ANO B
1ª Leitura: Deuteronômio 6,2-6
Salmo 17(18) – R- Eu vos amo, ó Senhor, porque sois minha força!
2ª Leitura: Hebreus 7,23-28
Evangelho: Marcos 12,28b-34
Um dos escribas, que tinha ouvido a discussão, percebeu que Jesus dera uma boa resposta. Então aproximou-se dele e perguntou: “Qual é o primeiro de todos os mandamentos?” 29Jesus respondeu: “O primeiro é este: ‘Ouve, Israel! O Senhor nosso Deus é um só. 30Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com toda a tua força!’ 31 E o segundo mandamento é: ‘Amarás teu próximo como a ti mesmo’! Não existe outro mandamento maior do que estes.” 32O escriba disse a Jesus: “Muito bem, Mestre! Na verdade, é como disseste: ‘Ele é o único, e não existe outro além dele’. 33 Amar a Deus de todo o coração, com toda a mente e com toda a força, e amar o próximo como a si mesmo, isto supera todos os holocaustos e sacrifícios”. 34 Percebendo Jesus que o escriba tinha respondido com inteligência, disse-lhe: “Tu não estás longe do Reino de Deus”. E ninguém mais tinha coragem de fazer-lhe perguntas.
Qual é o primeiro de todos os mandamentos? Esta pergunta do escriba era um assunto que mexia com as pessoas e causava muita discussão. A Lei de Moisés tinha sido inflacionada por muitas prescrições tradicionais, por explicações e reinterpretações. Por isso a pergunta era muito espontânea. Na realidade, perguntar sobre o primeiro dos mandamentos significava: o que é essencial entre tantos mandamentos, qual é o princípio que dá unidade a todas as prescrições?
A resposta de Jesus foi simples e, ao mesmo tempo, estupenda: amar a Deus e amar o próximo. São dois mandamentos incindíveis em sua unidade. “O amor a Deus e o amor ao próximo são como duas portas que se abrem simultaneamente: é impossível abrir uma sem abrir a outra, impossível fechar uma sem fechar, ao mesmo tempo, também a outra” (Kierkegaard, Diário II, 201).
Sem esquecer essa unidade, gostaria de concentrar a atenção sobre o amor a Deus: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com toda a tua força”.
O primeiro problema: mandamento de amar a Deus? É próprio da natureza do amor a liberdade. Um amor imposto não é amor. O amor é a coisa mais livre e não pode ser imposto por um mandamento externo. Além disso, Deus não deseja um amor coagido. “Depois que experimentamos o amor das pessoas livres, as reverências dos escravos não têm mais valor” (Charles Péguy).
O segundo problema: o cumprimento de um mandamento torna o amor frio. Nós estamos fartos de amor frio! Mesmo que não possamos por toda a culpa na pandemia, essa pandemia nos deu uma amostra do que pode ser um amor frio. Será que Deus quer para si um amor frio? Repitamos o que Jesus disse: “amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com toda a tua força”.
Para superar o primeiro problema é preciso entender que o amor é a causa, e não o efeito do mandamento. Amo e por isso me sinto obrigado a amar. E tal obrigação não me tira a liberdade. Somente quem ama tem a experiência de se obrigar a amar sem se ser coagido a amar. A obrigação de amar é apenas o sinal visível do amor invisível. A obrigação de amar é a comprovação do amor que já existe e está presente entre amante e amado. A obrigação de amar é a autenticação concreta do amor espiritual.
Para resolver o segundo problema é preciso compreender que o mandamento não torna o amor frio porque nós só nos sentimos obrigados a amar Deus porque Ele nos amou por primeiro. “Amor com amor se paga”. Porque nos amou por primeiro, Deus nos comunicou com o seu amor a felicidade de amá-lo e de corresponde ao seu amor. Deus é sumamente feliz porque ama infinitamente. Ele não que, Ele não sabe, Ele não pode a não ser amar infinitamente e nisso Ele é feliz. Ao nos amar por primeiro, ele derrama em nós o seu amor que é capacidade infinita de se dar e de se doar ao amado. Nós chamamos esse amor comunicado de graça. São Paulo nos fala do dom do Espírito derramado em nosso coração e que nos impele a chamar Deus de Abbá. Chama-lo Abbá, entenda-se bem, não só com palavra e de boca, mas com a espontaneidade do filho experimenta ao correr e abraçar o pai.
O mandamento do amor a Deus de Jesus nunca tem como resultado um amor frio. Pois na experiência do amor de Deus que nos ama por primeiro é impossível separar o amor “de” Deus e o amor “para” Deus. Essas duas realidades só podem ser experimentadas juntas: quando nos sentimos amados por Deus (amor “de” Deus), esse mesmo amor é simultaneamente um amor para Deus. Sentir-se amado por Deus é já amar a Deus. Não podemos separar esses dois amores como não podemos separar o amor a Deus e ao próximo: ao amor “de” Deus é já um sinal do amor “para” Deus.
Peçamos sempre, supliquemos com frequência, desejemos até o fim da vida que Deus nos dê o seu amor nos amando e permitindo que o amemos. Senhor, “dá-me um sinal de benevolência” (Sl 86,17); dá-me um sinal de que me queres bem; faz que eu faça a experiência do amor filial de Jesus para que meu coração se alargue e eu corra no caminho de teus mandamentos (cf. Sl 119,32); faz que eu te ame acima de todas as coisas e todas as coisas em ti; faz que eu te procure sempre para sempre te encontrar; que não haja “em meu coração outro Deus fora de ti”. Faz enfim que eu te ame como sou amado.
“Amarás o Senhor teu Deus... amaras o teu próximo como a ti mesmo” (Mc 12,30-31)
Este é o contexto do evangelho deste domingo: Jesus já está em Jerusalém há alguns dias; realizou a purificação do tempo, discutiu com os chefes dos sacerdotes, mestres da lei e anciãos sobre sua autoridade para fazer tais coisas; com os fariseus e herodianos discutiu sobre o pagamento do tributo a César; com os saduceus discutiu sobre a ressurreição...
Nesse ambiente marcado por tantos conflitos, um “mestre da lei” se aproxima de Jesus; não demonstra nenhuma agressividade e nem lhe estende uma armadilha, mas vive uma angústia existencial, marcada por um forte legalismo. Sua vida está fundamentada num emaranhado de leis e normas que lhe determinam como comportar-se em cada circunstância, sem dar margem à criatividade e ao desejo de abrir-se ao novo. Do seu coração brota uma pergunta decisiva: “Qual é o primeiro de todos os mandamentos?” Qual é o mais importante para acertar na vida? Onde centrar a vida para livrar-se do peso das exigências da lei?
A pergunta do mestre da lei tem sentido porque na Torá encontravam-se 613 preceitos. Para muitos rabinos todos os mandamentos tinham a mesma importância, porque procediam de Deus. Para alguns, o mandamen-to mais importante era o cumprimento do sábado. Para outros, o amor a Deus era o primeiro.
Jesus entende muito bem o que sente aquele homem que dele se aproxima. Quando na religião vão se acumulando normas e preceitos, costumes e ritos, doutrinas e dogmas, é fácil viver dispersos, sem saber exatamente que é o fundamental para orientar a vida de maneira sadia.
Tanto naquele tempo como hoje somos sufocados por uma abundância de leis, tanto religiosas como civis. No fundo, estão sobrando leis, mas está faltando o amor. O amor não cabe nas leis, só cabe no coração. Quem ama não precisa de leis.
A novidade da resposta de Jesus está no fato de que o mestre da lei lhe perguntou pelo mandamento principal (“amarás o Senhor teu Deus...”), mas Ele acrescenta um segundo, tão importante como o primeiro: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Ambos mandamentos estão no mesmo nível, devem ir sempre unidos; Jesus faz dos dois mandamentos um só. Ele não aceita que se possa chegar a Deus por um caminho individual e intimista, esquecendo o próximo. Deus e o próximo não são magnitudes separáveis. Por isso, tampouco se pode dizer que o amor a Deus é mais importante que o amor ao próximo.
Diante da pergunta do mestre da lei pelo mandamento mais importante (no singular), Jesus responde dizendo que são dois (no plural). E não há mandamento maior que eles.
A resposta de Jesus aponta para os dois eixos centrais na vida dos seus seguidores: Deus e o próximo; ambos eixos se exigem mutuamente, a ponto de um levar ao outro, e a ausência de um provoca a ausência do outro. Quem está sintonizado em Deus, está necessariamente aberto ao amor e à solidariedade; e quem está centrado no amor ao próximo está aberto à iniciativa e graça de Deus.
O(a) seguidor de Jesus não se caracteriza por pertencer a uma determinada religião, nem por doutrinas, nem ritos, nem normas morais... mas por viver no “fluxo do amor” que tem sua fonte no coração do Pai.
O mandamento do amor não é apresentado como uma lei que torna nossa vida dura e pesada, mas uma resposta ao que Deus é em cada um de nós, e que em Jesus se manifestou de maneira contundente. Nosso amor será “um amor que responde a seu Amor”.
O Amor que é Deus, temos de descobri-lo dentro de nós, como uma realidade que está unida intimamente ao nosso ser. Por isso, só há um mandamento: manifestar esse amor que é Deus, em nossas relações com os outros; o amor é o divino germinando nos meandros do humano. O amor é a realidade que nos faz mais humanos.
Ser seguidor(a) de Jesus, portanto, é uma questão de amor. Amar como Ele é transformar-se n’Ele.
O seguimento de Jesus nos convida a esta liberdade que se encontra na palavra “Ágape”, o amor da superabundância, o amor de gratuidade, o amor que transborda, que nada pede em troca. Amar sem ter nada de particular para amar. Amar não a partir de nossa carência, mas amar a partir de nossa plenitude. Amar não somente a partir de nossa sede, mas amar a partir de nossa fonte que corre.
Só o “ágape” expressa o amor sem mistura de interesse pessoal. Seria um puro dom de si mesmo, só possível em Deus. Deus não é um Ser que ama, é o Amor. N’Ele, o Amor é sua essência; se Deus deixasse de amar um só instante, deixaria de existir. Não podemos esperar de Deus “amostras pontuais de amor”, porque não pode deixar de demonstrar o amor um só instante.
Ágape é o amor divino. Esse amor é o mais raro, o mais precioso, o grau mais elevado do dom de si mesmo.
Estas são algumas características do ágape cristão: é um amor espontâneo e gratuito, sem motivo, sem interesse, até mesmo sem justificação, oblativo, expansivo... o puro amor.
O amor (ágape) impregna o ser humano. “Afeta a totalidade humana; roça a sensibilidade, aloja-se na medula dos ossos, pulsa nos batimentos cardíacos, arfa na respiração, circula pelo sangue, aquele o pensamento, rola pelos braços, agita as mãos, baila na consciência, escorre no olhar, sonoriza-se na palavra, recolhe-se no silêncio, peregrina nos passos, oculta-se no inconsciente, murmura na oração...” (Juvenal Arduini). O Amor é onipresença. “É um estado de ser” (R. May). O amor é a habitação do ser humano. “O amor jamais acabará” (S. Paulo).
O amor é esvaziar-se do “ego” dentro de si mesmo, para que haja lugar para o outro. O amor tem um rosto.
Assim como Deus, que se “esvaziou de sua divindade”, o ágape se esvazia de si mesmo para dar mais lugar, para não invadir, para deixar ao outro um pouco mais de espaço, de liberdade... “Amar é encontrar sua riqueza fora de si” (Alain).
Para o poeta Rilke, o amor é constituído por “duas humanidades que se inclinam uma diante da outra”.
Amor como dom gratuito de si mesmo. Não é motivado pelo valor do outro, isto é, pela recompensa que os gestos de amizade podem trazer. Com efeito, neste caso, não se ama o outro porque ele é bom (como na amizade verdadeira), mas para para que seja bom, já que o amor quer o bem do amado.
Tal como a água de um rio escavando seu leito profundo, o amor é a força que nos escava, que alarga e aumenta nossa capacidade de irmos para além de nós mesmos. Uma das maiores razões para o amor ser uma experiência de expansão se deve à sensação de imortalidade e eternidade que nos proporciona.
O amor carrega em si a marca da eternidade. Quem ama vê o tempo se ampliar e a vida ganhar mais sentido. Alguns dizem que há lugares de nós mesmos que só passam a existir após o sofrimento ter penetrado ali. Há lugares em nosso interior que não existem enquanto o amor não tiver penetrado.
Texto bíblico: Mc 12,28-34
Na oração: - entoar um hino de louvor e gratidão a Deus pelo Seu “amor em excesso” que se revela no cotidiano da vida;
- ter sempre presente na memória que fomos criados para viver em relação de amor e solidariedade com todos;
- considere que toda a Criação saiu das mãos do Criador como presente especial e gratuito, como uma mensagem de Amor a cada um de nós.
Quase ninguém pensa que o amor é algo que se vá aprendendo pouco a pouco ao longo da vida. A maioria assume que o ser humano sabe amar espontaneamente. Por isso, se podem detectar tantos erros e tanta ambiguidade nesse mundo misterioso e atraente do amor.
Há quem pense que o amor consiste fundamentalmente em ser amado e não em amar. Por isso, passam a vida esforçando-se por conseguir que alguém os ame. Para essas pessoas, o importante é ser atraente, ser agradável, ter uma conversa interessante, fazer-se querer. Em geral, acabam por ser bastante infelizes.
Outros estão convencidos de que amar é algo simples, e que o difícil é encontrar pessoas agradáveis às quais se possa querer. Só se aproximam de quem lhes parece simpático. Assim que não encontram a resposta apetecida, o seu «amor» desaparece.
Há aqueles que confundem o amor com o desejo. Reduzem tudo a encontrar alguém que satisfaça o seu desejo de companhia, afeto ou prazer. Quando dizem «te amo», na realidade estão dizendo «te desejo», «me apeteces».
Quando Jesus fala do amor a Deus e ao próximo como a coisa mais importante e decisiva da vida, está pensando em outra coisa. Para Jesus, o amor é a força que move e faz crescer a vida, pois pode libertar-nos da solidão e da separação para nos fazer entrar na comunhão com Deus e com os outros.
Mas, concretamente, esse «amar o próximo como a si mesmo» requer uma verdadeira aprendizagem, sempre possível para quem tem Jesus como Mestre.
A primeira tarefa é aprender a escutar o outro. Procurar entender o que vive. Sem essa escuta sincera dos seus sofrimentos, necessidades e aspirações, não é possível o amor verdadeiro.
A segunda é aprender a dar. Não há amor onde não há entrega generosa, doação desinteressada, presente. O amor é todo o contrário de acumular, apropriar-se do outro, usá-lo, aproveitar-se dele.
Por último, amar exige aprender a perdoar. Aceitar o outro com as suas debilidades e a sua mediocridade. Não retirar rapidamente a amizade ou o amor. Oferecer uma e outra vez a possibilidade de reencontro. Devolver o bem pelo mal.
“Vinde, benditos de meu Pai!” (Mt 25,34)
Todos somos criaturas procedentes das entranhas d’Aquele que é Plenitude e Presença. Filhos e filhas de Deus, gerados pelos nossos pais, desde toda a Eternidade estamos em seu pensamento e em seu coração; daí nosso desejo de eternidade. Na Eternidade não há passado nem futuro, só Presente, aqui e agora.
Ao nascer, começamos a existir, mas já estávamos na mente e no coração de Deus; existir é ser no tempo; ao morrer, deixamos de existir, mas não deixamos de ser. Usando uma expressão poética podemos dizer que “somos suspiros de amor de Deus” e, tal como as ondas do mar que beijam a praia e retornam ao oceano que as constitui, assim nós também retornaremos à nossa Fonte original; seremos “aspirados” para dentro do coração oceânico do Deus Pai/Mãe.
Isso celebramos cada 2 de novembro: a esperança de que aqueles que morreram, já vivem ressuscitados para a Vida de Deus. No “Dia de Finados”, nós cristãos re-cordamos (visitamos de novo com o coração), na oração e no afeto, aqueles(as) que amamos e que já deixaram este mundo. Apesar de sua ausência física, pela fé sabemos que a morte não tem nunca a última palavra. De fato, a morte é a passagem para a Vida, para sempre; a Vida que não terá fim, pois nosso Deus não é Deus de mortos, mas de vivos. Porque para Deus, todos vivem.
Celebrar e recordar os falecidos a cada 02 de novembro e cada dia na eucaristia nos anima a viver a fé na Ressurreição e nos encher de esperança.
A experiência cristã da morte parte de uma revelação básica: Deus não quer a morte, mas a vida, a vida plena para toda pessoa humana. “Tu perdoas a todos, porque são teus, Senhor, amigo da vida” (Sab. 11,26). Somos convidados à confiança em Deus, renunciando toda pretensão de querer controlar nossa existência; somos movidos a reconhecer que os momentos cruciais de nossa vida foram “dom de Deus”, mais que planificada construção nossa.
Morrer é o processo pelo qual nos “reintegramos” na Vida que sempre fomos.
Somos viventes mortais e honramos os nossos mortos, aqueles cuja recordação ainda nos afeta. Mas todos os mortos, grandes e pequenos, santos e pecadores, são nossos, somos de todos eles, pois a mesma vida nos une na morte, e a mesma morte nos une na vida. O que eles(elas) foram na vida agora faz parte do que somos, e nossa vida deve restaurar e completar o que eles não alcançaram viver. Nisso consiste honrar os mortos: em dar culto à vida, em cultivá-la, cuidá-la, curá-la neles e em nós.
Celebrar o dia de Finados é um ato de justiça para com os mortos. Os mortos também tem direitos e é bom que se reconheça isso. Vivemos uma cultura que extingue o passado, obscurece o futuro e fica preso a um presente emocional vazio. Os mortos têm direito a que lhes agradeçamos sua vida e a marca original que nos deixaram.
Celebrar e recordar aqueles que nos precederam é negar à morte a última palavra, é afirmar que a Vida é a palavra definitiva; recordar aqueles com os quais convivemos nos faz viver a partir das raízes humanas, ancorados em nossa existência cotidiana.
Não querer ver a morte de frente, ignorá-la, apagá-la de nossa vida, fazê-la invisível..., é perder humanidade, é um auto-engano sobre a condição humana frágil, banaliza-se a mesma vida que acaba não valendo nada. Quando a morte é “consumida” diariamente nos noticiários, só se ativam emotividades instantâneas que não levam a nada, ou a uma resignação estéril diante do que acontece.
Pensamos que a morte é o contrário da vida e essa lógica é falsa. A vida é como uma moeda que tem duas faces: uma é o nascimento, a outra é a morte. Entre as duas faces está a moeda, que é o importante. É a vida que devemos dar valor, não seus limites.
Diante da necessidade inata de recordar nossos antepassados devemos aproveitá-la para encontrar seguran-ça e sentido em nosso próprio mundo. A consciência de que somos o que somos, graças aos seres humanos que nos precederam, é uma realidade inspiradora para o nosso viver. Recordar os nossos familiares faleci-dos e agradecer-lhes o que fizeram por nós nos ajudará a fazer o mesmo por aqueles que caminham conosco.
Entrar em sintonia com os seres queridos que morreram nos impulsiona a viver com maior intensidade a vida que ainda temos nas nossas mãos. Todo o humano que eles nos transmitiram devemos potenciá-lo em nós para que o mundo vá se humanizando. Pelos mortos já não podemos fazer nada, mas sua recordação nos impulsiona para aqueles que vivem junto a nós. O maior elogio que se pode dizer de um ser humano é
que, quando partiu, deixou o mundo um pouquinho melhor que quando chegou a ele.
O grande teólogo Karl Rahner entendia a morte em chave de generosidade. Morrer, escreveu ele, é “dar lugar” aos que virão depois, é nosso último exercício de amor, responsabilidade e humildade. É, inclusive, nosso derradeiro exercício de liberdade.
Precisamos morrer, não só para que outros vivam, abrindo, com nossa morte, um espaço para eles, mas também para que valorizemos a vida como presente recebido, que vamos legando aos que vem, constituindo, assim, uma corrente de vida sempre mais expansiva.
Todos morremos, mas há mortes e mortes. Na cultura da “pós-moderna líquida” a morte se apresenta como termo, ruptura e aniquilação. Somente os que não viveram seriamente, os que esbanjaram sua vida em caprichos e superficialidades, os que semearam dor e morte ao seu redor, os que asfixiaram a vida e não se importaram com os outros, tem medo de morrer.
Os que aceitaram sua vida e se atreveram a vivê-la seriamente, os que a viveram como dom que se entrega, aceitam sua morte e a esperam de modo sereno e livre, como o descanso devido depois de uma jornada trabalhosa e fecunda. Assim como a jornada cumprida devidamente dá alegria ao sonho, uma vida bem vivida dá alegria à morte. Porque a vida valeu a pena, também vale a pena morrer.
Dia de Finados é ocasião privilegiada para confrontar a morte, como fazemos com outros medos.
Devemos contemplar nosso fim último, familiarizar-nos com ele, aprofundá-lo e analisá-lo, conversar com ele e descartar as aterrorizadoras distorções infantis sobre a morte.
Ao compreendermos, de verdade, nossa condição humana – nossa finitude, nosso breve período de tempo sob a luz -, não só passamos a saborear a preciosidade de cada momento e o simples prazer de existir, como também intensificamos nossa compaixão por nós mesmos e por todos os outros seres humanos.
Morre-se no instante da morte, como morremos ao longo da vida. Este é o caminho normal de morrer. A presença da morte na existência não se veste de luto, mas de seriedade e irreversibilidade nas decisões. Uma vida pensada sem morte perde-se, no final, na total irresponsabilidade.
Texto bíblico: Mt 25,31-46
Na oração: O “depois da vida” é um grande encontro onde seremos perguntados: “o quanto você viveu sua vida?”
- “Fazer memória” das pessoas que viveram intensamente e deixaram “marcas” em sua vida.
XXXI DOMINGO DO ANO – CICLO “B”
Primeira leitura (Dt 6,2-6):
O sexto capítulo do Deuteronômio comenta o primeiro mandamento do decálogo; mas com a novidade de que, para descrever o dever essencial de Israel para com o seu Deus, utiliza o vocabulário do amor (6,4-9).
O imperativo “ Ouve, Israel ” aparece no início de diversas unidades literárias na seção Dt 5-11 (cf. 5:1; 6:4; 9:1; 10:12). Assim, toda exortação começa com este convite à escuta da palavra de Deus. Este pedido de ser ouvido implica impor silêncio aos ouvintes; porque o silêncio é a condição necessária para que a palavra falada se deposite e germine no coração de quem ouve. Este convite à escuta é como uma síntese de todo o conteúdo da Dt ou, pelo menos, é um dos princípios básicos de toda a sua teologia.
O texto inclui uma formulação deuteronômica do credo de Israel que visa afirmar a unidade de Deus, isto é, que ele não está dividido, que ele é um só. Como pano de fundo está o perigo real para o povo daquela época de equiparar Deus aos Baals dos cananeus, deuses locais, com os seus múltiplos títulos de acordo com os santuários onde eram adorados: Baal Peor, Baal de Hermon, Baal Berith de Siquém. , Baal de Samaria, Baal do Carmelo, etc. Este princípio está na base de uma das inovações mais marcantes da corrente deuteronomista, como a supressão de todas as práticas culturais realizadas nos vários santuários para centralizar o culto no templo de Jerusalém (Dt 12,4-12). Um único templo é sinal do único Deus, do único povo e da única aliança.
Do facto de o Senhor ser único deriva o imperativo de amá-lo com a totalidade da pessoa, com todas as fibras interiores, sem resíduos e sem reservas. Este compromisso totalizador é significado com a terminologia própria do Dt: coração, alma e força . Quanto ao alcance do termo “amor” podemos apontar que para o Dt o amor, o medo, a reverência e a obediência são colocados na mesma linha que as atitudes básicas do israelita com respeito ao seu Deus e que a essência da lei está aqui .
Do amor de Deus passamos à observância dos preceitos, mas sem abandonar a esfera da interioridade, como demonstra o uso do termo coração. Amar ao Senhor de todo o coração fica explícito ao guardar as palavras dele em seu próprio coração.
Evangelho (Mc 12,28b-34):
Lembremos que este texto faz parte de uma subseção do evangelho de Marcos (Mc 11-12) caracterizada pela crescente oposição dos fariseus a Jesus, que procuram surpreendê-lo com alguma declaração comprometedora para acusá-lo. Mas neste caso parece que o escriba se aproxima de Jesus e pergunta com boas intenções. A questão é: "Qual é o primeiro de todos os mandamentos (ἐντολὴ πρώτη)?"
Para compreender a razão desta questão devemos lembrar que os rabinos contaram um total de 613 mandamentos, número que resultou da soma dos 248 preceitos e 365 proibições presentes na Torá ou Pentateuco. O debate centrou-se então na possibilidade de distinguir entre preceitos “grandes” e “pequenos”; e na gravidade da culpa decorrente do seu incumprimento. Em geral, o grupo de fariseus achava que todos os mandamentos eram importantes e deveriam ser cumpridos com extrema fidelidade. Outros, porém, reconheciam uma certa hierarquia nos mandamentos e nas exigências para o seu cumprimento. Além disso, debateram a existência de um mandamento que fosse o princípio fundamental ou “regra de ouro” do comportamento do judeu fiel. A pergunta que o fariseu dirige a Jesus está especialmente nesta última linha.
Jesus responde dizendo que “o primeiro mandamento é” (πρώτη ἐστίν) e cita Dt 6,4-5: “Ouve, Israel: o Senhor nosso Deus é o único Senhor; e amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração e de toda a tua alma, de todo o teu espírito e de todas as tuas forças”. Este texto faz parte da passagem de Dt 6,4-9, que junto com Dt 11,13-21 e Nm 15,38-41, compõem o famoso Shema Israel ( Escuta Israel ), oração que desde o final do o século XX. Os judeus observantes não pararam de orar de manhã e à noite. Este texto começa com o mandamento de “ouvir”, que inclui a atenção e a abertura do homem à Palavra de Deus com a disponibilidade para obedecê-la. Depois, há um segundo imperativo, o de amar a Deus com a totalidade da pessoa, com todas as fibras internas, sem resíduos e sem reservas. A interpretação rabínica contida na Mishna especifica que “com toda a alma” significa até o martírio e “com todas as forças” implica com todos os bens. A mensagem é que você deve amar a Deus não só com todo o seu ser (coração), mas também com os seus próprios bens materiais (forças) e até mesmo com o dom total da vida (alma). A citação de Jesus em Marcos acrescenta uma quarta capacidade de amar: "com todo o entendimento (dianoi,a)." Em suma, “o resumo supremo da vontade de Deus consiste em amar o único Deus com todas as forças e capacidades que foram dadas ao homem”[1].
Em seguida, ele enuncia um “segundo” (deute,ra) mandamento e cita Levítico 19:18: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Este versículo pertence ao Código de Santidade (Lv 17-24), assim chamado porque o fundamento teológico que dá a todas as suas prescrições é “Sereis santos, porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo” (Lv 19,2 ) Precisamente, o capítulo 19 de Levítico contém várias normas de natureza mais social, onde se destacam o amor ao próximo e a rejeição da vingança. Agora, a insistência na primazia da santidade de Deus indica que para Levítico o verdadeiro fundamento do amor. pois o próximo é o amor de Deus . Ele não diz isso tão explicitamente como Jesus no NT, mas é claro que a presença do Deus Santo no meio do povo é o que motiva o tratamento fraterno entre seus membros. Levítico este mandamento do amor ao próximo é estendido e entendido exclusivamente em relação aos membros do povo , aos compatriotas, já que o próximo aqui é fundamentalmente o israelita, embora seja estendido, excepcionalmente, aos estrangeiros residentes em Israel ( cf. Lv 19,34)[2]. Por outro lado, Jesus expande a noção de próximo a todos os que precisam de ajuda, além disso, convida-nos a sermos próximos de quem precisa (cf. Lc 10,36).
Em suma, estes são dois mandamentos diferentes, um primeiro (πρώτη) e outro segundo (deute,ra), mas ambos formam um só devido à sua importância diante de Deus e à sua implicação mútua. Ou seja, “o amor a Deus e ao próximo aparece como comentário sumário em ambas as tabelas do decálogo”[3].
Em seguida vem o “retorno” do escriba que repete a resposta de Jesus com algumas modificações: acentua a singularidade de Deus, une o amor a Deus com o amor ao próximo e os apresenta como superiores aos holocaustos e aos sacrifícios. Esta última implica uma relativização do culto; ou pelo menos, na linha dos profetas, uma subordinação dela ao amor e ao compromisso com a vida.
Jesus aprova este “retorno” do escriba dizendo-lhe: “Tu não estás longe do Reino de Deus”. Ou seja, ele está no bom caminho para alcançar o Reino que Jesus tornará presente.
Algumas reflexões:
O evangelho de hoje nos convida a meditar sobre a necessidade que todos temos de saber quais são as coisas essenciais e fundamentais da vida. Muitas vezes a dispersão das atividades nos leva a cuidar de muitas coisas secundárias e negligenciar as essenciais. É por isso que precisamos voltar ao essencial e priorizá-lo em nossas vidas. Esta busca pela unidade e pela simplicidade é uma tendência em todas as áreas da vida, inclusive na vida espiritual. Além disso, podemos dizer que todo processo de amadurecimento na vida leva a uma maior simplificação ou concentração no que é essencial e fundamental. Portanto, não é descabido acolhermos também com o coração aberto o ensinamento de Jesus sobre o "primeiro dos mandamentos", com tudo o que isso implica.
Para Jesus é muito claro que o primeiro e fundamental mandamento é o amor de Deus. E em segundo lugar, mas inseparável do primeiro, está o amor ao próximo como a nós mesmos. Assim como Deus me pede, antes de tudo, que o ame com todo o meu ser, também me pede que ame o próximo como extensão e verificação do amor a Deus. Ressaltamos aqui que “próximo” se refere a qualquer pessoa que precise de mim e a quem posso ajudar, sem distinções de qualquer espécie.
É importante também não perder de vista que neste segundo mandamento há dois amores: o amor ao próximo e o amor a si mesmo. Especificamente, somos ordenados a amar o nosso próximo da mesma forma que amamos a nós mesmos. Em outras palavras, amar a si mesmo também é algo que Deus nos pede; mas não em primeiro lugar, mas em segundo lugar e em paralelo com o amor ao próximo. O então Cardeal J. Ratzinger disse a este respeito que “isto significa o seguinte: o amor a si mesmo, a afirmação do próprio ser, oferece a forma e a medida do amor ao próximo. O amor a si mesmo é algo natural e necessário, sem o qual o amor ao próximo perderia o seu próprio fundamento […] Todos os homens foram chamados à salvação. O homem é querido e amado por Deus e a sua tarefa máxima é corresponder a este amor. Você não pode odiar o que Deus ama. Não pode destruir o que está destinado à eternidade. Ser chamado ao amor de Deus é ser chamado à felicidade. Ser feliz é um dever humano-natural e sobrenatural. Quando Jesus fala em negar-se, em perder a vida, etc., está indicando o caminho da correta afirmação de si mesmo (amor-próprio) que exige sempre uma abertura, uma transcendência. Mas a necessidade de sair de si não exclui a autoafirmação, muito pelo contrário: é o caminho para se encontrar e “amar-se”. Quando, há quarenta anos, li pela primeira vez o Diário de um Padre Rural , de Bernanos , fiquei muito impressionado com a última frase daquela alma sofredora: “Não é difícil odiar-se, mas a graça da graça seria amar tornar-se membro do corpo de Cristo”. O realismo desta afirmação é evidente. Há muitas pessoas que vivem em contradição consigo mesmas. A sua aversão à própria pessoa, a sua incapacidade de se aceitarem e de se reconciliarem consigo mesmos, estão muito longe da “abnegação” pretendida pelo Senhor. Quem não ama a si mesmo não pode amar o próximo. Ele não pode aceitá-lo “como ele mesmo”, porque está contra si mesmo e, portanto, é incapaz de amá-lo do fundo do seu ser”[4].
Em última análise, tudo se reduz e concentra no amor, porque quem ama a Deus cumprirá os seus mandamentos, principalmente os que se referem ao próximo e a si mesmo. Como diz São Paulo: “O amor não faz mal ao próximo. O amor é, portanto, a plenitude da Lei” (Rm 13,10).
Notemos também que a primeira coisa que Jesus nos ordena, assumindo e citando o texto de Dt 6,4-5, é “ouvir”. Porque só quem escuta pode saber o que o Senhor lhe pede e pode cumpri-lo, ou seja, amá-lo. Antes de agir é preciso parar e ouvir Deus. E para isso precisamos calar o coração, silenciar outras vozes e dar “o exclusivo” ao Senhor.
A esse respeito, o Papa Francisco disse no Angelus de 31 de outubro de 2021: “O Senhor não procura tanto comentadores hábeis das Escrituras, mas corações dóceis que, acolhendo sua Palavra, se deixam transformar interiormente. Por isso é tão importante conhecer o Evangelho, tê-lo sempre ao alcance – mesmo que seja um pequeno Evangelho no bolso, na bolsa – para lê-lo e relê-lo, apaixonar-se por ele. Quando fazemos isso, Jesus, Palavra do Pai, entra em nosso coração, se torna íntimo e frutificamos Nele. Tomemos como exemplo o Evangelho de hoje: não basta lê-lo e entender que devemos amar a Deus e ao próximo. . É preciso que esse mandamento, que é o “grande mandamento”, ressoe em nós, seja assimilado, se torne a voz da nossa consciência. Então não fica letra morta, na gaveta do coração, porque o Espírito Santo faz brotar em nós a semente dessa Palavra.”.
Concluindo, amor a Deus, amor ao próximo, amor a si mesmo. Sempre ame. Portanto, um exame permanente do amor em nossas vidas é justo e necessário.
PARA ORAÇÃO (RESSONÂNCIAS DO EVANGELHO EM ORAÇÃO):
O Reino não está longe
O Reino de Deus parece tão humano
É uma Presença e um Amor…
Se estivermos atentos, podemos ver
Mas acima de tudo, ouça
Está tão perto de quem sorri na sua inocência
Dos movidos pela pobreza e pela miséria
A quem dilacera a dor dos irmãos
Quem pode ver, está bem perto
Esse Israel da surdez já passou
Agora um novo povo se torna ovelha
Apenas para reconhecer sua voz
E te seguir onde quer que você vá, Senhor
Há Senhor, Rei do Reino que recria
Aquela que nos traz a vida verdadeira e nos encoraja
Esperar contra toda esperança
Os novos céus e a nova terra
-Você não está longe-, conte-nos novamente
Assim o som da voz do Pastor
quando nos afastamos, isso nos aproxima
abre nossos corações novamente quando se retira
E nós, Senhor, sem a tua força!
Espalhados e espalhados sem rumo
Você mesmo é o Reino tão almejado
Esteja no Pai e com o Espírito Santo. Amém
[1] Cf. J. Gnilka, El evangelio de Marcos. Vol. II (Sígueme; Salamanca 1993) 192.
[2] Cf. E. Cortese – P. Kaswalder, Il fascino del sacro. Alla riscoperta del libro del Levitico (San Paolo; Milano 1996) 75-77.
[3] . J. Gnilka, El evangelio de Marcos. Vol. II (Sígueme; Salamanca 1993) 194.-
[4] Mirar a Cristo. Ejercicios de Fe, Esperanza y Amor (EDICEP; Valencia 2005) 100-101.
[5] Papa Francisco, Mensaje para la 50ª Jornada Mundial de las Comunicaciones Sociales. “Comunicación y Misericordia: un encuentro fecundo” (24 de enero 2016).