24 e 25/12/2024
MISSA DA NOITE:
1ªLeitura: Isaías 9,1-6;
Salmo responsorial: 95(96)-R- Hoje nasceu para nós o Salvador, que é Cristo, o Senhor.
2ª Leitura: Tito 2,11-14
Evangelho de Lucas 2,1-14
MISSA DA AURORA:
1ª Leitura:Isaías 62,11-12
Salmo responsorial: 96(97) -R- Brilha hoje uma luz sobre nós, pois nasceu para nós o Senhor.
2ª Leitura: Tito 3,4-7
Evangelho: Lucas 2,15-20
MISSA DO DIA
1ª Leitura: Isaías 52,7-10
Salmo responsorial: 97(98)R- Os confins do universo contemplaram a salvação do nosso Deus.
2ª Leitura: Hebreus 1,1-6
Evangelho: João 1,1-18
MISSA DA NOITE - EVANGELHO Lc 2,1-14
Naqueles dias, saiu um decreto do imperador Augusto mandando fazer o recenseamento de toda a terra 2 – o primeiro recenseamento, feito quando Quirino era governador da Síria. 3 Todos iam registrar-se, cada um na sua cidade. 4 Também José, que era da família e da descendência de Davi, subiu da cidade de Nazaré, na Galiléia, à cidade de Davi, chamada Belém, na Judéia, 5 para registrar-se com Maria, sua esposa, que estava grávida. 6 Quando estavam ali, chegou o tempo do parto. 7 Ela deu à luz o seu filho primogênito, envolveu-o em faixas e deitou-o numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria. 8 Havia naquela região pastores que passavam a noite nos campos, tomando conta do rebanho. 9 Um anjo do Senhor lhes apareceu, e a glória do Senhor os envolveu de luz. Os pastores ficaram com muito medo. 10 O anjo então lhes disse: “Não tenhais medo! Eu vos anuncio uma grande alegria, que será também a de todo o povo: 11 hoje, na cidade de Davi, nasceu para vós o Salvador, que é o Cristo Senhor! 12 E isto vos servirá de sinal: encontrareis um recém-nascido, envolto em faixas e deitado numa manjedoura”. 13 De repente, juntou-se ao anjo uma multidão do exército celeste cantando a Deus: 14 “Glória a Deus no mais alto dos céus, e na terra, paz aos que são do seu agrado!”
Aconteceu que naqueles dias, César Augusto publicou um decreto, ordenando o recenseamento de toda a terra. Este primeiro recenseamento foi feito quando Quirino era governador da Síria.
Com estas palavras, Lucas introduz a sua narrativa sobre o nascimento de Jesus e explica porque ele aconteceu em Belém: um recenseamento, com a finalidade de determinar e depois cobrar os impostos. Essa é a razão pela qual José e Maria se deslocam de Nazaré até Belém.
A menção de César Augusto não é por acaso. Ela é intencional: serve para colocar em relação Jesus e César Augusto. O que eles têm em comum? O que eles têm de diferença?
Há uma inscrição histórica na qual vemos como César Augusto queria ser visto e considerado. O nascimento do Imperador conferiu uma fisionomia diferente ao mundo inteiro. O mundo teria se arruinado, se não tivesse nele nascido e brilhado uma felicidade universal. A Providência, que dirige a nossa vida, cumulou este homem de tais dons para a nossa salvação e para a salvação das gerações futuras. O dia do nascimento do Imperador foi para o mundo o início de um novo tempo. A partir do nascimento do salvador deve começar uma nova contagem do tempo (tradução livre da Inscrição de Priene, 9 a.C.).
Notem que César Augusto se considera e deseja ser considerado soter = salvador. O próprio título de Augusto possui uma conotação divina (sebastos = adorável). O imperador César Augusto queria ser considerado como o salvador que começou um novo tempo, e por isso o tempo devia começar a ser contado a partir dele.
Duas coisas importantes já podemos indicar sobre o nascimento de Jesus. Jesus não é um mito. Ele é um personagem histórico que pertence a um tempo e a um lugar: nasceu em Belém, no tempo de César Augusto, quando Quirino era governador da Síria, no contexto do recenseamento.
No tempo do nascimento de Jesus, todos falavam de paz e de justiça para o mundo todo. Também César Augusto se fazia chamar de salvador e de príncipe da paz. Depois dele, os Imperadores romanos faziam questão de serem saudados de “restaurador do mundo”, “esperado do povo”, “restituidor da luz”. Para o senso comum, para a maioria das pessoas a mentalidade era a de que somente o forte, somente quem tem o poder dos exércitos, só quem tem o comando pode impor a paz ao mundo e trazer a salvação para a humanidade.
O que os anjos anunciam aos pastores arrebenta com essa mentalidade!
"Hoje, na cidade de Davi, nasceu para vós um Salvador, que é o Cristo Senhor. Isto vos servirá de sinal: Encontrareis um recém-nascido envolvido em faixas e deitado numa manjedoura".
O sinal de que nasceu o Salvador é um não-sinal: é um recém-nascido, envolvido em faixas, deitado numa manjedoura!
Somente Deus podia realizar uma mudança tão radical da lógica humana. Somente Deus poderia pronunciar um não tão radical àquilo que as pessoas sempre pensaram. Nós sozinhos nunca teríamos ousado afirmar tamanha reviravolta na escala de valores. Sozinhos nunca teríamos cogitado uma novidade tão grande quanto revolucionária. O Salvador, o Príncipe da Paz, o Cristo Senhor é este recém-nascido envolto em faixas, deitado na manjedoura.
O que viram os pastores e o que nós devemos ver?
O menino envolvido em panos já antecipa a hora da morte e da sepultura de Jesus. Jesus é desde o seu nascimento o imolado e a manjedoura se torna já o altar do sacrifício.
A manjedoura é o lugar onde os animais encontram o seu alimento. No natal, está deitado na manjedoura aquele que é o Pão descido do céu para ser nosso Pão da vida. A manjedoura se torna a mesa de Deus para a qual somos convidados para comer o Pão de Deus.
Na pobreza do nascimento de Belém se revela que o verdadeiro Salvador e o Príncipe da paz não é César Augusto, mas o recém-nascido envolto em faixas e deitado na manjedoura.
Natal é o encontro do Deus humilde e frágil que vem até nós. É a arte divina do encontro que cura todo mundano desencontro!
No Natal nós vamos a Ele, porque Ele veio a nós, indefeso, desarmado e humilde.
Neste Natal, deixemo-nos olhar pelo Senhor; permitamos que Ele venha a nós, e nos encontre, e nos ame, e nos olhe!
Abraçados por esse Amor terno e pessoal do Verbo Encarnado, desejo a você e à sua família, um Santo Natal!
Jesus “desce” aos rincões da humanidade; sua Luz brilha no interior da gruta e a partir daí ilumina todo o universo. As grutas sempre despertaram fascínio nos seres humanos; possuem uma força atrativa e guardam segredos em seu interior. Ao mesmo tempo simbolizam o desejo permanente de retornar ao ventre materno, lugar de segurança, de aquecimento...
A contemplação do Nascimento de Jesus nos impulsiona a fazer a travessia para o interior de uma Gruta: ali o Grande Mistério se faz visível e revelador do sentido da existência humana. Trata-se de “entrar” nela com suavidade, de percebê-la e fazê-la descer até o coração, de convertê-la em matéria de consideração, de oração silenciosa e surpreendida.
A contemplação do Menino Jesus na Gruta revela que Deus assumiu a aventura humana desde seus começos até seu limite (vida, amor e morte). Deus se fez “tecido humano”, revestiu o ser humano de sua própria glória, plenificou-o de sentido e de finalidade. No nascimento de Jesus é revelada a grandeza, a dignidade, o mistério inesgotável do ser humano. Nossa humanidade foi divinizada pela “descida” de Deus.
Acolhido pela natureza, presente na Gruta, Deus se deixou impactar por tudo aquilo que o rodeava. Tudo isso é Deus na nossa carne quente e mortal. Um Deus que “adentrou” na humanidade e de onde nunca mais saiu; um Deus que agora pode ser buscado em nossa interioridade e em tudo o que é humano. Na pobreza, na humildade da nossa própria história pessoal, inserida na grande história da humanidade, torna-se possível acolher o dom do amor de Deus visível na Criança de Belém.
A linguagem da Gruta de Belém é poderosa; é intensa; é urgente; é um reflexo de presenças e encontros, de assombro e de silêncio. No seu interior ressoam as palavras mais humanizadoras e mais vivas: justiça, bondade, liberdade, igualdade, paz, compaixão, alegria, acolhida... Palavras que não podem ser esquecidas, sepultadas ou banalizadas por modismos ou novidades. Palavras que só podem ser pronunciadas diante do “Deus que se faz Criança” para que fiquem gravadas a fogo em nosso coração e se visibilizem na nossa maneira de ser e viver.
A Gruta também nos recorda que “Deus é Palavra”; uma Palavra que se fez Vida e acampou entre nós. Uma Palavra inspiradora, chocante, coerente, feita “carne e sangue”, feita “lágrima e riso”. Palavra que se faz proximidade, encontro, abraço...; Palavra que é de sempre e é eterna.
O fato de que Deus tenha decidido salvar-nos a partir de uma gruta que recolhia animais é, sem dúvida alguma, a revelação mais desconcertante d’Ele. Nosso Deus é certamente contracultural, inesperado, surpreendente, pois não corresponde às ideias que forjamos d’Ele, é diferente, não é óbvio que Ele seja assim. É preciso estarmos abertos para as surpresas de Deus!
Entremos, pois, na gruta, mas não de qualquer maneira. Estamos frente a um mistério santo: Deus se fez um de nós, compartilha nossa pobreza e precariedade. Aqui só tem lugar as atitudes interiores e corporais de agradecimento, humildade, reverência e serviço.
Se contemplarmos Jesus na manjedoura, longa e amorosamente, experimentaremos que algo nos move a mudar dentro de nós: uma mudança de sonhos e esperanças, uma mudança no modo de nos situar no mundo, de nos relacionar com os outros, conosco mesmos e com Deus. Aqui está enraizada a convicção de que Belém pode mudar nossa vida. O “mistério” contemplado atinge as camadas mais profundas do afeto e do coração, gerando novidade em nossa vida cotidiana.
A contemplação do mistério do Nascimento de Jesus ativa em nós uma maneira cristificada de ser e de estar no mundo; nossa presença e nossa missão fazem do mundo em que vivemos um lugar transparente, santo e luminoso em Deus. “Entrar na Gruta” do Nascimento nos expande e nos lança em direção ao mundo, à humanidade, nos faz mais universais e nos capacita para sermos contemplativos nas relações.
Na espiritualidade cristã, quem experimenta o encontro com o Deus vivo e amoroso, começa a “ver” os homens e as mulheres no mundo como Deus mesmo os vê. Precisamente por ter-se encontrado com o Deus-Amor, a pessoa torna-se mais “encarnada” na realidade e mais comprometida com os outros, sobretudo com os mais pobres, os mais sofridos e excluídos; é aquela que mais se compromete com a justiça e é a que mais desenvolve uma criatividade eficaz na história, com obras que nos surpreendem. O mistério do Nascimento nos sensibiliza e nos capacita para nos aproximar desse nosso mundo com uma visão mais contemplativa. O “subir” até Deus passa pelo “descer” até às profundezas da humanidade.
Como “contemplativos nos encontros”, movidos por um olhar novo, entramos em comunhão com a realidade de tal como ela é. É olhar o mundo como “sacramento de Deus”; um olhar capaz de descobrir os sinais de esperança que ali existem; um olhar afetivo, marcado pela ternura, pela compaixão e gerador de misericórdia; um olhar gratuito e desinteressado, “janela da alma”, que nos expande numa atitude acolhedora de tudo que nos rodeia; um olhar que rompe distancias e alimenta encontros instigantes.
É preciso sair dos limites conhecidos; sair de nossas seguranças para adentrar-nos no terreno do incerto; sair dos espaços onde nos sentimos fortes para arriscar-nos a transitar por lugares onde somos frágeis; sair do inquestionável para enfrentarmos o novo...
É decisivo estar dispostos a abrir espaços em nossa história a novas pessoas e situações, novos encontros, novas experiências... Porque sempre há algo diferente e inesperado que pode nos enriquecer...
A vida está cheia de possibilidades e surpresas; inumeráveis caminhos que podemos percorrer; pessoas instigantes que aparecem em nossas vidas; desafios, encontros, aprendizagens, motivos para celebrar, lições que aprendemos e nos fazem um pouco mais lúcidos, mais humanos e mais simples...
Queremos, neste Natal, manter abertas as portas da esperança para todos os seres humanos, em um caminho que vai nos conduzindo à Vida. É preciso fazer a “travessia” do “natal” do nosso ego, autocentrado e consumista, ao Natal que desperta em nós as melhores energias de vida, sempre em favor da vida.
E poderemos sentir a alegria de Maria, de José e dos anônimos pastores; a indizível alegria, aquela que só pode ser recebida como presente e da qual nasce o compromisso mais radical e esperançoso pela transformação social que nosso mundo tanto necessita.
O nascimento de Jesus em uma Gruta desmascara esta dura realidade: portas fechadas, uma cidade cheia, a falta de hospitalidade ou de atenção de um povo... Natal continua sendo um tempo de contrastes, uma história de luz e sombra, de possibilidades e de oportunidades; enquanto uns se deixam afetar pela surpresa de Deus que entra na história pelo lado dos mais fracos, outros nem se dão conta daquilo que está acontecendo. Enquanto alguns estavam despertos e bem atentos, outros estavam bem protegidos, perdidos em suas histórias, em suas preocupações e compromissos, em suas urgências e interesses, dormindo tranquilamente, sem se inteiraram de que ali, a poucos metros, um menino nascia. Não foram capazes de descobrir algo admirável naquele Menino deitado numa manjedoura, porque nem sequer o viram; perderam a capacidade de estar atentos, de manter os olhos abertos e o coração sedento.
Para meditar na oração:
Faça um “deslocamento” em direção à sua “gruta interior”; com os olhos bem abertos e curiosos dos “humildes pastores” descubra as surpresas que ali Deus continua realizando.
- Abra-se, com profunda gratidão, ao dom da Vida que se faz vida nas profundezas de seu ser.
Um abençoado Natal a todos!
1, Comentário - Tomaz Hughes (em memória).
2, Vídeo – Carlos Mesters - 10 minutos
1. Comentário - Tomaz Hughes (em memória).
Esta passagem é típica do estilo de Lucas e contém muito material peculiar a ele. Ele toma as tradições de que Maria e José eram de Nazaré e que Jesus nasceu em Belém, liga-as com as figuras de Augusto, Herodes o Grande e o Governador Quirino, e através destas figuras tece um texto que une oito dos seus temas favoritos: “comida”, “graça”, “alegria”, “pequenez”, “paz”, “salvação”, “hoje” e “universalismo”. Lucas é um verdadeiro artista das palavras evangélicas!
Este trecho pode ser subdivido assim:
O contexto histórico e o nascimento de Jesus: 2,1-7;
Pronunciamentos angélicos explicando o sentido de Jesus: 2,8-14;
Respostas aos pronunciamentos dos anjos: 2,15-20.
A chave para a compreensão do texto se acha nos versículos 11-14. Aqui, Lucas apresenta Jesus como o Messias davídico que trará o dom escatológico de paz, o Slalom de Deus. Assim, ele faz contraste com a figura de César Augusto. Na impotência da sua infância, Jesus é o Salvador que traz a verdadeira paz, em contraste com o poderoso Augusto, que era celebrado no culto oficial imperial como o fundador de um reino de paz, a Pax Romana.
O SHALOM É, NA VERDADE, O CONTRÁRIO DA PAX ROMANA COMO HOJE SERIA O OPOSTO DA PRETENSA “PAZ” IMPOSTA PELOS CANHÕES E BOMBARDEIROS DAS FORÇAS MILITARES PREPOTENTES. ESSA REVELAÇÃO DA PARTE DOS ANJOS É RECEBIDA E ACEITA PELOS HUMILDES PASTORES E MEDITADA POR MARIA, MODELO DE FÉ, E OS DISCÍPULOS, QUE TERÃO QUE MEDITAR E APROFUNDAR O SENTIDO DE JESUS PARA ELES, SEM CESSAR.
Desde a Idade Média, o presépio tem mantido o seu lugar como um dos símbolos mais caros aos cristãos. Porém, é bom não deixar que a cena do nascimento de Jesus se torne uma cena somente sentimental, com lembranças saudosas da nossa infância. O relato quer sublinhar a opção de Deus que se encarnou como pobre, sem as mínimas condições para um parto digno. Em nossos presépios, parece que até o boi e o asno tomaram banho. A realidade de nascer em uma gruta ou estrebaria era diferente. Jesus nasce em condições semelhantes a milhões de pobres e excluídos pelo mundo afora nos dias de hoje. É mais uma manifestação da fraqueza de Deus, que é mais forte do que os homens (1Cor 1,25).
Diferentemente de Mateus – que tem outros interesses teológicos com a cena dos magos do Oriente – os protagonistas desta cena são os pastores. Naquela época, eles eram considerados pessoas desqualificadas, marginais, sujas, ritualmente impuras. É para essa gente que os anjos revelam o sentido do acontecido e são eles os primeiros a encontrar Jesus recém-nascido. Assim, em Lucas, são pessoas à margem da sociedade que testemunham o nascimento de Jesus. Igualmente, são pessoas desqualificadas, as mulheres, que são as testemunhas da Ressurreição. Lucas não perde a oportunidade para destacar a opção preferencial de Deus pelos pobres e humilhados.
O trecho continua com mais três ênfases tipicamente lucanas: “não ter medo”, “sentir e expressar alegria” e o termo “hoje”. Os ouvintes poderão ter coragem e alegria, porque a salvação de Deus irrompe no mundo “hoje”, não em uma data futura, distante. Esta ideia volta diversas vezes: na sinagoga, depois de fazer a leitura de Isaías, Jesus dirá que “hoje, se cumpriu essa passagem” (4,21); na cena de Zaqueu, Jesus afirma que “hoje, a salvação entrou nessa casa” (18,9); na cruz, Jesus garante que “hoje, estarás comigo no paraíso” (23,43). O Reino da Salvação está sendo inaugurado por Jesus, na fraqueza da exclusão social e não por César, com toda a pompa da corte e das armas. Em uma manjedoura e não em palácio imperial. Por parte de quem carece de força e prestígio e não pelos poderosos e fortes deste mundo.
Os pastores não somente testemunham a presença do recém-nascido em Belém, mas anunciam o que disseram os anjos (v. 17). Essa Boa-Notícia complementa o que já fora anunciado a Maria em Lc 1,31-33, por Maria em Lc 1,46-45, e por Zacarias em Lc 1,68-79. É muito significativo o termo que Lucas emprega para descrever a reação de Maria: “Maria, porém, conservava todos esses fatos e meditava sobre eles em seu coração” (v. 19). Aqui, Lucas retrata, através de Maria, a atitude do/a discípulo/a diante dos mistérios de Deus, revelados em Jesus. Maria não capta o significado pleno dos eventos, porém, rumina-os no seu íntimo. A ideia volta de novo em Lc 2,51: “Sua mãe conservava no coração todas essas coisas”. É uma maneira de apontar para a caminhada de fé que Maria trilhou, e que todos nós, que também não captamos o sentido pleno da ação de Deus em nossas vidas, teremos que trilhar.
O texto encerra afirmando que os pobres e marginalizados, personificados nos pastores, “voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo o que haviam visto e ouvido” (v. 20). Qualquer celebração de Natal que não dê aos oprimidos motivo para alegria, coragem e louvor a Deus, pode ser tudo, menos uma celebração cristã.
Os homens acabam por se habituar a quase tudo. Frequentemente, o hábito e a rotina vão esvaziando de vida a nossa existência. Dizia Ch. Péguy que «há algo pior do que ter uma alma perversa, é ter uma alma habituada a quase tudo». É por isso que não podemos nos surpreender que a celebração do Natal, envolta em superficialidade e consumismo louco, dificilmente diga algo novo ou alegre para tantos homens e mulheres de «alma acostumada».
Estamos acostumados a ouvir que «Deus nasceu num portal de Belém». Já não nos surpreende nem comove um Deus que se oferece como uma criança. A. Saint-Exupéry diz no prólogo de seu delicioso Principezinho: «Todas as pessoas crescidas foram crianças antes. Mas poucos se lembram». Esquecemos o que é ser criança. E esquecemos que o primeiro olhar de Deus ao se aproximar do mundo foi o olhar de uma criança.
Mas essa é precisamente a grande novidade do Natal. Deus é e continua sendo Mistério. Mas agora sabemos que não é um ser tenebroso, inquietante e temível, mas alguém que nos é próximo, indefeso, afetuoso, a partir da ternura e da transparência de uma criança.
E esta é a mensagem do Natal. Há que sair ao encontro desse Deus, devemos mudar o coração, tornar-nos crianças, nascer de novo, recuperar a transparência do coração, abrir-nos com confiança à graça e ao perdão.
Apesar da nossa terrível superficialidade, do nosso ceticismo e desencanto, e acima de tudo, o nosso inconfessável egoísmo e mesquinhez de «adulto», sempre há nos nossos corações um recanto íntimo onde ainda não deixamos de ser crianças.
Atrevamo-nos por uma vez a olhar-nos com simplicidade e sem reservas. Façamos um pouco de silêncio ao nosso redor. Apaguemos a televisão. Esqueçamos a nossa pressa, os nervosismos, as compras e os compromissos.
Escutemos dentro de nós esse «coração de criança» que ainda não se fechou à possibilidade de uma vida mais sincera, bondosa e confiante em Deus. É possível que começássemos a ver a nossa vida de outra forma. «Não se vê bem senão com o coração. O essencial é invisível aos olhos» (A. Saint-Exupéry).
E, acima de tudo, é possível que escutemos uma chamada para renascer para uma nova fé. Uma fé que não seja estagnada, mas rejuvenesça; que não nos encerre em nós mesmos, mas nos abra; que não separe mas una; que não tem medo, mas que confia; que não entristeça, mas que ilumine; que não tema mas que ame.
A PALAVRA FEZ CARNE E HABITOU EM NÓS
Todas as leituras da missa de hoje nos convidam a ter um olhar contemplativo, isto é, de fé no amor sobre o Mistério do Menino de Belém. Mas de modo especial o evangelho de hoje: “O prólogo de João é uma síntese meditativa de todo o mistério do Natal, porque o Menino de Belém é a revelação de Deus, a verdade de Deus e do homem, e refletindo sobre este acontecimento nos colocamos em condições de entender quem é aquele que nasceu e quem somos nós” (G. Zevini - PG Cabra).
Com efeito, «o Verbo feito carne será sempre para os cristãos, para todos aqueles que durante séculos têm os olhos fixos em Cristo, pólo de contemplação, fonte da sua fé, da sua esperança e do seu amor […] Na Palavra Feito carne, então, resplandece o mistério do amor, pois só o amor pode reduzir as distâncias até eliminá-las. Em suma, a expressão “o Verbo que se fez carne” mostra a perfeição daquele amor que está na origem do mistério da Encarnação”[1].
E o que as leituras nos revelam nesta nova perspectiva? Que o Menino Jesus é a Palavra de Deus . Sim, é a eterna e única Palavra de Deus. Deus Pai nos fala através da Sua Palavra, ou mais ainda, Ele nos conta tudo e de uma vez, porque Ele mesmo diz isso. São João da Cruz exprime-o muito bem: «Porque, ao dar-nos, como nos deu o seu Filho, que é uma Palavra sua, que não tem outra, Ele nos falou tudo junto e ao mesmo tempo nesta única Palavra. ... Pois o que antes falou em partes aos profetas, já lhe falou tudo, dando-nos o todo, que é Seu Filho” (Subida do Monte Carmelo, II, 22).
Este Verbo ou Verbo Eterno do Pai se fez carne, homem, filho em Jesus. É o fim e a plenitude de um longo caminho de comunicação entre Deus e os homens, que começou com a criação. Com efeito: «No passado, muitas vezes e de muitas maneiras, Deus falou aos nossos Pais através dos Profetas. Nestes últimos tempos, falou-nos através do Filho» (Hb 1, 1-2).
Esta Palavra é recebida ouvindo-a e tornando-a viva em nós. E, seguindo o prólogo de João, podemos dizer que quem ESCUTA esta PALAVRA, quem a recebe, quem acredita nela, quem aceita este amor e se deixa transformar por ele, torna-se Filho de Deus. Esta é a missão da Palavra de Deus, de Jesus: tornar-nos filhos de Deus; ensina-nos a viver como filhos de Deus. E esta é a vocação temporal e eterna do homem, de cada homem.
Trata-se de habitar onde habita Jesus, que é a sua relação com o Pai. Jesus quer nos levar aqui. Ele também quer que a relação com o Pai seja para nós o nosso “lugar no mundo” onde vivemos; onde nos sentimos livres e cumprimos a nossa vocação de filhos de Deus.
De modo especial, esta Palavra de Deus que se fez homem, que é Jesus, só pode ser ouvida se permanecermos em silêncio, como São José. A este respeito, o Papa Francisco disse na audiência de 15 de dezembro de 2021: “Os Evangelhos não relatam nenhuma palavra de José de Nazaré, nada, ele nunca falou. Isso não quer dizer que ele fosse taciturno, não, há um motivo mais profundo. Com o seu silêncio, José confirma o que escreve Santo Agostinho: “Quando a Palavra de Deus aumenta, as palavras do homem diminuem”. Na medida em que Jesus – a vida espiritual – cresce, as palavras diminuem. O que podemos definir como “papagaio”, falando como papagaios, diminui um pouco continuamente. O próprio João Baptista, que é «uma voz que clama no deserto: preparai o caminho do Senhor» ( Mt 3,1), diz sobre a Palavra: «É necessário que ele cresça e eu diminua» ( Jo 3,30 ). ). Isto significa que Ele deve falar e eu devo calar e José com o seu silêncio nos convida a deixar espaço para a Presença do Verbo que se fez carne, para Jesus.
O silêncio de José não é silêncio; É um silêncio cheio de escuta, um silêncio trabalhador, um silêncio que faz emergir a sua grande interioridade. «O Pai falou uma palavra, que era seu Filho – comenta São João da Cruz – e fala sempre no silêncio eterno, e no silêncio deve ser ouvida pela alma»…
Como seria belo se cada um de nós, a exemplo de São José, conseguisse recuperar esta dimensão contemplativa da vida aberta precisamente pelo silêncio . Mas todos sabemos por experiência que não é fácil: o silêncio assusta-nos um pouco, porque nos pede para entrarmos em nós mesmos e encontrarmos a parte mais verdadeira de nós mesmos. E muitas pessoas têm medo do silêncio, devem falar, falar, falar ou ouvir rádio, televisão..., mas não podem aceitar o silêncio porque têm medo. O filósofo Pascal observou que “todo o infortúnio dos homens vem de uma coisa: não saber manter a calma num ambiente”.
Queridos irmãos e irmãs, aprendamos com São José a cultivar espaços de silêncio, nos quais possa surgir outra Palavra, isto é, Jesus, a Palavra: a do Espírito Santo que vive em nós e que conduz a Jesus. Não é fácil reconhecer esta Voz, muitas vezes confundida com as milhares de vozes de preocupações, tentações, desejos, esperanças que abrigamos; Mas sem esse treinamento que vem justamente da prática do silêncio, nossa fala também pode adoecer . Sem a prática do silêncio a nossa fala adoece.”
Esta PALAVRA Pessoal do Pai, diz-nos o prólogo de João, é a VIDA e a LUZ dos homens. E esta PALAVRA é AMOR. Assim, o AMOR é a LUZ da VIDA. Porque só o amor de Deus dá razão, sentido (outros significados possíveis do termo logos ) à vida e assim a ilumina.
Esta contemplação do mistério da Encarnação muda a nossa visão de Deus e a nossa relação com Ele. E a partir daí convida-nos a mudar a nossa relação connosco próprios, com as coisas e com os outros.
PARA ORAÇÃO (RESSONÂNCIAS DO EVANGELHO EM ORAÇÃO):
Verbo que você se torna nosso
Senhor
Mensagem incorporada nos ajude…
- viver no seu silêncio
da palavra que não somos
e os falsos gestos
- habitar entre os seus
amado por você até o fim
na ausência de instituições de caridade ao passar
de compromissos corretos.
- gerado por aquela faísca
viver com o Pai
neste momento da história
frio, medo, ansiedade e fome.
- para atravessar a escuridão
que obscurecem o desejo
e espere pela luz do amanhecer
- para abrir o livro fechado
que dorme guardado
esperando a hora
quando você fala e nossos corações choram.
Amém.
[1] Paul-Marie de la Croix, Testemunho Espiritual do Evangelho de São João (Rialp, Madrid 1966) 68.