2ª Parte - Desejar ser

3

Não é por me gavar

mas eu não tenho esplendor.

Sou referente pra ferrugem

mais do que referente pra fulgor.

Trabalho arduamente para fazer o que é desnecessário.

O que presta não tem confirmação,

o que não presta, tem.

Não serei mais um pobre-diabo que sofre de nobrezas.

Só as coisas rasteiras me celestam.

Eu tenho cacoete pra vadio.

As violetas me imensam.

4

Escrevo o idioleto manoelês archaico* (Idioleto é o

dialeto que os idiotas usam para falar com as paredes e

com as moscas). Preciso de atrapalhar as significâncias.

O despropósito é mais saudável que o solene. (Para

limpar das palavras alguma solenidade – uso bosta.)

Sou muito higiênico. E pois. O que ponho de cerebral

nos meus escritos é apenas uma vigilância pra não cair

na tentação de me achar menos tolo que os outros. Sou

bem conceituado para parvo. Disso forneço certidão.

*Falar em archaico: aprecio uma desviação ortográfica para o archaico.

Estâmago por estômago. Celeusma por celeuma. Seja este um gosto que

vem de detrás. Das minhas memórias fósseis. Ouvir estâmago produz

uma ressonância atávica dentro de mim. Coisa que sonha de retravés.

6

Carrego meus primórdios num andor.

Minha voz tem um vício de fontes.

Eu queria avançar para o começo.

Chegar ao criançamento das palavras.

Lá onde elas ainda urinam na perna.

Antes mesmo que sejam modeladas pelas mãos.

Quando a criança garatuja o verbo para falar o que não tem.

Pegar no estame do som.

Ser a voz de um lagarto escurecido.

Abrir um descortínio para o arcano.

7

Sei que fazer o inconexo aclara as loucuras.

Sou formado em desencontros.

A sensatez me absurda.

Os delírios verbais me terapeutam.

Posso dar alegria ao esgoto (palavra aceita tudo).

(E sei de Baudelaire que passou muitos meses tenso

porque não encontrava um título para os seus poemas.

Um título que harmonizasse os seus conflitos. Até que

apareceu Flores do mal. A beleza e a dor. Essa antítese o acalmou.)

As antíteses congraçam.

8

Nasci para administrar o à-toa

o em vão

o inútil.

Pertenço de fazer imagens.

Opero por semelhanças.

Retiro semelhanças de pessoas com árvores

de pessoas com rãs

de pessoas com pedras

etc etc.

Retiro semelhanças de árvores comigo.

Não tenho habilidade pra clarezas.

Preciso de obter sabedoria vegetal.

(Sabedoria vegetal é receber com naturalidade uma rã

no talo.)

E quando esteja apropriado para pedra, terei também

sabedoria mineral.

13

Venho de nobres que empobreceram.

Restou-me por fortuna a soberbia

Com esta doença de grandezas:

Hei de monumentar os insetos!

(Cristo monumentou a Humildade quando beijou os pés

dos seus discípulos)

São Francisco monumentou as aves

Vieira, os peixes

Shakespeare, o Amor. A Dúvida, os tolos.

Charles Chaplin monumentou os vagabundos.

Com esta mania de grandeza:

Hei de monumentar as pobres coisas do chão mijadas de orvalho.

14

O que não sei fazer desmancho em frases

Eu fiz o nada aparecer

(Represente que o homem é um poço escuro

Aqui de cima não se vê nada

Mas quando se chega ao fundo do poço já se pode ver

o nada)

Perder o nada é um empobrecimento.

- Manoel de Barros -