TRÍDUO PASCAL

Como já temos o Sábado Santo na postagem Vigília-Páscoa, trazemos aqui a Quinta e Sexta-feira Santas:

QUINTA-FEIRA SANTA

Quinta Santa - Jo 13,1-15 – A – 05-04-23 

 

Reflexão para a Quinta-feira Santa

 

Reflexão do Pe. Cesar Augusto dos Santos

Cidade do Vaticano

 

Na última ceia vemos a entrega livre de Jesus. A Eucaristia é serviço, é partilha de dons e de vida!

 

Entramos hoje, de modo profundo, no mistério da morte e ressurreição do Senhor. Para que isso seja vivido como desejaríamos, se faz necessário tomar atitudes espirituais apropriadas. A primeira é um recolhimento, um sair de si, em um descentramento, abandonando o que nos é próprio, como nossos problemas e decisões, para nos abrirmos a uma realidade ainda misteriosa, e que nos será revelada, à medida que estivermos abertos para ela.

 

Jesus padece e merece um amor maior do que agora sinto.

Não deveremos nos fixar tanto nas dores de Jesus, pois isso poderia nos distrair, mas voltar o olhar de nosso coração para o motivo de tal entrega que ele faz de si: o amor de Deus revelado na relação entre o Pai e o Filho.

 

Nesse sentido a cruz deverá deixar de ser um lugar de suplício e tornar-se o lugar onde brilha a glória de Deus e de onde ela é irradiada para toda a humanidade. Diferentemente da árvore do paraíso, onde o homem disse não a Deus, na árvore da cruz, o homem diz sim ao Pai.

Seguir Jesus Cristo implica em uma união de destino, em que a cruz surge como possível consequência de um seguimento fiel.

 

Na última ceia vemos a entrega livre de Jesus. Na hora da paixão física, na cruz, Jesus já se entregara por completo, fazendo-se obediente até a morte de cruz, sob os sinais do pão que já havia comido e do vinho que já havia bebido; ou sob o sinal das vestes depostas para lavar os pés dos discípulos.

 

Celebrar a quinta-feira da Ceia do Senhor, não se resume à celebração da Eucaristia, mas celebrar a Eucaristia deveria ser o ápice de um dia, de uma semana que foi marcada pelo êxodo de si mesmo, pelo esvaziar-se, para permitir que o amor de Deus falasse em nós e por nós. Celebrar a Ceia de Jesus significaria que me despojei de mim mesmo, não só de minhas vestes, e lavei os pés de meus irmãos, isto é, prestei a eles o serviço do amor, do perdão, proporcionando vida de acordo com suas necessidades. Eucaristia é serviço, é partilha de dons, de vida!

  

 

Jo 13,1-15 - Prova de amor maior não há que doar a vida pelo irmão- Mesters, Lopes e Orofino

 

OLHAR O ESPELHO DA VIDA

Vamos refletir sobre o texto que descreve o último encontro de Jesus com seus amigos. Vamos fechar os olhos e imaginar que estamos na sala com Jesus, ao lado de Pedro. Durante a leitura, vamos prestar atenção no gesto de Jesus e na reação de Pedro.

SITUANDO

O Evangelho de João tem uma dinâmica que envolve os leitores e as leitoras. No primeiro livro, o Livro dos Sinais (1,19 a 11,54), temos a revelação progressiva que Jesus fazia de si e do Pai. Pouco a pouco, a gente ficou sabendo quem é Jesus e qual a missão que recebeu do Pai. Paralelamente a esta revelação, apareciam a aceitação por parte do povo e a resistência por parte das autoridades religiosas. No fim, o balanço foi o seguinte. O grupo fiel dos discípulos e das discípulas, mesmo sem entender tudo, aceitou Jesus, acreditou nele e se comprometeu com ele. 

O segundo livro, o Livro da Glorificação, tem outra dinâmica. Na primeira parte (Jo 13 a 17), Jesus se reúne com o grupo fiel na última ceia. Na segunda parte (Jo 18 e 19), o outro grupo toma as providências para executar o plano de matar Jesus. Na terceira parte (Jo 20 e 21), Jesus ressuscitado reencontra a comunidade e a envia em missão, a mesma que ele recebeu do Pai.

COMENTANDO

João 13,1 – A passagem, a páscoa de Jesus

Finalmente, chegou a Hora de Jesus fazer a passagem definitiva deste mundo para o Pai. Esta passagem através da morte e ressurreição é motivada pelo amor aos amigos: “Tendo amado os seus, amou-os até o fim!” É o êxodo, a páscoa de Jesus, que vai abrir a passagem para todos nós, de volta para o Pai. 

João 13,2-5 – O lava-pés: dois contrastes

Chama a atenção a maneira contrastante como João apresenta a cena do lava-pés. Ele diz que Jesus e os discípulos se encontraram à mesa numa refeição. Para os judeus, a comunhão de mesa era um momento de muita intimidade, onde só participavam os maiores amigos. Mas aqui, Judas, que já tinha decidido entregá-lo, está presente e participa. O amor de Jesus é maior. Ele aceita Judas na mesa. Este é o primeiro contraste. Há outro, Jesus veio do Pai e volta para o Pai. Mesmo sendo de condição divina, ele assume a atitude de empregado e de escravo. Coloca um avental e começa a lavar os pés dos discípulos. Começa a realizar a profecia do Servo de Deus (Is 42,1-9). É a imagem de Deus servidor que contrasta com a imagem do Deus todo-poderoso. 

 

João 13,6-11 – Reação de Pedro

Pedro reage. Não quer aceitar que Jesus lhe lave os pés. Jesus diz que, se Pedro não aceitar que lhe lave os pés, não vai poder ter parte com ele. O que significa isto? É que Pedro tinha dificuldade em aceitar Jesus como Messias Servo que sofre. Pedro queria um Messias Rei que fosse forte e dominador. Nos outros evangelhos, Pedro recebe a crítica de Jesus: “Vai embora, Satanás” (Mc 8,33). Ele tem que mudar de ideia e aceitar Jesus do jeito que Jesus é, e não um Jesus de acordo com o seu próprio gosto. 

João 13, 12-15: Bem aventurança da prática

Depois de lavar os pés dos discípulos, Jesus tira o avental, recoloca o manto, senta novamente na cabeceira da mesa e começa a comentar o gesto. Ele pergunta: “Vocês entenderam o que eu fiz?” Parece que não tinham entendido, começando por Pedro. E continua: “Se eu, sendo mestre e senhor, levei os pés de vocês, vocês também devem lavar os pés uns dos outros”. Em outras palavras, quem quer ser o maior deve ser o menor e o servidor de todos. Aqui, nesta prática humilde do servo está a raiz da verdadeira felicidade: “Se vocês compreenderem isto e o praticarem serão felizes!” Diz a  Primeira Carta de João: “Filhinhos, não amemos com palavras nem com a língua, mas com ações e em verdade” (1Jo 3,18). 


ALARGANDO 

A última ceia e o lava-pés no Evangelho de João 

Mateus, Marcos e Lucas descrevem como Jesus instituiu a Eucaristia durante a última ceia. João descreve a instituição a Eucaristia. Será que esqueceu ou achou que não era importante? É que João tem a sua maneira de descrever a Ceia Eucarística. Ela está no capítulo 6, onde fala da multiplicação dos pães para o povo (Jo 6,5-15). Está no longo discurso sobre o Pão da Vida (Jo 6,22-71). Está aqui no capítulo 13, onde insiste no serviço amoroso, simbolizado no lava-pés (Jo 13,1-17). Está no capítulo 19, onde descreve a morte de Jesus como cordeiro pascal (Jo 19,31-37) 

A ceia narrada no Evangelho de João é bem diferente daquela narrada nos outros evangelhos. Aqui no Quarto Evangelho não se fala em comer o corpo e beber o sangue de Jesus num memorial até que ele venha (1Cor 11,23-26). No Evangelho de João, o pão e o vinho são substituídos pelo gesto de lavar os pés de seus discípulos e discípulas. Gesto de amor e de entrega que precede e conduz à sua glorificação. “Tendo amado os seus, Jesus amou-os até o fim” (Jo 13,1). Este mandamento de serviço e de amor é que purifica qualquer pessoa que queira seguir Jesus (Jo 15,3). 

O gesto de lavar os pés não é feito antes da ceia, mas durante a ceia. Jesus não quer fazer um mero gesto de purificação ou de higiene. Durante a ceia ele se levanta, tira o manto, que é um gesto de entrega e de serviço, e ele mesmo derrama a água na bacia para lavar os pés de seus discípulos. Quando chega diante de Pedro, este toma o gesto de Jesus como se fosse de fato um gesto ritual de purificação e não aceita que Jesus lhe lave os pés. Jesus corrige a interpretação de Pedro e dá o sentido verdadeiro. O gesto do lava-pés significa que a verdadeira purificação acontece na entrega e no serviço. Significa também que Jesus é o Messias-Servo, anunciado por Isaías. Por isso, se Pedro não aceitar tal gesto, não poderá estar em comunhão com Jesus. Para Jesus, os que aceitam sua mensagem, suas palavras e seus gestos, estão puros e prontos para o Reino. O que purifica a pessoa não é a observância da Lei, mas sim a prática das palavras de Jesus. Quem for capaz de amar como Jesus amou, receberá o Espírito que é serviço gratuito aos irmãos e irmãs. Este exemplo ele nos deixou. Mas na ceia nem todos estavam puros. O adversário se fazia presente em Judas. Mesmo assim, Jesus lava os pés de Judas antes que ele saia para cumprir sua missão. O amor vence o ódio. 

 

 

LAVA-PÉS: deslocamento que amplia a visão da vida- Adroaldo Paloro

 

“Derramou água numa bacia, pôs-se a lavar os pés dos discípulos e

 enxugava-os com a toalha que trazia à cintura” (Jo 13,5)

 

No Evangelho desta Quinta-feira Santa, Jesus, com sua original sabedoria, nos oferece uma outra perspectiva de vida. Sem dúvida alguma, Jesus era um provocador, no sentido etimológico da palavra, (pro-vocar: chamar para frente, desinstalar), que motivava as pessoas a verem as coisas a partir de uma perspectiva diferente da que era habitual.

Mas, custa-nos muito modificar nossa perspectiva; estamos acostumados a um modo fechado de viver, com umas viseiras que não nos permitem captar a vida em sua plenitude e riqueza; com isso nos instalamos no já adquirido e conhecido e atrofiamos em nós o dinamismo que busca abrir a mente e alargar o coração à realidade que nos cerca.

Ver as coisas “por uma outra perspectiva” é muito mais instigante.

Um ponto de vista novo, limpo e original é uma grande ajuda para uma vida sadia.

O que Jesus pretende, no gesto do “lava-pés”, é nos oferecer um novo ponto de vista, um novo ângulo, uma nova perspectiva, fazendo-nos ver a realidade do outro como se fosse pela primeira vez, com um olhar límpido e uma atitude compassiva.

 

Na noite em que ia ser entregue, Jesus realizou um gesto provocativo: levantou-se da mesa, distanciando-se do lugar reservado àqueles que a presidem e se situou no lugar daqueles que pertencem à categoria dos “servidores”. Jesus sabia que o lugar em que estamos situados condiciona nosso olhar e nossa atitude; por isso, tomou distância e adotou a perspectiva que lhe permitia perceber outras dimensões da vida.

A partir desse lugar tocou de perto o barro, o pó, o mal odor, a sujeira..., tudo isso que aqueles que estão sentados à mesa acreditam estar a salvo ou simplesmente ignoram e desprezam. Rente ao chão e em contato com os pés dos outros, Jesus realizou uma mudança e uma amplitude de visão que lhe fazia perceber tanto as riquezas e dons de cada um como captar a desnudez, a fragilidade e as limitações da corporalidade das pessoas. E, olhadas a partir daí,  Ele deixa transparecer que qualquer pretensão de superioridade ou domínio se revela como ridícula e falsa.

Nesse deslocamento a um “lugar entre tantos outros”, Jesus viu de perto e por dentro àqueles que os outros consideravam distante e fora. Porque para Ele, os maiores e os mais importantes são aqueles que, segundo nossos critérios, não são contados. O lugar em que Jesus decidiu se situar deu origem a “revolução nas relações pessoais”, que tanto nos sobressalta e ao qual tanto nos resistimos. Só o fato da possibilidade desse deslocamento se revela ameaçadora porque nos tira do terreno do conhecido e nos convida a descobrir novos significados que não coincidem com os que consideramos evidentes.

Com o gesto do lava-pés e ao deslocar-se para o lugar do servo, Jesus rompe a verticalidade e a relação senhor-escravo, os de cima e os de baixo, os de dentro e os de fora, inaugurando, assim, a nova ordem circular do Reino, onde ninguém é descartável.

Ali também Ele nos revela-nos um rosto novo de Deus: o Deus cuidadoso e compassivo, identificado com os últimos e que a partir do último, serve, sustenta, universaliza, iguala, inaugurando deste modo a horizontalidade do Reino e denunciando toda hierarquia e pretensão de poder-dominação.

“Eu estou entre vós como aquele que serve”. Jesus não renuncia a nenhuma grandeza humana, mas denuncia a falsidade da grandeza do ser humano que quer se apoiar no poder ou no domínio sobre os outros. A verdadeira grandeza humana está na identificação com Jesus que se doa, sem por condições nem reservas.

 

Como aconteceu com Pedro, o gesto de Jesus no Lava-pés continua nos provocando, porque se há algo que incomoda é deslocar-se até os últimos e colocar-se no lugar deles.

Não é comum prestar atenção ao lugar ocupado pelo outro, sobretudo o outro que pensa e sente diferente; é normal perceber, delimitar, defender e fechar-se no próprio lugar. Isso se faz de maneira tão zelosa que nem se vê aquilo que está para além do próprio lugar. São grandes os riscos de se viver em horizontes tão estreitos. Tal estreiteza aprisiona a solidariedade e dá margem à indiferença, à insensibilidade social, à falta de compromisso com as mudanças que se fazem urgentes. O próprio lugar se torna uma couraça e o sentido do serviço some do horizonte inspirador de tudo aquilo que se faz.

 

Compreende-se claramente que o que ali estava em jogo não era a humildade – nem a de Pedro, nem a do próprio Jesus -, nem sequer uma boa exortação para praticar a caridade. Porém, a intenção de Jesus ia muito mais longe, tão longe que Ele mesmo teve de perguntar aos discípulos aturdidos: “Compreendeis o que vos

 fiz?” Efetivamente, o que Jesus estava dizendo a seus apóstolos era o seguinte: “Eu, que sou o Mestre que ensina o que é preciso saber, e que sou o Senhor-Deus que dispõe o que se há de fazer, não me relaciono convosco com base no poder, mas na exemplaridade”.

Daí Jesus termina dizendo: “Pois é um exemplo que eu vos dei: o que eu fiz por vós, fazei-o vós também”.

Com isso, Jesus estava afirmando que eles, os apóstolos, não podem compreender sua missão com base no poder que se impõe, mas sim na exemplaridade que convence.

E Ele exigirá isso a todo aquele(a) que queira segui-lo: terá que estar disposto, o mesmo que Ele, a “não ter onde reclinar a cabeça”, a ir mais além de tudo aquilo que a nossa cabeça se inclina, descansando naquilo que acredita saber, controlar ou dominar.

 

A reação de Pedro expressa bem o escândalo que este gesto produz, porque Jesus revela que a autoridade - ser Senhor – é um serviço, não uma dominação.

Pedro fica desconcertado e em dilema. Sua imagem do Messias seguro e vencedor não combina com a vulnerabilidade de um servo; ele comungava com a mentalidade hierarquizada da época, a qual determinava a cada um o seu devido lugar. A relação entre mestre e discípulo era regulada pela superioridade, sapiência, respeitabilidade de um, e pela inferioridade, ignorância e submissão do outro. O gesto de Jesus pareceu inaceitável para Pedro, pois rompia a hierarquia, podendo gerar indisciplina. A mentalidade de Pedro era perigosa. Agindo assim, corria o risco de introduzir na comunidade dos seguidores de Jesus o esquema senhor-escravo que Ele viera abolir.

 

Em muitas culturas e tradições espirituais (como no Evangelho), o Mestre lava os pés dos seus discípulos. De um ponto de vista simbólico, “lavar os pés” de alguém é devolver-lhe a capacidade de sentir-se enraizado, é recolocá-lo de pé, ativar nele a autonomia para que possa dar direção à sua vida.

A palavra “pé”, “podos” em grego, está estreitamente relacionada à palavra “paidos”, usada para significar criança. Assim, um “pedagogo” é um especialista que cuida dos pés do ser humano, desde que cuidar dos pés de alguém significa cuidar da criança que está nele.

Eis a missão do(a) seguidor(a): ajudar as pessoas a se colocarem de pé, resgatando-as em sua dignidade para serem capazes de andar pelos seus próprios pés.

Não cabe ao cristão carregar as pessoas com seu paternalismo. Antes, sua missão é vê-las maduras, entrando por seus próprios pés na presença de Deus e assumindo o compromisso com a vida.

 

Texto bíblico:  Jo 13,1-5

Na oração: “Levantar-nos da mesa” – “sentar-nos à mesa”: movimento de partida e de chegada; prolongamento do gesto provocativo e escandaloso de Jesus. Isso é viver a Eucaristia no cotidiano da vida.

- como você pode prolongar nos seus ambientes cotidianos o gesto de Jesus no “lava-pés”?

  

 

Quinta Feira Santa (Jo 13,1-15)- Pe. André Vital Félix da Silva, SCJ

 

“É na glória da cruz de Cristo que brilha o mandamento do amor (lava-pés); é no brilho dessa cruz que resplandece o sacramento do amor (Eucaristia); é no esplendor dessa cruz que podemos cumprir o pedido do Mestre: ‘fazei isto em memória de mim’” (Dir. da Liturgia – CNBB, p. 35).
O Tríduo Pascal, ápice do ano litúrgico, coloca-nos de forma muito pedagógica e mistagógica diante e no núcleo de nossa fé; favorece-nos, através da oração contemplativa da celebração litúrgica, mergulhar e ser inundados pelo mistério da morte e ressurreição do Senhor, mas também é ocasião de discernimento para sabermos se estamos ou não tomando parte realmente desse Mistério. Não basta apenas crer que o Senhor morreu e ressuscitou, proclamando esta verdade na oração (Eucaristia) que Ele mesmo mandou fazer em sua memória. Mas é preciso, também, ser testemunhas dessa verdade, assumindo o serviço que Ele realizou e nos mandou realizar (“lava-pés”) a fim de que o mundo creia. 

Se para nós “culto” e “serviço” têm significados diferentes e, portanto, indicam realidades independentes, para a Sagrada Escritura usa-se a mesma palavra para referir-se a ambas situações (hebraico sharât: servir a Deus, adorá-lo, 1Sm 3,1; servir o ser humano, 1Rs 19,21; grego doulein: servir a Deus, Sl 71,11; At 7,7; serviço a pessoas, Lc 15,29). Portanto, em Jesus, o serviço alcançou a sua expressão mais perfeita, pois glorificou o Pai, “que tinha colocado tudo em suas mãos”, fazendo a sua vontade; e, “amando os seus até o extremo”, prestou à humanidade o maior e imprescindível serviço que ela necessitava. A sua páscoa não se restringe ao momento de sua morte e ressurreição, mas é toda a sua passagem pelo mundo e compreende a sua saída e volta para o Pai. Por conseguinte, o êxodo de Jesus tem início com a sua encarnação, o seu despojamento: “Sendo Deus não se apegou a sua condição divina, mas esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e tornando-se igual aos homens” (Fl 2,6), e alcança o seu ponto alto na cruz onde entrega tudo (vestes, perdão, mãe, sangue, espírito). A ceia e o lava-pés resumem todo o itinerário pascal do Verbo encarnado, que existindo desde toda a eternidade no seio do Pai, entrou na nossa história e armou sua tenda em nós (cf. Jo 1,14); a sua páscoa é culto e serviço.

Celebrar a Ceia do Senhor é estar disposto a aprender as grandes lições do autêntico serviço (a Deus e ao próximo). Contudo, não basta apenas estar na ceia “do Senhor”, é preciso estar na ceia “com o Senhor”: “Se eu não te lavar, não terás parte comigo”. Diante da resistência e incompreensão de Simão Pedro de não querer que Jesus lhe lavasse os pés, o Mestre declara que não pode ser seu discípulo quem não aceita ser servido por Ele, pois consequentemente não aprenderá com a vida o serviço aos outros. A expressão “não terás parte comigo” (grego ouk echeis meros met’emou: não tens parte em mim, comigo, depois de mim) resume o testamento de Jesus, isto é, deixar ser servido por Ele é herdar a sua vida, a sua missão, pois o seu discípulo continuará a fazer no mundo, o que aprendeu do Mestre. Não basta simplesmente saber o que Ele mandou fazer, mas é preciso aprender com Ele o modo de fazê-lo: “Vós me chamais mestre e Senhor e dizeis bem, pois eu sou…Se eu vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros”. Aqui está a grande novidade do serviço de Jesus, a sua marca fundamental, livre de qualquer ambiguidade ou demagogia. Ele não nega ser Mestre e Senhor, nem mesmo rejeita que os discípulos o chamem assim. Pois, se um servo lava os pés do seu senhor, não há nada de extraordinário nisso, nenhuma lição se pode aprender desse gesto, é sua obrigação. Mas quando o Senhor lava os pés do servo, toda lógica humana e natural estremece, o novo irrompe dando-se uma lição inédita. Jesus não abandonou o seu senhorio ou autoridade, pois os recebeu do Pai: “Todo poder me foi dado no céu e na terra”.

Ao assumir a condição de servo, Jesus não se tornou impotente, fraco, incapaz, mas pelo contrário, manifestou-se nele o poder de Deus, do seu amor que vai até o extremo, pois é “próprio de Deus usar de misericórdia e, nisto, se manifesta de modo especial a sua onipotência” (São Tomás de Aquino). Quando a autoridade perde a sua potente capacidade de servir, enfraquece e apela para a violência do autoritarismo. 

Apesar de ter tido os pés lavados por Jesus e estar presente à ceia, Judas não aprendeu o exemplo do Mestre, não se deixou purificar: “Vós estais puros, mas não todos”. A impureza de Judas significa justamente essa sua incapacidade de reconhecer que o seu Senhor não é autoritário, mas servidor, que não divide com os seus discípulos armas a fim de que matem para se defender, mas os instrui com a sua palavra (“Vós já estais limpos por causa da palavra que vos fiz ouvir” Jo 15,3) a amar sempre, inclusive os inimigos. 

A cada Eucaristia, o Senhor nos convida a sentar-se com Ele à mesa, alimenta-nos com sua palavra, e reparte conosco o seu corpo e sangue, a sua vida entregue como serviço ao Pai e à humanidade, a sua herança; contudo, não basta estar na ceia do Senhor, é preciso estar na ceia com o Senhor, tendo parte com Ele, assumindo a sua herança de amor e fidelidade aos extremos, eis o autêntico serviço.

  

 

Quinta feira santa

Thomas McGrath

1ª leitura: Ex 12,1-8.11-14

Nas paróquias, inicia-se o Tríduo Pascal com a missa do Lava-pés a noite.

Como 1ª leitura, a liturgia apresenta-nos o relato da instituição da Páscoa no AT (Antigo Testamento).

O Senhor disse a Moisés e a Aarão no Egito: “Este mês será para vós o começo dos meses; será o primeiro mês do ano (12,1-2).

Já na vocação de Moisés (3,18) e nas audiências com o farão (5,1-3 etc.) se falava da festa ou do sacrifício que o povo hebreu devia celebrar em honra a seu Deus Javé. Em seguida apresenta-se o relato sobre a origem da festa maior dos judeus, a páscoa. Nele, dois elementos se fundem: a narrativa histórica e as práticas litúrgicas. A parte narrativa inclui: a morte dos primogênitos egípcios (12,12.29-30), comer o cordeiro e o rito de marcar com sangue os batentes, a refeição apressada com pão sem fermento (12,1-14), a fuga precipitada com os presentes ou empréstimos dos egípcios (12,31-42). A parte litúrgica inclui: o rito da páscoa com sua rubricas e cerimônias (vv. 2-24.43-49), os pães ázimos (vv. 15-20), a consagração dos primogênitos (13,1.11-16). Misturam-se práticas específicas de pastores (cordeiro), de agricultores (pães ázimos) e outras sem fronteiras (primogênitos; cf. Gn 22).

A origem da festa da Páscoa talvez seja um ritual de pastores nômades: com o sangue de um cordeiro (ou cabrito), colocado na entrada do curral ou da casa, esperava-se a proteção dos males (demônios? invasores?). Em Israel, pastores nômades e agricultores sedentários misturavam-se (não sem conflitos, cf. Gn 4), assim coincide a festa dos pastores com a festa dos agricultores na primavera, a festa dos “pães ázimos” (pães sem fermento por sete dias; v. 8). De fato, páscoa e ázimos são duas festas originariamente distintas: a festa dos ázimos começou a ser celebrada pelos agricultores somente em Canaã e só foi unida à festa da páscoa depois da reforma de Josias (2Rs 22-23). A origem destas duas festas está em tempos remotos, seu conteúdo natural (rebanho, pães de trigo) ganha depois um sentido histórico: a comemoração da libertação do Egito. Assim, a ligação entre a páscoa, a décima praga e a saída do Egito é apenas ocasional: esta saída aconteceu por ocasião da festa.

Ouvimos hoje a primeira parte das instruções do Senhor. Até o v. 11 se lê como ritual de cerimônia que se deve observar ao celebrar a páscoa: qualidade do animal, os que vão comê-lo, como prepará-lo, data exata e hora do dia.

A origem da palavra “Páscoa” (hebraico: pesah) é desconhecida; a explicação tradicional é que significa “passagem” (cf. v. 13.23.27; o verbo hebraico pasahsignifica “passar ou saltar por cima”). A passagem do ano que, na época, começava na primavera (v. 2: “o começo dos meses… o primeiro mês do ano”) torna-se a “passagem do Senhor” (v. 11). O primeiro mês da primavera no hemisfério norte chamava se Abib no antigo calendário (Dt 16,1), ou Nisanno calendário pós-exílio de origem babilônica. O dado supõe um calendário estabelecido com um ano que começa na primavera (nisan); diferente do que faz o ano começar no outono.

Falai a toda a comunidade dos filhos de Israel, dizendo: ‘No décimo dia deste mês, cada um tome um cordeiro por família, um cordeiro para cada casa. Se a família não for bastante numerosa para comer um cordeiro, convidará também o vizinho mais próximo, de acordo com o número de pessoas. Deveis calcular o número de comensais, conforme o tamanho do cordeiro (vv. 3-4).

O filósofo judaico Martin Buber (1878-1965) comparou a sociedade egípcia com uma pirâmide e a comunidade israelita com uma fogueira de acampamento. Enquanto a sociedade egípcia é hierarquia (pirâmide) e opressão, a “comunidade dos filhos de Israel” é comunitária (fogueira), “convidará também o vizinho” (v. 4) evitando também o desperdício. A festa deve ter caráter familiar. A ceia pascal prepara os israelitas para décima e última praga que resultará na libertação da escravidão.

No calendário de Dt 16,1s, ovelhas e bois são sacrificados no templo de Jerusalém, conforme a concentração do culto na capital, que o rei Josias promoveu (622 a.C.).

O cordeiro será sem defeito, macho, de um ano. Podereis escolher tanto um cordeiro, como um cabrito: e devereis guardá-lo preso até ao dia catorze deste mês. Então toda a comunidade de Israel reunida o imolará ao cair da tarde (vv. 5-6).

O cordeiro será sem defeito, porque para uma festa religiosa se deve oferecer o melhor. “Até ao dia catorze… ao cair da tarde”, ou seja, antes que comece o dia 15 ao pôr-do-sol (em Israel, um novo dia não começa a meia noite, mas na véspera).

Enquanto o Egito desenvolveu o calendário solar de 365 dias (Júlio César introduziu-o no Império Romano), Israel tinha um calendário lunar: um mês corresponde exatamente às quatro fases da lua. No dia primeiro de cada mês é lua nova, e na metade do mês é lua cheia: na noite do dia catorze para quinze. Portanto, a festa pascal coincide com a primeira lua cheia na primavera ou seja, depois de 21 de março (equinócio que inicia a primavera no hemisfério norte e o outono no sul).

A páscoa foi celebrada na casa dos pastores e camponeses (vv. 3-4.21-22), mas a relação com o êxodo e a minuciosa regulamentação indicam uma redação da época do rei Josias (640-609) ou do pós-exílio, quando o cordeiro pascal só poderá ser imolado no Templo de Jerusalém (cf. v. 14; Dt 16,1-7; 2Rs 23,21-23).

Tomareis um pouco do seu sangue e untareis os marcos e a travessa da porta, nas casas em que o comerdes (v. 7).

O antigo rito de marcar os batentes da porta com sangue de animal pode ter origem mágico para afastar influxos nefastos. O v. 13 o liga com a história: “O sangue servirá de sinal” de marcação, de separação das casas dos egípcios que serão atingidos: “Ao ver o sangue, passarei adiante, e não vos atingirá a praga exterminadora”. Segundo 11,7, o Senhor se encarrega de distinguir entre egípcios e hebreus, sem recurso ao sinal do sangue. Israelitas separados como povo eleito no meio do mundo pagão é expressão da teologia pós-exílica.

 

   Comereis a carne nessa mesma noite, assada ao fogo, com pães ázimos e ervas amargas (v. 8).

A festa dos agricultores, a dos “pães ázimos” que dura sete dias (Ex 23,14s; 34,18), foi juntada à dos pastores e também se comemora a Páscoa, a saída do Egito (cf. Nm 28,16-25; Dt 16,1-8).

Os rabinos reagiram à destruição do templo em 70 d.C. e criaram a seder (ordem) para o povo celebrar a páscoa sem o templo (até hoje), como antes os judeus já o faziam em parte na diáspora. A seder é bastante simbólica e didática, por ex. mergulha-se karpas (batata, ou outro vegetal), em água salgada. Recita-se a bênção e a karpas é comida em lembrança às lágrimas (água salgada) do sofrimento do povo de Israel. Depois divide-se a matzá (“pão ázimo”, sem fermento) do meio em duas partes desiguais.São comidas as “ervas amargas” (raiz forte, escarola, endívia e a alface romana) relembrando a escravidão e o sofrimento dos hebreus no Egito.Depois o chefe da casa fala: “Olhemos, pois, a matzá que está sobre a mesa. Este é pão da pobreza que comeram os nossos antepassados na terra do Egito. Quem tiver fome, e muitos são os que tem fome neste mundo em que vivemos, que venha e coma.”

Nos vv. 9-10 (omitidos pela nossa liturgia) quer-se evitar a profanação, não se deve comer cru (cf. Gn 9,4), mas “inteiro… sem sobrar nada para o dia seguinte”.  texto grego acrescenta: “Não se quebrará nenhum osso” (cf. v. 46; citado por Jo 19,36).

Assim devereis comê-lo: com os rins cingidos, sandálias nos pés e cajado na mão. E comereis às pressas, pois é a Páscoa, isto é, a Passagem do Senhor! (v. 11).

Deve-se comer com a roupa da viagem, “com os rins cingidos, sandálias nos pés e cajado na mão” quer dizer, pronto para marcha para sair em liberdade. Na ceia da época de Jesus, as pessoas ficavam deitadas no chão, encostadas em travesseiros.

A etimologia do termo hebraico pesah (grego: páscoa) é desconhecida. A Vulgata (tradição latina de S. Jerônimo) explica: “isto é passagem”, mas não encontra apoio no hebraico. Ex 12,13.23.27 explica que Javé “saltou”, ou “omitiu”, ou “protegeu” as casas dos israelitas, mas trata-se de uma explicação secundária.

E naquela noite passarei pela terra do Egitoe ferirei na terra do Egito todos os primogênitos, desde os homens até os animais; e infligirei castigos contra todos os deuses do Egito, eu, o Senhor. O sangue servirá de sinal nas casas onde estiverdes. Ao ver o sangue, passarei adiante, e não vos atingirá a praga exterminadora, quando eu ferir a terra do Egito (vv. 12-13).

Os vv. 12-13 funcionam como explicação histórica do rito no relato, funcionam como anúncio do fato iminente.

“Atravessar” ou “passar”: com o verbo da mesma ou da homófona raiz que “páscoa”. Supõe que os hebreus moravam misturados com a população egípcia, não a parte, na região de Gessen (Gn 46,28-47,6). A confrontação com o rei se eleva ao nível das divindades: Javé julga e condena os deuses do Egito, demonstrando que “não há como ele” (Sl 82); é o conceito universalista de Javé na redação pós-exílica (cf. 9,14).

O flagelo destruidor ou a praga “exterminadora”: desta expressão do v. 23 saiu a fórmula do “anjo exterminador” (pode se ler: “não haverá contra vós um golpe do exterminador” (cf. v. 23).

Este dia será para vós uma festa memorável em honra do Senhor, que haveis de celebrar por todas as gerações, como instituição perpétua (v. 14).

O dia será o dia 15 que começa na véspera, na tarde precedente.

Atribui-se ao Senhor a instituição da “festa memorável”, que a fundamenta no fato passado e lhe garante validade perpétua. Para os judeus, “memória” não significa pensar no passado, mas torna-lo presente, atualizar. Assim Jesus pede na última ceia: “Fazei isto em minha memória” (cf. 2ª leitura). Na celebração judaica da Páscoa, em cada geração, todo individuo deve ver a si mesmo como se tivesse saído do Egito (Ex 13,8; Dt 6,23).

Pela tradição, “Páscoa” significa passagem (vv. 11.27), é a “passagem” do ano que começava na primavera (“será o primeiro mês do ano” v.1) e torna-se a “passagem do Senhor” (v. 11). O Senhor, ou seja, o anjo exterminador, “passará” por Egito “matando todos os primogênitos” (v. 12), só poupando as casas dos israelitas, onde o sangue dos cordeiros pascais nos marcos e travessas das portas dos israelitas “servirá de sinal… Passarei adiante e não vos atingirá a praga exterminadora” (v. 13).

Depois desta praga, o faraó deixará sair os escravos em liberdade, mas logo se arrependerá e os perseguirá com seu exército poderoso. Haverá outra “passagem” do povo de Deus: pelo mar Vermelho que salva os israelitas e extermina os egípcios (13,17-15,21; cf. 3ª leitura da vigília pascal).

Os cristãos dão mais outro sentido à Páscoa: A “passagem” de Jesus pela morte a vida (cf. Jo 13,1; evangelho da quinta-feira santa). Ele é verdadeiro Cordeiro pascal imolado (cf. 1Cor 5,7; Jo 1,29.36; Ap 5,6 etc.), cujo sangue na madeira da cruz salva a vida do povo de Deus. Em Jo, Jesus morre na exata hora da imolação dos cordeiros no templo (cf. v. 6 “ao cair da tarde”; Jo 19,31.34.36).

A data da Páscoa judaica continua sendo a primeira lua cheia (noite de dia 14 a 15 no seu calendário lunar) de primavera (no hemisfério norte cai em março ou abril). Para os cristãos, porém, a Páscoa é celebrada no domingo seguinte (por causa da ressurreição “no primeiro dia da semana”). Portanto, na Semana Santa sempre tem lua cheia.

Evangelho: Jo 13,1-15

O quarto evangelista não escreveu sobre a instituição da Eucaristia na última ceia; já fez um discurso longo no capítulo 6 sobre o “pão da vida que desceu do céu”, mas apresenta agora o “lava-pés”, uma ação que fala mais do que muitas palavras e revela o sentido da eucaristia: amor que é doação e serviço.

Era antes da festa da Páscoa. Jesus sabia que tinha chegado a sua hora de passar deste mundo para o Pai; tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim. Estavam tomando a ceia. O diabo já tinha posto no coração de Judas, filho de Simão Iscariotes, o propósito de entregar Jesus (vv. 1-2).

Na tradição judaica, Páscoa significa “passagem” (cf. Ex 12,11) com referência à passagem do anjo exterminador dos primogênitos no Egito e a fuga do povo de Israel passando pelo mar Vermelho (Ex 14). Para Jesus, finalmente chegou a “hora” (cf. 2,4; 7,30; 8,20; 12,23.27; 13,1; 17,1) para ele “passar” deste mundo, escravo do pecado, para o Pai, à terra prometida.

Era “antes” da festa da Páscoa. Diferente dos evangelhos sinóticos (Mc 14,12.17p; Mt 26,17-19; Lc 22,7.14s), no quarto evangelho, a última ceia de Jesus não uma ceia pascal, que seria no outro dia (cf. 18,28; 19,14.31,36). Em Jo, Jesus é o verdadeiro Cordeiro pascal (cf. 1,29.36) que morre na exata hora quando os cordeiros pascais estão sendo imolados no templo, “ao cair da tarde”(Ex 12,6) do “dia de preparação da páscoa” (Jo18,28; 19,14.31.42). A última ceia é uma ceia de despedida “antes da festa da Páscoa” (v. 1) em que Jesus pronuncia discursos de despedida (cap. 13-17).

“Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim”, pode-se traduzir também “até o extremo”, aludindo à morte na cruz. Em 15,13, Jesus declarará: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos.”

Aqui, a menção do diabo e do futuro traidor dá uma cor sombria à cena. O que prevalecerá, o amor ou o ódio?

Jesus, sabendo que o Pai tinha colocado tudo em suas mãos e que de Deus tinha saído e para Deus voltava, levantou-se da mesa, tirou o manto, pegou uma toalha e amarrou-a na cintura. Derramou água numa bacia e começou a lavar os pés dos discípulos, enxugando-os com a toalha com que estava cingido (vv. 3-5).

O autor resume a origem e missão divina de Jesus, “de Deus tinha saído e para Deus voltava”, ele é todo-poderoso, “o Pai tinha colocado tudo em suas mãos” (cf. 5,19-27), mas agora se comporta como servo humilde (podemo-nos lembrar do Servo de Javé em Is 53, que servia de modelo para a paixão de Cristo: 1ª leitura de amanhã).

Oferecer ao hóspede água para lavar os pés da poeira do caminho era gesto de cortesia (Gn 18,4; Lc 7,44); quem fazia, um servo ou um discípulo dedicado ao mestre. Jesus inverte os papeis: sua ação e quase escandalosa como provoca o diálogo seguinte.

Chegou a vez de Simão Pedro. Pedro disse: “Senhor, tu me lavas os pés?” Respondeu Jesus: “Agora, não entendes o que estou fazendo; mais tarde compreenderás”. Disse-lhe Pedro: “Tu nunca me lavarás os pés!” Mas Jesus respondeu: “Se eu não te lavar, não terás parte comigo”. Simão Pedro disse: “Senhor, então lava não somente os meus pés, mas também as mãos e a cabeça”. Jesus respondeu: “Quem já se banhou não precisa lavar senão os pés, porque já está todo limpo. Também vós estais limpos, mas não todos”. Jesus sabia quem o ia entregar; por isso disse: “Nem todos estais limpos” (vv. 6-11).

Os discípulos não entendem este gesto de Jesus, porque normalmente são os escravos da casa que lavavam os pés empoeirados dos hospedes. Pedro reclama, porque o gesto de Jesus não combina com seu preconceito de autoridade (vv. 6-7, cf. Mt 3,14), mas Jesus insiste na comunhão que ele tem com os seus: “Se eu não te lavar, não terás parte comigo” (v. 8). Pedro muda de opinião e quer um banho inteiro, mas Jesus responde: “Quem já se banhou, não precisa lavar senão os pés, porque já está todo limpo” (v. 10). Esta frase pode se referir ao batismo de João Batista que Pedro já recebeu (1,40-42), e ao batismo em geral pelo qual o cristão é purificado na alma (no espírito, não numa parte do corpo apenas; cf. 1Pd 3,21) e tem parte com Jesus.

A Bíblia do Peregrino comenta: O diálogo tem um nível realista: a reação apaixonado de Pedro diante do ato de rebaixar-se do Mestre e não menos apaixonado desejo de não afastar-se dele. Tem um nível simbólico indicado por Jesus: ele deve realizar o gesto, é condição inevitável para ter parte na herança (celeste) com Jesus, seu sentido profundo não se entende agora… Costuma-se propor o seguinte simbolismo: a humilhação presente de Jesus, voluntária, incrível, representa a morte que ele vai realizar para obter-nos a vida eterna. Colateralmente, na menção de “tomar banho” pode ressoar uma referência batismal (Ef 5,26; Tt 3,5).

O sacrifício de Jesus é dar sua vida por amor (cf. v. 1; 15,12), é humildade daquele que é Deus, mas se faz homem (1,14) e servo (Is 53):“assumiu a condição de servo/escravo… humilhou-se e foi obediente até a morte, e morte de cruz” (Fl 2,3-8; a morte na cruz era reservada somente aos escravos ou terroristas, inimigos do estado). O lava-pés resume a vida de Jesus em favor dos outros (“por nós”) e prefigura sua paixão.

Jesus já sabia da traição de Judas, “quem o ia entregar”, por isso disse, “nem todos estais limpos” (v. 11; 6,70-71; 12,6; Mt 26,14-25 cf. leituras de ontem e anteontem).

Depois de ter lavado os pés dos discípulos, Jesus vestiu o manto e sentou-se de novo. E disse aos discípulos: “Compreendeis o que acabo de fazer? Vós me chamais Mestre e Senhor, e dizeis bem, pois eu o sou. Portanto, se eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros. Dei-vos o exemplo, para que façais a mesma coisa que eu fiz” (vv. 12-15).

Depois Jesus explica que o “exemplo” de humildade, amor e serviço que ele deu como “mestre e Senhor” (cf. Mt 10,24; 23,8-12), também nós devemos fazer “uns aos outros”:“Dei-vos um exemplo, para que façais a mesma coisa que eu fiz” (v. 15). Com este gesto surpreendente, Jesus mostrou que autoridade é servir (cf. Mc 10,42-45) e amar os outros. Devemos seguir o exemplo de Jesus: “Assim como eu vos amei, amai-vos uns aos outros” (13,34; 15,12.17) é o novo mandamento na mesma ceia.

Na Idade Média, havia um tempo em que o lava-pés também foi considerado um sacramento. Mas depois de restringir os sacramentos ao número de sete, ficou fora, porque se entendia que Jesus não queria uma imitação literal do lava-pés num rito semanal (como a Eucaristia, “fazei isto em minha memória”), mas dar um exemplo de amor mútuo e serviço.

O serviço de Jesus não era só sua mão de obra como carpinteiro, mas entregar seu corpo todo, seu sangue, “dar a sua vida em resgate de muitos” (Mc 10,45p). “Eu vim para servir”, o lema da CF 2015 foi tirado de Mc 10,45p. A Igreja é o sacramento de Cristo, sinal de unidade (cf. LG 1), e deve servir a sociedade.

É interessante, como o lava-pés exerce uma função crítica à uma distorção da Eucaristia e à uma Igreja autorreferencial que não quer servir aos homens e mulheres de hoje (cf. GS 1). É mais fácil apenas crer na presença de Jesus na sagrada hóstia e consumi-la, sem querer envolver-se com os outros, sem assumir um compromisso social, sem partilhar. Paulo critica a divisão entre ricos e pobres na eucaristia em Corintos (1Cor 11; cf.  2ª leitura). Jesus fez um gesto concreto invertendo a hierarquia. A comunidade deve seguir seu exemplo e não reproduzir o esquema da sociedade dominada pelo poder econômico e militar, pela competição e pelo direito do mais forte: “Entre vós não deve ser assim” (cf. Mc 10,42-45p). Já Lc 22,24-27 trouxe estas palavras para a última ceia, e Jo 13 as transformou em gesto.

 

SEXTA-FEIRA SANTA

Sexta Santa - Paixão do Senhor – Jo 18,1-19,42 – A – 07-04-2023

 

 

Uma vida consumada faz fecunda a morte- Adroaldo Paloro

 

“Junto à cruz de Jesus estavam de pé sua mãe e a irmã de sua mãe, Maria de Cléofas,

e Maria Madalena” (Jo 19,25)

 

A vida humana é fecunda, é potencialidade, é explosão de criatividade... Assim como na semente há vida latente esperando a oportunidade de expandir-se, também no ser humano encontram-se ricas possibilida-des, esperando a morte do “eu mesquinho”, para se plenificarem.

A maior perda da vida é aquilo que “resseca” dentro de nós enquanto vivemos: sonhos, criatividade, intuição. A vida é fecunda, é um turbilhão energético, é explosão de criatividade, é potencialidade.

“A tragédia não é quando um ser humano morre; a tragédia é aquilo que morre dentro da pessoa enquanto ela ainda está viva” (Albert Schweiter).

Uma vida pensada sem “mortes” perde-se, no final, na total irresponsabilidade. E viver significa esvaziar-se do ego para deixar transparecer o que há de divino em seu interior. O grão de trigo que não morre, apodrece, e não multiplica as mil possibilidades latentes em seu interior.

“Jesus morreu de vida”: de bondade e de esperança lúcida, de solidariedade alegre, de compaixão ousada, de liberdade arriscada, de proximidade curadora... Jesus foi Aquele que não ficou indiferente diante da fome, da doença, da violência, da exclusão..., enfim, diante de tudo o que atenta contra a vida. Seu modo de ser, suas opções, sua liberdade diante da lei, da religião, do templo, seus encontros escandalosos com os pobres e excluídos..., desestabilizou tudo, pôs em crise as instituições e as pessoas encarregadas da religião.

Tornou-se um perigo a ser eliminado.

Nesse sentido, a cruz de Jesus não é um “peso morto”; ela tem sentido porque é consequência de uma opção radical em favor do Reino. A Cruz não significa passividade e resignação; ela nasce de sua vida plena e transbordante; ela resume, concentra, radicaliza, condensa o significado de uma vida vivida por Jesus na fidelidade ao Pai, que quer que todos vivam intensamente.

Existem cruzes que são vazias, sem sentido, in-sensatas..., pois elas fecham a pessoa em si mesma, no seu sofrimento e angústia; não apontam para o futuro, para a vida.

São cruzes que nós impusemos sobre nossos ombros ou que os outros nos impuseram. São cruzes que nascem dos fracassos, dos traumas, das rejeições, das experiências frustrantes... Tornam-se um “peso morto” pois não abrem um horizonte de vida; elas se fixam no passado, na morte... e nos deixam no túmulo. Fazer o caminho contemplativo junto a Jesus que leva a Cruz da fidelidade nos ajuda a romper com as cruzes que nos afundam no desespero.

A Cruz assumida por Jesus é “expansiva” porque é expressão de uma vida entregue; ao mesmo tempo, ela O projeta para a “margem” onde Ele revela uma presença despojada, vulnerável, que se identifica com a dor do mundo, com a marginalização dos excluídos e com a desgraça de todos os miseráveis da terra. Sua Cruz manifesta que Deus é Compaixão porque continua do lado do inocente sofredor; Deus não apenas se solidariza, mas sofre “em sua pele”.

Acompanhando Jesus na paixão, também “vamos sendo talhados” pelas cenas que contemplamos, com o coração aberto à dor e à aflição. É o seguimento levado às últimas consequências. 

Participando da morte de Jesus, podemos também fazer de nossas cotidianas mortes um ato de decisão, de entrega, de oblação. A certeza de nossa fé em Cristo, morto e ressuscitado, nos ajuda a tirar do coração os medos, os impulsos egoístas de busca de segurança e proteção, e encontrar uma paz profunda que nos permita fazer de nossa vida uma oferenda gratuita em favor da vida dos outros.

É gratificante trazer à memória tantos homens e mulheres que são presença compassiva e, à maneira de Jesus, arriscam suas vidas em favor da vida; histórias silenciosas de tantas pessoas que com sua presença ajudam os outros a viver; pessoas que revelam a paixão por viver em pequenas paciências cotidianas, que entregam suas vidas no escondimento, sem vozes que as exaltem; elas são como o fermento silencioso que se dissolve na massa para fazê-la crescer.

Nos evangelhos, a Paixão de Jesus não é uma simples sequência de fatos, mas um confronto entre pessoas. Os diversos personagens entram em contato direto com Jesus, reagindo cada um a seu modo, vivendo cada qual o mistério do próprio chamado e da própria tomada de posição frente a proposta de Jesus.

Contemplar toda a galeria de pessoas que se encontra com Jesus. Cada qual com uma resposta diferente, diante de Jesus sempre igual em sua atitude de disponibilidade e de entrega.

Os evangelistas dão um destaque especial à presença das mulheres no caminho da Cruz, solidárias com Aquele que era vítima da indiferença cruel.

Estão ali, precedendo-nos no caminho, e não dizem nada. É seu corpo, são seus gestos, suas mãos, seus olhos, seu silêncio... que falam por elas. A linguagem delas é a linguagem do encontro solidário. Se elas podem permanecer nessas circunstâncias, é porque amaram muito. Elas nos falam de resistência e de fidelidade, de uma presença comovedora. Estão juntas, expostas a outros olhares, como comunidade de discípulas em torno a seu Mestre, que lhes ensina, agora sem palavras, uma sabedoria muito maior.

Em meio à impotência, não se afastam da dor experimentada ao ver sofrer a quem mais se ama, senão que se expõem ao olhar d’Aquele cujo rosto foi desfigurado.

Sobem com Ele ao lugar do abandono e da ingratidão, levantando uma ponte de proximidade e de solidariedade que cruza a totalidade da vida de Jesus.

Nem um só instante afastaram seus olhares d’Ele. E o que para uns é escândalo e para outros é loucura, para estas mulheres é uma força de Deus impressionante.

Elas acompanharam a vida de Jesus muito de perto, “à sombra”, e agora, a morte d’Ele lança uma forte luz sobre elas, tornando-as visíveis para que todos saibam quem são elas.

Elas tem a coragem de permanecer ali, acolhendo o acontecimento em toda sua crueldade e profundidade; elas estão de pé, enquanto outros desistiram ou se afastaram assustados.

Olhando de longe, estavam junto a Ele, deixando-se imantar por Ele, vivendo privilegiadamente um mistério que se oferece a todos. A partir deste momento elas vão aprendendo a conviver com a morte, com

a d’Ele, com a sua e com a dos outros. Vão aprendendo, precisamente em meio à morte, a “celebrar a vida”, mesmo intuindo que uma lança também as atravessará.

Daqui para a frente elas se tornarão pedagogas de um encontro que gera humanidade; elas estenderão suas mãos sobre os necessitados, com o mesmo desejo com que Jesus as estendeu, para tocar voluntariamente as pessoas enfermas, selando uma aliança, um “pacto de ternura”, com todos os desprezados e excluídos.

Diante da Cruz “descemos” com Jesus até à cruz da humanidade.

A solidariedade com os pobres, a fidelidade à vida evangélica, nos fazem descer aos porões das contradições sociais e políticas, às realidades inóspitas, aos terrenos contaminados e difíceis, às periferias insalubres das quais todos fogem e onde os excluídos deste mundo lutam por sobreviver. Ali nos encontramos com o Crucificado, o “Justo e Santo”, identificado com os crucificados da história.

Como diz o teólogo Jon Sobrino, não podemos crer no Crucificado de um modo coerente se não estamos dispostos a fazer descer da Cruz aqueles que estão dependurados nela.

Entende-se, assim, o grande “grito” que brotou das profundezas da dor de Jesus na Cruz e que continua ecoando como clamor angustiado. Não são poucos os gritos dos mais pobres, excluídos, doentes...

O grande grito de Jesus é a certeza de tudo o que sustenta o seu coração; ao ecoar junto aos crucificados, provocará grandes novidades. Um grito que não fica no vazio mas aponta para a Vida.

Texto bíblico:  Jo 12,20-30

                      Jo 18 e 19

Na oração: Somos grãos de trigo na grande seara do mundo; e o grão de trigo eterniza-se na sua entrega-doação para que outros matem suas fomes e vivam com mais sentido e intensidade.

Aprendamos a morrer para nossos interesses mesqui-nhos; só assim nossa vida terá a dimensão da eternidade.

- “Se a semente do trigo sou eu, a quê devo morrer, para que a vida interior possa se expandir?”

  

 

Sexta-feira Santa- Celso Loraschi

 

I. INTRODUÇÃO GERAL

O relato da paixão e morte de Jesus é um dos mais antigos escritos do Segundo Testamento. Corresponde ao núcleo central do querigma cristão. Jesus é Messias, anunciado nas Sagradas Escrituras, Filho de Deus que se fez carne, realizou sinais e prodígios, foi condenado e morto. Sua missão consistiu em realizar a vontade de Deus, amando a humanidade até o extremo. Seus posicionamentos não agradaram às instituições de poder. Foi perseguido, preso, julgado e condenado à morte. Injustamente, mataram o Justo (evangelho). Jesus é a figura do Servo sofredor, conforme descreve o Segundo Isaías. Um inocente sofre a paixão, carregando sobre si as nossas dores e nossos crimes. É desprezado por todos. Nele não há formosura e sinal nenhum de poder. Seu corpo foi sepultado entre os ímpios. O Servo amado de Deus, pelo caminho do sofrimento e da morte injustamente infligidos, resgatou a verdadeira justiça. A entrega de sua vida foi em reparação pelos pecados da humanidade (I leitura). As primeiras comunidades cristãs confessam que Jesus é o único e eterno sacerdote. Porque foi provado no sofrimento, é capaz de compadecer-se de nossas fraquezas e nos alcançar a misericórdia de que necessitamos (II leitura). Celebrar a paixão e a morte de Jesus é reconhecer e acolher o amor sem limites de Deus. Em atitude de gratidão e de arrependimento, deixamo-nos invadir pela sua graça, que nos transforma.


II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

Após a oração sacerdotal de Jesus (Jo 17), o Evangelho de João faz a narrativa da sua paixão e morte. A oração consiste num insistente pedido ao Pai para que os discípulos sejam guardados de todo mal e o amor de Deus permaneça com eles. Jesus tem consciência de sua partida. A morte é consequência de sua fidelidade ao projeto de amor do Pai. Por essa fidelidade, Jesus entrega sua vida de forma consciente: “Ninguém tira a minha vida. Eu a dou livremente” (10,18).

Em um jardim se desencadeia o processo da paixão de Jesus. Também num jardim ele será crucificado e sepultado. O jardim é lugar simbólico. Lembra o paraíso terrestre. Lugar de beleza e fecundidade. O jardim do Gênesis foi profanado pelo orgulho humano: tornou-se espaço de divisão e morte. O jardim da morte de Jesus, porém, é o espaço do resgate definitivo da vida.

Jesus costumava reunir-se com seus discípulos no jardim, fora do lugar social das instituições de poder, com as quais, gradativamente, ele vai rompendo. Os discípulos demonstram dificuldade de entender a postura de Jesus. Judas, por exemplo, não consegue desvencilhar-se da ideologia dominante. Faz um acordo com os líderes religiosos de Jerusalém e entrega Jesus. Um batalhão de guardas armados é mobilizado para prendê-lo, sinal de que era realmente considerado um indivíduo perigoso para o sistema oficial de poder.

Procuram Jesus à noite. As trevas, no Evangelho de João, têm um significado especial: em oposição à luz, simbolizam o mal. A ação que está sendo executada é sinal da maldade do “mundo” (instituições que excluem e matam). Jesus, “consciente de tudo o que lhe acontecia”, apresenta-se com o título divino “Eu sou”, identificando-se com o Deus do Êxodo (Ex 3,14). Esse título, paradoxalmente, está ligado com a origem humilde de Jesus: Nazaré da Galileia. O nazareno é Deus. Não é por nada que os guardas caem por terra.

Também Pedro revela muita dificuldade de entender a proposta de Jesus. Sua mentalidade ainda se baseia na ideologia triunfalista. Jesus, porém, vai por outro caminho: a vitória da vida não se dá pelo confronto e pela violência, mas pela obediência ao amor a Deus e ao próximo, também aos inimigos. Foi realmente difícil para Pedro. Decepciona-se com Jesus e vai negá-lo. Mas não deixará de reconhecer profundamente sua falta e tornar-se um discípulo exemplar.

Tanto a instância religiosa, representada por Anás e Caifás, como a instância política do império romano, representada por Pilatos, não encontram motivos para a condenação de Jesus. Esta será efetivada por interesse e conveniência dos chefes. Não foi Deus que quis a morte de seu Filho. Ela foi consequência da opção de Jesus pela verdade e pela justiça, conforme se constata no seu testemunho diante de Pilatos.

O caminho da “via-sacra” até a morte de cruz é a síntese de todo o sofrimento humano assumido por Jesus como gesto de extrema solidariedade. Ele se fez maldito (quem morre suspenso no madeiro é maldito de Deus: Dt 21,23) e foi crucificado entre dois malditos. Todos os crucificados e malditos deste mundo estão contemplados na morte de Jesus. Todos são redimidos no seu amor.

A cruz, para os cristãos, torna-se o caminho de seguimento de Jesus. Significa empenhar-se por um mundo de paz e justiça; renunciar ao poder em todas as suas dimensões; denunciar situações que geram exclusão e morte; assumir a causa dos pequeninos; doar-se cotidianamente pela causa da vida em plenitude, sem exclusão.

Vários textos do Segundo Testamento interpretam a paixão e a morte de Jesus à luz da profecia do Segundo Isaías. Especialmente com base nos quatro cânticos do Servo sofredor, percebe-se íntima ligação com o sofrimento de Jesus. Supõe-se até que Jesus tenha alicerçado sua missão sobre a teologia do Servo sofredor.

O texto para a meditação desta sexta-feira santa refere-se ao quarto cântico. O Segundo Isaías (caps. 40-55) é um movimento profético atuante no meio dos exilados na Babilônia em meados do século VI a.C. Busca incutir ânimo e esperança ao povo que está longe de sua terra, em situação de dor e desolação. É esse povo o “Servo sofredor”: desprezado, aviltado em sua dignidade humana, maltratado, sem beleza e sem importância; condenado injustamente como malfeitor e totalmente desprotegido, sem condições de defesa.

No entanto, esse povo desprezível e maltratado descobre-se como eleito por Deus para uma missão de solidariedade e expiação. Sobre si carrega as dores e enfermidades do mundo, os crimes e iniquidades da humanidade. Esse “Servo sofredor”, visto como um humilhado e castigado por Deus, pelo seu aniquilamento, proporcionou a cura de todos. Deus fez cair sobre seu Servo amado todas as faltas da humanidade. Por ele, os povos recebem o perdão e a paz.

É fácil perceber por que as comunidades cristãs primitivas aplicaram a Jesus a descrição do “Servo sofredor” do Segundo Isaías. Ele se fez Servo de todos e ofereceu sua vida em sacrifício expiatório. Pela sua morte, resgatou a vida de toda a humanidade. O justo condenado injustamente garantiu a nossa justificação.

Um dos objetivos da carta aos Hebreus é fortalecer a fé e o amor das comunidades cristãs. Para tanto, apresenta Jesus Cristo como único mediador entre a humanidade e Deus, superando todas as demais mediações, como a Lei e o Templo. Exorta a “permanecer firmes na fé que professamos”, o que deixa transparecer que membros da comunidade cristã estavam “voltando atrás”, retomando concepções e práticas antigas.

Jesus é apresentado como o único sumo sacerdote e, portanto, já não há necessidade de outros sacerdócios. O sumo sacerdote do Templo entrava no Santo dos Santos, uma vez por ano, a fim de oferecer um sacrifício a Deus. Jesus, pela sua entrega sacrifical, derrubou todas as barreiras que dificultavam o acesso a Deus. Agora, por meio de Jesus, o sumo e eterno sacerdote, todo lugar e todo tempo são propícios para a comunhão com Deus.

O texto salienta a missão terrena de Jesus, sua encarnação, suas súplicas ao Pai em meio a terrível sofrimento, na confiança de que ele podia livrá-lo da morte. Foi obediente até o fim, e Deus o escutou. Jesus “atravessou os céus”, o verdadeiro Santo dos Santos; ofereceu o sacrifício definitivo para a expiação dos nossos pecados. Porque participou humildemente de nossa humanidade e de nossas fraquezas, é capaz de compaixão. Atravessou o céu sem afastar-se da realidade humana. Seu trono não é para juízo e condenação. Podemos nos aproximar dele, fonte de graça e de misericórdia, com toda a confiança, sem nenhum receio. O acesso a Deus está permanentemente aberto, e podemos contar com sua acolhida amorosa.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

– A morte de Jesus foi consequência de sua fidelidade ao amor a Deus e ao próximo. Sua opção pela luz da verdade e da justiça não agradou aos que preferiam as trevas do egoísmo, da mentira e da dominação. Não é fácil entender a proposta de Jesus e aderir a ela. Judas preferiu unir-se aos interesses dos chefes de Jerusalém; Pedro o negou por três vezes… Também hoje existem maneiras diversas de trair e negar Jesus. Houve, porém, pessoas solidárias com Jesus, como as mulheres e o discípulo amado. Também José de Arimateia e Nicodemos… Nós somos chamados a seguir Jesus pela renúncia ao egoísmo e pelo amor vivido cotidianamente. Podemos ser-lhe solidários: ele se identifica com os pobres e sofredores.

– Jesus é o Servo de Deus que se ofereceu em sacrifício pela vida da humanidade. Assumiu a condição humana, foi incompreendido e desprezado, perseguido e condenado; “como cordeiro, foi levado ao matadouro”, porém não usou de vingança nem de violência nenhuma. Como “Servo sofredor”, carregou nossas dores e expiou nossas faltas. Foi obediente ao Pai até o fim. Pela sua vida e pela sua morte, Jesus tornou-se “o caminho, a verdade e a vida”. É importante que nos questionemos a respeito das “fidelidades” que estamos assumindo em nossa vida: elas são coerentes com a proposta de Jesus ou preferimos o caminho das comodidades e da indiferença diante dos problemas que afetam a vida do ser humano hoje?

– Jesus é o nosso mediador junto ao Pai. Ele nos entende perfeitamente porque assumiu em seu próprio corpo os limites e fraquezas humanas. Ele se fez nosso irmão. Acolhe com ternura e misericórdia toda pessoa que a ele se dirige. Ele é fonte de todas as graças. Dele podemos nos aproximar sem medo, com toda a fé e confiança, na certeza do perdão, da ajuda em nossas necessidades e da garantia de vida eterna.

Celso Loraschi

Mestre em Teologia Dogmática com Concentração em Estudos Bíblicos, professor de evangelhos sinóticos e Atos dos Apóstolos no Instituto Teológico de Santa Catarina (Itesc).
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João 18,1–19,42 - Você também quer ser discípulo deste homem? - Itacir Brassiani.

Nesta sexta-feira se revela o que há de mais profundo no ser humano e de mais belo na essência de Deus. E a humanização de Deus atinge seu ponto mais luminoso. E o serviço a Deus brilha na entrega despojada e solidária a serviço do ser humano despojado de poder e de honra.

Quem faz dos próprios interesses e ambições um ídolo intocável, cedo ou tarde acaba identificando como diabólicas e ameaçadoras todas as pessoas, grupos, movimentos e entidades que pensam diferente e propõem uma ordem alternativa. Além disso, concebe estratégias para eliminá-los sem sujar as mãos, dentro dos quadros da lei, com ou sem apoio de “tribunais supremos”, sem se tornar “impuro”. Quantas leis – escritas nos códigos ou na alma dos povos – não passam de artifícios para disfarçar o domínio e a violência dos mais fortes sobre os mais fracos, de tentativas de impedir que estes vivam plenamente?

Conhecemos as tramas, traições e intrigas que levaram à prisão, condenação, tortura e morte de Jesus. São opções e atitudes que revelam o mistério do mal e sua força nas pessoas e estruturas. O mal se expressa nos costumes, nas leis, nos medos, em todas as formas de ambição do ser humano. Um mal que assume feições de cinismo, como quando as autoridades religiosas, tendo já decidido matar Jesus, não entram no palácio do governador para não se tornarem impuras. Os sistemas ditatoriais criam leis iníquas no intento de lavar das suas mãos as tintas de sangue, e aliviar a consciência que lhes pesa.

Diante dos seus acusadores e algozes, Jesus não parece disposto a se debater nem se defender. Ele tem consciência de que nasceu e veio ao mundo para tornar palpável e digno de crédito o amor fiel de Deus pelas pessoas negadas em sua dignidade. Pilatos manda torturá-lo, transforma-o numa paródia de líder e o apresenta ao povo: Eis o homem! (Jo 19,6). Nisso, sem querer ele diz a verdade, pois a verdadeira humanidade não se mostra naqueles que rasgam constituições, roubam direitos ou depredam os biomas, mas nas vítimas destes atos irracionais, e nas pessoas que contra eles se levantam.

Na celebração da condenação e morte de Jesus de Nazaré na Sexta-feira da Paixão fixemos nosso olhar neste homem que realizou em grau pleno a vocação de todo ser humano. A criatura humana não nasceu nem vive apenas para sofrer e padecer! Em Jesus descobrimos que a pessoa humana atinge sua plenitude quando não recua diante do chamado a dar a vida, quando não abre mão da solidariedade com as pessoas negadas em sua verdade e em sua dignidade. Maduro e pleno é quem, como Jesus, é capaz de se compadecer de quem é mais frágil!

A pergunta a quem procurais? (Jo 18,4) feita a Judas Iscariotes, é dirigida também a nós. O que esperamos ou buscamos na celebração da paixão de Jesus? Consolação nos sofrimentos inexplicáveis? Confirmação dos nossos interesses e projetos? Só nos é licito buscar forças para perseverar no seguimento de Jesus, amigo da humanidade. Só podem beijar o corpo torturado de Jesus aqueles que estão dispostos a renascer como uma nova família, não mais presa aos laços de sangue ou aos interesses mesquinhos, mas servidora e aberta a todos os humanos seres que querem viver e promover a vida.

Deus Pai e Mãe, prostrados e agradecidos diante do supremo gesto de amor do teu Filho, te pedimos: ensina-nos a permitir que Cristo viva em nós e a morrer para a indiferença que se globalizou e mata tantos seres humanos.  Ajuda-nos a assumir as consequências de sermos discípulos deste verdadeiro homem, e dá-nos a generosa coragem de transformar a Igreja, a sociedade e a história com o fermento da compaixão, única possibilidade de salvação da humanidade e do mundo. Faça que, aos pés da cruz, nossas comunidades e a Igreja como um todo cantem seu hino de humildade, amor e paz. Assim seja! Amém!