RECADO

ouve-me

que o dia te seja limpo e

a cada esquina de luz possas recolher

alimento suficiente para a tua morte

vai até onde ninguém te possa falar

ou reconhecer – vai por esse campo

de crateras extintas – vai por essa porta

de água tão vasta quanto a noite

deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te

e as loucas aveias que o ácido enferrujou

erguerem-se na vertigem do voo – deixa

que o outono traga os pássaros e as abelhas

para pernoitarem na doçura

do teu breve coração – ouve-me

que o dia te seja limpo

e para lá da pele constrói o arco de sal

a morada eterna – o mar por onde fugirá

o etéreo visitante desta noite

não esqueças o navio carregado de lumes

de desejos em poeira – não esqueças o ouro

o marfim – os sessenta comprimidos letais

ao pequeno-almoço

in Horto de incêndio, Lisboa: Assírio & Alvim, 1997