ATUALIDADE DO IRMÃO CARLOS

ATUALIDADE DE C. DE FOUCAULD


Atualidade da experiência espiritual de Carlos de Foucauld para a Igreja e para o Mundo de hoje Pe. Carlos Palácio, SJ

Introdução

Tal como me formularam o tema desta segunda colocação, trata-se de algo muito sério, muito impressionante, difícil de manejar, porque é mais ou menos isto: “Uma espiritualidade para o mundo atual, a de Carlos de Foucauld” e: “Missão da Fraternidade na Igreja e no mundo de hoje”. São dois aspectos de um tema que é para assustar qualquer pessoa. No fundo, são duas afirmações ou aspectos de uma mesma e única realidade.

Poderíamos começar dizendo que a espiritualidade do Irmão Carlos é a experiência de ser e viver para os outros. Digo isso porque a palavra “espiritualidade” sugere muitas vezes - em certa tradição cristã ao longo dos séculos - algo aéreo, alienado, distante da realidade; recortes de uma experiência, aspectos que se sublinha ou se põe, em primeiro plano, de uma maneira de viver.

Há ‘carismas’ ou ‘espiritualidades’ que são mais ‘devoções’. Para dar um exemplo, as sete chagas do Senhor. Será isso suficiente para alimentar uma verdadeira experiência espiritual, uma espiritualidade? Não se trata de desprezar as devoções, é um exemplo de como muitas vezes a espiritualidade se empobrece, se banaliza.

Nesse sentido, creio que a força da espiritualidade do Irmão Carlos é como o sopro que o faz viver, o sopro que alenta sua experiência de vida, de existência. E que não se pode reduzir a um aspecto, pois é o conjunto desta maneira de viver que deve alimentar a vida e que a alimenta.

A raiz do que se poderia chamar espiritualidade do Irmão Carlos é a experiência de viver com Espírito. Por isso não se pode separar os aspectos, por exemplo: a espiritualidade do Irmão Carlos se alimentaria da adoração. Sem dúvida, é um aspecto importante em sua experiência de vida, mas é um

aspecto que não se pode separar, como tampouco se pode reduzir sua espiritualidade à oração de abandono. E essa totalidade que inspira, que alenta e dá sentido ao viver.

Por isso digo que são como dois lados de uma mesma experiência e realidade. O tema de hoje é como voltar a olhar a experiência a partir de um outro prisma.

1 - Situação espiritual do mundo atual Num primeiro momento, eu gostaria de refletir com vocês em que sentido esse talante espiritual - mais do que espiritualidade - do Irmão Carlos é uma proposta que pode interessar ao mundo de hoje. Onde e como situar essa proposta? Para isso. pode ser útil captar o que o Irmão Carlos introduz de verdadeiramente novo na história da espiritualidade cristã e o que há nela de inspirador para o momento de nosso mundo e de nossa cultura.

Em grande parte o mundo atual, a sociedade atual, nossa cultura pós-moderna, se apresentam como um ‘mundo sem Deus’. É um pouco o que veicula a cultura moderna e pós-moderna. O homem moderno se fez o centro de seu ser, de sua vida. e em certo sentido pode prescindir em tudo dessa referência a Deus. Por isso se fala tanto (já desde o século XIX) da ‘morte de Deus’. Ou cada vez sentimos mais, no modo de viver das pessoas, a ‘ausência de Deus’.

As novas gerações parecem dispensar tudo isso. E isso reflete na perda de valores, na falta de sentido da vida, nesse vazio em que as pessoas não sabem o que buscam. Como se reflete também na busca anárquica do ‘espiritual’ em todas as formas possíveis, muitas vezes as mais exóticas.

Mas nessa busca há uma sede de algo que mostra que o ser humano não pode. sem mais, abandonar uma referência à Transcendência.

Essa busca muitas vezes se contenta com pequenas transcendências, poderíamos dizer, que de alguma maneira nos fazem sair de nós mesmos, mas que não se atrevem a chegar à experiência da verdadeira Transcendência. Pequenas transcendências que podem ser meu grupinho de amigos, meu clube, minha região... Isto nos faz olhar um pouquinho mais além de nós, mas não nos tira de nós mesmos.

Neste sentido, muitas vezes na própria Igreja, a maneira de situar-se diante desta realidade cultural, aquela que nos toca viver, está mais habitada pelo que João XXIII chamava os “profetas da desgraça”, que não sabiam ver os sinais de esperança, que vêm tudo mal. Isso impede que se possa responder a essa situação de maneira criativa, com algo que responda de fato à necessidade dessa situação.

Digo isso porque a este que chamamos muito genericamente ‘mundo sem Deus’, quer-se responder muitas vezes com um “Deus sem mundo”, ou seja com propostas espirituais que não correspondem a essa situação. Eu creio que, atualmente, no âmbito da proposta da fé atualmente, da experiência cristã e de uma espiritualidade capaz de dar sentido ao que se vive hoje. há uma ausência a notável de propostas eclesiais que sejam atraentes.

A resposta, muitas vezes, é endurecer os aspectos

doutrinais, mas isso não responde aos problemas das pessoas e, portanto, não alimenta a experiência. Isso não significa que a doutrina não tenha importância. Mas no seu devido lugar. Nenhuma doutrina pode substituir a experiência viva. Cada coisa em seu lugar.

Hoje predomina o doutrinai sobre o experiencial na maneira de propor a fé cristã. Ou então se insiste nos ritos, nos ritualismos que muitas vezes não chegam até a vida, não tocam a vida. É preciso ir à Missa porque é preciso ir à Missa e, assim, as pessoas deixam de ir à Missa... Ou é preciso batizar porque é preciso batizar e a maioria das famílias jovens não batizam mais.

Mas isso não se resolve afirmando intransigentemente a lei, é preciso, ao contrário, ver como ajudar essas pessoas a descobrirem e a fazerem uma experiência que, depois, poderá formular-se em doutrina. Ou então, refugiar-se nas práticas espirituais tradicionais, que se repetem mecanicamente, mas que pouco ajudam.

Nesse sentido, creio eu, sem querer fazer julgamentos contundentes, os chamados “movimentos eclesiais” (não sei aqui como funcionam, se são muitos ou não, mas na América Latina e no Brasil concretamente, proliferam de tal

maneira que a gente fica pasmado) são movimentos de massa, atraem muita gente, mas pessoas já tocadas pela fé.

A grande maioria das pessoas que não crêem, não vai atrás desses movimentos que buscam o sensacional, o espetáculo, o puramente emotivo. Tocam a emoção das pessoas. Mas, claro, quando acaba a emoção, a pessoa fica sem nada. Não se dá substância, consistência às coisas.

Esse tipo de abordagem não chega aos que não crêem. No fundo, é uma resposta tradicional, incapaz de distanciar -se de um passado conhecido e de responder com criatividade ao desafio que nos coloca essa realidade presente. No fundo, há como um medo de confrontrar-se com essa vida e, por isso, muitas vezes essas ‘espiritualidades’, diria eu, são espiritualidades de fuga. Fogem da realidade, se escondem.

É o que eu dizia: a um ‘mundo sem Deus’ se oferece ‘um Deus sem mundo’. Como se dissessem: eu tenho um Deus, mas não tem nada a ver com o que está passando, com o que se vive, com os problemas reais das pessoas, etc.

2. A proposta oposta espiritual do Ir Irmão Carlos

Frente a isso, como eu qualificaria a espiritualidade

do Irmão Carlos? Com essa simples frase: “ Deus no coração do mundo”. A experiência de Deus, nós a fazemos em plena realidade da vida com todos os seus problemas. É aí que temos que encontrar Deus, é aí onde Deus tem que iluminar a nossa existência. Creio que isso é uma das características da vida, do modo de ser do Irmão Carlos e do que é o espírito dessa experiência, de onde viria essa espiritualidade.

É uma espiritualidade da Encarnação. Por isso é tão central nessa experiência descobrir Deus como o Deus de Jesus. Não se trata de qualquer experiência

espiritual ou de qualquer transcendência: trata-se de um Deus que se revela no coração da realidade humana de Jesus. Jesus não é simplesmente a roupagem humana de Deus, mas é Deus por dentro de nossa existência humana, sentindo, experimentando, vivendo.

E ao descobrir esse Deus de Jesus, a vida vai se iluminando de outra maneira, os problemas recebem outro sentido. No fundo, creio que essa maneira de ser recolhe plenamente o que Jesus, no evangelho de São João diz tão insistentemente a seus discípulos: “Vocês não são do mundo, mas têm que estar no mundo”. Uma coisa é estar metidos no mundo, outra coisa é ser como os outros, no sentido de viver da mesma maneira.

É preciso estar neste mundo, porque é o mundo pelo qual Deus dá a vida e não se arrepende, não volta atrás; mas é preciso estar como ele, de outra maneira. Claro que Jesus está neste mundo, sofrendo o que faz sofrer todo ser humano. Não porque lhe agrade, mas por opção, por amor, porque quer abrir esta realidade à experiência do amor próximo (que está perto) de Jesus.

É isso que pode abrir-nos à experiência de que a simples ‘presença’, esse ‘estar’, aparentemente inútil, não é tão inútil, porque vai nos dando o sentido de que outro mundo é possível. E não como pura utopia, como sonho, mas como realidade, porque esta realidade tão cruel já foi tocada por essa presença do Senhor. E isso é irreversível, ou seja, o futuro deste mundo não está ainda por decidir; esta ambiguidade foi dirimida com a ressurreição de Jesus, depois de ter atravessado toda essa realidade, sofrido essa realidade e tê-la aberto à novidade de Deus.

Esperar de maneira cristã não é esperar cegamente, é esperar com sentido, com um sentido que está aí. Essa experiência está no coração da espiritualidade do Irmão Carlos e é isso que o leva a ser solidário com todos os homens e mulheres, com o mundo, com a realidade mais dura; mas solidário com a mesma solidariedade de Jesus, com a solidariedade de Deus.

À luz da experiência de Jesus, com o Irmão Carlos

aprendemos a estar na vida saboreando antecipadamente o fato de que cada uma destas realidades pode ser religada a Deus. pode ser posta em ligação com Deus, porque foi sentida por Deus. padecida por Ele e assim aberta ao Pai em puro abandono.

É isso que nos permite crer verdadeiramente que o ser humano é mais do que nos querem fazer crer. E apostar nisso é toda uma espiritualidade.

Como classificar isso? É a espiritualidade de Deus no

coração do mundo. Poderíamos dizer que é essencialmente o Evangelho, a simplicidade evangélica. Tão simples assim! Parece quase impossível. Mas que significa a expressão ‘Senhor do impossível?’ É essa a simplicidade da espiritualidade; como dizia Francisco de Assis, no ‘Evangelho sem glosa’, não ao pé da letra, mas sem glosa, isto é, sem adoçá-lo, sem que o matizemos demais. Isso não é fácil, mas é o que o Irmão Carlos queria viver.

E é aí que aparece precisamente a simplicidade dessa espiritualidade evangélica e o sentido profundo do estar, da presença, do partilhar, do viver junto.

É assim que vão aparecendo todos os traços que víamos ontem. Por exemplo, é uma espiritualidade de amor oblativo, porque só se pode viver assim por amor. E, portanto, é uma espiritualidade eucarística no sentido que o Irmão Carlos lhe dá: a vida entregada, a vida oferecida. São coisas tão simples e tão enormes, que as tragamos sem pensar.

Será isso o que vivemos? Será essa a espiritualidade que transmitimos? Eu me refiro mais ao modo pelo qual a Igreja se apresenta no mundo de hoje. No fundo, poderíamos dizer que essa espiritualidade nos permite, num mundo aparentemente sem Deus. estar onde Deus está e não onde o imaginamos ou onde queremos colocá-lo.

O que dá uma força surpreendente a essa maneira de ser e de viver é que essa presença que alenta e dá sentido à vida das pessoas, aparentemente inútil, é o que revela a chamada parábola do Juízo final.

Nela se manifesta de que lado se posicionou e estava Deus neste mundo aparentemente sem sentido. Isso não tem muito de religioso, de espiritual, no sentido fácil destas palavras, mas tem tudo da espiritualidade da Encarnação.

3. Missão atual dessa espiritualidade na Igreja e no mundo

Situar esta experiência ou esta espiritualidade dessa maneira é importante para aquilo que nos preocupa: Qual é a atualidade desta experiência?

Para captar isso é necessário dar-se conta do contexto no qual nos situamos e que respostas tentamos dar e que poderia dar - e certamente pode dar – a proposta do Irmão Carlos. E com isso passamos já à missão desta experiência e desta espiritualidade na Igreja e no mundo.

a) “Algo novo”...

.No Irmão Carlos irrompe algo que não existia na tradição anterior. Que não existia dessa maneira, que nos faz voltar à origem, pondo entre parêntese um longo tempo de história, para voltar às origens.

Mas esse princípio tinha sido algo suavizado ao longo dos séculos na espiritualidade cristã. No Irmão Carlos há uma novidade, algo que o deixava sempre inquieto: queria algo novo, radical; não sabia como nomeá-lo, não sabia como formulá-lo, plasmá-lo,

mas intuía que se tratava de algo que não existia, que não se encontrava em parte nenhuma.

Visto a partir da história da Vida Religiosa, parece-me que depois do grande peso que teve no século V a vida monástica, as ordens mendicantes a partir da idade média e no princípio da idade moderna Inácio de Loiola, com outra visão de vida religiosa apostólica, só com o aparecimento do Irmão Carlos surgiu algo verdadeiramente novo, inédito.

Santo Inácio teve que lutar muito para que sua intuição não fosse reduzida ao monástico: não queria coros, penitências nem outras coisas semelhantes, porque queria ir ao mundo, aos homens, ao que ia aparecendo durante o século XVI que era o chamado novo mundo, as grandes descobertas, as cidades grandes, etc.

É o que passou-se a chamar ‘“vida religiosa apostólica”, que depois foi se desenvolvendo de maneira muito variada até o século XX. E nesse momento surge o Irmão Carlos com outra fórmula que não se encaixa em nada disso, porque certamente não é uma vida monástica, certamente não é uma vida contemplativa como a tradicional e certamente não é uma vida apostólica como a que nós conhecemos. Mas tem de tudo: tem fraternidade, tem contemplação e tem missão. É algo paradoxal.

Então, onde situá-lo?

Digo que não tem nada de vida monástica, embora com um elemento tão importante como a fraternidade. A vida monástica surge com toda a força do Espírito num momento em que era necessário pôr em questão a adaptação da Igreja ao Império. Mas pouco a pouco, foi se distanciando dessa realidade, criando seu mundo à parte, distante da realidade.

Não era certamente isso que buscava o Irmão Carlos. Ele buscava tateando, mas não sem saber (docta ignorantia!) . Por isso pode dizer a si mesmo: não é por aí, é ‘outra coisa’.

Isso o levou a fazer um longo caminho para explicitar o que queria. Por isso não comprometeu sua vida nesse caminho. Não era tampouco uma ‘vida apostólica’ no sentido habitual e corrente dessa expressão, na qual mais de uma vez se confunde a missão com as tarefas realizadas. Ele buscava um que fazer, mas indubitavelmente se sentia ‘enviado’, não recusava realizar uma ‘missão’.

A Fraternidade tem uma missão. Não no sentido de ‘fazer’ como às vezes se entende em muitas congregações. O Irmão Carlos não ‘fazia’ nada e, no entanto, ‘vivia’ o essencial. Nesse sentido, essa é a ‘palavra inédita’ que brota nele e que clama por sulcos através dos quais expressar-se, não encontrando na tradição formas adequadas. Como no Evangelho: “vinho novo em odres novos”. Os odres velhos não lhe serviam, queria expressá-lo à sua maneira.

Creio que nisso está o profundo significado da intuição do Irmão Carlos para a Igreja. Sua presença é um verdadeiro ‘carisma’ para a Igreja, uma ‘graça’, um ‘dom’, algo imprevisível que não pode ser domesticado. Porque o Espírito suscita seus dons quando quer e como quer.

E não podemos controlá-lo. Por isso não ‘controlaram’ o Irmão Carlos. Sim, porque as outras formas de vida religiosa a partir do século XVII, Santo Inácio, por exemplo, lutou muitíssimo para romper o estilo de vida monástica, mas a companhia foi progressivamente obrigada a viver durante muito tempo dentro de um esquema monástico (como monges que faziam pequenas escapadas para a missão e depois voltassem ao mosteiro porque aí estariam protegidos).

O que era uma contradição com a inspiração original de Santo Inácio. Assim se voltava a pôr o novo em odres velhos, sem deixar-lhe seu espaço como verdadeiro dom para a Igreja.

Os verdadeiros carismas, em sua novidade, são suscitados pelo Espírito para que todos os cristãos possam perceber e descobrir que devemos voltar ao Evangelho constantemente: que isso não se pode supor já conseguido. E que às vezes nos afastamos demais dele.

Para reavivar essa memória, para que essa consciência chegue a todos, é necessário que alguns encarnem esse carisma, lhe deem vida e façam descobrir sua atração. Creio que é esse o sentido da Fraternidade. Vocês são uma espécie de “Resto de Israel”, com a função que esse ‘resto’ tinha na história do povo de Israel. Em nosso caso, para ajudar todos a recuperar o entusiasmo inicial do acontecido com a irrupção de Jesus e do Evangelho na história.

b) “... que é para todos”.

Isso é importante porque durante muito tempo a Vida Religiosa foi considerada na Igreja como um “estado de perfeição”. Já a palavra ‘estado’ é problemática. É como dizer que já chegamos, que já alcançamos a meta. O que equivale a dizer: ‘podemos deixar de lado... E com isso se mata o dinamismo e a novidade do Espírito que nos surpreende sempre e não nos deixa tranquilos, se o escutarmos!

Essa concepção não somente nos fazia mal aos religiosos (a sutil tentação de ser vistos ou de considerar se como ‘elite’), mas também fazia mal ao povo de Deus. Os cristãos “a pé”, o povo de Deus, tinham que contentar- se com os mandamentos. O que equivale a empobrecer a vida cristã até esvaziá-la. Não é à toa que o concilio Vaticano II estabelece a igualdade fundamental dos cristãos como premissa da comunidade eclesial: todos são chamados à plenitude da vida cristã, ou seja, à santidade.

A partir daí se dá a distinção de funções e de estilos de vida na igreja. De alguma maneira o Irmão Carlos intuía que o destino e a função da vida religiosa não podiam consistir em isolar-se, não teriam que levar a uma separação do povo cristão.

Os religiosos não são uma “casta espiritual’; o que eles vivem é para todos. Por isso é necessário estar nó meio do povo, para que essa experiência fecunde a vida da Igreja e de cada cristão. Não somos religiosos para que nos venerem e nos digam: Como são santos! Era isso que o ‘estado de perfeição’ insinuava.

Creio que esta perspectiva abre uma grande pista para captar o que seja a missão da Fraternidade na Igreja: devolver-nos, a todos, a consciência de que em muitas coisas estamos muito longe do Evangelho e isso pode ser feito sem contestações que assustem.

Os mais perigosos não são os que gritam, mas aqueles que vivem: embora não abram a boca, incomodam profundamente. É essa a contestação evangélica. O Evangelho em si mesmo é ‘contestação’, porque é contracultura. Como vêem, não precisam preocupar-se; têm muito a fazer...

Dito com outras palavras, a missão da Fraternidade é antes de tudo ser, viver, mais do que ‘fazer’. A vida religiosa tradicional (entenda-se vida apostólica ‘moderna’) sucumbiu muitas vezes, a meu ver, à obsessão de fazer coisas, deixando de lado o que se era, o que se tinha que ser. Ao criar-se essa dicotomia e incorporá-la como se fosse natural, abre-se um abismo entre o que dizemos ser e o que na realidade vivemos. E isso contamina negativamente o que fazemos, porque tão importante é ‘aquilo que’ fazemos como a maneira de fazê-lo, a maneira pela qual estamos no que fazemos e vivemos.

É preciso ter isso muito presente, porque é exatamente o que o Evangelho nos diz: a coerência de vida entre o que se diz e o que se faz. É a contradição denunciada muitas vezes por Jesus no Evangelho quando se refere aos escribas e aos fariseus: “façam o que eles dizem, mas não o que fazem”.

Ou então, quando nos diz: “Não é o que diz Senhor, Senhor, que se salva, mas aquele que põe em prática, aquele que o vive”.

No fundo, essa missão de “ser” é o que nós chamamos com outra palavra o “testemunho”. Mas não se trata de propor-se para ‘dar testemunho’. A vida fala por si mesma; é isso dar testemunho.

É um testemunho, se quiserem, não buscado e por isso mesmo autêntico. Em que consiste esse testemunho? Não para que nos digam: Que pessoa boa, que exemplo nos dá! O verdadeiro testemunho cristão é o que revela Jesus Cristo com a própria maneira de viver, sem necessidade de palavras.

c) “do fazer tarefas a fazer-se próximo/estar perto

Num mundo como o nosso, cansado de grandes discursos e já saturado de grandes relatos, se anseia e se grita por pessoas que vivam. É isso que atrai, o que pode suscitar seguidores, o que tem poder de fascinar as pessoas e é capaz de suscitar uma interrogação: Por que essa maneira de ser? Como explicar essa vida? Estarão loucos?

São as mesmas interrogações que se fazia sobre Jesus: O que o leva a proceder assim? De onde lhe vem tal autoridade? E não é preciso abrir a boca para isso, nem fazer sermões, nem declarar a doutrina cristã. É a vida que é cristã.

No fundo, vejam como essa maneira de ser e essa missão recolhe o que nos diz Jesus na parábola do Samaritano: essa espiritualidade é a espiritualidade de fazer- me próximo/estar perto dos outros. Portanto, a primeira missão dessa espiritualidade é o amor, a compaixão, partilhar a própria vida e o próprio ser.

Dessa maneira – é o que vocês experimentam diariamente - o primeiro que levam às pessoas é o sentido, devolvem-lhes a dignidade, a possibilidade de acreditarem em si mesmas, de humanizarem-se, de recuperar a esperança. E, portanto, o sabor da vida. Parece pouco como missão? Claro, vocês “não fizeram nada’ (colégios, obras sociais, etc); não fizeram mais do que ‘estar’ com o povo: em suas lutas, na mesma vida, sofrendo com eles, inspirando-lhes esperança e sentido. Haverá melhor missão que essa?

Algo que parece tão simples, mas que os faz entrar de cheio no Evangelho. É o que Jesus dizia ao afirmar: vocês têm que ser fermento, têm que ser sal para dar sabor, luz que ilumine o tenebroso da vida. Dessa maneira ajudam as pessoas a verem no humano - tão esmagado e sofrido - o que não se vê. o invisível, Deus. Dessa maneira vocês os ajudam a crer no futuro com esperança, apesar de tudo aquilo que a realidade parece dizer. Esperar, como diz São Paulo, contra toda esperança.

Mas isso só pode ser vivido a partir de Jesus e com ele: porque esperar contra esperança parece absurdo. A não ser que se possa dizer: não creio no que vejo (apesar de tudo que a realidade quer me fazer crer) porque o que não vejo - a vitória de Jesus ressuscitado - é a palavra última e definitiva sobre essa realidade.

A realidade é muito mais do que alcanço ver. Por isso espero. De alguma maneira o mal se esgota e é vencido por Jesus, com sua maneira de crer e de esperar, de viver confiante e abandonado: “em tuas mãos”.

A grande missão da Fraternidade, creio eu, e sua grande novidade neste momento da Igreja e do mundo, é manter viva entre nós, na Igreja, a memória viva do Evangelho. E como isso se mantém? Vivendo-o. Assim o Evangelho se inscreve na vida. Um verdadeiro reescrever o Evangelho hoje que é, de certa maneira o quinto Evangelho feito carne na história. Se isso não é evangelizar, que será evangelizar?

4. Uma espiritualidade por estrear

Num último passo, eu gostaria de fazer algumas reflexões a respeito do por que a espiritualidade, assim entendida, é uma espiritualidade para este século, para uma cultura a pós-moderna como a nossa e para esta sociedade. Sem dúvida, isso não quer dizer que tenha que ser a única espiritualidade. O espírito pode soprar de muitas maneiras.

Mas certamente é uma espiritualidade que tem como principal função ser uma espécie de ‘memória crítica’ ou ‘memória evangélica’ daquilo que é a Igreja ou tem que ser em termos cristãos, isto é, a forma evangélica de ser Igreja. Nesse sentido, eu diria que essa espiritualidade está por ser estreada, ela é recém-nova, embora vocês já a tenham vivido durante muitos anos. Que são cinquenta, oitenta ou noventa anos na maneira de contar o tempo histórico? E insignificante. O tempo histórico se conta por milhões de anos.

Creio que é muito importante perceber isso, porque é como uma semente que necessita muito tempo para germinar. Já caiu na terra, sem dúvida, e talvez hoje vocês já estejam vivendo uma primeira experiência daquilo que significa que o grão que cai na terra tem que morrer para dar fruto... Isso custa. E talvez vocês tenham a sensação de que está por morrer. Atrevo-me a crer que está por nascer, que está por ressuscitar, mas passando por aí: cair na terra, desaparecer, apodrecer para dar frutos.

Foi o que o Evangelho significou analogamente para os primeiros apóstolos. Eles o transmitiram, lançaram ao ar a semente da Palavra e tiveram que esperar com paciência até ver os primeiros frutos. O Evangelho não pegou assim de repente, embora os Atos dos Apóstolos nos digam que já no primeiro dia se converteram uns cinco mil com o discurso de Pedro. Mas não parece que tenha sido tão fácil.

b) Uma linguagem humana

Por que eu creio que essa experiência tão nova é uma experiência para o futuro? Porque me parece que ela está traduzida na linguagem mais universal possível e se querem - entendam-me bem - menos “religiosa”: a linguagem “humana”. Essa linguagem, todos a entendem. Pode ser que uma pessoa se assuste quando lhe propomos preceitos de moral, ou na necessidade de crer na união hipostática de Jesus Cristo. Mas se vocês lhes disserem: ‘eu estou com você’, o entenderão.

Essa linguagem universal que todos entendem, que significa ela na espiritualidade do Irmão Carlos? Eu creio que é uma forma de transmitir, de fazer compreender que a experiência do Deus de Jesus anima nossa vida, que essa espiritualidade humaniza. E esse humanizar é um passo prévio ao de “cristianizar”.

A Irmãzinha Madalena o plasmou de modo perfeito numa frase às Irmãzinhas de Jesus: “Sejam humanas antes de ser religiosas”. Isso também é profundamente do Irmão Carlos.

A linguagem humana tem um valor anterior à explicitação da fé. Por que se pode dizer que essa experiência do Deus de Jesus, essa experiência da encarnação humaniza? Porque em sua vida vocês vão manifestando que, de verdade, Deus e o ser humano não são rivais, que não lutam um contra o outro, isto é, que para ter espaço um não tem que esmagar o outro. E vice versa, Deus não cresce pisando o homem e o homem não precisa renegar a Deus para ser ele mesmo.

Isso seria crescer de maneira inversamente proporcional. Mas não é cristão. O que a Encarnação nos diz é o contrário. Deus, ao assumir por dentro nossa vida, nos faz divinos, eleva ao máximo nossas potencialidades. E o que a filosofia tantas vezes e de diversas formas anunciou: o homem é mais do que ele mesmo, mais do que acredita ser, supera-se a si mesmo, como dizia Pascal. Estou seguro que isso não assusta vocês, mas se eu o dissesse em outros auditórios, não faltaria quem dissesse: que barbaridade!

Ele perdeu completamente a fé! O que acontece é que entender o humano dessa maneira é levá-lo até seus limites, é entendê-lo de uma maneira à qual não estamos acostumados. Mergulhar dessa maneira no humano, descer até as profundidades do humano, para aí encontrar Deus é inverter nossa maneira de entender a Deus: não a partir da glória e do triunfo, mas a partir do pequeno. Uma amigo meu, jesuíta, tem um livro que se intitula: “Descer ao encontro de Deus”.

Nosso imaginário nos leva a pensar que é preciso “subir ao encontro de Deus”, como se fosse necessário deixar o humano para alcançar a Deus, mas a Encarnação nos diz o contrário, é preciso descer ao encontro de Deus, porque Deus condescendeu a descer ao nosso encontro. Não se trata de uma teologia inventada pela modernidade; é a carta aos Filipenses que nos diz isso, o hino tão conhecido (Fil 2, 6-11): Jesus, sendo de condição divina, não se agarrou desesperadamente a esse modo de ser, mas aceitou viver essa condição divina de outra forma, esvaziando-se, despojando-se, descendo, identificando-se com o humano, com o mais baixo do humano, como servo até a morte, a ponto de não ser reconhecida sua aparência humana (Is 52, 13).

A descida ao humano, com tal radicalismo, só tem duas possíveis saídas: o desespero, ou admitir que o humano que conhecemos é o humano empobrecido, que para chegar ao humano de verdade temos que distanciar -nos dos condicionamentos que nos habitam. O humano nos chega mediatizado, filtrado pelo contexto familiar, social, cultural, etc todos de uma maneira ou de outra passamos por essa experiência. E o Irmão Carlos também, certamente.

Normalmente nós trabalhamos com uma redução do ‘humano’, empobrecido e desgastado por nossa cultura. Para compreender o ‘humano cristão’ que se revela em Jesus é preciso desprender-se e purificar-se desse humano que nos habita - o humano reduzido, tantas vezes desumano - e descobrir o humano em sua autenticidade.

Porque em Jesus se revela o humano como Deus somente o sonhou e o quis. Por isso, ao vivê-lo em plenitude, Jesus evangeliza o humano, o humaniza.

d) União de contrários?

A missão de viver imersos no mundo com esse ‘espírito’ é unir com a vida dois polos que normalmente separamos (fé e espiritualidade por um lado, a vida por outro) porque nos parecem contraditórios ou pelo menos que se excluem. Mas à luz da encarnação não é assim. Viver e manter essa tensão fecunda é o grande desafio da paradoxal experiência cristã.

No fundo, essa missão é a missão de estar na vida com Jesus e como Jesus. Nada menos e nada mais. E vive-la nessa tensão constante que introduz a vida de Jesus, isto é, num movimento também aparentemente contraditório, que nos leva por um lado a aproximar-nos cada vez mais dos outros, a ser próximos, a estar junto a eles e, por outro lado, nos separa, nos faz ‘diferentes’ como Jesus.

É a ‘diferença cristã’ do humano. Se nós quisermos acostumar-nos com que encontramos cada dia - o humano aplastado e desfigurado - é preciso separar-se daquilo que o mundo quer fazer-nos ver e vislumbrar para além dessa ‘desfiguração’ do cotidiano, o humano ‘transfigurado’ que stá sempre ‘mais além’.

Foi o que levou o Irmão Carlos a buscar expressões diferentes. Primeiro no Marrocos, depois em Israel, mais tarde na Argélia. Mas o que ele queria sempre era “estar junto”; por isso era incapaz de absolutizar o que havia descoberto como se fosse o definitivo.

Sempre ia mais longe, às fronteiras do humano, poderíamos dizer. Essa tensão é muito evangélica e característica da encarnação. Mas quando tentamos levá-la a sério, ela nos deixa como se vivêssemos na intempérie. Não há tendas sob as quais esconder-se. De onde vem essa sensação de viver na intempérie? Talvez porque o conteúdo desta “espiritualidade” é simplesmente a vida, a vida de cada dia naquilo que apresente de mais banal: é esse o conteúdo.

Podem ter a impressão, talvez, de que estou exagerando, ou secularizando demais. Não, o conteúdo da vida espiritual não é algo ‘espiritualizado’, é a vida comum vivida com espírito, com o Espírito de Jesus. Isto é. a vida de cada dia vivida de outra forma, que é a forma de Jesus.

Digam-me se essa espiritualidade não tem futuro num mundo como o nosso. E a linguagem da vida e do ‘estar com’, do testemunho. Estilo de vida que surpreende e chama a atenção, linguagem que todo mundo entende. É inevitável que as pessoas se interroguem: de que vive aquele que vive assim? Isso nos faz pensar na força das palavras que Jesus dirige aos primeiros discípulos que se aproximam timidamente dele: Aonde vive? De que vives? Venham e verão. Não há outra resposta. Porque frente a vida não pode haver respostas feitas. Ou aquilo que afirma João no início de sua primeira carta: “o que vimos, o que ouvimos, o que tocamos com nossas mãos, o que os nossos lhos penetraram, etc é o que queremos transmitir-lhes para que vivam”.

Conclusão

Que podemos concluir de tudo isso? Que para vivê-lo é necessário crer nesta missão, na força que ela tem, no importante que é, e na necessidade de que esta semente volte a ser lançada com toda força e com toda esperança.

Talvez a tarefa que lhes toca é manter viva e aberta essa experiência. Embora às vezes possam ter a sensação de que já se esgotou. Eu creio que é necessário também, como víamos ontem, voltar a referir os conteúdos fundamentais dessa experiência ao itinerário seguido pelo Irmão Carlos. Fazendo sem cessar esse movimento circular (experiência, explicitação em conteúdos, confrontação com o itinerário do Irmão Carlos, experiência, etc) é que nós podemos liberar-nos de formas do passado e reinventá-las. Mas dentro da mesma intuição e do mesmo espírito.

É o que significa reescrever o Evangelho na vida cotidiana. Porque a vida muda as formas de escrevê-lo hão de ser também diferentes. Vocês não vivem nem se vestem como no começo. E é normal (embora seja um aspecto secundário) porque o contexto é outro. A intuição e a espiritualidade do Irmão Carlos não podem ser reduzidas a isso. É preciso ir ao essencial. Como refazer este caminho, sendo plenamente fiéis à intuição do Irmão Carlos? Essa criatividade é o grande desafio que vocês estão se colocando. A tarefa me parece suficientemente grande e apaixonante para que valha a pena correr o risco. Coragem!