Há um cio vegetal na voz do artista

Há um cio vegetal na voz do artista.

Ele vai ter que envesgar seu idioma ao ponto

de alcançar o murmúrio das águas nas folhas

das árvores.

Não terá mais o condão de refletir sobre as

coisas.

Mas terá o condão de sê-las.

Não terá mais idéias: terá chuvas, tardes, ventos,

passarinhos...

Nos restos de comida onde as moscas governam

ele achará solidão,

Será arrancado de dentro dele pelas palavras

a torquês.

Sairá entorpecido de haver-se.

Sairá entorpecido e escuro.

Ver sambixuga entorpecida gorda pregada na

barriga do cavalo-

Vai o menino e fura de canivete a sambixuga:

Escorre sangue escuro do cavalo.

Palavra de um artista tem que escorrer

substantivo escuro dele.

Tem que chegar enferma de suas dores, de seus

limites, de suas derrotas.

Ele terá que envesgar seu idioma ao ponto de

enxergar no olho de uma garça aos perfumes do

sol.

-Manoel de Barros -

Retrato do artista quando coisa, página 17.