OS DIAS SEM NIGUÉM

os dias sem ninguém

pequeníssimos recados escritos à pressa

amachucados nos dedos

foi bela a madressilva

subindo pela noite da morada esquecida

pedras exactas poeiras perfumadas

bichos de lume dormitando na flexibilidade da argila

areias cobertas de insectos ossos dentes

e o rio por onde partem as noites de cansaço

luminosa floração luas ácidas despenhando-se

fendas de terra cidades costeiras pássaros

frágeis caminhos em pleno voo

durante a lucidez tremenda do sonho

restam-me os corredores de vidro

onde posso afagar os restos carbonizados do corpo

abro a porta que dava acesso ao rosto

desço os degraus musgosos do pátio

atravesso o jardim de alvenaria onde vivi

todo este tempo antes de me precipitar

Al Berto. O Medo, Lisboa: Assírio & Alvim, 1998