SE UM DIA

se um dia a juventude voltasse

na pele das serpentes atravessaria toda a memória

com a língua em teus cabelos dormiria no sossego

da noite transformada em pássaro de lume cortante

como a navalha de vidro que nos sinaliza a vida

sulcaria com as unhas o medo de te perder…eu

veleiro sem madrugadas sem promessas sem riqueza

apenas um vazio sem dimensão nas algibeiras

porque só aquele que nada possui e tudo partilhou

pode devassar a noite doutros corpos inocentes

sem se ferir no esplendor breve do amor

depois… mudaria de nome de casa de cidade de rio

de noite visitaria amigos que pouco dormem e têm gatos

mas aconteça o que tem de acontecer

não estou triste não tenho projectos nem ambições

guardo a fera que segrega a insónia e solta os ventos

espalho a saliva das visões pela demorada noite

onde deambula a melancolia lunar do corpo

mas se a juventude viesse novamente do fundo de mim

com suas raízes de escamas em forma de coração

e me chegasse à boca a sombra do rosto esquecido

pegaria sem hesitações no leme do frágil barco… eu

humilde e cansado piloto

que só de te sonhar me morro de aflição

Al Berto in ‘Rumor dos Fogos’