Tomás de Aquino

Análise ética do suicídio

Tomás de Aquino (1225-1274)

Extraído de:

Suma Teológica, part. III, q. 64, a.5, de Tomás de Aquino

É LÍCITO A ALGUÉM SE SUICIDAR?

            Objeções pelas quais parece que é lícito a alguém se suicidar:

1. O homicídio somente é pecado enquanto é contrário à justiça. Mas ninguém pode fazer a si mesmo a injustiça, como [Aristóteles] prova em Ética, V. Logo, ninguém peca ao se suicidar.

2. Além disso: Matar os malfeitores é lícito a quem tem poder público. Mas, às vezes, o que tem poder público é um malfeitor. Logo, é permitido a ele dar-se a morte.

3. E também: É lícito que alguém se exponha espontaneamente a um perigo menor para evitar o perigo maior, como também é lícito que alguém se ampute um membro podre para salvar todo o corpo. Mas, às vezes, dando a morte a si mesmo, evita-se maior mal, como o seria uma vida miserável ou a torpeza de algum pecado. Logo, é lícito se suicidar.

4. Ademais: Sansão se deu a morte, segundo se tem em Juízes 16,30; e, não obstante, ele se enumera entre os santos, como é manifesto (Hebreus 11,32). Logo, é lícito a alguém se suicidar.

5. E ainda: No livro 2 Macabeus 14,41ss, conta-se que Razias se deu a morte, preferindo morrer nobremente em vez de cair nas mãos de pecadores e sofrer injúrias indignas de sua linhagem. E nada que se faça nobremente e com valor é ilícito. Logo, não é ilícito dar-se a morte.

Em contrário, está Agostinho, em Cidade de Deus, I, que diz: “Só podemos aplicar ao homem este preceito: ‘Não matarás’. Nem ao teu próximo nem a ti, porque quem se mata, mata a um homem”.

Solução. Deve-se dizer: É absolutamente ilícito se suicidar por três razões: Primeiro, porque todo ser ama naturalmente a si mesmo, e a isso se deve que todo ser se conserve naturalmente na existência e resista, quanto seja capaz, ao que poderia destrui-lo. Por tal motivo, que alguém se dê a morte vai contra a inclinação natural e contra a caridade, pelas quais se deve amar a si mesmo; daí que se suicidar seja sempre pecado mortal, por ir contra a lei natural e contra a caridade.

          Segundo, porque cada parte, enquanto tal, pertence ao todo; e um homem qualquer é parte da comunidade, e, portanto, tudo o que ele é pertence à sociedade. Por isso, quem se suicida faz injúria à comunidade, como o demonstra o Filósofo [Aristóteles] em Ética, V.

       Terceiro, porque a vida é um dom divino dado ao homem e sujeito ao seu divino poder, que dá a morte e a vida. E, portanto, quem priva a si mesmo da vida peca contra Deus, como quem mata um servo alheio peca contra o senhor de quem ele é servo; ou como peca quem se arroga a faculdade de julgar uma coisa que não lhe é atribuída, pois só a Deus pertence o juízo da morte e da vida, segundo o texto de Deuteronômio 32,39: “Eu tirarei a vida e Eu farei viver”.

         Resposta às objeções. 1. À primeira, deve-se dizer: Que o homicídio é pecado, não só porque é contrário à justiça, mas também porque é contrário à caridade que se deve ter consigo mesmo; e nesse conceito o suicídio é pecado contra si mesmo; porém, ademais, com respeito à sociedade e a Deus, tem também razão de pecado por oposição à justiça.

         2. À segunda, deve-se dizer: Que quem exerce poder público pode matar licitamente o malfeitor, porquanto pode julgá-lo; mas ninguém é juiz de si mesmo, e, por conseguinte, não é lícito a quem exerce poder público dar a morte a si mesmo, qualquer que seja seu pecado; mas lhe é lícito submeter-se ao juízo dos outros.

            3. À terceira, deve-se dizer: Que o homem se constitui em senhor de si mesmo pelo livre arbítrio, e, portanto, pode licitamente dispor de si mesmo no que pertence a esta vida, a qual é regida pelo livre arbítrio do homem. Mas a passagem desta vida para outra mais feliz não está sujeita ao livre arbítrio do homem, senão ao poder divino; e por essa razão não é lícito ao homem dar-se a morte para passar para outra vida mais ditosa. Tampouco é lícito o suicídio que evita certas misérias da vida presente, posto que a morte é o “último dos males desta vida e o mais terrível”, como mostra o Filósofo [Aristóteles] na Ética, III. Por conseguinte, suicidar-se para evitar outras misérias desta vida é preferir um mal maior a fim de evitar um menor. Também não é lícito dar-se a morte por algum pecado cometido, seja porque com isso causa a si mesmo um prejuízo máximo, posto que se priva do tempo necessário para a penitência, seja também porque não é lícito matar o malfeitor senão mediante juízo do poder público. Nem é igualmente lícito à mulher dar-se a morte para não ser violada, já que não deve cometer um crime maior, que é o suicídio, para evitar um delito menor alheio; pois a mulher violada à força não peca se não dá seu consentimento, porque “o corpo não se mancha senão pelo consentimento da alma”, como diz Santa Lúcia. Mas consta que é notoriamente menor pecado a fornicação e o adultério do que o homicídio e, sobretudo, do que o suicídio, que é gravíssimo, porque o homem causa a si mesmo um dano, devendo a si um máximo amor, e também é pecado perigosíssimo, pois não deixa tempo para expiá-lo pela penitência. Finalmente, tampouco é lícito dar-se a morte por medo de consentir no pecado, posto que “não se devem realizar males para que sobrevenham bens” (Romanos 3,8) ou para evitar outros males, sobretudo menores e menos certos. E é incerto se alguém consentirá mais adiante no pecado, posto que Deus pode livrar o homem do pecado em qualquer tentação que o assalte.

          4. À quarta, deve-se dizer: Como diz Agostinho, em Cidade de Deus, I, “que Sansão se sepultara com seus inimigos entre as ruínas do templo só se desculpa por alguma secreta intimação do Espírito Santo, que operava milagres por seu intermédio”. O mesmo raciocínio aduz Agostinho a respeito de certas santas mulheres que se deram a morte em tempos de perseguição e cuja memória a Igreja celebra.

            5. À quinta, deve-se dizer: Que pertence à virtude da fortaleza que alguém não recuse ser morto por outro pelo bem da virtude e para evitar o pecado. Assim, suicidar-se para evitar sofrimentos penais só tem uma aparência de fortaleza, pelo que alguns tiraram a vida a si mesmos crendo que obravam valorosamente, entre os quais se enumera o caso de Razias; mas não é verdadeira força, e sim certa fraqueza de alma, que é incapaz de suportar padecimentos penais, como sublinhado pelo Filósofo [Aristóteles] em Ética, II, e por Agostinho, Cidade de Deus, I.

—  Tomás de Aquino

Suma Teológica, parte 3, q. 64, art. 5.