta noite.

Neste loca privilegiado do Getsêmani, sinto em mim todas as dificuldades sentidas por vocês no caminho da oração, suas incapacidades, temores quanto ao presente e futuro, condições difíceis de vida, nas quais, muitas vezes, deve inserir-se a oração.

Desejaria também dar uma resposta às suas perguntas sobre a maneira de rezar.

ORAÇÃO: ESPERA E ESFORÇO

Cai a noite. Já não conseguindo ler, um irmão franciscano traz-me uma vela. O que eu tenho a lhes dizer sobre a oração é muita coisa, mas muito difícil de se exprimir. Seria preciso a experiência pessoal, “a experiência que o espírito de Jesus pode dar em intuições secretas das quais só Ele possui o segredo.” Suas palavras não foram suficientes para que os apóstolos aprendessem a rezar.

Aqui mesmo onde estou, os Apóstolos não souberam velar com Ele 1 hora, mesmo com mais de 2 anos de vida em comum com o Mestre! “O espírito é pronto, mas a carne é fraca. Vocês também são escolhidos por Ele! Meus ensinamentos não têm maior poder do que as palavras de Jesus!

Eu vou dizer o que é preciso fazer, e Deus poderá fazê-los percorrer. Abatimentos e incapacidades no momento da oração levam a perguntar se não há um misterioso método eficaz que mostre o verdadeiro caminho a seguir. Não, esse método não existe!

Jesus é o Mestre supremo da oração porque falou sobre ela com conhecimento de causa e pelo exemplo de sua vida: a oração perfeita, numa vida agitada e cansativa.

Jesus pode pôr em nossa inteligência, memória e coração o verdadeiro espírito de oração. “Ninguém poderá rezar enquanto o próprio Jesus não o tiver ensinado interiormente.

Os Apóstolos sempre dormiam durante as orações que Jesus fazia perto deles, como no Tabor e no Getsêmani, mas Jesus mesmo assim não desanimou.

E nós? A gente dorme em qualquer lugar! Acredito que até Jesus recobrava de dia ao sono de noites encurtadas pelo afluxo de visitantes ou pela oração das madrugadas. Um exemplo bem claro é que ele estava dormindo no barco! Veja Mc 4,38.

É preciso ir ao encontro do Espírito de Jesus e não só esperar sua visita, “esforçar-se pelo caminho estreito”, esforçar-se na oração, enquanto espera o Senhor para orar. É isso mesmo: esperar humildemente sua visita e nossa espera no esforço. Isso não é contraditório.

A ORAÇÃO AUTÊNTICA

Como encontrar condições para uma oração autêntica? Como praticá-la generosamente? Será isso possível?

Condições que dificultam: a fadiga, o barulho, a prostração de espírito por causa do esforço físico e penoso e prolongado do dia de trabalho, tanto de vocês como de milhões de trabalhadores.

Jesus convida todos à oração: “Vinde a mim todos os que estais cansados e oprimidos e eu vos aliviarei” (Mt 11,28-30)

Num primeiro momento atuam nosso pensamento, imaginação, emoções sensíveis. Num segundo momento, atuará “uma zona de nós mesmos, que se situa bem além da sensibilidade, das imagens, da reflexão”.

Simplifiquem e atualizem o encontro com Deus. No começo da vida de oração, que pode durar algum tempo, abram o Evangelho ou a Bíblia, não tanto para “meditar”, mas para se deterem nas palavras divinas, “lendo e relendo lentamente os versículos, sem análises, sem discussão com vocês mesmos, na tranquilidade, sem desespero.

A meditação não é essencial para a preparação para a oração. “Pode até tornar-se um obstáculo, como uma tela entre Deus e nós, uma estrada fácil demais que nos convida ao devaneio”. Aprendamos a chegar até Deus para além de qualquer idéia e sentimento!

O sentimento não é oração. Ele é inconstante e serve apenas para estimular o impulso da vontade do principiante. O VERDADEIRO AMOR RESIDE NA VONTADE.

Acreditemos firmemente nisto: “o que é verdadeiro na oração, o caminho de união a Deus, está além dos sentimentos, das palavras, das idéias”. Será que acreditamos que Deus possa de fato vir em nós para fazer nossa oração? Isso não é para um pequeno número de separados, no claustro.

A oração está além da reflexão e mesmo quem não pode meditar por causa das condições de vida, pode rezar.

Para vocês como para os pobres trabalhadores, não há condições de meditar.”Mas poderão, mediante a força de coragem perseverante, por atos de fé e de amor simples e despojados, colocar-se diante de Deus e esperá-lo, abrindo a ele o fundo do próprio ser, tal como ele é. Espera de sua vinda no desejo, mas sobretudo nesse sentimento de impotência, de miséria, de covardia”.

“O resultado será, muitas vezes, uma oração dolorosa, espessa, pouco espiritual em aparência”. Deus está no mais íntimo de nós. Nós temos somente a vontade para rezar. Deus a tornará uma verdadeira oração e um meio de união com ele. Para isso é preciso muita paciência.

Estejam convictos em “crer que esse caminho é bom, que há um atalho que leva à união na fé, e que Deus, sem vocês perceberem, virá fazer a oração de vocês”. Ainda não acreditamos bastante nisso!

Todos os amigos de Deus passaram por esse caminho! Apesar de tudo ser dom gratuito de Deus, Jesus disse: “Se alguém me ama, guardará minha palavra, e meu Pai o amará, e nós viremos a ele e faremos nele a nossa morada”.(João 14,23).

“Não tenham medo de perder-se nesse caminho, Vocês não devem ter medo de nada, contanto que nele perseverem com coragem!” Jesus não nos pediu outra coisa! Ele só recomendou a perseverança. Sempre a perseverança. E nós complicamos tudo.

Se perseverarmos , Ele fará o resto: “Pedi e vos será dado; buscai e achareis; batei e abrir-se-vos-á. Porque todo o que pede, recebe; o que busca, encontra e a quem bate abrir-se-á.”(Mt 7,7-8)

“Não procuremos outros métodos. Contentemo-nos com aquele que nos é indicado pelo Senhor. O Evangelho será sempre o código por excelência da oração dos pobres, pois tudo quanto está nele indicado fica ao seu alcance”,

A SINCERIDADE NA ORAÇÃO.

O ensinamento sobre a oração se resume, pois, nestes dois pontos essenciais:

1º- uma promessa de que Deus virá ao nosso encontro quando e como Ele quiser;

2º- um convite insistente à perseverança aconteça o que acontecer e apesar de todas as aparências desfavoráveis, é essa a nossa parte do trabalho.

“Para aprender a rezar é preciso simplesmente rezar, rezar muito, e saber recomeçar indefinidamente a rezar sem esmorecer, se não houver resposta” nem qualquer resultado aparente.

Não esperem ter vontade de rezar; seria deixar a oração num momento em que mais precisassem dela. É uma ilusão perigosa que pode nos afastar de Cristo. Desejar rezar já é um efeito da oração. Deus nos espera. Basta saber disso! Quanto menos rezarmos, menos desejo teremos de rezar.

Não esperar nada por si mesmo. É só para Deus que é preciso rezar, não para a satisfação própria, nem para ficar com a sensação de ter rezado bem. Não desejar nenhuma outra oração senão aquela que Deus nos dá.

No Pai-nosso não há nenhum pedido que nos dê uma satisfação pessoal ou um resultado imediatamente verificável.

É preciso, pois, muita coragem para rezar e perseverar na oração sem ver os frutos. “Não tenham medo de levar à oração ou trazer dela um sentimento de completo desgosto pelas suas fraquezas, pela suas faltas, pelas suas misérias. Ex: a oração do fariseu e do publicano. O publicano era humilde e consciente de suas faltas. Pode acontecer que a oração generosa traga-nos um maior sentimento de nossa própria incapacidade.

Sejam diante de Deus como realmente são e aceitem rezar como Deus lhes pede que façam, e não de outro jeito. Não usem livros! Perderiam seu tempo.

Trata-se simplesmente de estar presente diante de Deus, pelo desejo constantemente reajustado da vontade, e não pelo pensamento, pela imaginação ou pelos sentimentos.

Essa vontade muitas vezes se expressa simplesmente em estar ajoelhado diante do Tabernáculo. Isso bastará.

Ir à oração como à cruz. “Entreguem-se à oração para se perderem, e ficarão certos de realizar plenamente a vontade do Senhor.”

“Saibam esperar o encontro de Deus, mesmo que custe a vida toda, sem cessar de acreditar nele, e renovando cada dia essa espera. Isto é permanecer na fé, nas palavras do Senhor, e guardar a lâmpada provida de óleo.

Tudo isso deve ser feito na espera da visita divina.

REPOUSO E ATIVIDADE

Ritmo equilibrado entre os dois. Não abusar de um em detrimento de outro. O excesso de fadiga pode romper o equilíbrio nervoso do domínio de si mesmo. A agitação e o barulho contínuos alteram, com o tempo, o silêncio interior do coração.

“É necessário, pois, em intervalos regulares, tempos de reflexão sobre a fé, sobre o Evangelho, sobre si mesmo, a fim de não se iludir sobre suas próprias disposições íntimas.”

Retomar periodicamente momentos de calma física, de repouso, de silêncio exterior. O próprio Jesus respeitou essas exigências: fugas noturnas ou matinais ao deserto, para rezar em paz durante algumas horas ou levar ali seus apóstolos par um descanso de alguns dias.

Outro exemplo é o repouso semanal, desde a criação. A humanidade perdeu o sentido dessa lei divina. As pessoas não sabem mais parar suas atividades, acorrentadas umas às outras. “ Um ritmo periódico de repouso para o corpo e para a alma é uma obrigação que afeta a nossa consciência.”

Mas vocês têm de se esforças, no meio das exigências pesadas de seu trabalho no meio de trabalhadores, pois “ não nos poderemos manter aí senão depois de termos obtido o respeito às exigências essenciais à nossa vida de oração”. Temos que mantê-las com firmeza.

SUGESTÕES PRÁTICAS

Meio-dia de silêncio por semana, de leitura, de oração;

Dia mensal de retiro e de revisão de vida.

O retiro anual

o ritmo mais largo das sessões de estudos periódicos.

Dias periódicos em Fraternidades de adoração, previstos em intervalos mais ou menos longos

Para isso, organizar bem o tempo e descobrir um lugar de retiro: ir par um lugar diferente do que em que se vive, como na natureza, numa igreja, num mosteiro ou numa casa amiga silenciosa.

Fiquem firmes nesse princípio, apesar de algumas vezes acontecer com vocês o que acontecia com Jesus: “Pela manhã muito cedo levantou-se, e saiu para um lugar solitário, onde se pôs em oração. Foram à sua procura Simão, e os que com eles estavam. E depois de o encontrarem, disseram-lhe: todos te procuram!” (Mc 1,35-37)

DIFICULDADES

Alternâncias em duas direções de vida diametralmente opostas:

-por um lado, dias de trabalho, pesados por causa da fadiga, interrompidos a toda hora pelos que precisam de vocês, que os levarão a uma oração obscura, informe, até dolorosa, cujo valor de purificação e de união com Deus pela fé, agora vocês conhecem.

-por outro lado, horas de recolhimento mais prolongados, de silêncio, que os encontrarão meio inadaptados psicologicamente, pelo menos no começo. Isto é normal. Isso os obrigarão a um esforço espiritual no plano da leitura meditada e do aprofundamento da fé.

Dificuldades no silêncio interior, que vocês deverão se esforçar para superar.

Essa alternância de vidas diferentes é para vocês uma garantia de vida na fé.

Não fujam daquilo que cada uma delas lhes oferece, como reservas de despojamento e dom generoso. Isso evitará riscos inerentes a cada uma dessas formas de vida. Vocês ficarão a salvos de ilusões quanto à oração, à fé, ao amor de Deus e das pessoas.

Uma concepção falsa é a de que bastariam os dias de retiro como que para “armazenar” espiritualidade para os dias difíceis, como se fossem um reservatório, para nutrir os dias de trabalho. “Isto redundaria em recusar à vida de oração levada corajosamente em circunstâncias difíceis, um valor de crescimento no amor.”

A marcha para a união divina possui o período de trabalho e de fadiga no seu ritmo de vida.

Exercício e repouso = força de um corpo vivo.

“O repouso contínuo enfraquece o corpo, assim como o excesso de exercício o leva ao esgotamento. A alternância do repouso e do exercício é necessária ao desenvolvimento vital. O mesmo fato se dá com a nossa oração viva”.

A ação santificadora do Espírito de Deus se dá “nesse estado de expropriação de nós mesmos, no qual nos mergulha o esforço corajoso para rezar à noite de um dia extenuante, quanto por ocasião do repouso tranquilo de uma leitura meditada feita no limiar de um dia silencioso: um e outro são os dois elementos que garantem, ao abrigo das ilusões, o equilíbrio e o aprofundamento generoso de nossa vida para Deus.

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ATÉ AQUI POSTADO (18/06/2012)

SEGUNDA PARTE: NAZARÉ E O PADRE DE FOUCAULD

CAP. 1- O MISTÉRIO DE NAZARÉ

(Escrito em El Abiodh Sidi Cheikh, 06/10/1946)

Dizia o Pe. De Foucauld: “O Evangelho mostrou-me que o primeiro mandamento consiste em amar a Deus de todo o meu coração e que seria preciso englobar tudo no amor; todos sabemos que o amor tem como resultado a imitação... Eu sentia que não era feito para imitar sua vida pública na pregação: deveria, pois, imitar a vida oculta do humilde e pobre operário de Nazaré” (Carta a H. De Castries, 14;04/1901).

Essa era sua “idéia-força”, de sua espiritualidade. As Fraternidades têm, por objetivo, a exemplo desse seu pai, a imitação da vida de Jesus de Nazaré. É sobre isso que falaremos agora.

A vida de Nazaré estende-se por 30 anos, desde a volta da fuga para o Egito até a estada no deserto, onde foi tentado, em que termina sua vida oculta e se inicia sua vida pública.

A “vida oculta” implica a humildade, pobreza, obediência, amor ao recolhimento, silêncio, oração solitária, apagamento voluntário, obscuridade e, de certo modo, da “abjeção”, mas não fica só nisso. Não significa um afastamento passivo do contato dos homens, afastamento que é, aliás, o modelo da vida contemplativa. O que é, então, a vida de Nazaré?

O QUE É A VIDA DE NAZARÉ

Jesus é homem e Deus ao mesmo tempo, artesão de aldeia, inserido numa raça por sua humanidade, num “clan”, numa família, como os demais. Entretanto, possuía, como Deus que era, a consciência de sua personalidade divina, de sua missão redentora universal e a visão clara do mundo da almas. Qual seria, pois a psicologia dele como adolescente?

É um mistério inacessível, como todos os casos em que relacionamos finito com infinito, e por isso não vamos nem tentar esse tipo de análise de seu estado psicológico.

Podemos, porém, saber que gênero de existência própria quis ele adotar, tendo toda essa consciência que tinha de si mesmo, de suas origens divinas, de sua finalidade redentora, portador de uma mensagem para o mundo. Mas ele se cala e oculta a todos tudo o que é essencial de sua vida interior de Cristo, de sua Missão de Redentor. “É nesse sentido que sua vida é oculta”. Para isso, absteve-se de realizar atos exteriores que revelassem sua origem divina.

Não foi,pois, escondendo-se dos outros que Jesus ocultou-se. O afastamento, a solidão, uma vida fora do comum, atrairia a atenção de todos. Foi, pois, misturando-se o mais possível a eles, perdendo-se no meio deles, que Jesus oculta sua verdadeira personalidade. Foi agindo como todos agiam que Jesus se escondeu. É o contrário dos que se afastam da sociedade para praticar uma vida contemplativa. Jesus se sepulta na obscuridade justamente fundindo sua via a uma vida comum.

Não nos interessa aqui o dia a dia de Jesus, as particularidades: só interessa saber que ele foi como todo mundo. O Evangelho garante isso. Ninguém sequer desconfiou que Ele era diferente dos outros homens.

Em Mc 6,1-6 e João 7,5, temos provas de que os Galileus se surpreenderam e até se escandalizaram ao vê-lo pregar, e membros de sua família não compreenderam sua missão.

“É bem nessa verdade total da Encarnação, nessa adaptação ao meio humano, e na ação de viver profundamente mergulhado nele, que consiste na verdade o essencial do mistério da Vida de Nazaré”

A FAMÍLIA DE NAZARÉ

Quando escolhemos nosso estado de vida não somos completamente livres. Muitos fatores que não controlamos influem sobre ele. Não escolhemos, por exemplo, nem nossa família, nem nossa raça, nem nosso meio,nem nossa educação, nem a religião em que fomos educados. Deus é que ordena o destino definitivo de cada pessoa, pois ninguém conhece o seu próprio destino, o que lhe vai acontecer na vida.

Para Jesus é diferente, pois ele escolheu seu estado de vida, de modo soberanamente livre: sua família, mãe, raça, lugar de nascimento, na sociedade humana, modo de subsistência, trabalho.

Apesar de ter sangue nobre, nasce de família pobre numa aldeia obscura. Não vive na miséria, mas numa pobreza laboriosa. Não é da última classe social, mas pobre, ganhando seu dia a dia pelo exercício de um ofício manual. Foi operário, talvez na forma de artesanato, a única da época.

Enfrenta tudo o que estava inerente à vida escolhida: trabalho corporal, salário, exigências excessivas e às vezes injustas dos clientes, dias sem trabalho e dificuldades na vida cotidiana. “Tudo isso formou,certamente, a trama diária de sua existência durante mais de 15 anos”. Acrescente a isso as relações familiares e de vizinhança e as leis judaicas do sábado, das festas e dos costumes judeus. Nem Jesus nem sua família não se esquivavam dessas coisas. A sociedade oriental é mais exigente nessas coisas.

Em alguns traços, tudo isso nos é transmitido pelos evangelhos, como por exemplo:

visitação: Lc 1,39-56

circuncisão Lc 2,21

purificação Lc 2,22

Volta a Nazaré Lc 2,39

Peregrinação anual a Jerusalém: Lc 2,41;

Perda de Jesus no templo: Lc 2,42-45

Bodas de Caná: Jo2,1-11

Jesus sobe a Jerusalém para a Páscoa: Jo 2,14

Vai à sinagoga no sábado Lc 4,16; Mc1,21

Convidado com frequência: Lc 8,36;

Opinião de sua família sobre ele: Mc 3,21;

Espantam-se de seu conhecimento: Mc 6,13 (Não é ele o carpinteiro?”

Jesus e sua família assumiram o nível de vida do seu tempo e de seu meio: tipo de higiene, medicina, organização familiar, papel destinado à mulher israelita, as imperfeições materiais, as durezas de uma civilização tecnicamente muito primitiva. Jesus só não assumiu a imperfeição moral. Assumiu até a dependência em relação aos pais, como consta em Lucas 2,51-52.

Essa vida exterior comportava uma outra invisível, interior, em Jesus: suas relações com o Pai, sua oração, sua contemplação, consciência de ser Redentor, seu imenso e infinito amor pelos outros, enfim, sua vida de Filho de Deus Salvador, com todo o valor da Redenção, conferido por esse estado de alma à menor de suas ações humanas.

Ele exerceu essa vida interior em toda a sua vida terrestre. A diferença é que em Nazaré, ele não fez nenhum gesto revelador de sua missão. “Seu amor redentor transborda, pois unicamente no silêncio da intimidade, do Filho com o Pai, numa perpétua e ardente súplica por toda a humanidade. Aos olhos dos seus, entretanto, e aos olhos de seus compatriotas, eram os gestos e os trabalhos mais cotidianos que enchiam a sua existência tão simples e comum.

2ª PARTE – CAP. 02 – COMO O PADRE DE FOUCAULD DESCOBRIU E VIVEU O MISTÉRIO DE NAZARÉ = Escrito em 28/12/1946

“Carlos de Foucauld, uma vez convertido, sente-se irresistivelmente levado a incluir tudo no amor de Jesus, e esse amor leva à imitação”, não só interiormente, mas também numa conformidade exterior ao estado de vida vivido por Jesus.

Lembro que todo cristão deve ser um outro Cristo em virtude de uma imitação espiritual. Só alguns receberam por vocação, a da imitação do estado de vida em Nazaré. Mesmo a esses, nem todos são obrigados a conceber essa imitação com a minúcia material que comportava a vocação muito pessoal do Padre de Foucauld.

Esse seu comportamento o levou a imitar até à minúcia a vida de Jesus em Nazaré, a ponto de acharmos talvez um tanto rígida e inumana sua evocação dos costumes da Sagrada Família.

Não podemos criticá-lo, a não ser se ele quisesse impor esse tipo de vida a outros, se bem que ele nem sempre soube evitar essa atitude. Com essa ressalva podemos elogiar as lições de simplicidade, de generosidade lógica no amor, que encontramos nessa alma que atingiu em cheio o espírito de infância espiritual. As crianças empenham todo seu ser e seu amor no relacionamento com os pais.

Para isso é preciso uma humildade, que seja uma verdadeira desapropriação de si e nos leve a nos entregar totalmente em cada um de nossos gestos de amor, como o fazem as crianças.

O maior obstáculo ao desenvolvimento e ao desabrochamento da caridade deve-se ao apego nosso a nós mesmos, atitude tão profundamente enraizada em todos, um amor próprio latente.

O amor realmente “leva em si a necessidade de aderir ao amigo, de imitá-lo o mais completamente possível. Nosso amor por Jesus não poderia escapar a essa lei.”. Uma inteira conformidade com o Verbo Encarnado.

A forma de imitação variará somente conforme os estados de vida e as vocações individuais: a do Irmão Carlos não deixa de ser muito pessoa.

“Nossa vocação de Irmãozinho de Jesus deve também brotar de uma necessidade de imitação por amor (...) que diz respeito, pois, à Vida de Nazaré.”

O Pe. De Foucauld não se sente chamado à vida de ministério, decisão essa irrevogável. Toda a sua vida se emprenha em prosseguir na imitação da vida de Jesus em Nazaré. Ele “descobriu sucessivamente os elementos do mistério de Nazaré, à medida em que sua evolução interior o colocava em condições de compreender e de viver cada um desses elementos”.

“Sua ordem de descoberta corresponde à ordem em que devemos tentar viver os diversos aspectos da nossa vocação.” Seus exageros ou exclusivismos foram eliminados como que por si mesmos à medida em que ele prosseguia seu caminho.

PRIMEIRO PERÍODO: Desde a conversão até o fim de sua estada na Terra Santa.

Realismo concreto. Quer viver nos próprios lugares em que Jesus viveu. Forma de amor ainda bastante imperfeita. Sempre se lembrará da Terra Santa, que deixou ao perceber que não era a vontade de Deus.

Procura de abjeção que influencia a´te de modo excessivo a concepção que ele tem da vida de Jesus em Nazaré.

É acompanhada da humildade, obediência e da pobreza, de mortificação de penitência.

Sua concepção da pobreza é encarada em funçaõ do trabalho: quer que os irmãos ganhem a vida com o trabalho operário.

Caminho:- a prática dessas virtudes: humildade, mortificação, pobreza, afastamento do mundo, que o desapropriaram de si mesmo, libertaram-o para o amor.

“Para dar-se é preciso que agente se possua completamente e esteja livre e disponível”. Ele praticou todas essas virtudes na própria força e movimento do amor”.

A vida de Nazaré foi pobre, dura, infinitamente humilde, mas não abjeta, e nisso o ir. Carlos difere totalmente de Jesus. O Ir. Carlos tem necessidade da abjeção, e não está errado. De onde vem essa necessidade de abjeção, de humilhações, de opróbrios, que transborda do coração de tantos santos?

É a consequência de um enorme amor por jesus, embora já esteja em germe nas exigências de todo e qualquer amor que tende a dar provas de si mesmo, a exprimir-se exteriormente em atos gratuitos, que não tenham de fato outras causas senão o amor.

Um amor sem certas loucuras mereceria o nome de amor? O Cristo, seus santos, todos foram excessivos nas manifestações de seu amor. Essas loucuras (busca do desprezo, humilhação que são a abjeção) não são uma coisa sábia no sentido da sabedoria divina?

Conformidade com o mistério de Jesus Crucificado. O escândalo da Cruz. “É pela necessidade de imitar que o cristão encontra uma alegria e uma paz misteriosas no opróbrio, na humilhação, desprezos sangrentos”. Tem sua raiz na própria abjeção do Crucificado. Compreenderemos isso meditando a Paixão. Nós nos acostumamos tanto com as narrações evangélicas que já não avaliamos mais suficientemente a cena do julgamento de Jesus e as demais abjeções de sua vida toda.

Se realmente amamos, como não desejarmos provar nosso amor a Jesus do mesmo modo que Ele escolheu para provar-nos o Seu? Seria lógico um amor que não fosse até esse ponto?” Aí entendemos os gestos dos santos, gestos esses que chamamos de loucura e de originalidade, de modo pejorativo.

“Ir. Carlos, revestido de uma túnica árabe riscada, toda remendada, em farrapos, recolhendo esterco nas ruas de Nazaré, objeto de zombaria de todos os moleques, encontrando sua alegria nas troças e na pedras que lhe são atiradas...”

“ A procura da abjeção, como expressão de um autêntico amor, deve ser submetida ao governo dos dons do Espírito Santo(...). Pode,pois, acontecer que seja falsa, constrangida, prematura, essa procura da abjeção; ela não terá, então, por fruto, a alegria perfeita “no Espírito Santo”, mas terminará, o mais das vezes, numa certa complacência comigo mesmo”.

“ É preciso, pois, distinguir cuidadosamente a procura deliberada da abjeção” (sem a moção dos dons do Espírito Santo) “do amor pela abjeção e do desejo de sofrer abjeção para se plenamente configurado a Jesus Crucificado.” Só há esse desejo quando houver um amor verdadeiro por Jesus: é um elemento desse amor nascido ao pé da Cruz.

A fé nos faz encontrar alegria nessas abjeções. A humilhação nos é muito difícil!

Um terceiro aspecto do estado de alma de C. De Foucauld enquanto vivia na pequena cabana de tábuas do jardim das Clarissas é a fé na presença real de Jesus na Hóstia.

Assistia a todas as missa que eram celebradas na capela do mosteiro, além de adorar muito o Santíssimo.

É a presença de Jesus que configura a Fraternidade com a verdadeira casa de Nazaré. Essa experiência eucarística que ele teve foi a base de toda a sua vida de oração, a qual se realiza nessa Presença tão amada. Continha, então, um germe de uma vida eucarística completa.

“Querendo fazer de toda sua vida uma imitação da vida de Jesus, ele a orienta definitivamente numa perspectiva nitidamente contemplativa e cristocêntrica. Tudo na sua vida é para Jesus. Estejamos vigilantes também, para que nossa vida seja nitidamente, e desde o começo, orientada nesse sentido: é por amor do Cristo, para realizar plenamente uma amizade com Ele, que queremos viver uma vida e oração, de trabalho e de caridade”.

O critério de devotamento aos irmãos é que seja nossa vida um testemunho de vida divina, e não uma luz e perspectiva puramente humanas. A caridade deve ser um verdadeiro transbordamento de amor divino!

Vamos aprender com o Pe. De Foucauld a fazer esse trabalho de desapropriação de nós mesmos, que não se faz senão pela humildade, pela obediência, pela mortificação, pela pobreza, e esse amor pela abjeção da qual falamos.

Oração eucarística na base de uma fé corajosa, esclarecida, na Presença real de Jesus.

SEGUNDO PERÍODO:- Desde a aceitação da perspectiva do sacerdócio até o fim da estada em Beni-Abbés.

Sua evolução espiritual, centrada na realização da 1ª Fraternidade e na fundação da Congregação dos irmãozinhos do Sagrado Coração faz aparecer uma concepção ampliada da Vida de Nazaré. Algumas características novas:

A atividade redentora oculta do Salvador em Nazaré

Devoção ao Sagrado Coração

Salvação das almas

Exercício de uma caridade muito grande para com o próximo. O amor de Deus e do próximo não podem andar um sem o outro.

Em Beni-Abbés, rompe sua clausura por motivo desse amor ao próximo, desarranja seus horários, procura deliberadamente o contato com todos os que o rodeiam: negros, árabes e europeus. Inspira-se nos contatos que Jesus deveria ter tido com seus vizinhos e outros habitantes de Nazaré.

Essa descoberta é feita em Beni-Abbés na vida cotidiana. Deixa de ser a simples hospitalidade, do regulamenteo de 1899, para uma verdadeira vida em contato constante. “Beni-Abbés é, portanto, como que um período de transição”.

TERCEIRO PERÍODO:- Os últimos anos de Tamanrasset.

Sem elementos novos, mas “o pleno desenvolvimento de sua caridade e de uma vocação de agora em diante, plenamente possuída”.

“O ajuste definitivo de sua concepção da vida de Nazaré será feito, sem dúvida, mais no concreto dos atos que na enunciação dos princípios”.

Numa carta de maio de 1911, há um esboço de “traduzir essa concepção no plano de uma organização de vida religiosa em comunidade.”

Período rico em aplicações práticas: “Vida deliberadamente engajada na das populações tuaregues, sem separações nem constrangimentos”;

Contatos mais nitidamente procurados fora da Fraternidade, como visitas, saídas, excursões.

Conhecimento aprofundado da língua, folclore e costumes dos habitantes.

“A expressão de sua devoção eucarística passa por uma evolução profunda. Já não encara a perpetuidade da adoração como essencial às suas Fraternidade. Não hesita em deixar a celebração cotidiana da Missa por muitos meses, para ir estabelecer-se no meio do Hoggar, nem de ficar sem conservar a Eucaristia no Tabernáculo por seis anos durante os seis primeiros anos em Tamanrasset, por proibição de seu Prefeito Apostólico, por não haver cristãos na vizinhança.

“Sua devoção eucarística passou, por esse fato, como que por uma purificação,e sua vida eucarística como que se integrou em seu amor por Jesus”.

Desse momento em diante, o amor que tem pelos seus irmãos tuaregues é verdadeiramente compreendido e vivido por ele como uma das faces da única caridade que o une ao Cristo”.

Em Tamanrasset, porém, seu ideal continua o mesmo que desde o começo de sua vida religiosa: imitar a vida de Jesus de Nazaré. Para isso ele vive

-Períodos de vida mais solitária

-É um homem de súplica, de oração, verdadeiro contemplativo.

-Não faz ministério

-Procura fazer outros irmãos participarem de sua vida.

Sua morte é a consumação visível e permitida por Deus de uma disposição de almas que sempre foi nele constante: a de salvar almas pelo dom de todo o seu ser a Deus. Esse fim é o sinal e a prova suprema do modo pelo qual quis, antes de tudo, ser “salvador” como Jesus e com Ele.

TODOS OS ASPECTOS DO MISTÉRIO DE NAZARÉ

1- Humildade, pobreza,oração, mortificação.

2- Cooperar na obra redentora do Salvador pela oração e pela imolação total de si mesmo no amor. Disposição expressa pela sua devoção Eucarística.

3- Amor pelas pessoas: amizade, relações muito simples e humanas com todos “como podia ter sido a Sagrada Família de Nazaré”.

4- Ganhar a vida pelo trabalho de suas mãos: não conseguiu viver esse aspecto de seu ideal, “impedido pelas próprias circunstâncias no meio das quais viveu, por sua solidão e pela necessidade de aprender e de penetrar completamente uma língua estrangeira”. Mas sempre se lamentou que não pudesse fazer isso, e sempre renovava a resolução de aplicar-se a ele desde que pudesse.

Sabemos que em Bení-Abbés e em Tamanrasset não havia outro modo de viver senão sera jduado pela sua família, como ocorreu.

Sua vida, tomada em seu conjunto, apresenta-se como a realização de um ideal original, seguido com constância e perseverança, no mais livre desenvolvimento de uma vida muito pessoal.

É esse ideal que ele propõe às suas fundações. Faltava fazer essa adaptação depois de sua morte.

Pe. René Voillaume, 28/12/1946.