DESMANTELAMENTO DE UM RIO

Arranco os autocolantes da parede do quarto do nosso filho,

como se a faca eléctrica da cozinha me atravessasse o braço.

Sou eu que apago os seus desenhos na parede. Não são riscos,

são desenhos. Há lápis de cera espalhados e partidos pelo chão.

Depois de nós, esta morada terá outros nomes e chegarão cartas

pacientes à caixa do correio. Agora, são impossíveis de imaginar,

como o nosso ontem será impossível de imaginar. Foi aos poucos

que ficou apenas o sofá e as recusas e os armários esventrados.

Foi muito demoradamente que chegaram as noites em que durmo

no sofá, sob um cobertor oferecido pela minha mãe ou pela tua.

Por fim, tenho tempo para habituar os olhos às sombras e avaliar

a devastação, acordar com o frio da madrugada, o esquecimento,

e assistir àquela hora azul em que já não é de noite, mas em que

ainda falta tanto para ser de dia. Despejo no fundo de um saco

tudo o que está naquela gaveta que nunca ninguém arrumou.

À minha volta, há caixotes que servem para guardar os livros,

já estão divididos. Escolho o lugar para pousar os pés. Fizemos

coisas nesta sala vazia, tivemos pensamentos, aprendemos

alfabetos. Resta-me agora o que sempre tive e, como se caísse

desamparado na banheira, prossigo e continuo o meu trabalho,

como se batesse com a cabeça na esquina de uma gaveta,

prossigo e continuo o meu trabalho.

Poema de José Luís Peixoto, in Gaveta de Papéis