SE FORES PELO CENTRO DE TI MESMO

Continuação dos ciclos de poemas de:

Daniel Faria:

Se fores pelo centro de ti mesmo

Maria Teresa Dias Furtado

Faculdade de Letras – Universidade de Lisboa

As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões

As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões

E muitas transformam-se em árvores cheias de ninhos – digo,

As mulheres – ainda que as casas apresentem os telhados inclinados

Ao peso dos pássaros que se abrigam.

É à janela dos filhos que as mulheres respiram

Sentadas nos degraus olhando para eles e muitas

Transformam-se em escadas

Muitas mulheres transformam-se em paisagens

Em árvores cheias de crianças trepando que se penduram

Nos ramos – no pescoço das mães – ainda que as árvores irradiem

Cheias de rebentos

As mulheres aspiram para dentro

E geram continuamente. Transformam-se em pomares.

Elas arrumam a casa

Elas põem a mesa

Ao redor do coração. (p. 122)

Já na dimensão de desassossego e de busca, podemos encontrar referência a um

movimento exterior sinónimo de um movimento interior. É imperiosa a solidão para a

ocupação do verdadeiro lugar na existência, espaço onde se encontram “círculos perfeitos”:

Caminha para dentro dos cercos

No interior não te faltarão provisões.

Novos vizinhos te darão acolhimento

Mais fiéis do que os amigos

Dias e noites maldizendo-te em silêncio

A proximidade

Encosta-te às vedações para guardares

Com minúcia a dolorosa divisão da paisagem

O para ti e o para além

A solidão infinita de ocupares um lugar

Caminha para dentro

Onde gira a nora e o burro é cego

E os círculos perfeitos.

Não te há-de faltar

A distância. (p.83)

Essa procura de isolamento ou, até, de afastamento, pode causar sofrimento

a outros, inspirar cuidados, mesmo que haja aceitação:

EXPLICAÇÃO DO SORRISO

A mãe disse-lhe escreve-me

De lá de longe para onde vais

E ela disse não é longe casar

E a mãe sorria cega de dor

E parecia de deslumbramento (p. 107)

A questão de cada ser humano ocupar o lugar que lhe compete na vida é um motivo recorrente,

especialmente no livro, e no ciclo dentro dele, Os Homens são como lugares mal situados.

Este aspecto contém grande dramaticidade, uma vez que tais homens se encontram “fora do

lugar”, expostos às atrocidades e às privações, em situações que parecem irremediáveis:

Homens que são como lugares mal situados

Homens que são como casas saqueadas

Que são como sítios fora dos mapas

Como pedras fora do chão

Como crianças órfãs

Homens agitados sem bússola onde repousem

Homens que são como fronteiras invadidas

Que são como caminhos barricados

Homens que querem passar pelos atalhos sufocados

Homens sulfatados por todos os destinos

Desempregados das suas vidas

Homens que são como a negação das estratégias

Que são como os esconderijos dos contrabandistas

Homens encarcerados abrindo-se com facas

Homens que são como danos irreparáveis

Homens que são sobreviventes vivos

Homens que são sítios desviados

Do lugar (p.124)

O poema da página seguinte sonda um pouco a razão dessa quase fatalidade:

“Homens (…) /Tão impreparados tão desprevenidos/Tão confusos à espera de um sistema

solar/Onde seja possível uma sombra maior” (p.125). Há uma falta de noção, de conhecimento,

do sentido da vida, do sentido do concreto. No último poema do ciclo (p. 127) esboça-se a

hipótese de uma “redenção” e de alguma esperança no seu refazer da vida, socorrendo

os outros – “Não lhes toquemos senão com os materiais secretos/Do amor. (…)/(…) Sentemo-

nos/No lado oposto, onde eles podem vir para erguer-nos/A qualquer instante”. Dá-se, pois,

uma inversão da perspectiva: os que podem socorrer poderão vir a ser socorridos.

Se fores pelo centro de ti mesmo

Assim nos aproximamos do ciclo que dá o título a esta comunicação:

“Se fores pelo centro de ti mesmo”. Todos estes poemas funcionam como um “correlato

objectivo”, expressão cunhada por T. S. Eliot para referir uma objectivação, através do uso

de outras figuras ou acontecimentos, do próprio eu. As figuras escolhidas são extraídas da

Bíblia, à excepção do Beato Charles de Foucauld, que morreu mártir na segunda década

do século XX. Sara é a primeira figura escolhida, como paradigma da fecundidade tardia,

realização miraculosa da sua esperança. Em contraponto, Agar, a escrava, que tem um filho de

Abraão e que, por esse motivo, é de início desprezada e ameaçada por Sara. É no poema

“Separação de Abraão e Lot” (Gen 13) que ocorre o título deste ciclo: “Se fores pelo centro

de ti mesmo”. A doação de amizade e protecção encontra-se na metáfora “olharei em redor”

e seus equivalentes.

Essa doação é mais forte, porém, se Lot enveredar pelo “centro de si mesmo”, como se assim

corresse mais perigo nas entranhas de um mundo que se faz eu. Segue-se “A morte de

Jonatas” (2 Sam 1, 17-27), íntimo amigo de David. De tal modo afecta David a morte do seu

melhor amigo, que se usa a metáfora: “A espada está cravada no seu corpo/Já não de Jonatas.

No corpo de David”. É exaltada, de novo, a amizade no sentido de cada um dos amigos ser o

alter ego do outro. Daniel Faria vai seguindo alguns dos vários livros do AT na sua sequência.

Assim se apresenta, de seguida, “Sarepta” (1 Rs 17, 7-24). É o primeiro deste ciclo de poemas

que usa a primeira pessoa, como se o sujeito poético se colasse à personagem – no caso, a

viúva de Sarepta que acolhe o profeta - . A palavra mais forte é “abençoava”, uma vez que foi o

encontro com esse homem de Deus que melhorou a pobreza da viúva e do seu filho, salvando

a ambos da morte.

“Eliseu” (1Rs 19, 19-21) diz respeito à vocação de Eliseu no momento em que executava o seu

trabalho no campo arando com uma junta de bois. É retomada a terceira pessoa e criado um

paralelismo intensamente poético através de variações relativas ao episódio da vocação

concreta – a transformação total da existência, passando a assumir a totalidade da missão em

que é investido: “Para ser lâmina do arado e o arado/A palavra em seu gume a ferir e a gerar”.

Em “Sunam” (2 Rs 4, 8-37) continua a ser usada a terceira pessoa, agora referida à mulher

sunamita que acolheu o profeta em sua casa, tendo recebido com recompensa conceber um

filho na velhice do seu marido. O absurdo, por várias vezes mencionado no poema, advém da

sorte desse filho em dado momento da sua jovem vida – quando no campo diz ao pai “Ai!

minha cabeça” e, trazido à mãe, morre nos seus joelhos ao meio-dia “– Era meio-dia sobre os

meus joelhos” – escreve Daniel Faria em 1ª pessoa.

No texto bíblico, porém, a mulher procura o profeta Eliseu e consegue que ele ressuscite o filho.

O absurdo não é, pois, uma situação definitiva, mas uma ocasião de maior fé e mais empenho.

“Junto dos rios Babilónia” [Sl 136 (137)] é enunciado na 1ª pessoa do plural, tal como o Salmo

indicado, e refere-se às saudades de Sião no Exílio. A “matéria “ do salmo é poeticamente

elaborada, tal como acontece com os restantes excertos da Escritura, tanto neste poema como

no seguinte, sobre o regresso do Exílio.

Nas margens dos rios imaginando pontes

Quando já só no nosso pensamento deslizavam

Debaixo da sombra das liras

Ali nos pediam – em solo alheio –

Que cantássemos canções da nossa terra.

Como poderíamos cantar a nossa infância

Tão longe, num país estranho?

Os salgueiros têm folha persistente

Sob a sombra persistente a mudez

Junto aos rios da Babilónia

Foi a única das nossas alegrias (p.158)

“Elogio da Mulher” (Pr 31, 14): de todo o elogio da mulher na última

parte do Livro dos Provérbios o poeta isola alguns aspectos mais significativos:

a grandeza de coração, a abundância de dons, a laboriosidade.

O coração da mulher é alto

Mas nem só por isso a mulher oscila

Ela é como o navio mercante

Que chega carregado de grão

A mulher é o tear dentro da vida

Nem só por isso a mulher é mais que a vida

Ela é como o navio mercante

Que chega carregado de grão (p. 160)

“Coeleth” (Ecl 12, 1-7) constitui uma notável criação, ao mesmo tempo recriação do texto bíblico

de origem a que se acrescenta uma imagem poética final, mas nem por isso menos realista.

Mantêm-se o paralelismo, a anáfora, a enumeração.

Lembra-te do teu Criador nos dias da mocidade

A tua única herança para os dias da desgraça.

Cava fundo o coração para a lembrança

Antes que digas não tenho mais prazer

Antes que a noite seja noite e não vejas mais o sol nem as estrelas nem os filhos

Antes que voltem as nuvens depois da chuva como a viuvez

Antes do dia em que as mulheres, uma a uma, pararem de moer,

Quando a escuridão cair sobre os que olham pela janela

Quando se fecha a porta da rua e o ruído não diminui

Quando se acorda com o canto do pássaro e as palavras desaparecem

Quando a altura se assemelha aos sustos que se apanham no caminho

Quando a amendoeira está em flor e o gafanhoto se torna pesado

Quando o tempero perde o sabor

Antes que a tua única herança seja a lembrança

Antes que o fio de prata se rompa e a roldana rebente no poço

Antes de tudo isto

Põe uma escada e sobe ao cimo do que vês (p.161)

Seguem-se os poemas “Raquel” (Jr 31,15), “Lamentações” (Lm 1), “Ezequiel (Ez 12, 1-20),

“A mulher adúltera”, “Filho pródigo”, “Zaqueu”.

Neste último poema o sujeito lírico cola-se novamente à personagem do NT e a partir dela

enuncia o poema de maneira tão sucinta quanto bela e mesmo surpreendente:

A árvore foi a forma de te ver

E desci para abrir a casa.

De me teres visitado e avistado

Entre os ramos

Fizeste-me passagem

Da folha ao voo de pássaro

Do sol à doçura do fruto.

Para me encontrares me deste

A pequenez. (p. 167)

A concluir o ciclo vem o poema “Charles de Foucauld” em que se transpõe a experiência de

martírio desse beato para um tu que bem pode ser um eu. Essa nova morte de martírio passará

despercebida por não ser espectacular – “na terra só o adorno/Possui reconhecimento/Pensa

que morrerás/No chão//À tua porta./E nunca mais acabarás/De regressar” (p. 168)

O poeta volta a cultivar este tipo de intertextualidade no seu último livro, “Dos Líquidos”,

especificamente no ciclo “Das Nascentes”, a partir do quarto poema, “Do Livro do xodo”,

passando por “Do Livro dos Números”, “Do Livro de Ezequiel”, “Do Livro de Zacarias”, “Do Livro

dos Actos dos Apóstolos”, “Do Livro do Apocalipse”, alargando-se, depois, a outros textos não

bíblicos, mas de teor espiritual, como “O Livro Primeiro da Noite Escura, de São João da Cruz”

(poemas 1-3), “O Livro Segundo da Noite Escura, de São João da Cruz” (poemas 1-5), “O

Manuscrito C de Santa Teresa do Menino Jesus” (poemas 1-2), para culminar no poema,

novamente de teor bíblico, “Do Sacrifício de Isaac”

Queimarás o monte, o filho, a lenha

A morte, as areias, a viagem

O deserto, a túnica, as estrelas

Nunca será bastante o incêndio (p. 226)

Há que acrescentar que a intertextualidade cultivada se estende a outros poemas de modo

disperso mas, no fundo, resulta sempre de uma assimilação pessoal que do subtexto arranca

também a sua força, o seu poder de irradiação.

Dois ciclos numerados

Consideremos ainda dois ciclos numerados do mesmo livro, o primeiro inserido em “Do

Inesgotável” e imbuído de verticalidade, o segundo preenchendo inteiramente “Do Ciclo das

Intempéries” e com uma articulação horizontal, em diálogo com o leitor. Os poemas 1 a 6

incluídos em “Do inesgotável” falam de modos do amor a Deus na Pessoa de Jesus Cristo.

É um amor que eclode nas situações do quotidiano – “Amo-te no intenso tráfego/Com toda a

poluição no sangue” (1) -, num plano universal – “Amo-te como um planeta em rotação difusa

/E quero parar como servo colado ao chão.” (2) –, no aspecto de sede de Deus e desejo de

entrega – “Escada entre o poço que cavaste em mim e a sede/que cavaste no meu canto,

amo-te/Sou cítara para tocar as tuas mãos.” (3) –, no desejo de contemplar a face de Deus

– “Amo tão grandemente a ideia do teu rosto que penso ver-te/Voltado para mim/Inclinado

como a criança que quer voltar ao chão.” (4) –, na contemplação da Humanidade de Cristo

– “Amo-te na carne que tomaste no chão que aplaino/Com as mãos/Com as palavras que

escrevo e apago/Na areia, no cérebro.” (5) -, numa perspectiva de abandono e de infância

espiritual – “Amo o caminho que estendes por dentro das minhas divisões./(…)/Mas não me

importo de adoecer no teu colo/De dormir ao relento entre as tuas mãos.” (6)

Os oito poemas “Do ciclo das Intempéries” centram-se na imagem, simultaneamente metáfora,

da magnólia. Diz o segundo poema:

Quero dizer-te que esta magnólia não é a magnólia

Do poema de Luiza Neto Jorge que nunca veio

A minha casa – ela própria dava flor

Ela riscava nas folhas

Ela era grande mesmo quando a magnólia não crescia

Esta magnólia não é como a dela uma magnólia pronunciada

É uma magnólia de verdade a todo o redor – maior

E mais bonita do que a palavra (p. 328)

Convém-nos, então, revisitar o poema de Luiza Neto Jorge para estudar

o modo de intertextualidade ao longo dos oito poemas:

A MAGNÓLIA

A exaltação do mínimo,

e o magnífico relâmpago

do acontecimento mestre

restituem-me a forma

o meu resplendor.

Um diminuto berço me recolhe

onde a palavra se elide

na matéria – na metáfora –

necessária, e leve, a cada um

onde se ecoa e resvala.

A magnólia,

o som que se desenvolve nela,

quando pronunciada,

é um exaltado aroma

perdido na tempestade,

um mínimo ente magnífico

desfolhando relâmpagos

sobre mim.

Se a magnólia de Daniel Faria não é “pronunciada” como a de Luiza Neto Jorge é porque lhe

importa menos o aspecto sonoro, a musicalidade, antes lhe interessa algo mais concreto,

verdadeiro e presente no real, que ultrapassa a tempestade de relâmpagos que envolvem

aquela enunciadora de luz.

A magnólia é uma forma de comunicação entre o mundo do eu e o mundo do outro, o do

escritor e o do leitor, uma forma de doação e de cumplicidade:

1

Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página

E aproveito o facto de teres chegado agora

Para te explicar como vejo o crescer de uma magnólia.

A magnólia cresce na terra que pisas – podes pensar

Que te digo alguma coisa não necessária, mas podia ter-te dito, acredita,

Que a magnólia te cresce como um livro entre as mãos. Ou melhor,

Que a magnólia – essa é a verdade – cresce sempre

Apesar de nós.

Esta raiz para a palavra que ela lançou no poema

Pode bem significar que no ramo que ficar desse lado

A flor que se abrir é já um pouco de ti. E a flor que te estendo,

Mesmo que a recuses

Nunca a poderei conhecer, nem jamais, por muito que a ame,

A colherei.

A magnólia estende contra a minha escrita a tua sombra

E eu toco na sombra da magnólia como se pegasse na tua mão. (p. 327)

O poema três repete “magnólia pronunciada”, acrescenta “aroma premeditado”

no contexto do novo enunciador:

………………

Perscruta no que te digo o aroma premeditado

Procura-o esmagando uma a uma as pequenas sílabas – foi esmagando-me,

[acredita,

Que aprendi o que sei hoje: há uma diferença

Entre a magnólia que nos cresce fora

E aquela que regamos com o sangue. (p. 329)

A magnólia tem a capacidade de elevar o sujeito lírico a um plano

superior ao da terra:

4

Se te puseres à escuta a magnólia pode ser uma árvore de fruto –

…………………………………………………………

(…) Ela não tem medo

De aproximar-se quando minha mãe me pega ao colo.

Ela levanta-me da terra

Como os tufões e os bandos dos pássaros. (p. 330)

O poema seguinte (5) refere a intercomunicação com o leitor, sendo

para ele alimento e fonte de crescimento:

5

Começo, pois, no alto a saciar-te. Explico-te o ciclo

Das intempéries e das migrações. Se puderes ficar em silêncio

Não te igualarás à magnólia, mas repousarás

Como o musgo que lhe cresce no tronco.

És tu que cresces, afinal. (…) (p. 331)

No poema 6 a cumplicidade com o leitor aumenta através do “segredo”

que ambos partilham, segredo de conhecimento e de afectos. O poema é

uma magnólia exposta ao vento na sua densidade, na sua fragilidade:~

6

O tesouro é então a magnólia segredada entre nós dois

É o canto que circula entre os lábios, a seiva

Entre o nosso cérebro e o seu próprio coração.

O coração do poema é a magnólia ao vento. (…) (p. 332)

Como consequência dessa fragilidade o poema 7 fala da queda dessa

flor durante a tempestade de relâmpagos – estas duas palavras tomadas

também do poema de Luiza. A mortalidade da flor é transposta para os

dois sujeitos em comunicação no poema, que deverão guardar o essencial

da beleza e da essência da vida no seu interior:

7

Magoa ver a magnólia cair. Acredita.

O relâmpago vem

Sobre ela. A tempestade.

As plantas são tão frágeis como as cabanas dos homens.

Somos muito frágeis os dois neste poema

Com o relâmpago, a cabana, com a magnólia aos ombros

Sem nenhum terreno pulmonar intacto

Para depois de nos olharmos um de nós dizer

Plantêmo-la aqui – aqui

É o meu pulso, a minha boca

É a retina que procuras, é a madeira da porta

Com que te fechas em casa. Prometo-te

Eu nunca vou fechar os olhos

As mãos. (p. 333)

O poema 8, o último do ciclo, é uma espécie de passagem de testemunho ao leitor que

tem estado a coabitar o poema e que poderá expandir a escrita recebida e a que venha

a cultivar, nos “mil botões/Que ela sopra no interior dos homens.” Na segunda estrofe a

magnólia passa de flor no Outono a “magnólia estelar” – passa o poema, pois, a uma

linguagem mais explicitamente contemplativa: “(…) aproxima/A tua mão da paisagem que

resta/Como se fora o lado do verbo que encarnou”; “Há um tesouro/No céu – um coração novo.”;

“E contempla – é verdade que é pelas lágrimas/Que começam as visões.”; “Sim. Agora posso

explicar-te o mistério das águas./Debruça-te como ele quando escreveu no chão/Irás entender

– elas jorram das palavras.” (p.334-335) Palavra poética e palavra da Escritura fundem-se

numa só ganhando o estatuto de fecundidade, de purificação, de beleza transmissível.

Em 1998, dizia João Barrento sobre a poesia de Daniel Faria, entre outras coisas: “Há um

lume raro que ilumina e aquece a poesia de Daniel Faria (…). Há nele alguns paralelos com

a mais recente Fiama, no projecto poético de comunhão com os seres e os homens, para os

“explicar” a partir das suas raízes existenciais e metafísicas mais fundas (…)” (2000: 99).

Cremos tratar-se do livro de Fiama publicado em 1996, Epístolas e Memorandos.

Nesse livro podemos ler, como exemplo concordante, o poema:

EPÍSTOLA PARA UM PÁSSARO SEMPRE A CANTAR

NOS ALOENDROS, EM FRENTE DA CASA, AO POENTE

Sozinho ele canta o último canto e o seu descante,

voando, de aloendro para aloendro, em frente

da casa. O seu voo em descida desenha a linha

do descante. E mais nada sei do pássaro final,

nem razões, nem o nome, nem sei o que louva,

se o dia se afinal a noite. E sabê-lo é preciso

para sentir o seu canto, se como eu louvar

a noite e o dia, sendo o primeiro canto. (p. 15)

Bibliografia

Daniel Faria, Poesia. 2ª edição. Vera Vouga (org.). Vila Nova de Famalicão, Edições Quasi, 2006.

Jorge Reis Sá (selecção e organização), Anos 90 e Agora. Uma Antologia da Nova Poesia Portuguesa. 3ª edição, revista e aumentada. Vila Nova de Famalicão, Edições Quasi, 2004, p. 59-78.

João Barrento, Umbrais. O pequeno livro dos prefácios. Lisboa, Edições Cotovia, 2000, p. 99-100.

Alexandra Lucas Coelho, “O Rapaz Raro”. Público, Milfolhas, 14 de Julho de 2001.