NOTAS PARA O DIÁRIO

“Aterrador foi ter-me apercebido o que havia neste livro de premonitório («Horto de Incêndio»). A eternidade não é lerem-me dentro de 50 ou 60 anos ou ficar na história da literatura portuguesa. “Só espero que meia dúzia de doidos me leiam agora e isso os toque.” – Al Berto

notas para o diário

deus tem que ser substituído rapidamente por poe-

mas, sílabas sibilantes, lâmpadas acesas, corpos palpáveis,

vivos e limpos.

a dor de todas as ruas vazias.

sinto-me capaz de caminhar na língua aguçada deste

silêncio. e na sua simplicidade, na sua clareza, no seu abis-

mo.

sinto-me capaz de acabar com esse vácuo, e de aca-

bar comigo mesmo.

a dor de todas as ruas vazias.

mas gosto da noite e do riso de cinzas. gosto do

deserto, e do acaso da vida. gosto dos enganos, da sorte e

dos encontros inesperados.

pernoito quase sempre no lado sagrado do meu cora-

ção, ou onde o medo tem a precaridade doutro corpo.

a dor de todas as ruas vazias.

pois bem, mário – o paraíso sabe-se que chega a lis-

boa na fragata do alfeite. basta pôr uma lua nervosa no

cimo do mastro, e mandar arrear o velame.

é isto que é preciso dizer: daqui ninguém sai sem

cadastro.

a dor de todas as ruas vazias.

sujo os olhos com sangue. chove torrencialmente. o

filme acabou. não nos conheceremos nunca.

a dor de todas as ruas vazias.

os poemas adormeceram no desassossego da idade.

fulguram na perturbação de um tempo cada dia mais

curto. e, por vezes, ouço-os no transe da noite. assolam-me

as imagens, rasgam-me as metáforas insidiosas, porcas. ..e

nada escrevo.

o regresso à escrita terminou. a vida toda fodida – e

a alma esburacada por uma agonia tamanho deste mar.

a dor de todas as ruas vazias.

AL BERTO, “Horto de Incêndio”, Lisboa: Assírio & Alvim, 3.ª Ed.,

Dezembro 2000. p. 38-39

Fotografia de Paulo Nozolino (pormenor da imagem de capa de "Horto de Incêndio")

Por - https://asfolhasardem.wordpress.com