A ESPIRITUALIDADE DE C. FOUC. 

A Espiritualidade do Irmão Carlos de Foucauld


Por René Voillaume

Com Jesus, em Nazaré, no deserto e nos caminhos dos homens

“O Padre Carlos de Foucauld, por sua parte, sempre concebeu a sua vida religiosa consagrada como uma participação da forma de vida de Cristo (…)”. Ele deixa tudo para entrar na vida monástica, porque não pode conceber o amor sem uma imperiosa necessidade de viver unicamente para Aquele que ama, de imitá-lo em tudo e de partilhar a sua condição de vida. A regra de vida do irmão Carlos pode resumir-se na sua decisão de imitar Jesus tal como o Evangelho lho revela. É então que descobre no desenrolar da existência terrestre de Cristo como que três maneiras de viver: em Nazaré, no deserto, e pelos caminhos como operário evangélico. Esta intuição tão simples revelou-se nele extraordinariamente fecunda e dominou sua marcha espiritual. O Irmão Carlos esteve constantemente atento para fazer de sua vida uma imi tação sempre mais fiel daquela de seu bem-amado irmão e Senhor Jesus.

Entre estas três maneiras de viver de Cristo, escolheu imitar particularmente a primeira, em Nazaré. Todavia esta escolha não o impede de seguir Jesus também no deserto e nos caminhos da evangelização dos homens. Como poderia ser de outra forma para quem escolheu dar-se a Cristo Jesus cuja vida e missão não poderiam ser perfeitamente compreendidas nem participadas através de um único modo de vida, concebido como excluindo os outros?

Quanto mais você frequentar o irmão Carlos esforçando-se para melhor compreender o fundo de sua alma, mais compreenderá como nele esta intuição dos três modos de vida de Cristo é característica. “Efetivamente, é um dos traços essenciais de sua mensagem”. (Mensagem extraída do livro “Sentinelas de Deus na Cidade”, de René Voillaume. São Paulo: Ed. Paulinas, 1976).


A Vocação


“A minha vocação religiosa nasceu no mesmo momento da minha fé: Deus é tão grande! Há uma diferença tão grande entre Deus e tudo o que não é Ele…” (Carta a Henry de Castries, 14 de agosto de 1901).


A Oração


“Não procura organizar, preparar a fundação dos Pequenos Irmãos do Sagrado Coração de Jesus: apenas vive como se tivesses de ficar sempre sozinho. Se estais em dois, em três, num pequeno número, vivai como se nunca tivésseis de se tornar mais numerosos. Reza como Jesus, tanto quanto Jesus, reservando como ele um lugar sempre muito grande para a oração… Sempre à imagem dele, deixa muito espaço para o trabalho manual, que não é um tempo subtraído da oração, mas doado à oração; o tempo de teu trabalho manual é um tempo de oração. Reza fielmente todos os dias o breviário e o rosário. Ama Jesus de todo o teu coração (dilexit multum), e a teu próximo como a ti mesmo por amor dele… A tua vida de Nazaré pode-se fazer em qualquer parte, viva-a no lugar mais útil ao próximo.” (Meditação de 22 de julho de 1905). 


Para uma meditação profunda do pensamento do irmão Carlos de Jesus:

“Jesus só merece ser amado apaixonadamente. Quando se ama, imita-se”. 

A vida e os ensinamentos do nosso amado Pai Espiritual Charles de Foucauld são respostas e propostas abissais para uma caminhada profunda consigo mesmo, com Deus, com o próximo e contra tantas boçalidades e superficialidades da era pós-moderna. Sua experiência espiritual é algo tremendamente impactante, por isso ela tem atitude forte e grandiosa para os corações desejos de fortalezas infinitas!


Seu axioma: “Gritar o Evangelho com a própria vida”. “Todos os nossos atos devem gritar o que somos de Jesus”.


Frei Inácio José do Vale, FCF

Fraternidade Sacerdotal JesusCáritas - Charles de Foucauld

E-mail: pe.inacio.jose@gmail.com


OUTRO TEXTO:


A ESPIRITUALIDADE DE CARLOS DE FOUCAULD

Espiritualidade de Charles de Foucauld

Charles de Foucauld nasceu em 15 de setembro de 1858 na França. Ele perdeu a fé no início da vida, mas com a idade de 28 teve uma experiência de conversão poderosa. A partir desse momento, toda a sua vida foi fixada em viver o Evangelho e seu amor por Jesus.


Depois de uma variedade de experiências como um monge trapista e um tempo gasto na Terra Santa, ele concebeu uma nova forma de vida religiosa, uma vida mais próxima ao cotidiano dos pobres. Como Jesus de Nazaré, que queria viver no meio do povo, enraizada na cultura, compartilhando a condição daqueles que vivem no dia a dia com o trabalho de suas mãos - daqueles que não têm segurança em tudo e que são os mais pobres dos pobres.


Ele não previu a pregação do Evangelho em palavras como tal, mas pelo choro com o testemunho da sua vida, uma vida vivida em comum a amizade, silêncio e oração. Ele queria ir para além de todos os limites da religião e raça e se tornou conhecido como um "irmão universal", o irmão mais novo de seu amado Jesus. “O seu é lema é gritar o Evangelho de Cristo com a vida”.


Irmão Charles esperava fundar pequenas fraternidades de irmãos... "O que eu sonho é algo muito simples e em número reduzido, semelhante às pequenas comunidades dos primeiros cristãos...” viver a vida de Nazaré, através do trabalho e da contemplação de Jesus... Uma pequena família, uma casa pequena, muito pequena, muito simples “... Este sonho não seria realizado até depois de sua morte”.


Irmão Charles de Jesus morreu em 01 de dezembro de 1916 em Tamanrasset, no meio do Saara. Uma vítima inocente, indefeso de bala de um assassino, ele caiu para a areia como o grão de trigo que morre para que possa levar adiante seus frutos... Em todo o mundo de hoje há muitos grupos pequenos (irmãos e irmãs religiosos) que afirmam como seu pai espiritual – O Beato Charles de Foucauld.

Dizia o irmão Charles: “Jesus só merece ser amado apaixonadamente”.

Oração do Abandono Original (Charles de Foucauld) 

 Pai, entrego-me nas vossas mãos. 

Pai, abandono-me a Vós, confio em Vós.

 Pai, fazei de mim tudo o que for do Vosso agrado. 

Seja o que for que fizerdes comigo, agradeço-Vos!

Obrigado por tudo,

 estou pronto para tudo, 

contanto que Vossa vontade se realize em mim, meu Deus,

 contanto que Vossa vontade

 se cumpra em todas as Vossas criaturas, 

em todos os Vossos filhos. 

Que façam Vossa vontade todos aqueles que Vosso coração ama...

 Nada mais desejo, meu Deus!

Entrego minha alma em Vossas mãos. 

Eu vo-la dou, meu Deus,

 com todo o amor de meu coração,

 porque Vos amo

 e é uma necessidade de amor para mim esta doação, 

esta entrega entre Vossas mãos sem condições, sem limites.

Entrego-me nas Vossas mãos com infinita confiança, pois sois meu Pai...”

(CHARLES DE FOUCAULD)


A ESPIRITUALIDADE DE FOUCAULD NO CONCÍLIO VATICANO II, do boletim 145, de 2013


NOVO ESPÍRITO NA VIDA DA IGREJA


Pe. Daniel Higino Lopes de Menezes


No encerramento da semana de oração pela unidade dos cristãos, em 25 de janeiro de 1959, o papa João XXIII anuncia o Concílio Ecumênico do Vaticano II. Surpresa e perplexidade em todo o mundo. Realiza-se na Igreja um “novo pentecostes”. Em 500 anos de história havia ocorrido apenas 2 concílios e o papa, considerado de transição, agora convoca toda a Igreja para esse momento novo. Torna-se motivo de esperança, compromisso e realização. Duas guerras mundiais e várias crises políticas e econômicas marcam a primeira metade do século XX. 


No meio desse contexto, fervilham no seio da Igreja Católica vários movimentos na expectativa de mudanças profundas. O anseio maior passava no intuito da Igreja responder, à luz da fé, aos principais desafios da modernidade em crise. Para isso, buscava-se a renovação litúrgica tornando-a mais acessível a participação dos fiéis; o espírito de pobreza entre seus ministros e o compromisso com os pobres; o diálogo com a modernidade, o ecumenismo, o diálogo inter-religioso e a inculturação; a missionariedade da Igreja numa perspectiva de anunciar a Boa Nova do Reino de modo testemunhal. Na catequese e na formação dos fiéis toma centralidade a Palavra de Deus, como fonte de toda educação cristã. Retoma-se na Igreja a relação fé e vida.


A abertura da Igreja no horizonte do Concílio Vaticano II vai para além da publicação de seus 16 documentos. Mais importante é o espírito que conduz a vitalidade desse novo momento. Tais movimentos renovadores contaram com aspectos da espiritualidade enraizados nas fontes originárias do cristianismo: o Novo Testamento, os santos padres, os primeiros Concílios. 


Dentre esses sinais salienta-se a vida de Ir. Carlos de Foucauld e as diversas fraternidades formadas à partir do testemunho e dos numerosos escritos deixados por ele. Homem do vento, percorreu Nazaré em busca de Deus, descobriu o último lugar. Abandonou-se nas mãos do Absoluto e tornou-se irmão universal. Foi para o deserto e aprendeu a gritar o Evangelho com a Vida. No encontro com os tuaregues, aprendeu mais que o idioma, nos ensinou a dialogar com as culturas para descobrir a “semina verbi” presentes nelas. Na contemplação, nos deu lições de amor; na libertação de escravos, traduziu em vida o significado do amor e da compaixão pela humanidade. Enfim, aprendeu de Jesus o sentido do mistério da encarnação e da vida em Nazaré.


Extasiado pela espiritualidade e a oração dos irmãos muçulmanos fez disso o mergulho necessário para aprofundar nas águas mais profundas do cristianismo. Sua morte (1 de dezembro de 1916) representou o germinar da semente desse novo caminho apresentado à Igreja em profundo abandono nas mãos do Pai.


Este caminho de espiritualidade alimentou e iluminou a realização do maior Concílio da Igreja. Quando desejamos a Igreja como comunhão, Povo de Deus reunidos no mistério da trindade, como não lembrar do Ir. Carlos? Demorou ele aceitar a ordenação presbiteral, pois a força do seu ministério centrava-se no batismo e no seguimento da vida pobre e humilde de Jesus de Nazaré. Pensava Ir. Carlos, “a ordenação me distancia cada vez mais do ideal de viver o último lugar”. Levar a Eucaristia aos povos mais distantes o convenceu a aceitar a ordenação. Essa busca de tornar-se irmão universal, de propagar a fé nos lugares mais distantes, aos mais pobres, nos dá o sentido da missionariedade da Igreja no Concílio Vaticano II. Evangelizar pelo testemunho, anunciar o Reino, ir ao encontro, representam a virada fundamental para a vida da Igreja. Charles de Foulcauld apresenta-se como precursor desse espírito novo na missão.


Além disso, destaca-se nessa jornada do Ir. Carlos a dimensão do diálogo inter-religioso. Essa dimensão afeta positivamente toda a reflexão da Igreja no Concílio em relação a busca da tolerância e da valorização da diversidade.


Além da vida do Ir. Carlos, as inúmeras fraternidades surgidas após sua morte trouxeram muitos frutos para o Concílio. Na Presbiterorum Ordinis destaca-se o tema da fraternidade presbiteral (PO 8 e 12). Tal vivência entre padres diocesanos, anterior à realização do concílio, constituiu-se um elemento importante a ser incentivado. Sem dúvida, experiências como as Fraternidades Jesus+Caritas e outras semelhantes constituem um novo impulso aos ministérios na vida da Igreja. Outro aspecto vivenciado nas fraternidades oriundo da Ação Católica, refere-se a revisão de vida. Utiliza-se o método Ver-Julgar-Agir de Cardjin na prática cotidiana das fraternidades. Entre os meios da Fraternidade, encontra-se a revisão de vida. Esta deve ocorrer no dia da Fraternidade, e, quando possível, após um dia de deserto.


Cabe perguntar: e hoje, como as Fraternidades podem manter vivo o espírito do Concílio Vaticano II no seio de nossa Igreja? Alguns aspectos destacam, sem dúvida. Manter firme o ideal e a vivência da evangélica opção preferencial pelos pobres de modo a preencher toda a existência do presbítero. Dar testemunho de partilha e solidariedade, não só entre os irmãos empobrecidos, mas buscar viver essa máxima cristã no presbitério. Isso exige intensificar a vida em fraternidade, indo ao encontro não apenas dos iguais, mas também dos diferentes. A partilha deverá incluir igualmente a partilha econômica. Não se tornar mero ativista pastoral, executor de tarefas, super-padre no clero, mas garantir a qualidade da ação evangelizadora com a vida de contemplação e oração.

 

Não se acomodar apenas à pregação sobre o valor do Concílio, mas tornar viva em nossas comunidades as orientações pastorais e o espírito: valorizar o protagonismo dos leigos/as, superar práticas autoritárias e clericais, viver de modo simples, trabalhar pelo empenho ecumênico e pelo diálogo inter-religioso, avançar na renovação litúrgica e na inculturação e não deixar morrer a profecia na Igreja.


Outro aspecto importante para manter vivo o espírito do Vaticano II refere-se à missão. Os presbíteros a cada dia são desafiados a ouvir o chamado do Senhor que clama a ir aos lugares mais distantes. Tornar-se

irmão universal, eis o convite. Há razoável número de presbíteros na Igreja do Brasil, o que nos faltam são sim presbíteros missionários. Dispostos a sair de si e irem ao encontro dos afastados, dos excluídos. 


Atravessar os rincões do egoísmo e das comodidades e se preciso for, atravessar fronteiras, ir ad gentes. É conhecido de todos, existe cada vez uma maior concentração de padres nos grandes centros econômicos e escassez de padres nos lugares mais pobres.


Cabe ressaltar a importância de várias testemunhas entre nós que perseveram no ideal do Ir. Carlos e praticam com convicção e amor o Espírito do Concílio nas comunidades. Dentre estes, estão as Irmãzinhas

de Jesus, muitos presbíteros, alguns bispos e vários leigos/as dispostos/ as a viver com autenticidade o batismo e os diversos ministérios na Igreja.


Peçamos a Deus, ao bem amado Senhor Jesus, a perseverança para que continuem testemunhando com amor a graça de gritar o Evangelho com a Vida.


C. DE FOUC. E OS FUNDAMENTOS DE UMA ESPIRITUALIDADE


FUNDAMENTOS DE UMA ESPIRITUALIDADE INSPIRADA PELO IRMÃO CARLOS DE FOUCAULD

Postado em: 18/12/2020 por: Fraternidad Iesus Caritas


Pe. Nabons-Wendé Honoré SAVADOGO, Burkina


Carlos de Foucauld “empreendeu um caminho de transformação até se sentir irmão de todos os homens e mulheres. [..] Ele orientou o desejo de doação total de sua pessoa a Deus para a identificação com os últimos, os abandonados, nas profundezas do deserto africano”. (Fratelli tutti, 286-287)


A diversidade da família espiritual de Carlos de Foucauld é impressionante. Nela encontramos todos os diferentes estados de vida cristã: fiéis leigos, religiosos e religiosas de vida ativa ou contemplativa, leigos consagrados, sacerdotes e bispos. Todos conseguem obter uma inspiração rica e pertinente na experiência espiritual do Irmão Carlos. Muitas vezes esquecemos os não-cristãos e mesmo aqueles que não são grandes praticantes de uma religião, mas se sentem inspirados pela experiência de Carlos.

O segredo de uma espiritualidade tão profunda e sem fronteiras é, antes de tudo, a fidelidade ao Evangelho. Quanto mais próxima do Evangelho for conduzida a vida de uma pessoa, mais atraente e relevante ela é para todos os cristãos. Além dessa fidelidade ao Evangelho, o Irmão Carlos passou por todos os estados da vida cristã: um fiel leigo que perdeu e recuperou a fé, um monge contemplativo e eremita, um sacerdote “livre” ao mesmo tempo, diocesano e “religioso”, e à sua maneira, um missionário extraordinário. Esta profundidade da experiência espiritual de Carlos de Foucauld implica a existência de elementos básicos comuns a todos os que afirmam fazer parte de sua família espiritual. Tais elementos não devem faltar na vida espiritual de quem deseja seguir Jesus, inspirando-se no modelo foucauldiano.

1. Uma espiritualidade do coração: fazer da religião um amor

Em primeiro lugar, existe amor e misericórdia. O coração, sede e símbolo do amor, é a insígnia do Irmão Carlos, elemento central, distintivo e específico da sua espiritualidade. Desde sua conversão, ele queria que seu coração se tornasse como o de Cristo. Ao longo de sua vida agitada, ele fez tudo que estava ao seu alcance para transformar seu coração e expandir-se de acordo com os limites infinitos do Sagrado Coração de Jesus. Este amor insaciável por Deus e pelos homens é a principal razão de todas as mudanças e transformações inesperadas que aconteceram em sua vida. Em sua oração, ele nunca deixa de pedir a Jesus para trazer seu reino de amor ao mundo. Estamos familiarizados com a Oração do abandono do Irmão Carlos, mas a oração que frequentemente estava em seus lábios era: “COR JESU sacratissimum, adveniat Regnum tuum!” (Sagrado Coração de Jesus, venha o seu reino!). Ele mesmo gostava de dizer que o fundamento da religião e da vida espiritual é o coração e o amor. O que ele escreveu nas regras da congregação que ele queria fundar, ainda é válido para todos aqueles que desejam segui-lo: “Sejamos ardentes de amor como o Coração de Jesus! … Amemos todos os homens” feito à imagem de Deus”, como “este Coração que tanto amou os homens! “… Amemos a Deus, por quem devemos amar os homens, e a quem só devemos amar por si mesmo … Amemos a Deus como o Coração de Jesus o ama, tanto quanto possível!” Sobre este assunto do amor, Carlos estava convencido de que se deve amar sem limites e sem nenhuma restrição. Ele dizia: “O amor é a perfeição; podemos superar em tudo, exceto no amor: no amor nunca podemos ir longe o suficiente…”1.

2. A Eucaristia celebrada, adorada e vivida

Podemos tomar emprestada a consagrada expressão do Concílio Vaticano II para dizer que a Eucaristia é a fonte e o ápice de toda a experiência espiritual de Carlos de Foucauld. Nesta experiência espiritual, a presença da Eucaristia é fundamental, transversal e inevitável a tal ponto que se pode dizer que a sua vida se desenvolveu como uma única contemplação e uma experiência cada vez mais profunda da Eucaristia. A Eucaristia marcou do início ao fim tudo o que ele viveu espiritualmente: sua conversão, sua vida de oração, sua relação com Jesus, a movimentada trajetória de sua vocação, sua pastoral da bondade, sua fraternidade universal, sua visão missionária, sua presença no Saara, cada momento de sua vida, sua morte …

Não se poderia ser discípulo do Irmão Carlos sem um amor cada vez maior por Jesus presente na Eucaristia, celebrada e adorada. Apesar de sua grande devoção eucarística, ele nunca deixou de tomar decisões para amar mais e mais a Eucaristia. Como ele, nós também devemos renovar constantemente o nosso amor pela Eucaristia. Precisamos fazer nossa esta decisão que ele tomou durante um de seus muitos retiros espirituais: “Estar aos pés do Santíssimo Sacramento sempre que a vontade de Deus, isto é, um dever muito certo, não me obrigue a afastar-me dela … […] Nunca ficar sem receber a Sagrada Comunhão, sob qualquer pretexto” 2.

3. A fraternidade universal

O Beato Carlos de Foucauld encontrou na Eucaristia a fonte da fraternidade universal. Tendo percebido claramente que todo ser humano é, de uma forma ou de outra, uma parte, um membro do corpo eucarístico de Cristo, ele deduziu daí a necessidade de amar todos os homens sem distinção: “devemos amar a todos os homens, venerá-los, respeitá-los, incomparavelmente, porque todos são membros de Jesus, fazem parte de Jesus…”. Considerando também que a Eucaristia é o sacramento no qual o amor de Deus se manifesta de maneira suprema, ele pensa que a sua recepção deve tornar-nos ternos, bons e cheios de amor por todos os homens. O Papa Francisco acaba de nos dar o Irmão Carlos como modelo de fraternidade e amizade universal nestes termos: Carlos de Foucauld “fez um caminho de transformação até se sentir irmão de todos os homens e mulheres. [..] Ele orientou o desejo de doação total de sua pessoa a Deus para a identificação com os últimos, os abandonados, nas profundezas do deserto africano” (Fratelli tutti, 286-287). Um desafio inevitável para qualquer discípulo do Irmão Carlos é esta transformação em irmão universal, buscando incessantemente um amor sem fronteiras para se tornar irmão universal de todos os homens e mulheres.

4. Amor pelos mais pobres

Para o Irmão Carlos, a adoração e a ternura que temos pelo Corpo de Cristo na celebração e na adoração eucarística devem ser a mesma veneração e a mesma ternura pelos pobres. Ele tinha o sentimento de que, cada vez que dizíamos “isto é o meu corpo, isto é o meu sangue”, é o mesmo Senhor que disse na parábola do juízo final que tudo aquilo que tivermos feito ao mais pequeno de seus irmãos, é para Ele que nós fizemos. Quando ele permanecia durante longo tempo diante do Santíssimo Sacramento em Beni Abbes, e alguém batia na porta, ele deixava o sacrário para ir ao encontro da pessoa que vinha visitá-lo. É o mesmo Cristo que ele encontrava no Santíssimo Sacramento e nos pobres que o visitavam. Para ficar com os mais pobres, para chegar às almas mais distantes, aceitou enormes sacrifícios: a solidão, a pobreza, a insegurança, a impossibilidade de celebrar a Eucaristia …

5. A sobriedade de vida: penitência, abjeção, pobreza, partilha

Para imitar Jesus em sua descida ao último lugar, por meio da encarnação e do sacrifício da cruz, Carlos de Foucauld levou uma vida de abjeção e intensa mortificação. Embora, às vezes, em sua vida tivesse que amenizar suas mortificações, o irmão Carlos permaneceu um grande asceta ao longo de sua vida. A penitência e a mortificação já não estão mais tão presente nas nossas práticas espirituais e no nosso mundo consumista, mas a figura do Irmão Carlos nos lembra constantemente o convite de Jesus para segui-lo em sua descida à nossa humanidade e em seu sacrifício na Cruz. Como reivindicar a própria escola espiritual sem uma certa dose de penitência, ou pelo menos de sobriedade? Precisamos de muita sobriedade para remar contra a maré de consumismo que tanto desfigura a beleza de nosso mundo e ameaça destruir nossa mãe terra. Uma espiritualidade de penitência e sobriedade constitui um verdadeiro antídoto contra qualquer uso excessivo e abusivo dos bens que a Providência divina coloca à nossa disposição.

6. A contemplação da beleza de Deus na natureza

Já dissemos anteriormente que a vida de Carlos se desenvolveu como uma contínua contemplação da presença de Jesus na Eucaristia e na Sagrada Escritura.

Diariamente, Carlos passava longas horas contemplando a Deus, olhando para Ele com amor e ternura, em oração. Ele foi uma pessoa sempre apaixonada pelo esplendor e pela beleza do infinito amor de Deus. Apesar desta intensa vida de contemplação, Carlos não era indiferente à natureza, também sabia encontrar nela o esplendor da beleza divina. Ele manteve esse senso de beleza na criação por toda sua vida. Ele dizia: “Admiremos as belezas da natureza, todas tão belas e tão boas, pois são obra de Deus. Elas nos levam, imediatamente, a admirar e louvar seu autor. Se a natureza, o homem, a virtude, se a alma é tão bela, então quão bela deve ser a beleza de alguém de quem essas belezas emprestadas são apenas um pálido reflexo! ” (Meditação sobre os Salmos, p. 66 ou: Ch. D. Foucauld, Rencontres à themes, Nouvelle Cité 2016. Capítulo: beleza)

7. Um zelo missionário inalterável

A vida espiritual do irmão Carlos foi marcada por um zelo missionário infalível. Assim que ele descobriu sua vocação de ser missionário do banquete eucarístico para os mais pobres, os mais distantes e os mais famintos – hoje diríamos os mais “periféricos” – não parou de rezar e trabalhar pela missão. Para que o Evangelho seja conhecido e anunciado, ele dizia estar disposto a sacrificar tudo para “ir até o fim do mundo e viver até o último dia …”. Qualquer que seja a forma de nosso estado de vida, podemos seguir autenticamente o irmão Carlos sem querer que o Evangelho e a Eucaristia sejam conhecidos e amados em todo o mundo?

Para terminar como começamos, reafirmamos que, com Carlos de Foucauld, nos deparamos com uma espiritualidade quase inesgotável pela sua ligação direta com o Evangelho. Delineamos apenas alguns dos elementos básicos de sua experiência espiritual. Cabe a cada um questionar-se sobre o lugar e a extensão desses elementos centrais e fundamentais em sua vida espiritual pessoal. Sua presença e seu aprofundamento podem ser uma indicação da autenticidade de nossa fidelidade à experiência espiritual do Irmão Carlos.

Pe. Savadogo Nabons-Wendé Honoré

Ouahigouya (Burkina Faso), dezembro de 2020.

PDF: Text 3, port. BR. Fundamentos de uma esprititualidade inspirada por Charles de Foucaud


ESPIRITUALIDADE CHARLES DE FOUCAULD E S. FRANCISCO

FRANCISCO DE ASSIS (1181-1226)

E CHARLES DE FOUCAULD (1858-1916)


Francisco e Charles duas grandes figuras da espiritualidade ocidental. Homens que fizeram uma grande experiência do absoluto de Deus e de sua Kenosis na Encarnação do Verbo. Ambos têm sua origem em famílias abastadas, da aristocracia. Viveram em séculos diferentes, distantes em torno de 700 anos. Ambos tiveram a influência dos contextos socioculturais e espiritualidades de suas épocas.

Francisco viveu numa encruzilhada histórica entre os séculos XII e XIII, tempos de crises históricas, cultural, social, econômica e religiosa. Desde a antiguidade cristã a espiritualidade cristã é marcada pelo acento da divindade de Cristo, desde as lutas contra o arianismo que negava a igualdade entre o Filho e o Pai, ofuscando assim o rosto humano de Cristo, realçando a tendência do poder e autoridade de “Nosso Senhor”, legitimando também as estruturas sociais marcadas pelos senhores e vassalos e o modelo de Igreja fortemente hierarquizada.

Francisco evoca e celebra a grandeza e a onipotência de Deus, o Altíssimo, e o Senhorio e a divindade de seu Filho. Ele tinha a nítida consciência da fé profunda na condição divina de Cristo. Por isso será profundamente afetado ao encontrar com a realidade belíssima do hino cristológico da Carta aos Filipenses: “Ele tinha a condição divina e não considerou o ser igual a Deus como algo a que se apegar ciosamente. Mas esvaziou-se a si mesmo e assumiu a condição de servo, tomando a semelhança humana. E, achado em figura humana, humilhou-se e foi obediente até a morte, e morte de cruz!” (Fl 2,6-11). Francisco será transformado num enamorado, apaixonado por esse Deus que não calculou nem mediu amor por toda a humanidade, abaixando-se, esvaziando-se, fazendo-se pobre e humilde servo, despojando-se de sua grandeza e majestade do nascimento até a morte de cruz. Deus todo-poderoso sendo rico escolheu a pobreza, tornou-se pobre, frágil, indefeso e peregrino ao assumir a nossa corporeidade. O Filho de Deus não apenas se fez carne, pessoa humana, mas humildemente não teve vergonha de identificar-se com os menores e os últimos da sociedade, fazendo-se servo, especialmente com a imagem do Lava-pés, aparecendo como servidor.

O mistério da Encarnação que encantou Francisco está na raiz de toda a sua originalidade e contribuição decisiva para os rumos sucessivos da espiritualidade cristã ocidental. Francisco de Assis assinala uma virada na espiritualidade, na teologia e na ascética, justamente porque seu olhar contemplativo é sempre centralizado no Deus que é Homem.

Outro aspecto original de Francisco é contemplar o sofrimento de Cristo: ele interpreta a Paixão e morte na Cruz em primeiro plano como expressão máxima da revelação do amor e condescendência divinos. Encantando-se com a bondade de Deus, seu coração será pleno de compaixão e de suave gratidão, o que extravasará num modo radicalmente terno de relacionar-se com os outros e com todas as criaturas. O coração de Francisco percorre o caminho de identificação com a dor do outro, do sentir junto, sofrer em comunhão, especialmente sofrer com os pobres e sofredores.

Intensamente relacionada com a “mística da Encarnação” e com o “descobrimento” da humanidade de Cristo está a devoção Eucarística, que, nos séculos XII e XIII, ganha contorno e expressões novos, tanto no campo da reflexão teológica como naquele da devoção.

No conjunto dos seus escritos e nas fontes hagiográficas sobre ele, fica clara sua compreensão profunda acerca das Escrituras, compreendidas não como meros textos históricos, mas como presença viva e vivificante de Cristo e com a convicção firme de que Cristo fala permanentemente através de sua Palavra.

No insondável mistério do Filho de Deus, que, sendo onipotente e rico, fez-se frágil e pobre nesse mundo, encontra-se o fundamento primeiro da radical pobreza e da absoluta mudança de classe social.

Outro ponto de referência prática da vida de pobreza para Francisco são os pobres concretos com os quais se encontra nas periferias de Assis e das outras cidades pelas quais passa. Ele não idealiza a pobreza, mas a vive em permanente sintonia com a vida de privações e de agruras dos tantos homens e mulheres de seu tempo. 

Cristo não apenas fez-se pobre, mas também humilde, servo de todos. Para Francisco a humildade é a expressão da pobreza interior e fonte de toda autêntica pobreza externa, uma Kenosis interior, uma desapropriação de toda forma de orgulho, de vaidade e de busca de autoafirmação através do reconhecimento pelos outros e da recepção de cargos e ofícios, reconhecendo que todos os bens procedem do Senhor, e por isso não buscar elevar-se e andar à procura de glórias mundanas para seguir a Cristo.


A “MÍSTICA DA ENCARNAÇÃO EM CHARLES DE FOUCAULD

O contexto vital de Charles de Foucauld está marcado por muitos episódios sintetizados na Revolução Francesa (1789) e suas consequências políticas e culturais que invadiram a Europa e marcaram os seus rumos e horizontes históricos.

Através dos escritos e do percurso histórico de Charles de Foucauld, podemos constatar uma linha de continuidade e identificação com a espiritualidade própria de sua época, com suas devoções e práticas a elas concomitantes. Todavia, surpreende-nos com os elementos de descontinuidade, com os aspectos originais e muito peculiares de seu modo de contemplar o Filho de Deus em sua humanidade. A leitura assídua e orante dos textos bíblicos lhe permitirá beber diretamente nas fontes do cristianismo e encontrar, com êxtase de um enamorado, o mistério central e original da Kenosis, da afirmação sempre desconcertante do Verbo, que se esvazia de sua onipotência e grandeza, assumindo a condição humana e suas vicissitudes próprias. Essa mesma ligação afetiva e efetiva às Escrituras lhe livrará de todos os desvios e acentos demasiados na espiritualidade, predominante na comunidade eclesial de seu tempo.

Um homem enamorado pelo mistério da Encarnação

Aconteceu um grande impacto e certa sedução no jovem oficial francês Charles de Foucauld a fé dos muçulmanos com os quais teve contato durante sua “exploração” no Marrocos (1883-1884). O encontro com o Deus Único do monoteísmo absoluto islâmico o provocara e o desinstalara. Ele havia perdido a fé em uma adolescência tumultuada e cheia de frivolidades, e agora se encontrava diante de homens fortemente impregnados pela crença em Alá, “Deus santo e grande”, e à total submissão a Ele, caracterizada pela adoração e reverência constantes.

Sua fé cristã é retomada e aceita depois daquela inesquecível e decisiva confissão com o sábio e prudente Padre Huvelin na Igreja Santo Agostinho, de Paris, em outubro de 1886 e sua peregrinação à Terra Santa, proposta pelo mesmo confessor e diretor espiritual, realizada quase dois anos depois (novembro de 1888 a janeiro de 1889), irá assinalar a plenitude de sua conversão, de sua adesão à fé em Jesus Cristo. Até aquela viagem intercalava a leitura do Evangelho com a do Alcorão.

A humildade e a ternura insondáveis de Deus manifestadas na Kenosis (esvaziamento) do Filho, com a qual Charles deparou-se concretamente na Palestina, tornar-se-ão seu projeto de vida, um ideal a ser perseguido e abraçado sem retorno e titubeações. Torna-se aos trinta anos de idade, mais do que decidido a percorrer o caminho traçado por Jesus, a fazer como Ele fez: descer, esvaziar-se, tornar-se pequeno, abaixar-se sempre mais numa vida de radical ex-propriação e de condição desprezível e humilde.

Seus escritos revelam uma paixão ardorosa e contagiante pelo Verbo feito carne. Procurará imitar a Jesus em toda sua vida. 


A imitação é inseparável do amor... Eu não posso conceber

o amor sem um desejo imperioso de conformidade, de semelhança.


A prerrogativa de Nazaré e da vida escondida de Jesus

O encontro com a pequena Nazaré, onde Jesus esteve como anônimo desconhecido durante cerca de trinta anos, marcará indelevelmente o jovem peregrino. Nazaré lhe causará um impacto com a força de um golpe desferido bruscamente. Nazaré no final do século XIX era marcada pela pobreza e precariedade, em contraposição ao fausto e imponência da capital francesa daquela época. Essa vila, sob a dominação turca, situada a 350m de altitude, contava mais ou menos 6.000 habitantes, católicos, ortodoxos e muçulmanos. Sua situação bem podia recordar a Nazaré do primeiro século da era cristã.

Foucauld lembrará em Nazaré as palavras de Pe. Huvelin de que o Senhor Jesus ocupou de tal maneira o último lugar que ninguém jamais poderá tomar. E estas ficaram gravadas inviolavelmente em sua alma. 

Ao comentar Lucas 2,51, afirma: Ele desceu: em toda a sua vida, não fez mais que descer: descer encarnando-se, descer ao se fazer pequena criança, descer obedecendo, descer ao se fazer... pobre, exilado, perseguido... colocando-se todos os dias no último lugar... Veio a Nazaré, lugar de sua vida oculta, da vida ordinária, da vida em família, de oração, de trabalho, de desprezo, de virtudes silenciosas... da qual nos deu o exemplo durante trinta anos...

Juntos aos Tuaregues em Tamanrasset, última etapa de sua vida, Nazaré permanecerá como um projeto inalterável, cada vez mais inserido em meio às populações autóctones profundamente marcadas pela miséria.

Charles de Foucauld encontrará sempre, na adoração e na comunhão frequentes, o eixo radiante de onde brota sua força e de onde parte sua incrível disposição para amar terna e eficazmente todas as pessoas. Ele afirma que no Tabernáculo há “Jesus vivo perto de nós”. A Eucaristia está para ele indissociavelmente ligada ao mistério da Encarnação.

Desde o princípio passava horas diante do sacrário cultivando a intimidade com o Senhor e exercia a prática da adoração noturna, participava e celebrava a Eucaristia com piedade e zelo que chamavam a atenção dos circundantes. Irmão Charles viverá uma autêntica espiritualidade eucarística, uma vida que se alimenta da Eucaristia e se faz Eucaristia, como bem apresentou São João Paulo II.

Expressões e consequências dessa “mística”

Charles de Foucauld procurou, desde o primeiro momento de sua conversão, insistentemente seguir e imitar Jesus, percorrer o caminho e itinerário vivido e proposto por Ele. O homem de origem nobre e aristocrática, outrora situado no cume da escala social parisiense de seu tempo, dirá que sua vocação é “descer” e o fará minuciosamente até a identificação total com a população de uma aldeia perdida e desprezada do Saara, encarnando-se ele próprio naquela realidade.

Charles vai pautando a sua vida e suas decisões à luz da Palavra, que lhe fala do “Modelo Único”. Todo o discernimento que realiza, todas as decisões e mudanças de plano que assume, num processo sempre crescente de identificação com Cristo, serão provocados pela nova luz que emerge da Palavra de Deus, deixando que seja essa Palavra a guiar-lhe os passos.

Após a exploração do Marrocos já está com disposições e a procura do essencial, mas será depois do encontro pessoal com o Cristo pobre e humilde da Encarnação que a pobreza será abraçada com uma radicalidade própria de quem fez uma experiência totalizante e absoluta. Será sempre um homem extremado e rigoroso na observância dessa virtude que considera imprescindível para quem quer percorrer a estrada de Jesus. Dirá que “os bens terrestres são como uma bagagem incômoda no caminho da perfeição”. Segundo Charles uma pessoa que se faz pobre e desapegada das coisas torna-se real e totalmente livre, “leve para levantar voo ao céu”.

A opção de Deus pelos pequenos e “por aqueles que o mundo rejeita” será uma chave de leitura constante, tanto da sua leitura dos textos do Antigo Testamento como daqueles neotestamentários. O “Deus dos pobres, dos infelizes, dos menores e dos últimos” revelou plenamente sua bondade infinita na Encarnação.

A fé na Encarnação leva Charles a reconhecer que este mistério realça a dignidade e o valor de toda pessoa humana, independente de etnias, credos ou de quaisquer outros aspectos distintivos e todos tornam-se irmãos no “Irmão Maior” Jesus Cristo e filhos do mesmo Pai terno e bondoso. Não trata os muçulmanos como inimigos a serem combatidos e convertidos sob força, mas como irmãos e amigos. Irá propor sempre a doçura e a bondade como fundamentais no contato com eles.

Diante do perigo da insurreição das tribos vizinhas, o Irmãozinho rejeitou a proposta dos militares franceses de abandonar os tuaregues, preferindo permanecer com eles até o fim, até o momento derradeiro de sua entrega, pois “amava os pobres no meio dos quais vivia há doze anos e não queria abandonar lhes no meio do perigo”. Sua morte será lamentada não só pelos familiares consanguíneos, mas por aqueles irmãos junto aos quais ele escolheu viver e aos quais amou sem reservas.

Essa mística da Encarnação, sedimentada na leitura das fontes bíblicas, particularmente evangélicas, e nutridas na Eucaristia, não deixará de assinalar consequências decisivas em Francisco e Charles. Isso se concretiza particularmente na pobreza absoluta que os torna livres e leves para seguir o Amado, na solidariedade e cuidado especiais para com os empobrecidos e sofredores e na vivência de uma fraternidade sem fronteiras, pautada pela acolhida cortês e amável de todos os homens e mulheres, vistos indistintamente como irmãos e irmãs. 

Ambos tiveram um ponto de partida e de referência comum: o Cristo em sua Kenosis. A humildade e pobreza que encerram o mistério da Encarnação estão na origem da conversão de ambos e serão o encanto que aproximará Charles de Francisco, que os fará ser comparados por tantos e, ao mesmo tempo, os tornará fascinantes e de uma atualidade que questiona e provoca os discípulos de Jesus ainda hoje.

A Missão e Evangelização hoje, como sempre, comportam o desafio da Kenosis, da Encarnação, que passa necessariamente pelo despojar-se, pelo “desapego e liberdade diante dos poderes deste mundo; numa palavra, testemunho de santidade”. Dois mil anos de cristianismo ensinam que, cada vez que a Igreja cai na tentação do poder e da riqueza, afasta-se do Evangelho, por que afasta da sua originalíssima e fundamental novidade encerrada no mistério do Deus que se fez “pobre e peregrino” e “humilde carpinteiro em Nazaré”.

(Texto extraído de: Breis, Dom Beto, ofm, Francisco de Assis e Charles de Foucauld, enamorados do Deus humanado, Paulus, 2017.)

Quatis,RJ, 16.02.23.

Pe. Gildo Nogueira Gomes