TRÍDUO PASCAL

TRÍDUO PASCAL: 5ª , 6ª E SÁBADO 

CEIA DO SENHOR

28/03/2024

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AS LEITURAS DESTA PÁGINA E DO MÊS TODO


1ªLeitura: Êxodo 12,1-8.11-14

Salmo Responsorial 115(116B) R- O cálice por nós abençoado é a nossa comunhão com o sangue do Senhor.   

2ª Leitura: 1 Coríntios 11,23-26

Evangelho: João 13,1-15

1-Antes da festa da Páscoa. Jesus sabia que tinha chegado a sua hora de passar deste mundo para o Pai; tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim. 2Estavam tomando a ceia. O diabo já tinha posto no coração de Judas, filho de Simão Iscariotes, o propósito de entregar Jesus. 3Jesus, sabendo que o Pai tinha colocado tudo em suas mãos e que de Deus tinha saído e para Deus voltava, 4levantou-se da mesa, tirou o manto, pegou uma toalha e amarrou-a na cintura. 5Derramou água numa bacia e começou a lavar os pés dos discípulos, enxugando-os com a toalha com que estava cingido. 6Chegou a vez de Simão Pedro. Pedro disse: 'Senhor, tu, me lavas os pés?' 7Respondeu Jesus: 'Agora, não entendes o que estou fazendo; mais tarde compreenderás.' 8Disse-lhe Pedro: 'Tu nunca me lavarás os pés!' Mas Jesus respondeu: 'Se eu não te lavar, não terás parte comigo'. 9Simão Pedro disse: 'Senhor, então lava não somente os meus pés, mas também as mãos e a cabeça.' 10Jesus respondeu: 'Quem já se banhou não precisa lavar senão os pés, porque já está todo limpo. Também vós estais limpos, mas não todos.' 11Jesus sabia quem o ia entregar; por isso disse: 'Nem todos estais limpos.' 12Depois de ter lavado os pés dos discípulos, Jesus vestiu o manto e sentou-se de novo. E disse aos discípulos: 'Compreendeis o que acabo de fazer?' 13Vós me chamais Mestre e Senhor, e dizeis bem, pois eu o sou. 14Portanto, se eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros. 15Dei-vos o exemplo, para que façais a mesma coisa que eu fiz. Palavra da Salvação.


DOM JÚLIO ENDI AKAMINE, ARCEBISPO DE SOROCABA SP

Jo 13,1-15

O momento de maior seriedade de nossa existência é o momento da morte. Quem já teve a oportunidade (ou a graça) de acompanhar uma pessoa prestes a morrer sabe que diante da morte todos nós assumimos uma atitude de extrema seriedade. Todas as palavras, as promessas, as recomendações, os conselhos, os pedidos e os gestos se revestem da mais absoluta gravidade. Com a morte ninguém brinca: trata-se do momento em que toda nossa caminhada neste mundo se concentra; momento em que todos os gestos e palavras deixam de ser provisórios e reformáveis, tudo se torna definitivo. A iminência da morte torna nossas atitudes urgentes: se temos algo a dizer ou fazer devemos fazer logo, não nos resta muito tempo.

Hoje somos chamados a prestar atenção às últimas palavras de Jesus, a ouvir suas últimas confidências, a contemplar seus últimos gestos carregados da mais evidente seriedade. Jesus está prestes a entregar sua vida em sacrifício na cruz, mas, antes de partir deste mundo para o Pai, ele reúne os apóstolos e lhes transmite o seu testamento, cumpre com eles e diante deles o gesto mais estupendo de sua vida: lava-lhes os pés, parte o pão, passa o cálice revelando que eles são seu corpo dado e seu sangue derramado. Até mesmo uma pessoa que não tem fé reconheceria a gravidade desta hora e a importância destes últimos momentos.

Qual é o sentido desta última ceia? No evangelho de João encontramos uma pista. “Depois de ter amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim”. Hoje Jesus atinge o extremo do amor, chegou até o fim (fim-finalidade) de uma vida inteiramente dedicada a amar. Por amor ele se fez servo, assumindo nossa condição humana na encarnação. Por amor ele pregou o evangelho aos pobres dizendo serem eles os prediletos de Deus. Por amor ele percorreu as estradas da Judéia, não teve lugar onde repousar a cabeça, foi perseguido. Por amor ele curou inúmeros doentes, até o ponto de não ter tempo sequer para comer. Por amor aos pecadores ele os perdoou, sentou-se à mesa com eles, entrou em suas casas. Jesus não viveu para si, viveu para os outros; não quis ser servido, foi o servidor de todos. Toda essa existência de serviço e de amor chega ao seu ápice na última ceia. Por isso ele lava os pés dos discípulos.

O lava-pés não foi um gesto vazio e isolado. Durante toda vida Jesus lavou os pés. Mas é na última ceia que ele se realiza de modo definitivo. Por isso Jesus pode ser chamado de Servo de Javé. Somente a ele cabe este nome: aquilo que ele fez durante a vida, ele o fez até o fim: amou até o fim.

Toda a vida de Jesus pode se definir como doação de si aos outros. Jesus não teve nada para si: nem sua sabedoria, nem sua força, nem seu tempo, tampouco sua vida. Sua vida foi consumida, foi gasta, foi dada aos outros. Ora, é na última ceia e na cruz que esta doação chega até o fim: consumiu a vida se doando aos outros até não sobrar mais nada, até chegar ao ponto do esvaziamento total, até derramar todo o seu sangue. Nada sobra, tudo é doado aos outros. Para realizar e significar esta doação até o extremo, Jesus parte o pão e passa o cálice: são seu corpo dado e seu sangue derramado, sua vida dada até o fim para nós. O que Jesus nos comunica no pão e no cálice é sua própria vida: a eucaristia é o meio mais genial do amor extremado de Jesus pelos seus que estão no mundo.

E ele não se contentou em se doar em parte ou durante certo tempo. Ele não coloca limites na doação. Ele quis se doar inteiramente, e, para tornar definitiva esta doação, instituiu este sacramento como memorial perpétuo de seu sacrifício na cruz. Assim a doação total de Jesus não se dá somente num momento limitado de nossa história, mas se universaliza e se eterniza com a instituição deste sacramento. Na Eucaristia, Jesus continua se doando todo inteiro em todos os lugares e em todos os tempos. 

Peçamos hoje a graça de estar atentos ao amor que o Senhor nos oferece, de compreender que devemos voltar nossa atenção a Ele e não a nós mesmos. Aceitando o amor seremos purificados, santificados.


Quinta Feira Santa - Lava Pés - Carlos Mesters, Mercedes Lopes e Francisco Orofino


OLHAR O ESPELHO DA VIDA 

Vamos refletir sobre o texto que descreve o último encontro de Jesus com seus amigos. Vamos fechar os olhos e imaginar que estamos na sala com Jesus, ao lado de Pedro. Durante a leitura, vamos prestar atenção no gesto de Jesus e na reação de Pedro. 

SITUANDO 

O Evangelho de João tem uma dinâmica que envolve os leitores e as leitoras. No primeiro livro, o Livro dos Sinais (1,19 a 11,54), vemos a revelação progressiva que Jesus fazia de si e do Pai. Pouco a pouco, a gente ficou sabendo quem é Jesus e qual a missão que recebeu do Pai. Paralelamente a esta revelação, apareciam a aceitação por parte do povo e a resistência por parte das autoridades religiosas. No fim, o balanço foi o seguinte. O grupo fiel dos discípulos e das discípulas, mesmo sem entender tudo, aceitou Jesus, acreditou nele e se comprometeu com ele. 

O segundo livro, o Livro da Glorificação, tem outra dinâmica. Na primeira parte (Jo 13 a 17), Jesus se reúne com o grupo fiel na última ceia. Na segunda parte (Jo 18 e 19), o outro grupo toma as providências para executar o plano de matar Jesus. Na terceira parte (Jo 20 e 21), Jesus ressuscitado reencontra a comunidade e a envia em missão, a mesma que ele recebeu do Pai. 


COMENTANDO 

João 13,1 – A passagem, a páscoa de Jesus

Finalmente, chegou a Hora de Jesus fazer a passagem definitiva deste mundo para o Pai. Esta passagem através da morte e ressurreição é motivada pelo amor aos amigos: “Tendo amado os seus, amou-os até o fim!” É o êxodo, a páscoa de Jesus, que vai abrir a passagem para todos nós, de volta para o Pai.

João 13,2-5 – O lava-pés: dois contrastes

Chama a atenção a maneira contrastante como João apresenta a cena do lava-pés. Ele diz que Jesus e os discípulos se encontraram à mesa numa refeição. Para os judeus, a comunhão de mesa era um momento de muita intimidade, onde só participavam os maiores amigos. Mas aqui, Judas, que já tinha decidido entregá-lo, está presente e participa. O amor de Jesus é maior. Ele aceita Judas na mesa. Este é o primeiro contraste. Há outro, Jesus veio do Pai e volta para o Pai. Mesmo sendo de condição divina, ele assume a atitude de empregado e de escravo. Coloca um avental e começa a lavar os pés dos discípulos. Começa a realizar a profecia do Servo de Deus (Is 42,1-9). É a imagem de Deus servidor que contrasta com a imagem do Deus todo-poderoso. 

João 13,6-11 – Reação de Pedro

Pedro reage. Não quer aceitar que Jesus lhe lave os pés. Jesus diz que, se Pedro não aceitar que lhe lave os pés, não vai poder ter parte com ele. O que significa isto? É que Pedro tinha dificuldade em aceitar Jesus como Messias Servo que sofre. Pedro queria um Messias  Rei que fosse forte e dominador. Nos outros evangelhos, Pedro recebe a crítica de Jesus: “Vai embora, Satanás” (Mc 8,33). Ele tem que mudar de ideia e aceitar Jesus do jeito que Jesus é, e não um Jesus de acordo com o seu próprio gosto. 

João 13, 12-15: Bem aventurança da prática

Depois de lavar os pés dos discípulos, Jesus tira o avental, recoloca o manto, senta novamente na cabeceira da mesa e começa a comentar o gesto. Ele pergunta: “Vocês entenderam o que eu fiz?” Parece que não tinham entendido, começando por Pedro. E continua: “Se eu, sendo mestre e senhor, levei os pés de vocês, vocês também devem lavar os pés uns dos outros”. Em outras palavras, quem quer ser o maior deve ser o menor e o servidor de todos. Aqui, nesta prática humilde do servo está a raiz da verdadeira felicidade: “Se vocês compreenderem isto e o praticarem serão felizes!” Diz a  Primeira Carta de João: “Filhinhos, não amemos com palavras nem com a língua, mas com ações e em verdade” (1Jo 3,18).


ALARGANDO 

A última ceia e o lava-pés no Evangelho de João 

Mateus, Marcos e Lucas descrevem como Jesus instituiu a Eucaristia durante a última ceia. João descreve a instituição a Eucaristia. Será que esqueceu ou achou que não era importante? É que João tem a sua maneira de descrever a Ceia Eucarística. Ela está no capítulo 6, onde fala da multiplicação dos pães para o povo (Jo 6,5-15). Está no longo discurso sobre o Pão da Vida (Jo 6,22-71). Está aqui no capítulo 13, onde insiste no serviço amoroso, simbolizado no lava-pés (Jo 13,1-17). Está no capítulo 19, onde descreve a morte de Jesus como cordeiro pascal (Jo 19,31-37). 

A ceia narrada no Evangelho de João é bem diferente daquela narrada nos outros evangelhos. Aqui no Quarto Evangelho não se fala em comer o corpo e beber o sangue de Jesus num memorial até que ele venha (1Cor 11,23-26). No Evangelho de João, o pão e o vinho são substituídos pelo gesto de lavar os pés de seus discípulos e discípulas. Gesto de amor e de entrega que precede e conduz à sua glorificação. “Tendo amado os seus, Jesus amou-os até o fim” (Jo 13,1). Este mandamento de serviço e de amor é que purifica qualquer pessoa que queira seguir Jesus (Jo 15,3). 

O gesto de lavar os pés não é feito antes da ceia, mas durante a ceia. Jesus não quer fazer um mero gesto de purificação ou de higiene. Durante a ceia ele se levanta, tira o manto, que é um gesto de entrega e de serviço, e ele mesmo derrama a água na bacia para lavar os pés de seus discípulos. Quando chega diante de Pedro, este toma o gesto de Jesus como se fosse de fato um gesto ritual de purificação e não aceita que Jesus lhe lave os pés. Jesus corrige a interpretação de Pedro e dá o sentido verdadeiro. O gesto do lava-pés significa que a verdadeira purificação acontece na entrega e no serviço. Significa também que Jesus é o Messias-Servo, anunciado por Isaías. Por isso, se Pedro não aceitar tal gesto, não poderá estar em comunhão com Jesus. Para Jesus, os que aceitam sua mensagem, suas palavras e seus gestos, estão puros e prontos para o Reino. O que purifica a pessoa não é a observância da Lei, mas sim a prática das palavras de Jesus. Quem for capaz de amar como Jesus amou, receberá o Espírito que é serviço gratuito aos irmãos e irmãs. Este exemplo ele nos deixou. Mas na ceia nem todos estavam puros. O adversário se fazia presente em Judas. Mesmo assim, Jesus lava os pés de Judas antes que ele saia para cumprir sua missão. O amor vence o ódio. 


Quinta-feira Santa (Ceia do Senhor) - Celso Loraschi


I. INTRODUÇÃO GERAL

O povo de Israel faz memória dos atos libertadores de Deus ao longo de sua história. A Páscoa israelita é celebração da memória do grande acontecimento do êxodo. Deus suscita o movimento dos escravizados e os põe em caminhada rumo a uma terra sem males. A graça divina está ligada com a disposição humana. Cada família, unida à comunidade, celebra a libertação num espírito de caminhada e compromisso (I leitura). As comunidades cristãs reúnem-se frequentemente para celebrar a memória de Jesus morto e ressuscitado por meio da ceia sagrada. Esta deve refletir o relacionamento comunitário baseado na solidariedade, na justiça e na fraternidade. A eucaristia é a grande graça que proporciona comunhão com o Senhor e com o próximo (II leitura). Jesus, o Mestre e o Senhor, deixou o exemplo de serviço humilde como caminho de uma sociedade fraterna. Os discípulos devem praticar o que Jesus ensinou, lavando os pés uns dos outros (evangelho). Nós, como seus seguidores, não podemos quebrar a corrente do amor que nos une uns aos outros. Como fez Jesus, somos convidados a entregar humildemente a nossa vida, promovendo as condições de vida digna para todos.


II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. I leitura (Ex 12,1-8.11-14): Celebrar a Páscoa no espírito de caminhada

O relato da celebração da Páscoa israelita está inserido no contexto do movimento de libertação da escravidão no Egito. É a atualização de um ritual antigo, realizado entre os pastores, para reconciliar-se com a divindade, afastar os maus espíritos e, assim, assegurar o bem-estar das famílias com seus rebanhos. A experiência da libertação dos escravos no Egito torna-se a marca registrada de sua própria identidade. O povo de Israel nasceu com o êxodo. Diversos grupos de diferentes origens unem-se ao redor de um projeto de liberdade e autonomia. Pouco a pouco, vai se firmando a consciência de pertença ao “povo de Deus”. De fato, somente sob a intervenção divina foi possível a caminhada de libertação. Essa certeza atravessa as gerações, conforme constatamos nos diversos escritos do Primeiro Testamento.

A celebração da Páscoa foi sendo adotada por Israel como memória exemplar do acontecimento fundador do êxodo. Ela atualiza a presença de Deus na história do povo. É uma presença atenta e atuante na defesa da vida das pessoas oprimidas. Celebrar a memória do êxodo, portanto, significa reavivar a consciência de ser um povo abençoado. Significa reanimar o povo para a fidelidade à aliança com Deus, que é companheiro na caminhada. É comprometer-se, no presente, com o processo de libertação. A Páscoa, portanto, é memória subversiva.

Unindo elementos antigos e novos, a narrativa da Páscoa enfatiza a necessidade da celebração por ordem divina, num dia preciso, no “primeiro mês do ano”. Corresponde ao início da primavera, tempo em que desabrocha a vida nova. O cordeiro é essencial nessa celebração: é a oferta de cada família e de toda a comunidade, em reconhecimento à bondade divina. Para isso, é escolhido e preparado um cordeiro, sem defeito, para imolá-lo. A integridade física do animal é o que de melhor o povo pode ofertar a Deus como sinal de gratidão por tudo o que ele oferece.

O sangue para marcar a porta da casa tem o sentido de garantia de vida para as pessoas que nela habitam. É um povo eleito sob a proteção de Deus. Não será atingido pela última praga, ou seja, a morte dos primogênitos (a narrativa da Páscoa está situada entre a penúltima e a última praga). Assim, o povo terá um futuro garantido sob as bênçãos divinas.

A refeição é feita num clima de urgência – rins cingidos, sandálias nos pés e cajado na mão –, atualizando assim a movimentação do povo escravizado em vista de sua libertação. Com ervas amargas, para lembrar a vida difícil do povo enquanto escravo no Egito; com pães ázimos, pois a pressa não permite que o fermento possa levedar a massa. O pão puro é símbolo de fidelidade ao projeto de libertação, que inclui a caminhada pelo deserto, animados pelo sonho da terra prometida. Como se vê, o ritual da Páscoa é memória ligada ao compromisso de caminhar na conquista de um mundo de liberdade, paz e dignidade.


2. II leitura (1Cor 11,23-26): A instituição da eucaristia

O texto da liturgia de hoje corresponde ao relato mais antigo da última ceia de Jesus. São Paulo revela ser a transmissão do que ele mesmo recebeu do Senhor: trata-se da tradição dos apóstolos, a qual, por serem eles testemunhas oculares de Jesus histórico, é respeitada com veneração.

A ceia celebrada pelas comunidades cristãs primitivas não seguia fórmulas fixas e uniformes. De modo comum, era realizada em forma de refeição, ocasião em que se fazia – comemorando a sua entrega – a memória de Jesus, cujo corpo é representado pelo pão e pelo vinho. É celebração da nova aliança, inaugurada por Jesus, da qual os cristãos se tornam participantes.

No texto da liturgia de hoje, percebemos os elementos essenciais da eucaristia. Jesus a instituiu como memória de sua morte. É sacrifício (= ação sagrada), dom total de Jesus, em consciência e liberdade, pela vida do mundo. É sustento para os que dela participam, comprometidos na vivência do amor, até que Jesus venha.

É bom não esquecer o contexto imediato em que o texto está inserido (11,17-24). Paulo pronuncia-se em forma de reprimenda. A Igreja de Corinto reunia-se, com o propósito de participar da ceia, sem o principal requisito para a celebração: a solidariedade com os pobres. A divisão existente na comunidade revelava uma conduta egoísta e discriminatória. A participação do mesmo pão e do mesmo cálice é comunhão com o Corpo do Senhor, a qual não pode estar dissociada da comunhão com os irmãos, ainda mais com o agravante de serem pessoas necessitadas.


3. Evangelho (Jo 13,1-15): Jesus, modelo de servidor

O Evangelho de João não relata a última ceia de Jesus, como fazem Paulo e os evangelhos sinóticos. Supõe que as comunidades já a conheçam. O que ele faz é introduzir um gesto original de Jesus após a ceia: o lava-pés. Atenta para o fato de Jesus estar ciente da chegada da “hora”, o momento decisivo de sua missão. É o seu êxodo definitivo. Pela cruz, deverá deixar este mundo e ir para o Pai. Os discípulos, porém, continuarão nele. Jesus os ama até o fim e contará com eles para que sua obra tenha prosseguimento.

O gesto do lava-pés é, por excelência, o modelo de comportamento que os seguidores de Jesus deverão seguir. O Mestre e Senhor se faz servo dos seus discípulos, também daquele que já consentira em traí-lo. O seu amor é incondicional, como revelara em toda a sua missão. Por isso, rompera com todas as instituições que discriminam e matam. Chegou sua “hora”, e ele a acolhe com plena consciência e responsabilidade. Entrega sua vida não arrastado pelas circunstâncias, mas na liberdade, demonstrando o seu amor até o extremo, coerente com sua opção de fidelidade ao plano de salvação de Deus.

O lava-pés simboliza o amor como doação plena. Dá-se em forma de serviço. Cai por terra todo espírito de poder. Caem por terra a vingança e toda espécie de violência. Jesus inverte os valores dominantes na sociedade. Constitui uma nova comunidade humana, cuja nota característica é o serviço mútuo. Pedro, o líder do grupo, num primeiro momento não consegue entender. É representante dos que ainda procuram um Messias triunfalista, distante das realidades conflituosas deste mundo. O seguimento de Jesus, porém, dá-se pelo caminho da “cozinha” e do “avental”. Tudo o que simboliza o lava-pés, cuja síntese é o amor-serviço, leva à participação da mesma vida de Jesus. Pedro entenderá o verdadeiro significado após a morte do Mestre. Por causa de sua opção pelo seguimento de Jesus, será também perseguido e partilhará do mesmo destino dele.

A comunidade cristã não pode caminhar na desigualdade. Não é uma comunidade de chefes e súditos, e sim de servidores. A pergunta de Jesus após o lava-pés transforma-se em permanente desafio para todos nós: “Vocês compreenderam o que acabei de fazer? (…) Vocês devem fazer a mesma coisa que eu fiz”.


III. PISTAS PARA REFLEXÃO

– Celebrar a Páscoa é pôr-se em caminhada. O povo de Israel reconhece a presença libertadora de Deus à medida que se organiza para libertar-se da opressão. Cada família é chamada a entrar no grande mutirão pela liberdade e pela vida. Cada pessoa é chamada a participar do êxodo, caminho para uma terra de paz e justiça. A fraternidade depende do empenho de cada um de nós. O povo de Deus tinha pressa para libertar-se. Hoje também é urgente a necessidade de nos unirmos, tendo em vista vida digna para todos, com trabalho, justiça social, sem exploração ou formas atuais de escravização. O Tríduo Pascal é tempo propício de reconhecer a presença salvadora de Deus em nosso meio e de renovar, por meio de gestos concretos, a nossa fidelidade ao seu plano de vida digna a todos os povos, habitantes desta casa comum chamada Terra.

– Celebramos hoje a instituição da eucaristia. É o próprio Jesus que se doa inteiramente para a vida do mundo. Participar da eucaristia é acolher, com gratidão, a grande graça de Jesus, que nos alimenta com seu próprio Corpo e Sangue. É comprometer-se a viver na comunhão com Deus e com o próximo. É responsabilizar-se pela administração justa dos bens. Participarmos juntos da mesma mesa sagrada é nos reconhecermos como irmãos. São Paulo lembra aos cristãos de Corinto e a nós hoje que eucaristia e solidariedade estão vinculadas. O amor efetivo às pessoas que sofrem é o requisito fundamental para que a eucaristia se torne sacramento de salvação.

– Jesus é o modelo do verdadeiro amor. Ele, antes de sua morte, institui a nova comunidade humana, representada pelos discípulos. Pelo gesto do lava-pés, revela-lhe o caminho que garante as relações de igualdade e justiça: o serviço mútuo. O Filho de Deus se faz servidor. Somos chamados a viver como seus discípulos missionários. Jesus nos chama deste modo: “Vocês dizem que eu sou o Mestre e o Senhor. E vocês têm razão… Vocês devem lavar os pés uns dos outros. Eu lhes dei o exemplo: vocês devem fazer a mesma coisa que eu fiz”. Como isso se concretiza no cotidiano da vida de cada um de nós?

Celso Loraschi

Mestre em Teologia Dogmática com Concentração em Estudos Bíblicos, professor de evangelhos sinóticos e Atos dos Apóstolos no Instituto Teológico de Santa Catarina (Itesc).


LAVA-PÉS: deslocamento que amplia a visão da vida

Adroaldo Paloro

“Derramou água numa bacia, pôs-se a lavar os pés dos discípulos e enxugava-os com a toalha que trazia à cintura” (Jo 13,5)


No Evangelho desta Quinta-feira Santa, Jesus, com sua original sabedoria, nos oferece uma outra perspec-tiva de vida. Sem dúvida alguma, Jesus era um provocador, no sentido etimológico da palavra, (pro-vocar: chamar para frente, desinstalar), que motivava as pessoas a verem as coisas a partir de uma perspectiva diferente da que era habitual.

Mas, custa-nos muito modificar nossa perspectiva; estamos acostumados a um modo fechado de viver, com umas viseiras que não nos permitem captar a vida em sua plenitude e riqueza; com isso nos instalamos no já adquirido e conhecido e atrofiamos em nós o dinamismo que busca abrir a mente e alargar o coração à realidade que nos cerca.

Ver as coisas “por uma outra perspectiva” é muito mais instigante.

Um ponto de vista novo, limpo e original é uma grande ajuda para uma vida sadia.

O que Jesus pretende, no gesto do “lava-pés”, é nos oferecer um novo ponto de vista, um novo ângulo, uma nova perspectiva, fazendo-nos ver a realidade do outro como se fosse pela primeira vez, com um olhar límpido e uma atitude compassiva.


Na noite em que ia ser entregue, Jesus realizou um gesto provocativo: levantou-se da mesa, distanciando-se do lugar reservado àqueles que a presidem e se situou no lugar daqueles que pertencem à categoria dos “servidores”. Jesus sabia que o lugar em que estamos situados condiciona nosso olhar e nossa atitude; por isso, tomou distância e adotou a perspectiva que lhe permitia perceber outras dimensões da vida. 

A partir desse lugar tocou de perto o barro, o pó, o mal odor, a sujeira..., tudo isso que aqueles que estão sentados à mesa acreditam estar a salvo ou simplesmente ignoram e desprezam. Rente ao chão e em contato com os pés dos outros, Jesus realizou uma mudança e uma amplitude de visão que lhe fazia perceber tanto as riquezas e dons de cada um como captar a desnudez, a fragilidade e as limitações da corporalidade das pessoas. E, olhadas a partir daí,  Ele deixa transparecer que qualquer pretensão de superioridade ou domínio se revela como ridícula e falsa.


Nesse deslocamento a um “lugar entre tantos outros”, Jesus viu de perto e por dentro àqueles que os outros consideravam distante e fora. Porque para Ele, os maiores e os mais importantes são aqueles que, segundo nossos critérios, não são contados. O lugar em que Jesus decidiu se situar deu origem a “revolução nas relações pessoais”, que tanto nos sobressalta e ao qual tanto nos resistimos. Só o fato da possibilidade desse deslocamento se revela ameaçadora porque nos tira do terreno do conhecido e nos convida a descobrir novos significados que não coincidem com os que consideramos evidentes. 

Com o gesto do lava-pés e ao deslocar-se para o lugar do servo, Jesus rompe a verticalidade e a relação senhor-escravo, os de cima e os de baixo, os de dentro e os de fora, inaugurando, assim, a nova ordem circular do Reino, onde ninguém é descartável. 

Ali também Ele nos revela-nos um rosto novo de Deus: o Deus cuidadoso e compassivo, identificado com os últimos e que a partir do último, serve, sustenta, universaliza, iguala, inaugurando deste modo a horizontalidade do Reino e denunciando toda hierarquia e pretensão de poder-dominação.

“Eu estou entre vós como aquele que serve”. Jesus não renuncia a nenhuma grandeza humana, mas denuncia a falsidade da grandeza do ser humano que quer se apoiar no poder ou no domínio sobre os outros. A verdadeira grandeza humana está na identificação com Jesus que se doa, sem por condições nem reservas. 


Como aconteceu com Pedro, o gesto de Jesus no Lava-pés continua nos provocando, porque se há algo que incomoda é deslocar-se até os últimos e colocar-se no lugar deles.

Não é comum prestar atenção ao lugar ocupado pelo outro, sobretudo o outro que pensa e sente diferente; é normal perceber, delimitar, defender e fechar-se no próprio lugar. Isso se faz de maneira tão zelosa que nem se vê aquilo que está para além do próprio lugar. São grandes os riscos de se viver em horizontes tão estreitos. Tal estreiteza aprisiona a solidariedade e dá margem à indiferença, à insensibilidade social, à falta de compromisso com as mudanças que se fazem urgentes. O próprio lugar se torna uma couraça e o sentido do serviço some do horizonte inspirador de tudo aquilo que se faz.


Compreende-se claramente que o que ali estava em jogo não era a humildade – nem a de Pedro, nem a do próprio Jesus -, nem sequer uma boa exortação para praticar a caridade. Porém, a intenção de Jesus ia muito mais longe, tão longe que Ele mesmo teve de perguntar aos discípulos aturdidos: “Compreendeis o que vos

 fiz?” Efetivamente, o que Jesus estava dizendo a seus apóstolos era o seguinte: “Eu, que sou o Mestre que ensina o que é preciso saber, e que sou o Senhor-Deus que dispõe o que se há de fazer, não me relaciono convosco com base no poder, mas na exemplaridade”.

Daí Jesus termina dizendo: “Pois é um exemplo que eu vos dei: o que eu fiz por vós, fazei-o vós também”.

Com isso, Jesus estava afirmando que eles, os apóstolos, não podem compreender sua missão com base no poder que se impõe, mas sim na exemplaridade que convence.

E Ele exigirá isso a todo aquele(a) que queira segui-lo: terá que estar disposto, o mesmo que Ele, a “não ter onde reclinar a cabeça”, a ir mais além de tudo aquilo que a nossa cabeça se inclina, descansando naquilo que acredita saber, controlar ou dominar.


A reação de Pedro expressa bem o escândalo que este gesto produz, porque Jesus revela que a autoridade -  ser Senhor – é um serviço, não uma dominação.

Pedro fica desconcertado e em dilema. Sua imagem do Messias seguro e vencedor não combina com a vulnerabilidade de um servo; ele comungava com a mentalidade hierarquizada da época, a qual determinava a cada um o seu devido lugar. A relação entre mestre e discípulo era regulada pela superioridade, sapiência, respeitabilidade de um, e pela inferioridade, ignorância e submissão do outro. O gesto de Jesus pareceu inaceitável para Pedro, pois rompia a hie-rarquia, podendo gerar indisciplina. A mentalidade de Pedro era perigosa. Agindo assim, corria o risco de introduzir na comunidade dos seguidores de Jesus o esquema senhor-escravo que Ele viera abolir.


Em muitas culturas e tradições espirituais (como no Evangelho), o Mestre lava os pés dos seus discípulos. De um ponto de vista simbólico, “lavar os pés” de alguém é devolver-lhe a capacidade de sentir-se enraizado, é reco-locá-lo de pé, ativar nele a autonomia para que possa dar direção à sua vida.

A palavra “pé”, “podos” em grego, está estreitamente relacionada à pala-vra “paidos”, usada para significar criança. Assim, um “pedagogo” é um especialista que cuida dos pés do ser humano, desde que cuidar dos pés de alguém significa cuidar da criança que está nele.

Eis a missão do(a) seguidor(a): ajudar as pessoas a se colocarem de pé, resgatando-as em sua dignidade para serem capazes de andar pelos seus próprios pés.

Não cabe ao cristão carregar as pessoas com seu paternalismo. Antes, sua missão é vê-las maduras, entrando por seus próprios pés na presença de Deus e assumindo o compromisso com a vida.


Texto bíblico:  Jo 13,1-5


Na oração: “Levantar-nos da mesa” – “sentar-nos à mesa”: movimento de partida e de chegada; prolonga-

                      mento do gesto provocativo e escandaloso de Jesus. Isso é viver a Eucaristia no cotidiano da vida. 

- como você pode prolongar nos seus ambientes cotidianos o gesto de Jesus no “lava-pés”?


QUINTA FEIRA SANTA- CONSIDERAÇÕES GERAIS


1ª leitura: Ex 12,1-8.11-14

Nas paróquias, inicia-se o Tríduo Pascal com a missa do Lava-pés a noite.

Como 1ª leitura, a liturgia apresenta-nos o relato da instituição da Páscoa no AT (Antigo Testamento).

O Senhor disse a Moisés e a Aarão no Egito: “Este mês será para vós o começo dos meses; será o primeiro mês do ano (12,1-2).

Já na vocação de Moisés (3,18) e nas audiências com o farão (5,1-3 etc.) se falava da festa ou do sacrifício que o povo hebreu devia celebrar em honra a seu Deus Javé. Em seguida apresenta-se o relato sobre a origem da festa maior dos judeus, a páscoa. Nele, dois elementos se fundem: a narrativa histórica e as práticas litúrgicas. A parte narrativa inclui: a morte dos primogênitos egípcios (12,12.29-30), comer o cordeiro e o rito de marcar com sangue os batentes, a refeição apressada com pão sem fermento (12,1-14), a fuga precipitada com os presentes ou empréstimos dos egípcios (12,31-42). A parte litúrgica inclui: o rito da páscoa com sua rubricas e cerimônias (vv. 2-24.43-49), os pães ázimos (vv. 15-20), a consagração dos primogênitos (13,1.11-16). Misturam-se práticas específicas de pastores (cordeiro), de agricultores (pães ázimos) e outras sem fronteiras (primogênitos; cf. Gn 22).

A origem da festa da Páscoa talvez seja um ritual de pastores nômades: com o sangue de um cordeiro (ou cabrito), colocado na entrada do curral ou da casa, esperava-se a proteção dos males (demônios? invasores?). Em Israel, pastores nômades e agricultores sedentários misturavam-se (não sem conflitos, cf. Gn 4), assim coincide a festa dos pastores com a festa dos agricultores na primavera, a festa dos “pães ázimos” (pães sem fermento por sete dias; v. 8). De fato, páscoa e ázimos são duas festas originariamente distintas: a festa dos ázimos começou a ser celebrada pelos agricultores somente em Canaã e só foi unida à festa da páscoa depois da reforma de Josias (2Rs 22-23). A origem destas duas festas está em tempos remotos, seu conteúdo natural (rebanho, pães de trigo) ganha depois um sentido histórico: a comemoração da libertação do Egito. Assim, a ligação entre a páscoa, a décima praga e a saída do Egito é apenas ocasional: esta saída aconteceu por ocasião da festa.

Ouvimos hoje a primeira parte das instruções do Senhor. Até o v. 11 se lê como ritual de cerimônia que se deve observar ao celebrar a páscoa: qualidade do animal, os que vão comê-lo, como prepará-lo, data exata e hora do dia.

A origem da palavra “Páscoa” (hebraico: pesah) é desconhecida; a explicação tradicional é que significa “passagem” (cf. v. 13.23.27; o verbo hebraico pasahsignifica “passar ou saltar por cima”). A passagem do ano que, na época, começava na primavera (v. 2: “o começo dos meses… o primeiro mês do ano”) torna-se a “passagem do Senhor” (v. 11). O primeiro mês da primavera no hemisfério norte chamava se Abib no antigo calendário (Dt 16,1), ou Nisanno calendário pós-exílio de origem babilônica. O dado supõe um calendário estabelecido com um ano que começa na primavera (nisan); diferente do que faz o ano começar no outono.

Falai a toda a comunidade dos filhos de Israel, dizendo: ‘No décimo dia deste mês, cada um tome um cordeiro por família, um cordeiro para cada casa. Se a família não for bastante numerosa para comer um cordeiro, convidará também o vizinho mais próximo, de acordo com o número de pessoas. Deveis calcular o número de comensais, conforme o tamanho do cordeiro (vv. 3-4).

O filósofo judaico Martin Buber (1878-1965) comparou a sociedade egípcia com uma pirâmide e a comunidade israelita com uma fogueira de acampamento. Enquanto a sociedade egípcia é hierarquia (pirâmide) e opressão, a “comunidade dos filhos de Israel” é comunitária (fogueira), “convidará também o vizinho” (v. 4) evitando também o desperdício. A festa deve ter caráter familiar. A ceia pascal prepara os israelitas para décima e última praga que resultará na libertação da escravidão.

No calendário de Dt 16,1s, ovelhas e bois são sacrificados no templo de Jerusalém, conforme a concentração do culto na capital, que o rei Josias promoveu (622 a.C.).

O cordeiro será sem defeito, macho, de um ano. Podereis escolher tanto um cordeiro, como um cabrito: e devereis guardá-lo preso até ao dia catorze deste mês. Então toda a comunidade de Israel reunida o imolará ao cair da tarde (vv. 5-6).

O cordeiro será sem defeito, porque para uma festa religiosa se deve oferecer o melhor. “Até ao dia catorze… ao cair da tarde”, ou seja, antes que comece o dia 15 ao pôr-do-sol (em Israel, um novo dia não começa a meia noite, mas na véspera).

Enquanto o Egito desenvolveu o calendário solar de 365 dias (Júlio César introduziu-o no Império Romano), Israel tinha um calendário lunar: um mês corresponde exatamente às quatro fases da lua. No dia primeiro de cada mês é lua nova, e na metade do mês é lua cheia: na noite do dia catorze para quinze. Portanto, a festa pascal coincide com a primeira lua cheia na primavera ou seja, depois de 21 de março (equinócio que inicia a primavera no hemisfério norte e o outono no sul).

A páscoa foi celebrada na casa dos pastores e camponeses (vv. 3-4.21-22), mas a relação com o êxodo e a minuciosa regulamentação indicam uma redação da época do rei Josias (640-609) ou do pós-exílio, quando o cordeiro pascal só poderá ser imolado no Templo de Jerusalém (cf. v. 14; Dt 16,1-7; 2Rs 23,21-23).

Tomareis um pouco do seu sangue e untareis os marcos e a travessa da porta, nas casas em que o comerdes (v. 7).

O antigo rito de marcar os batentes da porta com sangue de animal pode ter origem mágico para afastar influxos nefastos. O v. 13 o liga com a história: “O sangue servirá de sinal” de marcação, de separação das casas dos egípcios que serão atingidos: “Ao ver o sangue, passarei adiante, e não vos atingirá a praga exterminadora”. Segundo 11,7, o Senhor se encarrega de distinguir entre egípcios e hebreus, sem recurso ao sinal do sangue. Israelitas separados como povo eleito no meio do mundo pagão é expressão da teologia pós-exílica.

         Comereis a carne nessa mesma noite, assada ao fogo, com pães ázimos e ervas amargas (v. 8).

A festa dos agricultores, a dos “pães ázimos” que dura sete dias (Ex 23,14s; 34,18), foi juntada à dos pastores e também se comemora a Páscoa, a saída do Egito (cf. Nm 28,16-25; Dt 16,1-8).

Os rabinos reagiram à destruição do templo em 70 d.C. e criaram a seder (ordem) para o povo celebrar a páscoa sem o templo (até hoje), como antes os judeus já o faziam em parte na diáspora. A seder é bastante simbólica e didática, por ex. mergulha-se karpas (batata, ou outro vegetal), em água salgada. Recita-se a bênção e a karpas é comida em lembrança às lágrimas (água salgada) do sofrimento do povo de Israel. Depois divide-se a matzá (“pão ázimo”, sem fermento) do meio em duas partes desiguais.São comidas as “ervas amargas” (raiz forte, escarola, endívia e a alface romana) relembrando a escravidão e o sofrimento dos hebreus no Egito.Depois o chefe da casa fala: “Olhemos, pois, a matzá que está sobre a mesa. Este é pão da pobreza que comeram os nossos antepassados na terra do Egito. Quem tiver fome, e muitos são os que tem fome neste mundo em que vivemos, que venha e coma.”

Nos vv. 9-10 (omitidos pela nossa liturgia) quer-se evitar a profanação, não se deve comer cru (cf. Gn 9,4), mas “inteiro… sem sobrar nada para o dia seguinte”.  texto grego acrescenta: “Não se quebrará nenhum osso” (cf. v. 46; citado por Jo 19,36).

Assim devereis comê-lo: com os rins cingidos, sandálias nos pés e cajado na mão. E comereis às pressas, pois é a Páscoa, isto é, a Passagem do Senhor! (v. 11).

Deve-se comer com a roupa da viagem, “com os rins cingidos, sandálias nos pés e cajado na mão” quer dizer, pronto para marcha para sair em liberdade. Na ceia da época de Jesus, as pessoas ficavam deitadas no chão, encostadas em travesseiros.

A etimologia do termo hebraico pesah (grego: páscoa) é desconhecida. A Vulgata (tradição latina de S. Jerônimo) explica: “isto é passagem”, mas não encontra apoio no hebraico. Ex 12,13.23.27 explica que Javé “saltou”, ou “omitiu”, ou “protegeu” as casas dos israelitas, mas trata-se de uma explicação secundária.

E naquela noite passarei pela terra do Egitoe ferirei na terra do Egito todos os primogênitos, desde os homens até os animais; e infligirei castigos contra todos os deuses do Egito, eu, o Senhor. O sangue servirá de sinal nas casas onde estiverdes. Ao ver o sangue, passarei adiante, e não vos atingirá a praga exterminadora, quando eu ferir a terra do Egito (vv. 12-13).

Os vv. 12-13 funcionam como explicação histórica do rito no relato, funcionam como anúncio do fato iminente.

“Atravessar” ou “passar”: com o verbo da mesma ou da homófona raiz que “páscoa”. Supõe que os hebreus moravam misturados com a população egípcia, não a parte, na região de Gessen (Gn 46,28-47,6). A confrontação com o rei se eleva ao nível das divindades: Javé julga e condena os deuses do Egito, demonstrando que “não há como ele” (Sl 82); é o conceito universalista de Javé na redação pós-exílica (cf. 9,14).

O flagelo destruidor ou a praga “exterminadora”: desta expressão do v. 23 saiu a fórmula do “anjo exterminador” (pode se ler: “não haverá contra vós um golpe do exterminador” (cf. v. 23).

Este dia será para vós uma festa memorável em honra do Senhor, que haveis de celebrar por todas as gerações, como instituição perpétua (v. 14).

O dia será o dia 15 que começa na véspera, na tarde precedente.

Atribui-se ao Senhor a instituição da “festa memorável”, que a fundamenta no fato passado e lhe garante validade perpétua. Para os judeus, “memória” não significa pensar no passado, mas torna-lo presente, atualizar. Assim Jesus pede na última ceia: “Fazei isto em minha memória” (cf. 2ª leitura). Na celebração judaica da Páscoa, em cada geração, todo individuo deve ver a si mesmo como se tivesse saído do Egito (Ex 13,8; Dt 6,23).

Pela tradição, “Páscoa” significa passagem (vv. 11.27), é a “passagem” do ano que começava na primavera (“será o primeiro mês do ano” v.1) e torna-se a “passagem do Senhor” (v. 11). O Senhor, ou seja, o anjo exterminador, “passará” por Egito “matando todos os primogênitos” (v. 12), só poupando as casas dos israelitas, onde o sangue dos cordeiros pascais nos marcos e travessas das portas dos israelitas “servirá de sinal… Passarei adiante e não vos atingirá a praga exterminadora” (v. 13).

Depois desta praga, o faraó deixará sair os escravos em liberdade, mas logo se arrependerá e os perseguirá com seu exército poderoso. Haverá outra “passagem” do povo de Deus: pelo mar Vermelho que salva os israelitas e extermina os egípcios (13,17-15,21; cf. 3ª leitura da vigília pascal).

Os cristãos dão mais outro sentido à Páscoa: A “passagem” de Jesus pela morte a vida (cf. Jo 13,1; evangelho da quinta-feira santa). Ele é verdadeiro Cordeiro pascal imolado (cf. 1Cor 5,7; Jo 1,29.36; Ap 5,6 etc.), cujo sangue na madeira da cruz salva a vida do povo de Deus. Em Jo, Jesus morre na exata hora da imolação dos cordeiros no templo (cf. v. 6 “ao cair da tarde”; Jo 19,31.34.36).

A data da Páscoa judaica continua sendo a primeira lua cheia (noite de dia 14 a 15 no seu calendário lunar) de primavera (no hemisfério norte cai em março ou abril). Para os cristãos, porém, a Páscoa é celebrada no domingo seguinte (por causa da ressurreição “no primeiro dia da semana”). Portanto, na Semana Santa sempre tem lua cheia.


SEXTA FEIRA SANTA 

PAIXÃO DO SENHOR

29/03/2024

(Leia e medite hoje o belíssimo texto de Dom Júlio: 

O SERMÃO DAS 7 PALAVRAS


LINK AUXILIAR:

AS LEITURAS DESTA PÁGINA E DO MÊS TODO


1ªLeitura: Isaías 52, 13-53,12

Salmo Responsorial 30(31) R- Ó Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito.

2ª Leitura: Hebreus 4,14-16;5,7-9

Evangelho: João 18,1-19,42

(Veja, por favor, no link das leituras acima)


DOM JÚLIO ENDI AKAMINE, ARCEBISPO DE SOROCABA SP


Hb 4,14-16; 5,7-9

Após algumas horas de terrível sofrimento, Jesus morre na cruz. Termina o trabalho dos executores. O que se tem diante dos olhos é um homem morto.

Cessam as agressões; os zombadores emudecem. Retiram-se os curiosos. A tristeza se instala no espírito dos amigos. Muitos discípulos não escondem a decepção.

Diante do crucificado, cabe bem o silêncio e a contemplação. A celebração da Paixão, às 15h, nos convida a adorar a cruz. É oportuno que nos perguntemos sobre o sentido de nossa adoração.

A cruz nos coloca diante do mistério da nossa iniquidade. Até que ponto podemos odiar? Até o ponto de perpetrar o pior dos crimes: matar Deus! Toda história da humanidade prova esta verdade terrível. Somos capazes de realizar gestos estupendos de solidariedade, de dedicação aos outros, de generosidade surpreendente. Somos também capazes do pior: crimes horrendos, genocídio pavorosos, ódio sem limite, vinganças absurdas. 

Na cruz, está o documento de nossa acusação. Não temos desculpas que justifiquem nosso crime, crucificamos o inocente, matamos quem nos amou, retribuímos o bem com um crime sórdido; condenamos por inveja, abandonamos o amigo, traímos e renegamos como Pedro ou Judas. Nada poderá mudar este fato: que nós realizamos o mal. Nem o arrependimento mais sincero, nem o castigo mais severo, tampouco a nossa morte pode cancelar este fato irreversível: nós pecamos. A cruz permanece diante de nós como um documento de acusação.

Será que Deus foi vencido pelo nosso crime? Ele fracassou diante de nossa rejeição?

A cruz nos coloca diante do mistério da piedade: até que ponto Deus pode amar! Ele nos amou até o fim, até a cruz. Deus vence nosso crime mergulhando no sofrimento e abraçando a cruz como forma de doação radical de sua vida. Ele não sofre a cruz passivamente, mas a assume como preço de sua coerência, como meio de entrega amorosa pela nossa salvação. Deus é a onipotência do amor; no amor ele pode tudo: pode até mesmo morrer pelos inimigos. Nisto consiste a Boa nova: na cruz Jesus destruiu o documento de nossa acusação. Em vez de nos castigar pela cruz que impusemos a Jesus, Deus transforma o instrumento de suplício em nossa salvação. Pela cruz não somos condenados, mas perdoados.

Não adoramos a cruz como o nosso documento de acusação: a consciência do crime não nos salva. Hoje nós adoramos a cruz instrumento de salvação: Deus converteu nosso pecado em ocasião para uma extraordinária comunicação de graça. Se grande foi nosso pecado, maior é o coração de Deus! De agora em diante a memória de nosso pecado não nos levará mais ao desespero, mas ao abandono nas mãos dAquele que nos salva, à gratidão pela sua infinita misericórdia. Onde abundou o pecado, superabundou a graça.

Não adoramos a cruz como instrumento de ódio contra Deus, pois quem ama não fabrica cruzes para os outros, não impõe sofrimentos a ombros alheios. Adoramos a cruz de Jesus abraçada em solidariedade com os crucificados deste mundo. Jesus se deixou crucificar para protestar contra as cruzes injustas que se impõem sobre os pequenos, para interromper o sofrimento dos inocentes, para deixar claro que Deus está do lado de quem sofre.


Contemplar a Cruz e os crucificados -  Pe Adroaldo

“Perto da Cruz de Jesus, estavam de pé a sua mãe, a irmã de sua mãe e Maria Madalena” (Jo 19,25)

 

Na história do cristianismo tivemos sempre duas grandes tentações: eliminar a cruz ou exaltá-la. A cruz não tem a última palavra no Evangelho, mas é uma página incômoda que não podemos saltar, como tampouco podemos negar nem ocultar a densidade do sofrimento. Negá-lo é negar o humano.

Há algo muito perturbador na ideia de um “Deus crucificado”. Escândalo para uns, contradição para outros, absurdo para muitos... Onde fica a grandeza, a força, o poder? Que sentido tem ainda hoje em dia ajoelhar-se ou fazer reverência diante do crucificado? Como olhar a face da derrota? Como aceitar a morte do Justo? Como compreender o silêncio do Pai diante da morte do Filho?

E aí surge a eterna pergunta pela questão do mal, pelo sofrimento dos inocentes, pela tragédia que atravessa a criação. Como é possível? E um grito se eleva ao céu, entre a queixa e a incompreensão: “por que?”

O Deus crucificado é, junto à ressurreição, a intuição mais radical de nossa fé. Fala-nos da fragilidade humana, assumida pelo mesmo Deus; fala-nos da paz como único caminho, frente a outras sendas construídas sobre o rancor, a violência ou a lei implacável; fala-nos do amor como a maior transgressão em um mundo que etiqueta muitas pessoas como indignas de serem amadas; fala-nos da dor de Deus, um Deus que não é distante, alheio nem indiferente à criação que saiu de seu coração; um Deus próximo até o ponto de esvaziar-se em nós, conosco, por nós; fala-nos das entranhas de misericórdia d’Aquele que se comove diante dos sofrimentos humanos; fala-nos de compromisso, de uma aliança inquebrantável, e de risco; fala-nos de vítimas inocentes e verdugos inconsciente que não sabem o que fazem.

Mas, nem para verdugos nem para as vítimas a Cruz há de ter a palavra definitiva. Tudo isso, e muito mais, é o que podemos ver quando contemplamos o Crucificado.

 

Gólgota, o monte da Cruz, do Amor e do pranto. Um lugar carregado de densidade. Nele está o amor fiel e atravessado de uma mãe, a fidelidade de um discípulo e a coragem das mulheres que não abandonam nem fogem; ali se expressa a esperança ferida de um bom ladrão, o reconhecimento assombrado de um centurião, a zombaria daqueles que não são capazes de compreender e pedem provas, a indiferença daqueles que repartem as roupas do crucificado; e, sobretudo, Gólgota desvela uma morte que é consequência de uma vida de entrega, feita de gestos, palavras e obras; desvela uma vida que se fez doação radical nas mãos daquele que se revela Misericórdia.

A vida de Jesus é inseparável de sua execução, de sua morte. Estas são consequência de seu modo de ser e de estar na vida e com as pessoas, sendo misericórdia em ação, misericórdia em relação.

O Crucificado é a expressão máxima da ternura entregue até o extremo na missão de aliviar o sofrimento dos últimos. Por isso, a ternura é também subversiva, porque inverte a ordem “colocando como primeiros os últimos” (Mt 20,16). A ternura vivida até o extremo, à maneira de Jesus, tem repercussões sociais e políticas e por isso se faz insuportável para aqueles que “fazem de sua força a norma da justiça” (Sb 2,1-17) e “reprimem a verdade com a injustiça” (Rom 1,18).

Jesus é condenado porque sua atuação e sua mensagem sacodem na raiz o sistema organizado a serviço dos poderosos do império romano e da religião do templo. A vida de Jesus se havia convertido em um estorvo que era necessário eliminar, como as vidas de tantas pessoas que hoje se tornam molestas ao sistema ou que são consideradas “presenças perigosas”. Este é o mistério que hoje estamos contemplando.

 

A liturgia da Sexta-feira Santa nos ajuda a abrir os olhos diante dos crucificados de hoje e a impotente proximidade de Deus com eles.

É preciso olhar sempre a Cruz por dois lados: o dos crucificadores e o das vítimas. Do lado dos cruci-ficadores, a cruz é morte. “Maldita seja a cruz”. Nós cristãos já temos nos acostumado a cantar “Ó Cruz, tu nos salvarás”, e esquecemos que há cruzes que não são cristãs, mas legitimadoras da dor e da injustiça que recai sobre as vidas as pessoas mais feridas e excluídas. A Cruz nunca vai nos poupar da dor, mas nos dá lucidez. Ela nos impede cair em espiritualidades evasivas, depura nossas imagens de Deus, às vezes demasiado burguesas e light, que não suportam a prova do fracasso, da obscuridade e do silêncio.

A violência e a injustiça geram vítimas e contam com nossas cumplicidades. A Boa Notícia do evangelho se manifesta a partir do reverso da história e assume a miséria, a debilidade humana, o limite físico e psíquico, o fracasso. Por isso, a sexta-feira santa nos revela também os aspectos mais obscuros de nossa condição humana.

Há lugares e situações de vida diante dos quais não podemos deixar de exclamar: “Sempre é sexta-feira Santa!”: miséria, exaltação da violência, relações centradas na intolerância, solidão, sonhos quebrados...

Aproximar-nos de cada um desses lugares é tocar as chagas do Crucificado, chagas que criamos e geramos com nossa indiferença e nossa omissão; chagas que nos molestam porque cheiram mal, porque gritam e nos desmascaram, devolvendo-nos à nossa verdade mais íntima.

Adentrar-nos em suas vidas é também apalpar o mistério, o mistério do mal e da injustiça, o mistério de uma Vida com maiúsculas que sempre é mais e que brota a partir de baixo e a partir de dentro para dar à luz a esperança, embora nós, muitas vezes, não saibamos percebê-la.

 

No Crucificado, Deus nos mostra a densidade mais profunda de seu mistério. Um Deus que não só está a favor das vítimas, mas que, à mercê de seus verdugos, revela sua máxima solidariedade e proximidade para com “os sem poder”, com aqueles que “desfigurados, nem pareciam homens” (Is. 52,14).

Quando acompanhamos Jesus na paixão, também “vamos sendo talhados” pelas cenas que contemplamos, com o coração aberto à dor e à aflição. Essa dor esvazia nossas auto-suficiências e purifica nossas auto-imagens triunfais, humanizando-nos. Ao contemplar o amor redentor de Deus revelado em seu Filho Jesus, nós nos perguntamos onde está Ele no sofrimento. Há aqui uma inversão de perguntas:

Para responde à interrogação -“Onde está Deus nas situações de sofrimento e morte?”-, Deus nos desafia a responder à sua própria questão: “Onde está você no meu sofrimento?”.

 

Contemplando o Crucificado vamos pedir ao Senhor neste dia que nos ajude a permanecer solidários nas situações onde a “Divindade se esconde” (S. Inácio), que nos ajude a olhar a Cruz e escutar o grito dos crucificados nela; escutar os gritos daqueles que vivem na noite do sofrimento, da violência, da injustiça e do desamor. A Cruz é um grito no qual cabem todos os gritos da humanidade, desde o primeiro choro de uma criança até o último suspiro de um moribundo.

Escutemos neste dia os gritos daqueles que vivem na noite do sofrimento, os gritos dos empobrecidos, o grito dos povos e culturas condenadas à exclusão...; todos esses gritos unidos ao grito da mãe-terra, destru-ída em seus ecossistemas e explorada pela ganância.

Escutemos grito das vítimas do bilionário negócio da venda das armas; o grito dos “descartados” e de todos aqueles que o sistema considera como sobrantes: os sem teto, sem terra, sem trabalho; o grito daqueles que são julgados por leis injustas em tribunais que, como Pilatos, lavam as mãos....

 

Texto bíblico:  Jo 19,16-30

 

Na oração: nos Gólgotas deste mundo, continuar apostando, gritando e proclamando Vida, apesar daqueles que investem na cultura da morte.

  

SEXTA-FEIRA SANTA - CELSO LORASCHI


I. INTRODUÇÃO GERAL

O relato da paixão e morte de Jesus é um dos mais antigos escritos do Segundo Testamento. Corresponde ao núcleo central do querigma cristão. Jesus é Messias, anunciado nas Sagradas Escrituras, Filho de Deus que se fez carne, realizou sinais e prodígios, foi condenado e morto. Sua missão consistiu em realizar a vontade de Deus, amando a humanidade até o extremo. Seus posicionamentos não agradaram às instituições de poder. Foi perseguido, preso, julgado e condenado à morte. Injustamente, mataram o Justo (evangelho). Jesus é a figura do Servo sofredor, conforme descreve o Segundo Isaías. Um inocente sofre a paixão, carregando sobre si as nossas dores e nossos crimes. É desprezado por todos. Nele não há formosura e sinal nenhum de poder. Seu corpo foi sepultado entre os ímpios. O Servo amado de Deus, pelo caminho do sofrimento e da morte injustamente infligidos, resgatou a verdadeira justiça. A entrega de sua vida foi em reparação pelos pecados da humanidade (I leitura). As primeiras comunidades cristãs confessam que Jesus é o único e eterno sacerdote. Porque foi provado no sofrimento, é capaz de compadecer-se de nossas fraquezas e nos alcançar a misericórdia de que necessitamos (II leitura). Celebrar a paixão e a morte de Jesus é reconhecer e acolher o amor sem limites de Deus. Em atitude de gratidão e de arrependimento, deixamo-nos invadir pela sua graça, que nos transforma.

 

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

Após a oração sacerdotal de Jesus (Jo 17), o Evangelho de João faz a narrativa da sua paixão e morte. A oração consiste num insistente pedido ao Pai para que os discípulos sejam guardados de todo mal e o amor de Deus permaneça com eles. Jesus tem consciência de sua partida. A morte é consequência de sua fidelidade ao projeto de amor do Pai. Por essa fidelidade, Jesus entrega sua vida de forma consciente: “Ninguém tira a minha vida. Eu a dou livremente” (10,18).

Em um jardim se desencadeia o processo da paixão de Jesus. Também num jardim ele será crucificado e sepultado. O jardim é lugar simbólico. Lembra o paraíso terrestre. Lugar de beleza e fecundidade. O jardim do Gênesis foi profanado pelo orgulho humano: tornou-se espaço de divisão e morte. O jardim da morte de Jesus, porém, é o espaço do resgate definitivo da vida.

Jesus costumava reunir-se com seus discípulos no jardim, fora do lugar social das instituições de poder, com as quais, gradativamente, ele vai rompendo. Os discípulos demonstram dificuldade de entender a postura de Jesus. Judas, por exemplo, não consegue desvencilhar-se da ideologia dominante. Faz um acordo com os líderes religiosos de Jerusalém e entrega Jesus. Um batalhão de guardas armados é mobilizado para prendê-lo, sinal de que era realmente considerado um indivíduo perigoso para o sistema oficial de poder.

Procuram Jesus à noite. As trevas, no Evangelho de João, têm um significado especial: em oposição à luz, simbolizam o mal. A ação que está sendo executada é sinal da maldade do “mundo” (instituições que excluem e matam). Jesus, “consciente de tudo o que lhe acontecia”, apresenta-se com o título divino “Eu sou”, identificando-se com o Deus do Êxodo (Ex 3,14). Esse título, paradoxalmente, está ligado com a origem humilde de Jesus: Nazaré da Galileia. O nazareno é Deus. Não é por nada que os guardas caem por terra.

Também Pedro revela muita dificuldade de entender a proposta de Jesus. Sua mentalidade ainda se baseia na ideologia triunfalista. Jesus, porém, vai por outro caminho: a vitória da vida não se dá pelo confronto e pela violência, mas pela obediência ao amor a Deus e ao próximo, também aos inimigos. Foi realmente difícil para Pedro. Decepciona-se com Jesus e vai negá-lo. Mas não deixará de reconhecer profundamente sua falta e tornar-se um discípulo exemplar.

Tanto a instância religiosa, representada por Anás e Caifás, como a instância política do império romano, representada por Pilatos, não encontram motivos para a condenação de Jesus. Esta será efetivada por interesse e conveniência dos chefes. Não foi Deus que quis a morte de seu Filho. Ela foi consequência da opção de Jesus pela verdade e pela justiça, conforme se constata no seu testemunho diante de Pilatos.

O caminho da “via-sacra” até a morte de cruz é a síntese de todo o sofrimento humano assumido por Jesus como gesto de extrema solidariedade. Ele se fez maldito (quem morre suspenso no madeiro é maldito de Deus: Dt 21,23) e foi crucificado entre dois malditos. Todos os crucificados e malditos deste mundo estão contemplados na morte de Jesus. Todos são redimidos no seu amor.

A cruz, para os cristãos, torna-se o caminho de seguimento de Jesus. Significa empenhar-se por um mundo de paz e justiça; renunciar ao poder em todas as suas dimensões; denunciar situações que geram exclusão e morte; assumir a causa dos pequeninos; doar-se cotidianamente pela causa da vida em plenitude, sem exclusão.

Vários textos do Segundo Testamento interpretam a paixão e a morte de Jesus à luz da profecia do Segundo Isaías. Especialmente com base nos quatro cânticos do Servo sofredor, percebe-se íntima ligação com o sofrimento de Jesus. Supõe-se até que Jesus tenha alicerçado sua missão sobre a teologia do Servo sofredor.

O texto para a meditação desta sexta-feira santa refere-se ao quarto cântico. O Segundo Isaías (caps. 40-55) é um movimento profético atuante no meio dos exilados na Babilônia em meados do século VI a.C. Busca incutir ânimo e esperança ao povo que está longe de sua terra, em situação de dor e desolação. É esse povo o “Servo sofredor”: desprezado, aviltado em sua dignidade humana, maltratado, sem beleza e sem importância; condenado injustamente como malfeitor e totalmente desprotegido, sem condições de defesa.

No entanto, esse povo desprezível e maltratado descobre-se como eleito por Deus para uma missão de solidariedade e expiação. Sobre si carrega as dores e enfermidades do mundo, os crimes e iniquidades da humanidade. Esse “Servo sofredor”, visto como um humilhado e castigado por Deus, pelo seu aniquilamento, proporcionou a cura de todos. Deus fez cair sobre seu Servo amado todas as faltas da humanidade. Por ele, os povos recebem o perdão e a paz.

É fácil perceber por que as comunidades cristãs primitivas aplicaram a Jesus a descrição do “Servo sofredor” do Segundo Isaías. Ele se fez Servo de todos e ofereceu sua vida em sacrifício expiatório. Pela sua morte, resgatou a vida de toda a humanidade. O justo condenado injustamente garantiu a nossa justificação.

Um dos objetivos da carta aos Hebreus é fortalecer a fé e o amor das comunidades cristãs. Para tanto, apresenta Jesus Cristo como único mediador entre a humanidade e Deus, superando todas as demais mediações, como a Lei e o Templo. Exorta a “permanecer firmes na fé que professamos”, o que deixa transparecer que membros da comunidade cristã estavam “voltando atrás”, retomando concepções e práticas antigas.

Jesus é apresentado como o único sumo sacerdote e, portanto, já não há necessidade de outros sacerdócios. O sumo sacerdote do Templo entrava no Santo dos Santos, uma vez por ano, a fim de oferecer um sacrifício a Deus. Jesus, pela sua entrega sacrifical, derrubou todas as barreiras que dificultavam o acesso a Deus. Agora, por meio de Jesus, o sumo e eterno sacerdote, todo lugar e todo tempo são propícios para a comunhão com Deus.

O texto salienta a missão terrena de Jesus, sua encarnação, suas súplicas ao Pai em meio a terrível sofrimento, na confiança de que ele podia livrá-lo da morte. Foi obediente até o fim, e Deus o escutou. Jesus “atravessou os céus”, o verdadeiro Santo dos Santos; ofereceu o sacrifício definitivo para a expiação dos nossos pecados. Porque participou humildemente de nossa humanidade e de nossas fraquezas, é capaz de compaixão. Atravessou o céu sem afastar-se da realidade humana. Seu trono não é para juízo e condenação. Podemos nos aproximar dele, fonte de graça e de misericórdia, com toda a confiança, sem nenhum receio. O acesso a Deus está permanentemente aberto, e podemos contar com sua acolhida amorosa.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

– A morte de Jesus foi consequência de sua fidelidade ao amor a Deus e ao próximo. Sua opção pela luz da verdade e da justiça não agradou aos que preferiam as trevas do egoísmo, da mentira e da dominação. Não é fácil entender a proposta de Jesus e aderir a ela. Judas preferiu unir-se aos interesses dos chefes de Jerusalém; Pedro o negou por três vezes… Também hoje existem maneiras diversas de trair e negar Jesus. Houve, porém, pessoas solidárias com Jesus, como as mulheres e o discípulo amado. Também José de Arimateia e Nicodemos… Nós somos chamados a seguir Jesus pela renúncia ao egoísmo e pelo amor vivido cotidianamente. Podemos ser-lhe solidários: ele se identifica com os pobres e sofredores.

– Jesus é o Servo de Deus que se ofereceu em sacrifício pela vida da humanidade. Assumiu a condição humana, foi incompreendido e desprezado, perseguido e condenado; “como cordeiro, foi levado ao matadouro”, porém não usou de vingança nem de violência nenhuma. Como “Servo sofredor”, carregou nossas dores e expiou nossas faltas. Foi obediente ao Pai até o fim. Pela sua vida e pela sua morte, Jesus tornou-se “o caminho, a verdade e a vida”. É importante que nos questionemos a respeito das “fidelidades” que estamos assumindo em nossa vida: elas são coerentes com a proposta de Jesus ou preferimos o caminho das comodidades e da indiferença diante dos problemas que afetam a vida do ser humano hoje?

– Jesus é o nosso mediador junto ao Pai. Ele nos entende perfeitamente porque assumiu em seu próprio corpo os limites e fraquezas humanas. Ele se fez nosso irmão. Acolhe com ternura e misericórdia toda pessoa que a ele se dirige. Ele é fonte de todas as graças. Dele podemos nos aproximar sem medo, com toda a fé e confiança, na certeza do perdão, da ajuda em nossas necessidades e da garantia de vida eterna.

Celso Loraschi

Mestre em Teologia Dogmática com Concentração em Estudos Bíblicos, professor de evangelhos sinóticos e Atos dos Apóstolos no Instituto Teológico de Santa Catarina (Itesc).

E-mail: loraschi@itesc.org.br

 

 

VIGÍLIA PASCAL 

30/03/2024

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AS LEITURAS DESTA PÁGINA E DO MÊS TODO


(Geralmente são escolhidas apenas 3 leituras do AT e a Epístola)

1ªLeitura: Gênesis 1,1-2,2

Salmo Responsorial 103(104) R Enviai o vosso Espírito, Senhor, e da terra toda a face renovai.  

2ª Leitura: Gênesis 22, 1-18

Salmo Responsorial  15(16) R- Guardai-me, ó Deus, porque em vós me refugio!

3ªLeitura: Êxodo 14,15-15,1

Salmo Responsorial  Êxodo 15 R- Cantemos ao Senhor que fez brilhar a sua glória

4ª Leitura: Isaías 54,5-14

Salmo Responsorial 29(30) R- Eu vos exalto, ó Senhor porque vós me livrastes!

 5ª Leitura: Isaías 55,1-11

Salmo Responsorial: Is 12 R- Com alegria bebereis no manancial da salvação

6ª Leitura: Baruc 3,9-15.32-4,4

Salmo Responsorial: 18B(19) R-Senhor, tu tens palavras de vida eterna.

7ª Leitura: Ezequial 36,116-17ª.18-28

Salmo Responsorial: 41(42) R-A minha alma tem sede de Deus

Epístola: Romanos 6,3-11

Salmo Responsorial 117(118) R- ALELUIA, ALELUIA, ALELUIA!

Evangelho: Marcos 16,1-7 - ANO B

"Passado o sábado, Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, e Salomé compraram aromas para ungir Jesus. 2.E no primeiro dia da semana, foram muito cedo ao sepulcro, mal o sol havia despontado.* 3.E diziam entre si: “Quem removerá a pedra do sepulcro para nós?”. 4.Levantando os olhos, elas viram removida a pedra, que era muito grande. 5.Entrando no sepulcro, viram, sentado do lado direito, um jovem, vestido de roupas brancas, e assustaram-se. 6.Ele lhes falou: “Não tenhais medo. Buscais Jesus de Naza­ré, que foi crucificado. Ele ressuscitou, já não está aqui. Eis o lugar onde o depositaram. 7.Mas ide, dizei a seus discípulos e a Pedro que ele vos precede na Galileia. Lá o vereis como vos disse”."


DOM JÚLIO ENDI AKAMINE, ARCEBISPO DE SOROCABA SP


Mc 16,1-7

O relato evangélico que acabamos de ouvir nesta noite é de importância excepcional. Depois das numerosas leituras desta vigília, o evangelho proclama tudo o que foi objeto da promessa e da esperança. O caminho de preparação chega ao seu término; passamos da prefiguração para a plena realização. A boa nova de que o crucificado foi ressuscitado por Deus é a nova criação, o sacrifício agradável do Filho, a verdadeira libertação e o novo êxodo conduzido pelo nosso novo Moisés, é a realidade prefigurada pela passagem pelo mar vermelho a nova aliança e as núpcias eternas com o Deus da Aliança, é a felicidade do banquete preparado pelo Senhor, é a sabedoria da cruz que supera a sabedoria humana, é o cumprimento superabundante da visão da volta à vida.

O evangelho de Marcos fala de três mulheres admiráveis que não se esquecem de Jesus. São Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago e Salomé. São as mesmas que seguiram Jesus pela Galileia e perseveraram junto a Ele até aos pés da cruz. Também foram elas as que viram onde Jesus tinha sido sepultado.

Em seus corações elas tinham um projeto absurdo que só podia nascer de um coração apegado a Jesus: elas compraram perfumes para ungir o corpo de Jesus. Ungir o cadáver: não há nada mais inútil! Serve somente para manifestar o afeto que ainda une essas mulheres ao Mestre morto e sepultado. Elas deviam ter consciência da inutilidade do gesto, e mesmo assim desejam realizá-lo. Por isso o fato de uma pesada pedra selar a entrada do sepulcro, parece também não ser um obstáculo impossível de ser superado. “Quem rolará a pedra para nós?” Trata-se de encontrar alguém disposto a ajudá-las.

A surpresa toma conta delas quando percebem que o túmulo já está aberto. É algo inesperado. Quando se aproximam mais, veem um “jovem vestido de branco” que as tranquiliza e lhes anuncia o que elas não esperavam e não podiam esperar.

Vós procurais Jesus de Nazaré, que foi crucificado? Ele ressuscitou. Não está aqui. Vede o lugar onde o puseram.

É um erro buscar Jesus onde ele não está. Ele não está no túmulo! Ele não é um personagem; Ele é uma pessoa com a qual posso me encontrar porque está vivo. Se já era inútil perfumar um cadáver, o jovem vestido de branco revela que é ainda mais inútil buscar Jesus entre os mortos. Se é inútil perfumar um cadáver, mais inútil ainda é chorar e fazer luto por Jesus.

Jesus não é um mito. É pessoa! Mas para encontrar esta pessoa viva é preciso fazer um caminho. Para encontrá-lo pessoalmente é necessário ir para a Galileia. É o que o jovem pede para as mulheres: Ide, dizei a seus discípulos e a Pedro que ele irá à vossa frente, na Galileia. Lá vós o vereis, como ele mesmo tinha dito.

Jesus precede os discípulos na Galileia, convoca os seus discípulos a encontrá-lo onde ele se manifestou no início, onde os chamou. Foi na Galileia que tudo começou e é lá também onde tudo deve recomeçar. Por isso é lá que os discípulos o verão. Jesus não pode ser visto se não fizermos o seu caminho.

Se quisermos encontrar Jesus em pessoa devemos também nós fazer um caminho; o caminho de Jesus, o caminho que Jesus fez neste mundo.


VIGÍLIA PASCAL - CÔN. CELSO PEDRO DA SILVA


A Bíblia dia a dia 2018’, Paulinas

 

Comentário do Evangelho

As Santas Mulheres vão ao túmulo de Jesus completar os ritos de preparação do corpo para o sepultamento. O corpo de Jesus tinha sido colocado no sepulcro pouco antes do início do sábado. Foram bem cedo, ao raiar do sol do primeiro dia da semana. O túmulo estava aberto e dentro um jovem sentado, vestido de branco. Suas palavras são rápidas: “Não se assustem. Estão procurando Jesus de Nazaré, o Crucificado? Ressuscitou. Não está aqui!”. Em poucas palavras, o jovem, que seria um anjo, disse tudo o que poderia ter dito naquele momento, mas acrescentou: “Vão dizer aos discípulos, e a Pedro, que Jesus vai encontrá-los na Galileia”. O versículo seguinte diz que elas saíram e fugiram do túmulo. Estavam com muito medo e não contaram nada a ninguém. E aqui termina o Evangelho de Marcos. Os demais versículos foram escritos e acrescentados por outra pessoa. Fazem parte do Evangelho e são como todo o texto, palavra inspirada por Deus.


LEITURA ORANTE

Oração Inicial

A ressurreição de Jesus Cristo é o acontecimento central da fé cristã. No Ressuscitado celebramos também a nossa ressurreição. A liturgia da vigília pascal, hoje celebrada, nos renova em nossa fé. Iluminados pela presença do Ressuscitado, peçamos a graça de acolher a Palavra e celebrar a alegria da presença do Senhor em nossa vida.

Rezemos: “Vem, Espírito Santo! Faze-nos amar as Escrituras, para reconhecermos a voz viva de Jesus. Torna-nos humildes e simples, a fim de compreendermos os mistérios do Reino de Deus. Amém.”

Leitura (Verdade)

O que diz o texto? Leia-o e procure compreender o contexto do relato: dia da semana, momento do dia, personagens, diálogos, experiências, certezas… Contemple as mulheres que chegam ao túmulo e o encontram vazio. Como reagem? Que experiência vivem? Qual anúncio recebem?

“Depois do descanso sabático, na madrugada do primeiro dia da semana, chamado pelos antigos de dia do sol, as mesmas mulheres que estavam ao pé cruz (Mc 15,40) compram aromas com a intenção de ungir o corpo de Jesus. Esse fato evoca 14,3-9, em que uma mulher anônima unge a cabeça de Jesus com perfume de nardo; Jesus mesmo interpreta esse gesto realizado na casa de Simão, o leproso, em relação à sua própria morte. Aqui, em nosso relato, a intenção de ungir o corpo de Jesus com perfume se abre para a perspectiva da ressurreição do Senhor. A preocupação delas era a remoção da pedra que vedava a entrada do sepulcro. Chegaram ao sepulcro, e a ‘pedra havia sido retirada’. Trata-se de um passivo divino, para indicar a ação de Deus. Entraram no sepulcro, pois a pedra que impossibilitava o acesso já não estava bloqueando a entrada. Encontraram-se, em primeiro lugar, com um jovem vestido de branco, o que significa que a mensagem que ele tem para transmitir é uma revelação celeste. A proclamação é esta: ‘Ele ressuscitou!’. O túmulo vazio não é prova da ressurreição, mas consequência da fé pascal. À proclamação do anjo segue-se a tarefa de anunciar aos outros discípulos, começando por Pedro, que Jesus, o crucificado, ressuscitou e se fará ‘ver’ na Galileia. O Ressuscitado será encontrado na terra de sua atuação” (Carlos Alberto Contieri, sj, em “A Bíblia dia a dia”, da Paulinas Editora).

Meditação (Caminho)

Qual é a mensagem do texto para sua vida? Você crê que o Senhor ressuscitou e está vivo em nosso meio? O que muda em sua vida com o anúncio: “Ele ressuscitou! Não está aqui!”? O que o texto comunica para as diversas realidades vividas pela humanidade hoje? Quais sentimentos o texto despertou em seu coração?

Acolhamos também nós, em nossa vida, esta boa notícia: “Ele ressuscitou!”. Nosso Senhor ressuscitou e vai à nossa frente, está vivo em nosso meio. Ele é a certeza de que a vida é mais forte do que a morte. Professamos a fé no Cristo ressuscitado e no fato de que também nós ressuscitaremos com Ele.

Oração (Vida)

Peça ao Senhor a graça de viver com profundidade este tempo de graça que a liturgia nos apresenta. Inclua em sua oração outros pedidos de sua escolha.

“Senhor Jesus, te agradecemos porque vivo estás em nosso meio, caminha conosco, partilha as nossas dores e alegrias, enche a nossa vida de paz e de esperança.” Complete a oração com outros agradecimentos.

 

Contemplação (Vida e Missão)

Sintetize em poucas palavras o apelo que você sentiu em seu coração, para colocá-lo em prática durante o dia. O que você se propõe a viver? Como pretende atingir esse propósito?

Bênção

– Que Deus nos abençoe e nos guarde. Amém.

– Que Ele nos mostre a Sua face e se compadeça de nós. Amém.

– Que volte para nós o Seu olhar e nos dê a paz. Amém.

– Abençoe-nos, Deus misericordioso, Pai, Filho e Espírito Santo. Amém.

 

DIANTE DO SEPULCRO, A RESSURREIÇÃO - CARLOS MESTERS E MERCEDES LOPES

 ABRIR OS OLHOS PARA VER

 Marcos 16, 1-8

As mulheres aparecem como testemunhas privilegiadas da morte, do enterro e da ressurreição de Jesus. Participantes de todo o processo da prisão, condenação, paixão, morte e ressurreição de Jesus, elas mesmas, por assim dizer, tiveram uma experiência de morte e ressurreição e, agora, dão testemunho do que viram e viveram. O testemunho nasce da experiência. A gente testemunha o que vive. 

SITUANDO

Tudo se passa diante do sepulcro. As figuras centrais são as mulheres. Elas são testemunhas não só da morte de Jesus (Mc 15,40-41), mas também do lugar onde Jesus foi enterrado (Mc 15,42-47). E de madrugada, saindo de casa para ungir o corpo de Jesus (Mc 16,1-2), são testemunhas também da sua ressurreição (Mc 16,3-6) e são enviadas para testemunhar e anunciar a ressurreição aos outros (Mc 16,7-8).

Aqui, a fé na ressurreição brota dos próprios acontecimentos através do testemunho das mulheres e revela o desafio permanente que esta fé representa para nós no dia-a-dia da nossa vida. O que significa crer na ressurreição para quem vive ameaçado de morte ou para quem vive totalmente sem futuro? E para quem vive desanimado numa depressão permanente, sem possibilidade de cura, desenganado pelos médicos, é fácil crer na ressurreição? Como crer na ressurreição numa sociedade violenta, marcada pela exploração, onde o povo vive desempregado, ou numa terra onde  muitos passam fome e onde, em vez de melhorar, as coisas pioram? Este é o grande desafio da nossa fé! 

COMENTANDO

Marcos 16,1-3: Elas saem de madrugada para ungir o corpo

Novamente, Marcos oferece uma informação com muitos detalhes: hora, lugar, pessoas, dificuldade para tirar a pedra. Estes detalhes sugerem que as mesmas três mulheres são pessoas de confiança para testemunhar a ressurreição. A fé na ressurreição não foi fruto da fantasia, mas algo totalmente inesperado. Elas estavam convencidas de que Jesus estava morto, pois iam para o túmulo para ungi-lo.

Marcos 16,4-6: Elas testemunham a ressurreição e a vida nova

Quando chegam, vêem que a pedra já tinha sido retirada. Entrando dentro do sepulcro, encontram um jovem que lhes anuncia que Jesus está vivo. Ouvindo a notícia da ressurreição de Jesus, elas mesmas ressuscitam por dentro. Tudo isto reflete a profunda experiência de morte e ressurreição pela qual elas mesmas passaram e que era a experiência das comunidades: "Jesus está vivo! Ele ressuscitou!" Elas se tornam testemunhas qualificadas da ressurreição de Jesus.

Marcos 16,7-8: Elas são enviadas para testemunhar a ressurreição

Elas recebem a ordem ou a ordenação de levar a Boa Notícia da Ressurreição para os discípulos que tinham fugido. O anjo dizia: "Vão dizer aos seus discípulos e a Pedro que ele vai na frente deles na Galiléia. Lá vocês vão vê-lo como ele mesmo tinha dito". Na Galiléia, à beira do lago, onde tudo tinha começado, é lá que vai recomeçar tudo de novo. É Jesus que convida! Ele não desiste, nem mesmo diante da desistência dos discípulos! Marcos diz que elas não contaram nada a ninguém pois tinham medo. No que segue (Mc 19,9-14), transparece que elas não se calaram. Testemunharam e falaram, mas não foram levadas a sério pelos discípulos.

Aparecendo às mulheres e dando-lhes a ordem ou a ordenação de anunciar a ressurreição aos discípulos (Mt 28,9-10), Jesus subverte o sistema de vida da época. Numa sociedade onde as mulheres eram marginalizadas da vida pública e nem podiam depor como testemunhas nos tribunais, Jesus pede a todos para crer no testemunho de ressurreição dado pelas mulheres.

Como vimos na introdução, o Evangelho de Marcos foi escrito para ser lido, todo inteiro, na noite de Páscoa por ocasião do batizado dos novos membros da comunidade. O ambiente era de alegria e de ressurreição, onde não havia espaço para  medo e temor. Os cristãos iam escutando a narração da Boa Nova, que, de propósito, terminava com esta frase: "Saindo elas, fugiram do sepulcro, porque estavam possuídas de temor e de assombro, e de medo, não disseram nada a ninguém" (Mc 16,8). Era a frase final, a última, com que Marcos terminava a sua narração sobre Jesus. Naquele ambiente alegre e ressuscitado da noite de Páscoa, a reação espontânea da comunidade era esta: "Medo de que, agora que Jesus ressuscitado está aqui no nosso meio?" Muito provavelmente, terminada a leitura, todos devem ter iniciado um canto de louvor e de agradecimento, como costumamos fazer até hoje, quando termina a leitura do Evangelho. 


ALARGANDO


As discípulas de Jesus: SEGUIR, SERVIR, SUBIR

Marcos deixa entrever de forma surpreendente, as mulheres que seguiam e serviam a Jesus enquanto ele esteve na Galiléia e que houve ainda muitas outras que subiram com ele até Jerusalém. A presença das mulheres no grupo que seguia Jesus, vivendo o seguimento em igualdade de condições, nem sempre foi vista com clareza. Talvez porque nossos olhos estavam opacos, como os dos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35). No entanto, o despertar da mulher e sua busca para abrir espaços de participação na sociedade e nas igrejas nos ajudam a enxergar esse fato com clareza. Com a luz que nos vem da luta das mulheres, hoje, conseguimos perceber as discípulas que seguiram Jesus desde quando ele estava na Galiléia e percebemos este fato como um sinal do Reino de Deus presente naquela realidade, como uma pequenina luz que anuncia um tempo novo e denuncia a sociedade patriarcal excludente.


Marcos usa três palavras para definir o relacionamento das mulheres com Jesus: Seguir! Servir! Subir! Elas "seguiam e serviam" a Jesus e, junto com "muitas outras, subiram com ele para Jerusalém" (Mc 15,41). São as três palavras que definem o discípulo ou a discípula ideal. Elas são modelo para os outros discípulos que tinham fugido!


SEGUIR: descreve o chamado de Jesus e a decisão dos discípulos (Mc 1,18). Esta decisão implica deixar tudo e correr o risco de ser executado (Mc 8,34;10,28).


SERVIR: mostra que elas são verdadeiras discípulas, pois o serviço é a característica principal do discipulado e do próprio Jesus (Mc 10,42-45).


SUBIR: mostra que elas são testemunhas qualificadas da morte e ressurreição de Jesus, pois, como os discípulos, elas o acompanharam desde a Galiléia até Jerusalém (At 13,31).


Testemunhando a ressurreição de Jesus, testemunham também o que elas mesmas viram e experimentaram: a morte e a ressurreição. É a experiência do nosso batismo. "Pelo batismo fomos sepultados com Jesus na morte, para que, assim como Cristo foi ressuscitado dos mortos por meio da glória do Pai, assim também nós possamos caminhar numa vida nova" (Rm 6,4). Pelo batismo, todos nós participamos da morte da ressurreição de Jesus.

 

 VIGÍLIA PASCAL - Celso Loraschi

 

I. INTRODUÇÃO GERAL

A Vigília Pascal é a reafirmação comunitária da fé na ressurreição. É a celebração da vitória da vida sobre a morte. Depois de um dia de silêncio e meditação sobre a paixão e morte de Jesus, a comunidade cristã exulta de alegria pela Páscoa da ressurreição do Senhor. A Vigília Pascal baseia-se numa antiga tradição israelita, conforme se lê no livro do Êxodo: “Esta noite, durante a qual Iahweh velou para fazer seu povo sair do Egito, deve ser para todos os israelitas uma vigília para Iahweh, em todas as suas gerações” (Ex 12,42). No evangelho, encontramos o sentido cristão da vigília: “Tende os rins cingidos e as lâmpadas acesas. Sede semelhantes a pessoas que esperam seu senhor voltar das núpcias, a fim de lhe abrir, logo que ele vier e bater” (Lc 12,35-36). A liturgia da Palavra, bem como a simbologia desta celebração, recorda a ação criadora e libertadora de Deus na história humana, culminando com a ressurreição de Jesus. É o acontecimento central de nossa fé. Quem vive alicerçado na certeza da ressurreição é nova criatura.

II. A SIMBOLOGIA DA CELEBRAÇÃO

Os símbolos que fazem parte da celebração da Vigília Pascal são portadores de sentidos relacionados à vida nova. Os paramentos brancos anunciam a vitória sobre o mal e a paz que Jesus ressuscitado nos dá. Apontam para o viver revestido dos mesmos sentimentos de Jesus: “Como escolhidos de Deus, santos e amados, vistam-se de sentimentos de compaixão, bondade, humildade, mansidão, paciência…” (Cl 3,12). As vestes brancas identificam os que são fiéis a Jesus e estão inscritos no livro da vida (Ap 3,4-5).

O fogo purifica, aquece e ilumina. Na Bíblia, o símbolo do fogo é utilizado para descrever a identidade e a ação de Deus. Pelo fogo, Deus manifestou-se a Moisés e revelou-se como libertador do povo escravizado (Ex 3,1-12). De noite, para iluminar o caminho por onde devia passar o povo rumo à terra prometida, Deus andava à sua frente, como uma coluna de fogo (Ex 13,21). João Batista anuncia o batismo de fogo que será realizado pelo Messias (Mt 3,11). Jesus também proclama que veio trazer fogo à terra e deseja ardentemente que esteja aceso (Lc 12,49). O Espírito Santo se revela como “línguas de fogo” (At 2,3). O fogo expressa força, paixão, indignação profética; alastra-se facilmente, como se alastra a boa notícia da ressurreição.

A luz é outro símbolo que revela o ser e o agir divinos. Deus separou a luz das trevas; viu que a luz era muito boa (Gn 1,3-4). Deus é um ser envolto em luz (Sl 104,2); Jesus Cristo é a luz verdadeira que ilumina a humanidade (Jo 1,9), e quem o segue “não anda nas trevas, mas terá a luz da vida” (Jo 8,12). Ele é o vencedor das trevas e da morte: nesta noite santa, é representado pelo círio pascal. Nele acendemos nossas velas, como gesto de compromisso com o seguimento de Jesus, fonte de vida plena. “Se caminhamos na luz como ele está na luz, estamos em comunhão uns com os outros e o sangue de Jesus nos purifica de todo pecado” (1Jo 1,7).

A água simboliza a vida, fertiliza a terra, mata a nossa sede, nos limpa… Lembra a imersão batismal pela qual nos tornamos filhos de Deus. Representa o novo nascimento: “Quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no reino de Deus” (Jo 3,5). Na celebração eucarística, mistura-se a água (nossa humanidade) com o vinho (divindade). Do lado aberto de Jesus morto na cruz, traspassado pela lança, “saiu sangue e água” (Jo 19,34). O círio pascal mergulhado na água é a íntima união de Cristo com a humanidade. Do interior de quem crê em Jesus morto e ressuscitado “fluirão rios de água viva” (Jo 7,38).

 

IV. PISTAS PARA REFLEXÃO

– A criação e a libertação são duas notas características do agir de Deus. Gratuitamente, ele criou todas as coisas; fez-nos à sua imagem e semelhança e nos deu a missão de administrar os bens com justiça e fraternidade. Toda forma de ganância e de concentração de bens é uma afronta à bondade e à generosidade divinas. Caracteriza-se como roubo do que é dom de Deus para a vida de todos os povos. O futuro da humanidade está ameaçado por causa da utilização egoísta dos recursos disponíveis. Porém, não há situação que não possa ser transformada. Deus nos possibilita um coração novo; liberta-nos do egoísmo e nos indica caminhos de vida em abundância.

– A ressurreição de Jesus é a boa notícia que transforma o mundo. A morte foi vencida definitivamente. A exemplo das mulheres na madrugada do primeiro dia da semana, nós acreditamos, sem duvidar, que Jesus ressuscitou e vive em nosso meio. Assumimos a missão de discípulos missionários, testemunhando a fé e o amor a começar de nossa casa. Como batizados, crucificamos o egoísmo na cruz de Jesus para viver como novas criaturas, promovendo relações de diálogo, de reconciliação, de justiça, de paz e de fraternidade.

– Os símbolos da celebração da Vigília Pascal evocam a vitória do bem sobre o mal, da vida sobre a morte.Queremos viver com a veste resplandecente de Cristo ressuscitado, purificados pela água batismal, no fogo do seu amor e na luz de suas palavras. Seguindo a Jesus, anunciamos a aurora de um mundo novo.

 

Celso Loraschi

Mestre em Teologia Dogmática com Concentração em Estudos Bíblicos, professor de evangelhos sinóticos e Atos dos Apóstolos no Instituto Teológico de Santa Catarina (Itesc).

 

TEXTOS DE D. DAMIAN NANNINI, ARGENTINA 

(FORAM TRADUZIDOS PELO TRADUTOR GOOGLE, SEM NOSSA CORREÇÃO)

QUINTA-FEIRA SANTA. MISSA DA CEIA DO SENHOR 

“Na tarde de Quinta-feira Santa , entrando no Tríduo Pascal, reviveremos a Missa chamada in Coena Domini, ou seja, a Missa onde se comemora a Última Ceia, o que aconteceu ali, naquele momento. Ele deixou aos seus discípulos o testamento do seu amor na Eucaristia, mas não como memória, mas como memorial, como a sua presença perene. Cada vez que se celebra a Eucaristia, como disse no início, este mistério de redenção se renova. Neste Sacramento, Jesus substituiu a vítima sacrificial - o cordeiro pascal - por Ele mesmo: Seu Corpo e Sangue nos dão a salvação da escravidão do pecado e da morte. A salvação de toda escravidão está aí. É a tarde em que Ele nos pede para amem-se uns aos outros tornando-se servos uns dos outros, como fez ao lavar os pés dos discípulos. Um gesto que antecipa a oblação sangrenta na cruz. E de fato o Mestre e Senhor morrerá no dia seguinte para limpar os pés. , mas os corações e a vida inteira de seus discípulos. Foi uma oblação de serviço a todos nós, porque com esse serviço do seu sacrifício ele nos redimiu a todos” (Francisco, Catequese de 31/03/2021).

 

Primeira leitura (Ex 12,1-8,11-14)       

Este texto faz parte de um longo discurso de Deus a Moisés e Aarão que contém instruções sobre os ritos litúrgicos relativos ao cordeiro pascal (12,1-13) e aos pães ázimos (12,15-20). Nestas instruções litúrgicas encontramos vários elementos que nos remetem ao tempo do exílio ou posterior. Enquanto o antigo calendário hebraico dava o início do ano no outono, aqui se refere à primavera, ao mês de Nisan, de acordo com o calendário pós-exílico de origem babilônica. Fala-se da “comunidade de Israel” e da “casa do pai ou da família” que reflectem antes uma típica organização pós-exílica. Além disso, há semelhanças com Esdras 6:19-22, onde o substantivo Pessach (Páscoa) aparece diversas vezes com o sentido de celebração como em Êx 12:11.-

Em relação à festa da Páscoa, determina-se a obtenção de um animal por família; e se a família for muito pequena, deve unir-se à do vizinho. E é comido em pé, pronto para sair, pois é o último jantar dos israelitas no Egito.

 

Segunda lectura (1 Cor 11, 23-26) 

Na subseção de 1Cor 11, 17-34 o argumento tem três partes ou momentos: nos versículos 17 a 22 é descrita a situação comunitária negativa; em 23-26 refere-se à origem e significado da Ceia do Senhor; e nos capítulos 27-34 são dadas instruções práticas para superar a situação.

A liturgia nos traz apenas a referência à origem e ao significado da Ceia do Senhor.

Paulo começa dizendo que vai transmitir o que recebeu primeiro . Recebi (pare,labon) e transmiti (pare,dwka) são termos técnicos, tanto no rabinismo como na Igreja apostólica, para comunicar uma tradição sagrada (Cf. 15,3 onde são usados ​​os mesmos termos). A referência ao Senhor indica que esta tradição remonta ao próprio Jesus [1] . Reforçando isto está a referência clara da narrativa que acompanha o acontecimento histórico na medida em que dá o nome do protagonista (“o Senhor Jesus”) e uma indicação cronológica (“a noite em que seria traído”).

A referência à “ nova aliança ” refere-se a Jr 31.31-34. Quanto à expressão completa que qualifica o cálice “a nova aliança no meu sangue”, evoca claramente o rito da aliança que foi selada com o derramamento de sangue. “Isso significa que, através das palavras acima mencionadas, a morte de Cristo é apresentada como uma instituição da Nova Aliança; mas, além de descobrir esse valor, tais palavras revelam que, tal como no caso das palavras pronunciadas sobre o pão, Através deles se torna presente o acontecimento salvífico considerado como a instituição da Nova Aliança; isto é, se torna presente a morte de Cristo na cruz” [2] .

Esta opinião é reforçada pelo significado do memorial e pela expressão final de 11,26.

         A ordem “ fazei isto em memória de mim (evmh.n avna,mnhsin)” nos remete à ordem de repetir a Páscoa de Êx 12:26, ​​mas com a notável diferença de que o que é lembrado é a pessoa e não apenas a obra salvífica [3] . Ou seja, o Senhor Jesus deveria ser o anfitrião da refeição e está realmente presente na celebração da sua obra redentora . Esta presença de Jesus só é possível em virtude da ressurreição, que então aparece em Paulo como intrinsecamente ligada à Eucaristia, como também em Lucas (cf. Lc 24,30-35).

         O V. 26 não faz parte da tradição recebida por Paulo. Pelo contrário, é uma recapitulação do Apóstolo sobre o significado global do rito. Aqui vale destacar como se conjugam as três dimensões temporais: a referência à morte de Jesus ( passado ); a repetição da celebração ( presente ); e a expectativa da parusia de Jesus ( futuro ).

  

Evangelho (Jo 13,1-15) 

O versículo 13,1 é a introdução à narrativa do lava-pés, mas também a toda a segunda parte do Evangelho de João, que é a história da paixão, morte e ressurreição de Jesus. É uma introdução solene, com forte carga teológica, pois são feitas referências à Páscoa, à passagem ao Pai, à hora, ao amor extremo de Jesus.

         Começa com uma referência à Páscoa, principal festa dos judeus, que é descrita em Êx 12,27 da seguinte forma: “Este é o sacrifício da Páscoa do Senhor, que passou no Egito pelas casas dos israelitas quando puniu os egípcios e salvou nossas famílias. Desta forma, os acontecimentos a narrar estão ligados à história da salvação de Israel. Como bem observa F. Moloney[4]: “Os dois “tempos” que percorrem a narrativa, as festas dos “judeus” (2,13.23; 4,45; 5,1.9; 6,4; 7,2; 10,22; 11,55-57; 12,1) e a “hora” de Jesus, são determinadas pelo plano de Deus (2,4; 4,21,23; 7,30; 8,20; 12,23,27) . Agora os dois estão unidos, pois se celebra uma festa “dos judeus”, que é também a hora de Jesus (13, 1a)”.

         Depois o evangelista declara o conhecimento ou consciência de Jesus da hora ou momento decisivo da sua paixão ou passagem ao Pai, que é o cumprimento da sua missão. Isto faz de Jesus o protagonista ativo daquilo que vai acontecer; Isto é, «não está sujeito aos factos, mas antes os domina e sai ao seu encontro, oferecendo-se espontaneamente (cf. 10, 17-18)» [5] .

         A referência ao amor pelo seu povo, pelos seus discípulos, é muito importante porque nos revela a motivação que levou Jesus a renunciar à sua vida e a aceitar a sua morte. A morte na cruz é expressão do seu amor extremo, até o fim ou limite (εἰς τέλος); É o maior amor de quem dá a vida pelos amigos (cf. Jo 15, 13).

         Em 13:2 já temos a devida introdução à história, situando-nos na ceia pascal e apresentando, em claro contraste com a entrega de Jesus, a traição de Judas motivada pela ação do Diabo. Por sua vez, 13,3 insiste mais uma vez na consciência e na liberdade de Jesus, que sabe que o Pai deixou tudo em suas mãos e que “viera de Deus e voltava para Deus”. Em 13,4-5 a ação de lavar os pés nos é descrita com 8 verbos: “levantou-se da mesa, tirou o manto e pegou uma toalha e amarrou-a na cintura. Depois despejou água num recipiente e começou a lavar os pés dos discípulos e a enxugá-los com a toalha que tinha na cintura.”

         Lavar os pés era um gesto de acolhimento e hospitalidade que devia ser feito assim que se chegava à casa do anfitrião, antes de comer; e servos ou escravos pagãos fizeram isso. Jesus rompe com esta antiga tradição porque realiza esta ação “fora do tempo” e porque, sendo aquele que preside o jantar, o mestre, ocupa o lugar do “servo”. Isto justifica em grande parte a surpresa e a reação de Pedro e dos discípulos.

         Além da surpresa, os estudiosos veem por trás da recusa de Pedro em ter os pés lavados por Jesus um paralelo com a rejeição do Messias sofredor que os sinópticos nos apresentam em Mc 8:31-38 e paralelos. Ou seja, Pedro não aceita o Messias humilde e servo que se manifesta neste gesto de lavar os pés; talvez porque saiba bem que será este mesmo caminho, o do serviço humilde, que deverá percorrer para seguir e imitar o seu Mestre.

         A resposta de Jesus é exaustiva: «Se eu não vos lavar, não tereis parte comigo» (Jo 13, 8). O “ter parte” (ἔχεις μέρος) refere-se ao Antigo Testamento que usa esta expressão para se referir à herança que Deus concede ao seu povo (cf. Gn 31,14; Dt 10,9; 14,27-29; 18, 1 -2). Aqui se referiria a compartilhar o mesmo destino de Jesus, que é sua morte e ressurreição. Como bem comenta G. Zevini [6] : “para o quarto evangelista trata-se da vida de unidade e de amor que o crente está destinado a viver com o Pai e com Jesus. Neste ponto Pedro deve escolher entre o seu próprio projeto e o de Jesus, entre perder o Mestre ou aceitar o escândalo da cruz”.

         A resposta de Pedro é de total aceitação da vontade de Jesus, não deixando dúvidas: «Senhor, não só os pés, mas também as mãos e a cabeça» (Jo 13,9).

         Nas palavras finais de Jesus (13,10-15) podemos distinguir duas partes. A primeira (10-11) é um tanto misteriosa: Jesus diz aos seus discípulos que eles não precisavam se lavar porque já estavam limpos, ou melhor, puros (καθαρὸς). Se levarmos em conta o que Jesus dirá mais tarde em 15,3 (“Vós já estais limpos (καθαρὸς) por causa da palavra que vos anunciei”), isso se referiria à pureza interior que é o resultado da aceitação da Palavra do Senhor com fé.

         Na segunda parte (12-15) Jesus explica claramente o significado do gesto que acaba de realizar. Reafirmando que é Mestre e Senhor (ὁ διδάσκαλος, καί· ὁ κύριος), lavou-lhes os pés para lhes dar um exemplo (ὑπόδειγμα) que deveriam imitar. Isto é, seguindo o estilo adequado de argumento rabínico, ele lhes mostrou com aquele gesto que se Ele, sendo Mestre e Senhor, lavou os pés deles, quanto mais deveriam lavar os pés uns dos outros. Mas não esqueçamos que se trata de uma linguagem simbólica cujo ensinamento ético vai muito além do gesto concreto porque o mandamento é real, mas refere-se a uma atitude de serviço humilde que transcende este mero gesto simbólico [7] . Santo Agostinho compreendeu-o bem ao explicar o que fez no seu tempo: “o que não se faz com as mãos (ou seja, lavar os pés), se faz com o coração”.

  

Algumas reflexões

 

Destaquemos um elemento comum às três leituras de hoje: trata-se do jantar ou refeição de Páscoa em ambiente familiar e de despedida.

A primeira leitura dá as instruções para o jantar da Páscoa judaica em família.

A epístola e o evangelho nos contam parte da última ceia de Jesus com seus discípulos, também a ceia pascal[8].

Sobre o caráter familiar desta festa, Joseph Ratzinger[9] escreveu: “A Páscoa de Israel foi e é uma festa familiar. Não foi celebrado no templo, mas em casa. A casa já aparece na história da fundação, contada no livro do Êxodo (12,1-14), como espaço de salvação e refúgio no meio daquela noite escura, por onde vagueia o anjo da morte. A noite do Egipto foi, pelo contrário, a imagem dos poderes da morte, da destruição, do caótico, que sempre irrompem e ameaçam destruir a boa criação e transformar o mundo num deserto inabitável. A casa e a família protegem contra essa situação. Por outras palavras, sempre mais uma vez o mundo deve ser protegido contra o caos e sempre mais uma vez a criação deve ser fundada e protegida […] Jesus também celebrou a Páscoa seguindo estas prescrições: em casa com a sua família, isto é, com os apóstolos, que se tornaram seus nova família […] A Igreja é a nova família e a nova cidade, que é para nós o que Jerusalém foi: aquela casa viva que evoca os poderes do caos e proporciona um espaço de paz que sustenta a criação e nos sustenta . A Igreja é a nova cidade como família de Jesus”.

         O Diretório Homilético nº 40 atualiza este tema das leituras afirmando que “Somos tantas famílias que viemos ao mesmo lugar e adquirimos um cordeiro”.

         Este longo preâmbulo convida-nos a celebrar esta Quinta-feira Santa (e porque não toda a Semana Santa) num ambiente familiar, sabendo que a partir daqui devemos recomeçar todos os anos.

 

         Também o clima desta Missa, como o da Última Ceia, é um clima de despedida. Jesus percebe a proximidade da sua paixão e da sua morte; e é por isso que ele quer celebrar esta refeição pascal com os seus discípulos. Precisamente o Evangelho de hoje, desde o início, nos coloca neste clima: “Jesus, sabendo que era chegado o tempo de passar deste mundo para o Pai, Aquele que amou os seus que ficaram no mundo, amou-os até ao fim” ( Jo 13,1).

         Como observa J. Ratzinger, há duas palavras fundamentais neste texto: “passo” e “amor”. É a hora da passagem de Jesus deste mundo para o Pai, ou seja, da sua morte. E é também a hora do amor de Jesus ao extremo. E “os dois termos explicam-se, são inseparáveis. O próprio amor é o processo de passagem, de transformação, de saída dos limites da condição humana destinada à morte, em que estamos todos separados uns dos outros, numa alteridade que não podemos superar"[10]. Que a Páscoa seja uma “passagem” nos lembra que somos hóspedes neste mundo, que estamos “de passagem” nesta vida, que o que é definitivo e completo não está aqui. Isto é vital porque «quem mergulha no mundo, quem vê o único céu na terra, faz da terra um inferno, porque a obriga a ser o que não pode ser, porque quer possuir nela a realidade definitiva, e Desta forma, ele exige algo que o confronte consigo mesmo, com a verdade e com os outros. Não, nos tornamos livres, livres da ganância de possuir, precisamente quando tomamos consciência de que somos nômades; É então que nos tornamos livres uns para os outros e é então que nos é confiada a responsabilidade de transformar a terra até que um dia possamos colocá-la nas mãos de Deus”[11].

         Por sua vez, o amor é precisamente o que há de definitivo nesta vida, o que não passa, o que não se perde, o que dá sentido eterno à vida e nos faz transcender os seus limites. O amor extremo de Jesus levou-o a doar-se, a doar-se totalmente e a não ficar fechado no seu pequeno grupo. Na verdade, depois da refeição em família, Jesus levantou-se e saiu para o Getsêmani. Para J. Ratzinger “isto significa que, sendo os muros da Igreja a fé e o amor de Jesus Cristo, a Igreja não é uma praça fortificada, mas uma cidade aberta; e, consequentemente, acreditar significa também sair com Jesus Cristo, não temer o caos, porque Jesus é mais forte que a morte, porque entrou nesse caos, e nós, ao enfrentá-lo, seguimo-lo. Crer significa sair dos muros e, no meio deste mundo caótico, criar espaços de fé e de amor, fundados na força de Jesus Cristo”[12].

         Neste clima de despedida, Jesus antecipa sacramentalmente a entrega da sua vida na cruz e revela-nos o seu significado. Com efeito, ao instituir a Eucaristia, ele revela-nos que dá o seu corpo e derrama o seu sangue, ou seja, toda a sua vida, pelos homens, para restabelecer a Aliança dos homens com o Pai.

Além disso, neste clima de despedida Jesus prepara, de certa forma, a sua sucessão, “o depois”, deixando o seu testamento aos apóstolos, à Igreja que ali nasce.

O que o Senhor nos deixa, o que o Senhor nos dá nesta Quinta-feira Santa?

 

         Þ Em primeiro lugar, a sua presença real e sacramental na Eucaristia .

 

         Como disse o Papa Francisco na homilia da Quinta-feira Santa de 2020: “o Senhor que quer permanecer connosco na Eucaristia . E sempre nos tornamos tabernáculos do Senhor; Levamos o Senhor conosco, a tal ponto que Ele mesmo nos diz que se não comermos o Seu corpo e não bebermos o Seu sangue, não entraremos no Reino dos Céus. Este é o mistério do pão e do vinho, do Senhor conosco, em nós, dentro de nós”.

 

         Þ Deixa-nos também o mandamento-sacramento da Caridade com a sua expressão visível que é o Serviço.

         " O serviço . Aquele gesto que é condição para entrar no Reino dos Céus. Sirva, sim, a todos. Mas o Senhor, naquela troca de palavras que teve com Pedro (cf. Jo 13, 6-9), fez-lhe compreender que para entrar no Reino dos Céus devemos deixar que o Senhor nos sirva, que o Servo de Deus seja servo de nós. E isso é difícil de entender. Se não deixo o Senhor ser meu servo, deixa que o Senhor me lave, me faça crescer, me perdoe, não entrarei no Reino dos Céus” (Francisco, homilia da Quinta-feira Santa de 2020).

 

 

         Þ Ele também nos deixa o Sacramento da Ordem .

 

A Igreja celebra a Eucaristia ao longo dos séculos precisamente em continuidade com a acção dos apóstolos, obedientes ao mandato do Senhor. A instituição da Eucaristia exige a instituição da Ordem Sacerdotal, através da qual a missão confiada por Cristo aos seus apóstolos continua a ser exercida na Igreja até ao fim dos tempos.

        

Estas são as três realidades que Jesus deixou à Igreja neste dia santo; Além disso, ali nasceu a própria Igreja, do mistério pascal antecipado na Quinta-feira Santa e consumado na Sexta-feira Santa.

Podemos dizer que hoje, ao celebrarmos esta Eucaristia como Igreja, celebramos quem somos, a nossa origem e a nossa identidade. Hoje, ao celebrar e receber a Eucaristia com fé, entramos em comunhão com Jesus e uns com os outros, tornamo-nos Igreja de Jesus.

A Eucaristia que faz a Igreja, e a família é a Igreja doméstica; Portanto, a Eucaristia cria e sustenta os laços familiares e comunitários. No calor da Eucaristia devemos realizar a nossa identidade eclesial como casa e escola de comunhão, como família de Deus. Nela devemos permanecer como na nossa própria casa, o nosso lar, lugar onde encontramos a firmeza da nossa fé. E aqui devemos, antes de mais nada, pôr em prática o mandamento do amor ao serviço dos outros.

 

PARA ORAÇÃO (RESSONÂNCIAS DO EVANGELHO EM ORAÇÃO):

 

A última Ceia

 

Apenas um Rei da sua Divindade

Sua Majestade poderia se desdobrar                                 

Em um momento tão solene

 

Isso me deixa com um nó na garganta

Só de pensar nisso

E contemplo sua beleza em silêncio

 

Seus gestos em perfeita harmonia

Como a dança de um cisne

Na maior delicadeza

 

Sua realeza passa pela dor

Seus olhos têm aquele brilho

Que os outros não entenderam

 

Se eles tivessem entendido...

Ninguém teria interrompido você,

Nem mesmo Pedro...

 

Eles teriam se deixado amar

Apenas deixe-se tocar por você

Servo dos servos.

 

Se eu finalmente entendi, quem sabe?

Somente você, meu Senhor e Mestre

Grave seu exemplo em mim. Amém



[1] Os estudiosos concordam com a origem pré-paulina desta perícope e pensam que Paulo recebeu esta tradição em sua comunidade “mãe” de Antioquia.

[2] JM Díaz Rodelas, Primeira carta aos Coríntios , 202.

[3] J. Jeremias pensa que a memória é dirigida a Deus na medida em que envolve Ele lembrar que a obra da redenção ainda está incompleta. Baseia-se no uso da anamnese em Números 10:10; Ex 30,16 e Senhor 50,16. Esta posição não teve muito eco, mas é possível que esta dimensão seja um aspecto do memorial.

[4] O Evangelho de João , Estella, Verbo Divino 2005; 516.

[5] G. Zevini, Evangelho segundo São João (Siga-me; Salamanca 1995) 336.

[6] Evangelho segundo São João (Siga-me; Salamanca 1995) 340.

[7] Cf. J. Dupont, “A Linguagem Simbólica das Diretrizes Éticas de Jesus” em Estudos sobre os Evangelhos Sinópticos I (Leuven 1985) 772-773.

[8] J. Jeremias conta-nos que, por falta de espaço dada a afluência de peregrinos, desde o s. I AC apenas a imolação do cordeiro ocorria na esplanada do Templo enquanto a ceia pascal era celebrada nas casas das famílias, na Última Ceia. Palavras de Jesus (Cristianismo; Madrid 1980) 43.

[9] Vejamos o Transpasado (Fundación San Juan; Rafaela 2007) 131-133.

[10] J. Ratzinger, Jesus de Nazaré. Da entrada em Jerusalém até a ressurreição, 70-71.

[11] J. Ratzinger, O Caminho Pascal (BAC; Madrid 1990) 111-112.

[12] A viagem pascal (BAC; Madrid 1990) 112.


SEXTA FEIRA SANTA

MEDITAÇÃO PARA SEXTA-FEIRA SANTA

 

Evangelho: Paixão segundo São João (Jo 18,1-19,42)

 

Na Sexta-feira Santa lemos sempre o texto completo da Paixão do Evangelho segundo São João. Ao contrário do resto do seu conteúdo, as histórias de paixão nos Sinópticos concordam com o Quarto Evangelho tanto na escolha dos episódios como na ordem geral da narrativa a partir de Jo 11,47. Esta conformidade é ainda maior depois da prisão de Jesus (Jo 18,3). Mas no nível teológico as acentuações do evangelho segundo São João são bem marcadas e adequadas.

Vejamos como a história segundo São João nos oferece alguns pontos de vista particulares do mistério da Paixão do Senhor:

 

(1) A paixão e morte de Jesus é um dom de amor que salva

 

Segundo João, a Cruz é uma revelação do amor de Deus no mundo: “ Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna ” (3:16). Somente Jesus pode carregar esta cruz. Mas a sua vitória que salva o mundo se manifestará em incríveis expressões de amor que iluminam as trevas dos corações, resgatam da escravidão interna e levam o crente a agir segundo a força desse mesmo amor.

A dinâmica da história mostra em todos os seus detalhes como a Paixão de Jesus é um dom de amor e não consequência da sua fraqueza. É a morte do Bom Pastor que “ dá a vida pelas ovelhas... para que tenham vida e a tenham em abundância ” (10,11.10).

Em Cristo, as duas dimensões da cruz – a vertical (o amor de Deus até a aceitação da prova suprema da morte) e a horizontal (manter a solidariedade com os homens, apesar de tudo) – formam uma unidade, e são as duas dimensões do amor.

 

(2) A paixão e morte de Jesus é uma entrega voluntária da vida e não uma simples fraqueza

 

Sem esconder o aspecto doloroso, para João, o grande valor da Paixão de Jesus reside no facto de ser fruto de um dom, de uma liberdade total, de a ter vivido com plena consciência e conhecimento: “Dou a minha vida a recuperá-lo de novo... eu o dou de bom grado ” (10:17-10). 

 

(3) A paixão e morte de Jesus é a proclamação da sua realeza

 

Em João o processo romano desenvolve-se muito mais. A história é cuidadosamente estruturada em sete cenas dispostas simetricamente. O tema principal é a realeza de Jesus . O título de Basileus (rei) é repetido nove vezes. Esta realeza manifesta-se continuamente: no interrogatório, quando interpelado por Pilatos, Jesus declara que é verdadeiramente rei; nas palavras que Pilatos dirige à multidão: “Quereis que eu liberte o rei dos judeus?” (18,39); na brincadeira dos soldados que vestem Jesus como rei (João não diz que depois lhe tiraram a púrpura); na apresentação final, quando Pilatos, sentado no tribunal, mostrou Jesus e proclamou: “Eis o teu rei” (19,14). Por outro lado, todos os acontecimentos são ordenados de forma a verificar a profecia de Jesus sobre o tipo de morte que lhe cairia: a elevação acima da terra (8:32-33; 18:32). Assim se manifesta a glória do Filho de Deus (A. Vanhoye).

Para cartão. Martini [1] a questão temática fundamental que o texto quer responder pode ser expressa desta forma: “qual é a verdadeira realeza de Cristo, se, quando quiseram fazê-lo rei, ele fugiu, enquanto aqui os fatos e situações insistentemente Eles o proclamam rei?

A resposta do quarto evangelho é que Cristo reina na sua Paixão , é rei sobretudo na cruz porque ali manifesta aos homens a sua entrega gratuita por amor ao Pai. Na cruz ele testemunha a verdade do amor do Pai . O mesmo cartão. Martini [2] nos explica e aplica muito bem: “O que significa Reino de Deus ou Reino do Pai? Significa que Deus está no centro de toda a realidade e que toda a realidade está perfeitamente ordenada sob o domínio divino. é o Reino de Deus que Jesus veio estabelecer. Segundo a doutrina exposta por João, este domínio é dado a Jesus precisamente no momento em que ele cumpre o serviço supremo da caridade e da verdade. A palavra de Jesus sobre a atração. Jesus não reina dominando, isto é, estendendo sua influência de pessoa a pessoa através de um poder do alto, mas reina atraindo. Fazendo brilhar dentro dele o amor de Deus pela humanidade desamparada. Jesus é capaz de atrair sim a todos que sabem como leia este sinal, isto é, para quem, através da mediação da cruz, sabe ler na própria pobreza e desamparo - situação muito semelhante à do Filho - a certeza de ser amado por Deus.

 

 (4) A paixão e morte de Jesus é uma “revelação”

 

A morte de Jesus é a “hora de Glória” em que Deus se manifesta plenamente ao mundo. Todo o percurso histórico da revelação chega ao seu cumprimento: “ Está tudo consumado ” (19,30). 

Desta forma, em Jesus crucificado se revelam o rosto de Deus e o rosto do homem, enquanto recebemos tudo o que necessitamos para viver plenamente, acessando a vida eterna que é de Deus.

 

(5) A Paixão e morte de Jesus é exaltação: a Cruz torna-se Glória

Com a sua habitual compreensão dos planos, São João sabe ver contemplativamente a unidade do mistério: o Jesus terreno é ao mesmo tempo o Cristo glorioso. O crucificado trespassado pela lança é ao mesmo tempo o Cristo Exaltado e Glorioso.

João é caracterizado principalmente pela sua insistência no aspecto glorioso da própria Paixão. Para João, a luz da Ressurreição já transfigura a história da Paixão. Através do sofrimento e da humilhação, João vê continuamente a glória de Jesus manifestada. Sua paixão é uma paixão gloriosa. Jesus o declara desde o início, quando Judas sai do cenáculo: “Agora o Filho do Homem foi glorificado e Deus foi glorificado Nele” ( Jo 13,31). Pouco depois, a oração sacerdotal antecipa a interpretação da Paixão, colocando-a nesta luz: “Pai, chegou a hora, glorifica o teu Filho...”.

João enfatiza que a tortura de Jesus foi uma elevação na cruz, e não um apedrejamento que esmaga o homem. Descubra nisto uma intenção divina, um sinal revelador. Na narrativa, João mostra em todos os momentos como os próprios esforços dos inimigos de Jesus contribuem, apesar de si mesmos, para revelar cada vez mais claramente a glória de Jesus.

A história de Juan é toda permeada de uma serenidade sublime. Não fala de trevas nem de cataclismos, não menciona nenhum ridículo, não usa a palavra “ladrões” (diz apenas “outros dois” e anota a inscrição na cruz, que querem que ela seja corrigida, mas não podem .o que está escrito, está escrito). João mostra que Jesus dirige os acontecimentos : define a situação da mãe e do discípulo; com pleno conhecimento dos fatos (“sabendo ...”), verifica o cumprimento das Escrituras, declara que tudo está consumado e, inclinando a cabeça, “ entrega ” o espírito. da cruz.Assim Jesus é glorificado pelo Pai e atrai todos os homens a acreditarem Nele (A. Vanhoye).

O evangelista apresenta a morte à luz da ressurreição e assim o dia da morte, que não perde o rigor do seu luto, torna-se luminoso porque a glória da Páscoa é projetada na Cruz.

Isto deve ser observado de modo particular no último momento da Paixão. O evangelista apresenta o último suspiro de Jesus como um dom do Espírito que invade o mundo (cf. 19,30; de facto, segundo o texto grego, em vez de uma “expiração” de Jesus, fala de uma “ doação do Espírito ”).

Imediatamente o corpo ferido de Jesus morto e ressuscitado torna-se o Templo da Nova Aliança, Dele flui o rio da vida que é o Espírito Santo. Isto é o que o próprio Jesus anunciou em 7:37-39: “ Do seu ventre fluirão rios de água viva ”. Jesus dá a própria vida para que possamos viver dela.

 

Algumas reflexões

 

Na Sexta-Feira Santa somos convidados a olhar para o crucifixo, em silêncio, e a beijar o crucificado. Ele tomou sobre si o pecado do mundo, ele se apropriou dele. Mas, ao mesmo tempo, olhamos à nossa volta e vemos tanto sofrimento e dor no nosso pobre mundo, assolado por esta pandemia de coronavírus que se soma a muitas outras pandemias pré-existentes, como a injustiça, a violência, a corrupção... E quando meditamos na paixão do Senhor devemos “ligar” estes dois horizontes, iluminar a nossa realidade a partir da cruz de Jesus. Também válido para este ano é o que Pe. R. Cantalamessa na sua pregação da Sexta-Feira Santa do ano passado: “este ano lemos a história da Paixão com uma pergunta – ainda mais, com um grito – nos nossos corações que se eleva por toda a terra. Devemos tentar captar a resposta que a palavra de Deus dá”.

A este respeito, o Papa Francisco disse na sua catequese de quarta-feira, 8 de abril de 2020: “Nestas semanas de preocupação com a pandemia que tanto faz sofrer o mundo, entre as muitas perguntas que nos fazemos, também podem surgir perguntas sobre Deus: O que ele faz com a nossa dor? Onde ele está quando tudo dá errado? Por que você não resolve nossos problemas rapidamente? Estas são perguntas que nos fazemos sobre Deus. A história da Paixão de Jesus, que nos acompanha nestes dias santos, ajuda-nos…. Hoje podemos perguntar-nos: Qual é o verdadeiro rosto de Deus? Habitualmente projetamos Nele o que somos, com força total: o nosso sucesso, o nosso sentido de justiça e até a nossa indignação. Mas o Evangelho nos diz que Deus não é assim. É diferente e não poderíamos sabê-lo com a nossa força. Por isso ele se aproximou de nós, veio ao nosso encontro e precisamente na Páscoa revelou-se completamente. E onde foi totalmente revelado? Na cruz. Lá aprendemos as características da face de Deus. Não esqueçamos, irmãos e irmãs, que a cruz é a cátedra de Deus. Fará-nos bem olhar em silêncio para o Crucificado e ver quem é o nosso Senhor: Aquele que não aponta o dedo a ninguém, nem mesmo contra aqueles que O crucificam, mas abre os braços a todos; aquele que não nos esmaga com a sua glória, mas se deixa desnudar por nós; aquela que não nos ama com palavras, mas nos dá vida no silêncio; aquele que não nos força, mas nos liberta; Aquele que não nos trata como estranhos, mas assume sobre si o nosso mal, assume sobre si os nossos pecados. E, para nos libertarmos dos preconceitos sobre Deus, olhemos para o Crucificado. E então vamos abrir o Evangelho. Nos dias de hoje, todos nós em quarentena, em casa, confinados, vamos pegar duas coisas nas mãos: o crucifixo, vamos olhar para ele; e vamos abrir o evangelho. Será para nós – por assim dizer – como uma grande liturgia doméstica porque hoje em dia não podemos ir à igreja. Crucifixo e Evangelho!”

Com efeito, desejamos e esperamos espontaneamente que Deus, na sua omnipotência, derrote a injustiça, o mal, o pecado e o sofrimento com uma vitória divina triunfante, sem passar pela cruz. Em vez disso, Deus nos mostra uma vitória humilde que humanamente parece um fracasso. Porém, Deus vence justamente na derrota! O Filho de Deus aparece na cruz como um homem derrotado: sofre, é traído, é insultado e finalmente morre. Jesus permite que o mal se alastre contra ele e assume a responsabilidade de derrotá-lo. Sua paixão não é um acidente; sua morte – aquela morte – foi “escrita”. Realmente não temos muita explicação. É um mistério desconcertante, o mistério da grande humildade de Deus: «Deus amou o mundo de tal maneira que lhe deu o seu Filho unigénito» (Jo 3,16).

Agora, é essencial compreender o “porquê” e “para quem” de tudo isto, da dor da sua paixão, da sua morte e da sua ressurreição. E aí entramos, entra toda a humanidade sem deixar ninguém de fora. Como disse o Papa Francisco na sua catequese de 31 de março de 2021: “Durante o seu ministério, o Filho de Deus derramou generosamente a vida, curando, perdoando, ressuscitando... Agora, na hora do sacrifício supremo na cruz, ele leva ao cumprimento da obra confiada pelo Pai: entrar no abismo do sofrimento, entrar nestas calamidades deste mundo, para redimir e transformar. E também para libertar cada um de nós do poder das trevas, do orgulho, da resistência em ser amado por Deus. E só o amor de Deus pode fazer isso. Pelas suas feridas fomos curados (cf. 1 Pd 2,24), diz o apóstolo Pedro, da sua morte fomos regenerados, todos nós. E graças a Ele, abandonado na cruz, ninguém está sozinho nas trevas da morte. Nunca, Ele está sempre ao seu lado: basta abrir o coração e deixar-se ver por Ele”.

 

Por outro lado, parece-me importante insistir na aceitação livre e voluntária, por parte de Jesus, da sua paixão e da sua morte , porque era a Vontade do Pai, a norma suprema do seu ser e agir como Filho. Foi um ato de obediência que superou a resistência que, como verdadeiro homem, sentiu diante da proximidade da dor e da morte. Desta forma, afirma-se tanto a verdade ou o realismo do sofrimento que sofreu como o amor com que o superou (cf. SD n. 18).

Diante da cruz todos fogem. Jesus permanece sozinho e não foge. Ele também não permite que circunstâncias externas “aconteçam com ele”. Renunciou a tudo, mas ainda tem a sua liberdade interior pela qual aceita a sua morte, vive-a até ao fim como um acto de entrega. Ele não se deixa morrer, mas faz da própria morte um ato de oferenda ao Pai. É esta aceitação voluntária e amorosa de Jesus ao misterioso plano do Pai que dá sentido redentor à sua paixão e à sua morte.

Nestes tempos difíceis que tivemos que viver, Jesus revela-nos um caminho possível. Não é que queiramos nem o mais fácil. É o caminho da aceitação e da oferta da cruz. Posso permanecer numa queixa estéril ou abraçar esta cruz e oferecê-la. Mais ainda, ajude os irmãos a carregar a própria cruz e a seguir Jesus até o fim.

O Papa Francisco insistiu nisso ao iluminar a pandemia a partir do mistério pascal de Jesus: “Abraçar a sua Cruz é ousar abraçar todos os reveses do tempo presente, abandonando por um momento o nosso desejo de onipotência e posse para dar espaço ao criatividade que só o Espírito é capaz de despertar. Significa incentivar espaços onde todos possam sentir-se convidados e permitir novas formas de hospitalidade, fraternidade e solidariedade. Na sua Cruz fomos salvos para abrigar a esperança e deixar que ela fortaleça e sustente todas as medidas e caminhos possíveis que nos ajudem a cuidar de nós mesmos e a cuidar de nós mesmos. Abrace o Senhor para abraçar a esperança. Esta é a força da fé, que nos liberta do medo e nos dá esperança” ( Mensagem Urbi et Orbi , 27 de março de 2020)

 

PARA ORAÇÃO (RESSONÂNCIAS DO EVANGELHO EM ORAÇÃO):

 

Um de vocês vai me entregar.

 

Senhor da rendição absoluta e completa

Volte seus olhos para os seus, com uma alma em dor

Abalado ao extremo, o sangue ferve em suas veias

Quando você nos vê agarrados às nossas misérias

 

Dá a você... aquele que se deixa levar pelo prazer deste mundo

E se esconde da verdade, ou nega, um trapaceiro

 

Te dá... aquele que desiste de olhar para frente

Pobreza, fome, marginalização e morte.

 

Dá a você... aquele que concorda por um preço

O futuro dos ignorantes, a vida dos doentes.

 

Te dá... aquele que não exige justiça

Diante das diferenças sociais, fruto da ganância.

 

Dá a você... aquele que ao custo da inocência

Sua consciência está enriquecida e degradada.

 

Da-te…

 

E hoje perguntamos, quem será? Serei eu?

Alguém pode responder: “Não sou”?

 

Senhor, esperamos pela sua compaixão. Vamos levantar os olhos e em silêncio

Deixaremos que sua imagem seja gravada profundamente dentro de nós

Rezaremos lentamente a oração ao seu Pai, Pai Nosso,

E esperaremos que você faça o trabalho, Divine Potter. Amém.



[1] O Evangelho de João. Exercícios espirituais sobre São João (Paulinas; Bogotá 1986) 128.

[2] O Evangelho de João. Exercícios espirituais sobre São João (Paulinas; Bogotá 1986) 132.


VIGÍLIA PASCAL


MEDITAÇÃO PARA A VIGÍLIA PASCAL

 

Nesta noite somos convidados a contemplar a obra de Deus, o Pai, o Filho e o Espírito Santo; manifestação do amor de Deus por nós em que acreditamos.

É uma noite para lembrar, agradecer, acreditar no amor de Deus e amar. E é vital porque recordar é como recuperamos a Esperança; porque a Esperança se alimenta da memória das ações de Deus em nossas vidas. E é isso que fazemos na liturgia da Palavra desta Vigília Pascal, que não apresenta as principais intervenções de Deus na história em favor do seu povo. O Papa Francisco, na homilia de quinta-feira, 7 de junho de 2018, convidou-nos a este exercício de: “voltar com memória para encontrar Cristo, para encontrar forças e poder caminhar em frente. A memória cristã é sempre um encontro com Jesus Cristo. A memória cristã é como o sal da vida. Sem memória não podemos avançar. Quando encontramos cristãos “esquecidos”, vemos imediatamente que perderam o sabor da vida cristã e acabam em pessoas que cumprem os mandamentos, mas sem mística, sem encontrar Jesus Cristo. E devemos encontrar Jesus Cristo na vida”.

 

Ouvindo a Palavra de Deus

 

Em primeiro lugar, a criação do mundo, obra do amor do Pai por nós. O mundo foi criado por e para nós, para que possamos viver nele e desfrutá-lo. O homem, cada um de nós, é o fim da criação do mundo. “Tudo é seu”, dirá São Paulo.

Junto com o magnífico dom da criação está o inestimável dom da vida . A vida que temos e vivemos é também um dom fundamental de Deus, um dom do seu amor. Vivemos porque o Pai pensou em nós, nos quis, nos amou eternamente. Tudo é um presente do Pai.

 

         Em segundo lugar , a graça da libertação do Egipto, do Êxodo, da Páscoa de Israel. Em Ex 14, a experiência de fé do povo confunde-se com a experiência do poder criador de Deus que é capaz de salvá-lo da escravidão e, ao mesmo tempo, libertá-lo do medo da liberdade. Israel já não teme o Faraó e nem mesmo o seu exército teme a Deus. Israel passou da noite para a luz da manhã, de uma margem para a outra, do Egito para o deserto, da escravidão para a liberdade, da servidão para o serviço, do pânico para o temor de Deus, da incredulidade para a fé. Este texto foi escrito para que o leitor perceba também essa experiência de vitória sobre o medo que está na raiz da escravidão. A liberdade começa onde o medo não existe mais e se dissipa quando reinam a confiança e o abandono a Deus.

 

         A partir de então Israel tornou-se o povo de Deus, o povo da aliança. Bastava permanecer fiel à aliança para preservar todos os dons de Deus: terra, vida, liberdade. Mas o povo foi infiel, afastou-se do Senhor e rompeu a aliança; e recebeu o castigo merecido e justo: o exílio. Mas foi apenas um momento de escuridão e abandono, porque o amor do Senhor foi mais forte que a sua raiva e também o resgatou do exílio. O texto de Is 54 é a declaração de amor de Deus-esposo ao seu povo-esposa: de amor eterno, de compaixão, de ternura. E este amor de Deus é o fundamento da esperança e o motor da reconstrução de Israel, do seu regresso à terra, à liberdade, à vida...

        

Mas a maior e mais maravilhosa obra de Deus, a maior manifestação do amor do Pai, é a ressurreição de Jesus Cristo . Deus ressuscitou seu Filho dentre os mortos. É isso que celebramos esta noite, a maior ação de Deus na história em favor dos homens.

O evangelho que lemos esta noite (Mc 16,1-8) conta-nos a experiência que três mulheres tiveram quando foram ao sepulcro no domingo cedo para ungir o corpo de Jesus. Quando chegaram, encontraram a pedra da entrada removida e o túmulo vazio. Estes sinais, para chegarem à fé, necessitaram do anúncio explícito que lhes chegou de um jovem misterioso, vestido com uma túnica branca, que ali estava sentado: “ procuram Jesus de Nazaré, o crucificado; Ele ressuscitou, não está aqui ” (16,6). O mensageiro dá a Jesus um novo título: “crucificado”. Este novo título indica que Jesus ressuscitado será doravante reconhecido como o crucificado. Aquele que morreu na cruz agora vive para sempre. E depois acrescenta aos discípulos um novo apelo que lhes deve chegar pela boca das mulheres: «Ide agora e dizei aos seus discípulos e a Pedro que ele irá adiante de vós para a Galileia; lá o vereis, tal como ele havia dito. lhes disse" (16, 7). Refere-se ao que foi anunciado em 14:28: “Depois que eu ressuscitar, irei adiante de vocês para a Galiléia”. Vale ressaltar que tanto em 14:28 quanto em 16:7 é usado o verbo proágō , ir em frente, avançar, que também aparece em 10:32: “Eles subiam para Jerusalém, e Jesus marchava à frente deles. eles." Faz-se então referência a Jesus, agora Ressuscitado, que segue em frente para que o possam seguir até à Galileia. É um novo apelo à comunidade dos discípulos, que agora é a vez de reviver como protagonistas a experiência da Galileia, isto é, estar com Jesus e fazer missão junto com Ele. Ir para a Galileia significa então recomeçar, reconstruir a comunidade. de vida dos discípulos com Jesus, agora Ressuscitado, que verão. E sendo a Galiléia o território de Israel mais aberto aos pagãos, podemos supor que reunir ali seus discípulos/apóstolos teria o propósito de evangelizar os gentios. No plano narrativo, esta ordem de regressar à Galileia para ver Jesus seria um convite ao leitor a ler novamente todo o Evangelho a partir da nova luz que brota da Ressurreição de Jesus. Ao mesmo tempo, sendo a Galileia o lugar onde viveram e trabalharam os discípulos, o catecúmeno é convidado a exercer a sua fé para descobrir Jesus presente na sua experiência quotidiana.

         Agora, o evangelho termina dizendo que as mulheres, depois de terem recebido o querigma , “não disseram nada a ninguém porque estavam com medo” (16,8). A abordagem narrativa sugere que esse final não resolvido é um convite ao leitor para completar a história. Os apóstolos fugiram e as mulheres não falam por medo, cabe ao leitor proclamar que ressuscitou [1] .

 

Meditamos a Palavra em nossos corações

 

Na Sexta-feira Santa, toda a terra e os nossos corações estavam cheios de tristeza e escuridão: “aquele que você ama morreu”. Hoje a escuridão se dissipa e a luz surge brilhante: “aquele que você ama está vivo e viverá para sempre”. E ele nos ama e nos dá a vida eterna, que já começou hoje enquanto recuperamos nossos laços. Temos mais vida quanto mais ligados estamos: com Deus, com os outros, com nós mesmos. Irmãos, Cristo ressuscitou e nossa nova vida como ressuscitados já começou. Vivamos desta nossa esperança.

         Ao abraçar a cruz chegamos à ressurreição e à esperança. E esta é a grande notícia cristã que devemos difundir no nosso mundo: “É mais um “contágio”, que se transmite de coração a coração, porque cada coração humano espera esta Boa Nova. É o contágio da esperança: “O meu amor e a minha esperança ressuscitaram verdadeiramente!” Não é uma fórmula mágica que faz desaparecer os problemas. Não, isso não é a ressurreição de Cristo, mas a vitória do amor sobre a raiz do mal, uma vitória que não “passa por cima” do sofrimento e da morte, mas antes os atravessa, abrindo caminho no abismo, transformando o mal em bom, um sinal distintivo do poder de Deus. O Ressuscitado não é outro senão o Crucificado. Ele carrega em seu corpo glorioso feridas indeléveis, feridas que se tornam luzes de esperança. Voltamos o nosso olhar para Ele para curar as feridas da humanidade desolada” ( Mensagem Urbi et Orbi – Páscoa 2020 , Basílica Vaticano, 12 de abril de 2020).

Parece justo e necessário recordar as comoventes palavras do Papa na Vigília Pascal do ano passado: “Nesta noite conquistamos um direito fundamental, que não nos será tirado: o direito à esperança ; É uma esperança nova e viva que vem de Deus. Não é mero otimismo, não é um tapinha nas costas ou algumas palavras de encorajamento das circunstâncias, com um sorriso passageiro. Não. É um presente do Céu, que não conseguiríamos alcançar sozinhos: tudo vai ficar bem , dizemos constantemente nestas semanas, agarrando-nos à beleza da nossa humanidade e fazendo brotar do nosso coração palavras de encorajamento. Mas, à medida que os dias passam e os medos aumentam, até a esperança mais intrépida pode evaporar-se. A esperança de Jesus é diferente, infunde no coração a certeza de que Deus orienta tudo para o bem, porque até faz sair a vida do túmulo.

O túmulo é o lugar onde quem entra não sai. Mas Jesus saiu por nós, ressuscitou por nós, para trazer vida onde havia morte, para começar uma nova história que estava encerrada, cobrindo-a com uma pedra. Aquele que retirou a pedra da entrada do túmulo poderá retirar as pedras que selam o coração. Portanto, não cedamos à resignação, não coloquemos a esperança debaixo de uma pedra. Podemos e devemos esperar, porque Deus é fiel, não nos deixou sozinhos, visitou-nos e veio em todas as situações: na dor, na angústia e na morte. A sua luz iluminou as trevas do túmulo e hoje Ele quer chegar aos recantos mais sombrios da vida. Irmã, irmão, mesmo que você tenha enterrado a esperança no coração, não desista: Deus é maior. A escuridão e a morte não têm a última palavra. Coragem, com Deus nada está perdido... Nós, peregrinos em busca de esperança, hoje nos agarramos a Ti, Jesus Ressuscitado. Damos as costas à morte e abrimos os nossos corações a Ti, que és a Vida”.

O Jesus ressuscitado traz-nos a alegria que supera o medo da morte. É um dia de vitória, de triunfo do nosso Deus, e nosso também. É por isso que é um dia de alegria e esperança:

 

“Cristo, minha alegria, ressuscitou” (São Serafim de Sarov).

 

 

PARA ORAÇÃO (RESSONÂNCIAS DO EVANGELHO EM ORAÇÃO):

 

COMPRARAM PERFUMES

 

COMPRARAM PERFUMES

UNGAR O REI DOS REIS ERA PASSAR PELA TRISTEZA

DEIXE A AMARGURA DA MORTE INEXORÁVEL

 

TODAS AS PORTAS FORAM FECHADAS

MAS ELES ENTENDERAM QUE OS DEVEM AO SENHOR

MESMO ELE ESTAVA MORTO, ELES O VIRAM HÁ ALGUNS DIAS

 

EM MOVIMENTO, SEM PARAR

A MISSÃO E O MOMENTO EXIGIAM CORAGEM

MAS ACIMA DE TUDO AMOR, CORRER COMO O VENTO

 

E NÃO PODERIA SER DE OUTRA FORMA

O SENHOR ENVIOU SEUS MENSAGEIROS

ELES CONTARAM SOBRE O RESSUSCITADO, ELE ESTAVA VIVO DE NOVO

 

O QUE ACONTECEU COM O PERFUME

SOBRE BANDAGENS, POMADAS... JÁ NÃO IMPORTA

AGORA A MISSÃO É ANUNCIAR O FATO

 

O SENHOR SAIRÁ AO ENCONTRO COM ELES

ELE OS REUNIRÁ NA GALILÉIA,

SERÁ COMO NOS ANTIGOS TEMPOS

 

VIVA CRISTO REI E SENHOR DO UNIVERSO

O PAI REVELA-NOS SEU ROSTO NELE

E O ESPÍRITO NOS DÁ SEU SOPRO. AMÉM



[1] D. Rhoads - J. Dewey - D. Michie, Mark as Narrative , 197.