F. Hoefer

Verbete "Platão", da Nouvelle biographie générale.

Dr. Jean Chrétien Ferdinand Hoefer (1811-1878)

Físico e lexicógrafo franco-alemão

Extraído de:

Nova biografia geral: desde os tempos mais recuados até nossos dias [Nouvelle biographie générale depuis les temps les plus reculés jusqu'a nos jours], tomo 40, publicada pela Firmin Didot Frères, em Paris, 1862, verbete "Platão".

Texto original em francês disponível em: <http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k63067718/f221.item.r=Platon>

Traduzido por Luiz Gustavo Oliveira dos Santos


PLATÃO, o maior filósofo da Antiguidade grega, nasceu em Atenas1, no sexto dia do mês targélion (21 de maio) do terceiro ano da 87ª olimpíada (429 antes de J. C.), e morreu no primeiro ano da 108ª olimpíada (347 antes de J. C.). Por seu pai, Aríston, parecia descender de Codro, e sua mãe, Perictíone, fazia remontar a origem de sua família a Sólon. Ele se chamava, de início, Aristoclés, do nome de um de seus tios e, mais tarde, recebeu, por causa, diz-se, da largueza de sua fronte ou de seus ombros, o apelido de Platão: foi Sócrates quem lho deu. A Grécia, ou, antes, a Ática, esse pequeno canto do globo que levou em seus flancos a civilização do mundo, estava então no apogeu de seu esplendor. Esses gênios imortais que a plástica, tão bem como a pureza da forma literária, desde então propuseram constantemente por modelos, e que se poderia ainda hoje, após vinte e dois séculos decorridos, invocar como um grave protesto contra a teoria do progresso, viviam todos à mesma época e na mesma cidade, em Atenas, como se Deus quisesse concentrar em um ponto único do espaço e do tempo o nascer da cultura intelectual da humanidade. Sófocles, Eurípides, Aristófanes, Menandro, Tucídides, Xenofonte, Praxíteles etc., eram contemporâneos de Platão. Aluno de Sócrates, condiscípulo de Alcibíades, mestre de Aristóteles, ele pôde, em sua primeira juventude, admirar o grande homem de Estado, esse raio de eloquência, Péricles. Enfim, se se perguntasse a um amigo do belo e do verdadeiro em qual período da história desejaria ter vivido, responderia sem hesitar: no século de Platão.

A poesia foi, de início, para Platão, um poderoso atrativo; muito jovem ainda, compôs um poema épico, onde se ensaiava, diz-se, para igualar Homero, e não temeu entrar em liça com os poetas mais renomados de seu tempo. Ele ia se entregar com todo o ardor de sua idade ao gênero lírico, quando fez, aos vinte anos, o conhecimento de Sócrates: desde então, consagrou-se todo inteiro ao culto da filosofia. Entretanto, ele tinha já frequentado a escola dos sofistas e abordado, sob os auspícios de Crátilo, as doutrinas de Heráclito. Mas essas doutrinas pouco podiam convir a um espírito que procurava, antes de tudo, a certeza da ciência nas flutuações da dúvida e de um probabilismo ondulante. Platão tinha se colocado já em relação com Sócrates quando resolveu se iniciar nos sistemas dos eleatas e dos filósofos jônicos. Suas obras testemunham uma leitura atenta, assídua, dos escritos de Xenófanes, de Anaxágoras e de Parmênides. Mas o grande mestre de quem ele devia tão eloquentemente propagar as doutrinas lhe fez logo rejeitar da filosofia tudo o que não pudesse em nada contribuir para tornar os homens melhores: a melhoria moral dos membros da sociedade humana, eis o pivô de todo o ensinamento de Sócrates; Platão aproveitou disso durante mais de dez anos. A morte trágica do verdadeiro precursor do Cristo dispersou a maior parte de seus discípulos. Platão deixou Atenas e se dirigiu primeiro a Mégara, junto de Euclides, que fundou a escola megárica. Ele deixou mesmo a Grécia para visitar a Itália e o Egito2. As doutrinas de Pitágoras fixaram então particularmente sua atenção, e ele nos mostra em vários de seus diálogos, sobretudo no Timeu e no Filebo, que seguira com fruto as lições de Árquitas de Tarento, de Eudoxo de Cnido, assim como de muitos outros físicos e matemáticos da mesma escola. Da Itália, Platão passou à África: ouviu, em Cirene, o filósofo Teodoro, discípulo de Protágoras. Verossimilmente, visitou também o Egito; mas ignora-se quanto tempo morou nesse país, antigo foco das ciências3. Pelo relato de alguns Pais da Igreja, foi mesmo à Pérsia para confabular com os magos, se bem que disso ele não faça, não mais que os judeus, qualquer menção4. Após aproximadamente dez anos de ausência, voltou à sua pátria (cerca de 390 antes de J. C.); mas aí não permaneceu longo tempo: fez uma segunda viagem à Itália inferior, de onde passou à Sicília. Lá, foi apresentado, por Díon, seu amigo e discípulo, a Dionísio, o Antigo, soberano de Siracusa. Esse príncipe o acolheu, de início, magnificamente; mas Platão não tardou em perder o favor do tirano do qual reprovava os excessos, e, sem a intervenção de Díon, teria sido posto à morte. O filósofo não pôde escapar à perda de sua liberdade: foi vendido como escravo a um lacedemônio, homem inculto, que o conduziu a Égina, onde o resgatou Díon5, ou, segundo outros6, Aníceris de Cirene, que viera assistir aos jogos da 98ª Olimpíada7. Em 388 antes de J. C., reencontra-se Platão em Atenas. É a essa época que é preciso remontar a fundação da Academia, escola célebre, onde ele reunia numerosos discípulos, ávidos de se instruir nas lições do mestre8. Após vinte anos de ensinamento, durante os quais compôs a maior parte de seus escritos, ele retornou, sobre as instâncias de Díon, a Siracusa. Dionísio, o Jovem, aí sucedera ao seu pai, e escolhera o amigo de Platão por seu principal conselheiro. Era preciso que sua amizade por Díon fosse bem viva para que o grande filósofo pudesse se decidir a abandonar sua escola, que confiou aos cuidados de Heráclides do Ponto, e consentir em retornar à cidade de um tirano que lhe recordava tão indigno tratamento. Platão tinha levado consigo Espêusipo, filho de sua irmã9. Tudo ia, de início, a desejar: Dionísio seguia, como um filho submisso, os preceitos do filósofo e os conselhos de Díon: mostrava-se em público sem guarda, ouvia com benevolência as queixas de seus súditos e fazia a justiça para a satisfação de todos. Mas a inveja, armada da calúnia, fez, pouco a pouco, perder o amigo de Platão todo o seu crédito na corte. Díon foi exilado por uma ordem do tirano, seu cunhado, e Platão, malgrado as seduções de que se o cercava para retê-lo em Siracusa, partiu para Atenas (365 antes de J. C.), onde chegou após dois anos de estada na Sicília. Entretanto, Dionísio renovou suas tentativas para atrair ainda junto de si Platão: delegou-lhe vários de seus amigos, entre outros, Árquitas de Tarento, e prometeu fazer cessar o exílio de Díon. Essa promessa determinou Platão, quase octogenário, a embarcar uma terceira vez para Siracusa. Mas o tirano faltou com a palavra: não chamou Díon e não mudou em nada sua conduta e seu governo; foi com grande dificuldade que Platão chegou a se subtrair à perfídia de Dionísio, reembarcando para sua pátria (360 antes de J. C.), que não devia mais deixar. Ele ia dar a última mão no Tratado das Leis quando se extinguiu, na idade de oitenta e um anos.

A edição princeps das obras de Platão apareceu (in-fol.) em 1513, em Veneza, na casa Alde Manuce, que encarregara Musurus de Creta de lhe supervisionar a impressão. A edição Valderiana de Basileia (1534, in-fol.), com um prefácio de Oporinus e de Grynæus, é, em grande parte, uma simples reprodução da Aldina; a de Hopper (Basileia, 1556, in-fol.) é coligida sobre vários manuscritos e estimada. A edição estefanina (Paris, 1578, 3 vol. in-fol.), com a tradução latina de Serranus e notas críticas de H. Estienne, de Cornarius, etc., foi reimpressa em Lyon, 1590, in-fol., em Frankfurt, 1602, in-fol., com a tradução latina de Ficino, que se encontra também, porém mais correta, na edição bipontina, 1781-1787, XI vol. in-8º; o texto é o de H. Estienne, com fracas modificações. Bekker deu (Leipzig, 1821-1826, 12 vol. in-8º) o texto grego, cuidadosamente revisto sobre um grande número de manuscritos, com comentários, variantes e a tradução latina de Cornarius. Essa edição foi ultrapassada pela de Ast, que tem por título: Platonis quæ extant opera. Accedant Platonis quæ feruntur scripta; ad oplimorum librorum fidem recensuit, in linguam latinam convertit, annotationibus explanavit, indicesque rerum ac verborum accuratissimos adjecit, vol. I-XI; Leipzig, 1819-1832, in-8º. A nova tradução latina é excelente. É preciso aí juntar o Lexicon Platonicum de Ast (Leipzig, 1835-2838, 3 vol. in-8º). A edição de Q. Beiter, Orelli e A. Q. Winckelmann (Platonis quæ feruntur opera omnia; Zurique, 1839, in-4º) é igualmente estimada, assim como a que E. Ch. Schneider e Hirschig deram na Biblioteca Grego-Latina de A. Firmin Didot (Paris, 1846 e 1856). A edição Teubneriana, publicada aos cuidados de C. F. Hermann (Leipz., 1851-1853, 6 vol. in-8º) é corretíssima. Mas a melhor edição é a que Stallbaum publicou na Bibliotheca Græca de Rost e Jacobs (Gotha, 1858). Ela contém numerosas anotações críticas, históricas, filosóficas, etc. Entre as traduções em línguas modernas, citaremos a tradução alemã de Schleiermacher, e as traduções francesas de Grou e de V. Cousin.

Importa bem menos determinar, como se ensaiou10, a ordem na qual os escritos do grande filósofo foram compostos, do que deles fazer ressaltar o pensamento fundamental, fora de toda preocupação sistemática. Esse pensamento se encontra bastante claramente indicado em uma passagem do sétimo livro de A República. Platão aí supõe um antro onde, desde sua infância, homens vivem acorrentados de maneira a não poder girar a cabeça e a ver somente os objetos traçados na frente deles na parede. Supõe, ainda, que esse antro é aclarado do alto por uma luz diante da qual se fazem passar objetos de todas as espécies, cujas sombras vão se desenhar na parede. O antro com seus prisioneiros é a terra onde nós vivemos; os laços que os mantêm acorrentados são nossas ilusões e nossos preconceitos; as sombras que passam são o mundo que nós tomamos por uma realidade. Para chegar a desenredar o verdadeiro do que é apenas ilusório, é preciso que o cativo quebre suas cadeias, que saia do antro tenebroso e se acostume aos efeitos ofuscantes da luz. Lá, a alma imortal contemplará a verdade e se elevará até Deus. É nessa contemplação que ela se relembra das essências (τὰ ὄντως ὄντα [ta ontos onta]) ou das ideias (tipos do verdadeiro, do bem, do belo) ἰδέαι [ideai], das quais ela se nutrira antes de sua encarnação no homem. Mas nem todas as almas atingem esse grau de felicidade: a maior parte se retira sem ter podido contemplar as essências, as ideias-tipos, e são obrigadas a se alimentar de conjecturas e a viver na diversidade ou na contingência das opiniões. Quanto à própria alma, Platão a liga à alma universal, que desempenha um tão grande papel na cosmografia, toda pitagórica, dos antigos (vede o Timeu). O homem, segundo Platão, é uma alma encarnada. Antes de sua encarnação, ela existia unida aos tipos primordiais, às ideias do verdadeiro, do bem e do belo; delas se separou em se encarnando, e, recordando-se de seu passado, é mais ou menos atormentada pelo desejo de para lá voltar. É quase a doutrina da Escritura, segundo a qual o homem, saído puro da mão de Deus, caiu em seguida, e pode, graças à redenção, reerguer-se para retornar ao seu estado primitivo. No sistema platônico, como segundo a religião cristã, a alma existia, portanto, antes de nosso nascimento e continuará a existir após nossa morte; numa palavra, a alma é imortal. Que advertência, para o pensador, esse perfeito acordo da mais bela das religiões com a mais bela das filosofias sobre o maior de todos os dogmas! Os pensadores não puderam ainda nada acrescentar de novo ao que o divino Platão (é o apelido que lhe dava já a Antiguidade) disse sobre o funcionamento da alma unida ao corpo. Tudo o que é variável, desigual, acidental, dessemelhante, tudo o que se pode ver, tocar ou apreender por nossos sentidos ou nossos órgãos, tudo isso pertence, como o corpo, ao domínio da materialidade. As ideias-tipos, das quais se relembram e que não se aprendem, não podem ser percebidas senão pelo pensamento: imateriais, elas são do domínio da alma. Estão aí coisas que importa jamais confundir. “A alma, diz Platão, extravia-se e se perturba quando se serve do corpo para considerar algum objeto; ela tem vertigens, como se estivesse ébria (ἰλιγγιᾷ ὥσπερ μεθύουσα [iliggia osper methyousa]), porque se prende a coisas que são, por sua natureza, sujeitas a mudanças; ao passo que, quando contempla sua própria essência (ὅταν ἀυτὴ κάθ’ άυτὴν σκοπῇ [otan aute kath’ auten skope]), ela se dirige para o que é puro, eterno, imortal, e, sendo da mesma natureza, aí permanece ligada por tão longo tempo quanto o pode; então seus desvios cessam, pois está unida ao que é imutável, e esse estado da alma é o que se chama sabedoria.” Aqueles que cultivam essa sabedoria são verdadeiros filósofos11. Mas sua tarefa é rude; o próprio autor o reconhece: “Enquanto nós tivermos nosso corpo, acrescenta ele, e a alma se encontrar mergulhada nesta corrupção, jamais possuiremos o objeto de nossos desejos, a verdade. Com efeito, o corpo nos suscita mil obstáculos pela necessidade em que estamos de tomar cuidado dele;... ademais, ele nos enche de desejos, de apetites, de temores, de mil quimeras e de mil tolices, de maneira que com ele é impossível ser sábio um instante... Mas, se é impossível nada conhecer puramente enquanto a alma está unida ao corpo, é preciso, de duas coisas, uma, ou que não se conheça jamais a verdade, ou que se a conheça após a morte... Libertos da loucura do corpo, nós conversaremos então, há lugar de esperá-lo, com homens igualmente livres, e conheceremos por nós mesmos a essência das coisas... É por isso que os verdadeiros filósofos se exercitam para morrer, e a morte não lhe parece em nada temível”12. Se a vida é o exercício da alma, como o entendia Platão, é preciso admitir também diferentes graus de iniciação no que está além deste mundo. Com efeito, ele fala de almas puras, para as quais o corpo é uma prisão, e de almas impuras, que acreditam “que não há de real senão o que é material”. Estão aí como os dois extremos da grande escala das almas. Escutai Platão, pela boca de Sócrates, sobre a sorte da alma impura: “Nesse estado, ela é pesada e arrastada de novo para o mundo visível pelo horror do que é invisível e imaterial: ela erra então, diz-se, em torno dos monumentos e dos túmulos, junto dos quais se têm visto por vezes fantasmas tenebrosos (ψυχῶν σκιοειδῆ φαντάσματα [psychon skioeide phantasmata, “aparições de almas sombrias”]), como devem ser as imagens das almas que deixaram o corpo sem estar inteiramente puras e que retêm alguma coisa da forma material, o que faz com que o olho possa percebê-las... Não são as almas dos bons, mas as dos maus, que são forçadas a errar nesses lugares, para onde elas levam a pena de sua primeira vida (δίκην τίνουσαι τῆς προτέρας τροφῆς [diken tinousai tes proteras trophes]), e onde continuam a errar até que os apetites inerentes à forma material que elas se deram as reconduzam a um corpo, e então elas retomam, sem dúvida, os mesmos costumes que, durante sua primeira vida, eram o objeto de sua predileção”13. Essa passagem notável não enuncia somente uma doutrina, retomada e desenvolvida pelos neoplatônicos, ela contém uma tradição, uma crença popular, não interrompida desde os tempos mais recuados até nossos dias. Diremos outro tanto da passagem seguinte, que diz respeito à existência de gênios protetores, totalmente análogos aos anjos guardiões da religião cristã. “Após nossa morte, o gênio (δαίμων [daimon]) que nos fora assinalado durante nossa vida nos leva a um lugar onde se reúnem todos aqueles que devem ser conduzidos ao Hades para aí serem julgados.”14 É verdade que Platão fala disso como de uma tradição (ὥσπερ λέγεται [osper legetai]); mas era a tradição comum de todos os povos da Antiguidade. Aliás, no Banquete, a propósito do demônio guardião, ele afirma que esse gênio tem por função ser o intérprete e o intermediador entre os deuses e os homens. “Os demônios preenchem o intervalo que separa o céu da Terra: eles são o laço que une o grande Todo consigo mesmo. A Divindade não entrando jamais em comunicação direta com o homem, é por intermédio dos demônios que os deuses comerciam e se entretêm com ele, seja durante a vigília, seja durante o sono.” Assim, a grande lei da continuidade era perfeitamente conhecida: nada de salto entre o homem e o Ser supremo. Uma outra crença, igualmente muito popular na Antiguidade, e que Pitágoras foi um dos primeiros a erigir em dogma, era a transmigração das almas. Platão também a adotara em parte: “as almas, diz ele, após terem permanecido no Hades o tempo necessário, são reconduzidas a esta vida em numerosos e longos períodos” (ἐν πολλαῖς χρόνου καὶ μακραῖς περιόδοις [en pollais chronou kai makrais periodois]). A preocupação constante do filósofo, tal como o entendiam Sócrates e Platão, era tomar o maior cuidado da alma, menos por esta vida, que não é senão um instante, em vista da eternidade. A despreocupação do homem em face do que deveria ocupar toda a sua vida é o que espantava Pascal a ponto de renunciar ao emprego da razão para se lançar nos braços da fé. Esses marcos da filosofia de Platão foram retomados em todo tempo pelos maiores pensadores; eles formam a base da escola espiritualista e mística de Plotino, Jâmblico, Porfírio, Proclo, Olimpiodoro, etc.

No método empregado por Platão, e que Sócrates chamava uma arte obstetrícia, comparando seu ofício ao de uma parteira, é preciso bem distinguir a forma do fundo. A forma é o diálogo; os caracteres dos personagens postos em cena são bem traçados; como em um drama, cada um aí aparece com a tendência de espírito, com a índole que o caracteriza. No começo, o pensamento do autor parece vago, inapreensível e como afogado numa multidão de detalhes vãos e insignificantes; é com esforço que a pureza da dicção, o modelo do aticismo, a forma literária mais irrepreensível fazem perdoar as digressões, em aparência supérfluas ou inúteis15. Mas, pouco a pouco, o pensamento se desprende, claro, luminoso, brilhante, e o diálogo torna em proveito de todos: aquele que fundara suas crenças sobre o que muda perpetuamente aprende que se enganava e que não há de verdadeiro senão o imutável; enfim, aquele que acreditava saber muito vai-se convencido de que não sabe nada. Tal é a economia comum de cada um dos diálogos de Platão: aí reina, como se vê, uma certa encenação; tudo o que é variável, acidental, particular, concreto, aí figura de uma maneira mais ou menos aprazível e irônica; depois, todo esse cortejo da contingência vai se dissipar na luz das essências imutáveis; a variedade das coisas se absorve na unidade absoluta16.

O Fedro passa pelo primeiro diálogo de Platão, na ordem cronológica. Uma encenação poética transporta os interlocutores a uma paisagem encantadora, sob a sombra de um platô, às bordas do Ilissos, alegradas pelo canto das cigarras, músicos transformados. O diálogo rola sobre a beleza e o amor; mas, ao mesmo tempo, passam-se em revista os fundamentos da filosofia: a teoria das sensações, que não nos trazem senão o que é ondulante e diverso; a teoria das ideias, que as almas contemplam em sua viagem celeste; a doutrina da reminiscência; a demonstração da imortalidade da alma pela força interior, causa de todas as nossas ações e de todos os nossos movimentos; a doutrina da metempsicose, segundo a qual as almas, após períodos determinados, voltam a fazer escolhas de uma nova vida. O autor compara a alma, ao mesmo tempo instintiva e racional, a uma carruagem arrastada por dois corcéis, que a vontade governa sob forma de um cocheiro. Ele lhe dá também asas porque ela procura, sem cessar, elevar-se ao que é divino, a essa região dos tipos imutáveis do belo e do verdadeiro, que se estende além do mundo sensível e da qual Platão é, para falar assim, o Cristóvão Colombo. As doutrinas esboçadas no Fedro foram desenvolvidas no Fédon, no Górgias e no Parmênides. Há, nesse mesmo diálogo, uma palavra feliz dirigida aos cientistas que negam o que não podem explicar por causas físicas; esta palavra, ei-la: “Se eu fosse incrédulo como um cientista, não estaria embaraçado”17. — O Lísis parece ter sido composto pouco tempo após o Fedro. O autor aí examina esta espécie de amor que se chama amizade, sentimento que aproxima sempre o semelhante do semelhante.

O Fédon é talvez o mais belo dos diálogos de Platão; os antigos o tinham na maior consideração: sabe-se que Catão acabava de lê-lo quando tirou-se a vida. Sócrates se entretém em sua prisão com seus discípulos ou amigos, no número dos quais figura Fédon: a imortalidade da alma é o assunto desse diálogo. Eis o fundo da argumentação: Se a alma é imaterial, ela deve se dirigir, após esta vida, a um mundo igualmente invisível e imaterial, da mesma forma que o corpo, em se decompondo, retorna à matéria. Somente, importa, no sentido de Platão, bem distinguir a alma pura, verdadeiramente imaterial, que se nutre, como Deus, de ciência e de pensamentos, da alma mais ou menos manchada de impurezas materiais, que a impedem de se elevar ao divino e a retêm nos lugares de sua estada terrestre. Mas, se a alma é imortal, não é sábio viver em vista da eternidade? “Com efeito, se a morte fosse a dissolução do homem todo inteiro, seria um grande ganho para os maus, após sua morte, serem libertos, ao mesmo tempo, de seu corpo, de sua alma e de seus vícios. Aquele que ornou sua alma, não de um enfeite estranho, mas daquele que lhe é próprio, só este poderá tranquilamente esperar a hora de sua partida para o outro mundo.” Esse mesmo diálogo contém uma doutrina muito curiosa concernente ao nosso domicílio planetário. A Terra é, de início, suposta suspensa livremente no espaço: “Ela não tem necessidade nem de ar nem de nenhum apoio para não cair; ela se mantém por seu próprio equilíbrio pelo céu que a cerca igualmente de todas as partes.” Ademais, o autor acreditava que a Terra era muito grande, e foi essa crença que, transmitida de século em século, foi um dos principais entraves da descoberta do Novo Mundo: era preciso, com efeito, muito espaço para colocar além das colunas de Hércules, no Oceano tenebroso, a morada de tantos mortos! Mas, ao lado desse erro, há uma escapada luminosa que teria devido, em boa hora, fixar a atenção dos físicos e dos astrônomos sobre a ação desse oceano aéreo do qual nós ocupamos o fundo. Eis as palavras, tão notáveis, de Platão: “Alojados, sem o saber, no fundo do solo, nós acreditamos habitar a superfície da Terra, quase como aquele que, fixado no fundo do Oceano, imaginasse habitar na superfície do mar e, vendo através da água o Sol e os astros, tomasse a água pelo céu”. Que traço de luz! Mas, como tantas outras ideias, lançadas sobre a passagem dos homens, ele devia permanecer longo tempo despercebido e estéril.

No Protágoras, Sócrates expõe suas dúvidas sobre a ciência dos sofistas, que, além da aritmética, da geometria, da astronomia, da música, pretendiam mesmo ensinar a virtude; depois, após ter refutado os argumentos de seu contraditor, ele chega a concluir que a virtude, sendo a essência mesma da alma, não pode ser o fruto da educação. É nesse diálogo que se encontram estas notas, desde então passadas a adágios: “A melhor de todas as finezas é o não tê-las; – prefiro me mostrar do que ser descoberto; – um talento dado a poucas pessoas é saber escutar aquele que fala”.

No Górgias, o autor examina qual será o cidadão mais próprio a dirigir a palavra nas assembleias e a governar os negócios da pátria. O começo é um pouco longo e contém muitos detalhes supérfluos, que fazem bem depressa perdoar por admiráveis sobressaltos, como este: “Penso, Górgias, diz Sócrates, que tu, como eu, assististe a muitas discussões, e que observaste que os homens, em seus diálogos, têm muita dificuldade em fixar, de uma parte e de outra, suas ideias... Um pretende que o outro fala com pouca justeza: enfurecem-se logo, e imaginam que é por inveja que se os contradiz; alguns mesmo terminam pelas mais grosseiras injúrias, e separam-se após se dirigirem ofensas tão odiosas que os assistentes se arrependem de ter ouvido semelhantes homens”. Ah, eles quase não mudaram desde tantos séculos. Que belo modelo, entretanto, que lhes oferecia Sócrates! “Sou, acrescenta ele, dessas pessoas que não têm menos prazer em se ver refutadas do que em refutar. Se tu és, Górgias, do mesmo caráter que eu, continuarei com prazer; se não, não irei mais longe.” O fim do Górgias é uma obra-prima de pensamento, talvez um dos mais belos trechos da Antiguidade. Segundo uma antiga tradição, no tempo de Saturno, os homens, no momento da morte, eram julgados pelos vivos. Plutão se queixava a Júpiter de que se lhe enviavam almas que não mereciam nem as recompensas nem as penas que se lhes assinalaram. “Eu farei cessar essa injustiça, respondeu Júpiter; o que faz com que a justiça seja mal realizada agora é que se julgam os homens todos vestidos, pois são julgados quando estão ainda em vida. Assim, muitos dentre eles, cuja alma está corrompida, estão revestidos de belos e nobres corpos, rodeados de riquezas e, quando se trata de pronunciar a sentença, apresenta-se uma multidão de testemunhas para atestar em seu favor. Os juízes se deixam, portanto, impor por isso; ademais, eles próprios julgam vestidos, tendo, diante de sua alma, toda a massa do corpo que os envolve. Eu quero, portanto, que sejam julgados, doravante, despojados do que os cerca, e que, para esse efeito, eles não sejam julgados senão após sua morte. É preciso, além disso, que o próprio juiz esteja nu, morto, e que, separado dos seus, tenha deixado todo vão apetrecho sobre a terra.” Essa tradição, Sócrates a tem por verdadeira, porque, no momento da morte, a alma não poderia mudar bruscamente. “O corpo conserva os vestígios bem marcados dos cuidados que se tomou com ele ou dos acidentes que experimentou... Dá-se o mesmo com a alma: quando está despojada do corpo, ela leva os traços evidentes de seu caráter, de suas afeições e as marcas que cada um dos atos de sua vida aí deixaram. Assim, a maior infelicidade que possa acontecer ao homem é ir para o outro mundo com uma alma carregada de crimes.” Enfim, para completar essa bela teodiceia, Sócrates acrescenta: “Vês, Cálicles, que nem tu, nem Polos, nem Górgias saberíeis provar que se deva levar outra vida senão a que nos será útil quando estivermos lá embaixo. De tantas opiniões diversas, a única que permanece inabalável é que vale mais receber do que cometer uma injustiça, e que, antes de todas as coisas, deve-se aplicar, não em parecer homem de bem, mas em sê-lo”.

O Parmênides se desenrola sobre a questão levantada pela escola de Zenão, a saber, que tudo é uno quanto à essência dos seres, mas que tudo é múltiplo quando se encaram apenas os acidentes da realidade. Poder-se-ia intitular esse Diálogo: Da unidade na variedade das coisas. A discussão que aí se encontra sobre o uno, o diverso, o múltiplo, o semelhante, o dessemelhante, foi retomada pelas principais seitas filosóficas para desembocar na dialética da Idade Média.

No Eutífron, o autor mostra que o que se entende vulgarmente por santidade é uma espécie de tráfico entre os deuses e os homens (ἐμπορική τέχνη ἡ ὁσιότης θεοῖς καὶ ἀνθρώποις παρ’ ἀλλήλων [emporike techne he osiotes theois kai anthropois par allelon]). Mas só os deuses com isso não ganham nada. Com efeito, “diz-me, pergunta Sócrates a Eutífron, de que utilidade são aos deuses nossas oferendas e nossas preces? Os benefícios que nós recebemos deles são manifestos: todos os nossos bens vêm de sua liberalidade. Mas, de que pode lhes servir o que nós lhes oferecemos?”

Na Apologia de Sócrates, o grande homem, acusado de desprezar os deuses da pátria e de corromper a juventude, defende-se, não para salvar sua vida, mas para se revelar aos atenienses tal como sempre fora em seus atos e em suas crenças. “Em toda espécie de perigo, exclama a nobre vítima, há mil expedientes para salvar sua vida, quando se tem a audácia de tudo fazer ou de tudo dizer: não é a morte que é difícil de evitar, mas o crime; ele corre mais depressa que a morte... Se acreditais que, matando as pessoas, impedireis que se vos repreenda vossa conduta, estais no erro.” – Nada mais belo do que esta fala que o condenado à morte dirige à minoria de seus juízes: “De duas coisas, uma; ou a morte é uma destruição absoluta, ou ela é, como se diz, a passagem da alma a um outro lugar. Se tudo deve se extinguir, a morte será como uma dessas raras noites que passamos sem sonho e sem nenhuma consciência de nós mesmos. Noite venturosa e eterna! Que maravilhosa vantagem! E, se a morte não é senão uma mudança de morada, a passagem a um lugar onde todos os mortos devem se reunir, que felicidade de aí reencontrar aqueles que se conheceu!... Meu maior prazer seria examinar de perto os habitantes dessa morada e aí distinguir, como aqui, aqueles que são sábios daqueles que acreditam sê-lo e não o são... Mas é tempo de nos deixarmos, eu, para morrer, vós, para viver” (ἀλλὰ γὰρ ἤδη ὥρα ἀπιέναι, ἐμοἰ μὲν ἀποθανουμένῳ, ὑμῖν δὲ βιωσομένοις [alla gar hede ora apienai, emoi men apothanoumeno, ymin de biosomenois]).

Alguns discípulos zelosos lançam mão de tudo para subtrair Sócrates à pena de morte; mas ele permaneceu surdo às suas instâncias. Por que procuraria ele salvar alguns miseráveis dias, sem utilidade para seus amigos e para seus filhos? Não; o mestre permanecerá fiel às máximas de toda a sua vida: as leis o condenaram, ele obedecerá. Tal é o assunto do Críton. Esse pequeno diálogo respira uma moral toda cristã. “É preciso jamais, aí é dito, retribuir injustiça por injustiça (οὔτε ἀνταδικεῖν δεῖ [oute antadikein dei]), nem fazer mal a ninguém, por mais mal que se nos tenha feito. Poucas pessoas, entretanto, admitirão esse princípio, e as gentes que estão divididas quanto a isso não devem senão se desprezar umas às outras.”

No Primeiro Alcibíades, tratando da natureza humana, o autor chega, como no Górgias, a concluir que a verdadeira política é a arte de fazer todos os cidadãos praticarem a justiça. Sócrates aí mostra que o homem deve 1º despojar-se dos erros de seu espírito para atingir o conhecimento exato das coisas e de si mesmo; 2º libertar-se de suas paixões, a fim de chegar a fazer julgamentos imparciais; 3º entrar em si mesmo para contemplar a alma, onde residem a inteligência e a sabedoria. Mas é pelos frutos que se reconhece a árvore. “É preciso, diz Sócrates, qualificar cada ação segundo o que ela produz: chamá-la má quando dela provém o mal, boa, quando dela nasce o bem.” Ele assinala, ao mesmo tempo, como a fonte de todas as nossas faltas, essa sorte de ignorância pela qual se crê saber o que não se sabe. A riqueza também é, segundo ele, um grande perigo. “Todo homem que ama a riqueza não ama nem a ele, nem ao que está nele, mas a uma coisa que lhe é ainda mais estranha do que o que está nele.” — No Segundo Alcibíades, Sócrates ensaia mostrar que as mais belas preces e os mais belos sacrifícios aprazem menos à Divindade do que uma alma virtuosa, que se esforça por se lhe assemelhar. “Seria uma coisa grave que os deuses tivessem mais consideração por nossas oferendas do que por nossa alma;... por esse meio, os mais culpados poderiam se lhes tornar propícios. Mas não, não há de verdadeiramente justos e sábios senão aqueles que, por suas palavras e por seus atos, quitam-se do que devem aos deuses e aos homens.”

A virtude pode ser ensinada? Ela é adquirida pelo exercício ou chega à alma apenas pela influência divina? Tais são as questões postas no Mênon. É no final que Platão se detém. “A virtude, diz ele terminando, não pode, portanto, ser ensinada: ela vem por um dom de Deus àqueles que a possuem.” Vê-se o quanto a doutrina cristã da graça tem de analogia com a doutrina platônica da virtude. — No Filebo, o autor põe em oposição a inteligência e o prazer (ἡδονή [hedone]) para saber de qual lado se encontra o soberano bem. Sem se pronunciar de uma maneira absoluta, ele pende para uma feliz mistura dos dois. “Fazemos aqui, diz Sócrates, o ofício de copeiro, tendo dois cântaros à nossa disposição: o do prazer e o da sabedoria; é preciso nos esforçar para mesclá-los juntos o melhor possível.”

No Banquete, Platão examina a origem e as diferentes espécies do amor. Não se trata aqui desse amor que rebaixa o homem ao nível do bruto: “Eu chamo, diz o interlocutor, homem vicioso esse amante vulgar que ama o corpo antes que a alma.” O amor está por toda parte na natureza que nos convida a exercer nossa inteligência; é encontrado até no movimento dos astros: “A ciência desse amor se chama astronomia.” Colocai, em lugar da palavra amor, atração universal, e tereis a ciência tal como está constituída desde Newton. É o amor que orna a natureza de seus ricos tapetes: “O amor se enfeita e fixa sua morada aí onde encontra flores e perfumes.” – Imagem tão graciosa quanto filosófica. – “É ainda o amor que dá a paz aos homens, a calma ao mar, o silêncio aos ventos e o sono à dor.” Segundo uma fala de Sócrates, que lhe foi mais tarde imputada em crime, o amor não é nem um deus nem um mortal; é um grande demônio. Ora, qual é a função de um demônio? “Ser o intérprete e o intermediador entre os deuses e os homens. A Divindade não se comunicando jamais diretamente com um mortal, é por intermédio dos demônios que os deuses se entretêm com os homens, seja durante a vigília, seja durante o sono.” Substituí a palavra demônios por anjos ou gênios e tereis toda a doutrina dos cristãos. No cristianismo, em lugar de colocar os demônios com os outros deuses no Olimpo, têm-se os relegado ao inferno: eis toda a diferença.

O objeto do Político é definir a realeza e determinar os limites exatos do poder que deve lhe ser confiado. Platão compara o governo régio à arte do tecelão que dá à sua obra uma textura regular. A arte régia, misturando habilmente os caracteres fortes com os caracteres moderados, deve reuni-los em uma vida comum pelos nós da concórdia, e formar assim o mais belo e o melhor de todos os tecidos. É nesse diálogo que se encontra a definição de homem da qual Diógenes tanto escarnecia: “É preciso, diz o autor, distinguir os bípedes dos quadrúpedes e, como a espécie humana seria confundida com a espécie voadora, dividir de novo os bípedes nos que são nus e nos que são guarnecidos de penas”.

O pequeno diálogo intitulado Laques, ou da coragem, é do gênero dos que se denominaram negativos: ele não contém a definição completa da coragem; é a República que a dá. Nesse mesmo diálogo, nota-se, além disso, uma dessas belas falas da qual o Evangelho se fez o eco: “É, diz Platão, uma disposição natural a cada um de nós se aperceber bem menos dos nossos defeitos do que dos de outrem.” – “Tentemos, diz ele em outro lugar, instruir-nos, mas não nos injuriemos.” Magnífico preceito, de que poucos homens sabem tirar proveito. — O Cármides, que trata da sabedoria, é do mesmo caráter que o Laques: não conclui, deixando a sabedoria indeterminada. Entretanto, há pensamentos que podem servir de guias. Bastar-nos-á citar que, “se os médicos fracassam na maior parte das doenças, é que tratam o corpo sem a alma, e que, o todo não estando em bom estado, é impossível que a parte se porte bem”. Enfim, o autor declara que a sabedoria nos ensina a evitar os charlatães e a distinguir os verdadeiros dos falsos profetas.

No Primeiro Hípias, Platão busca melhor determinar o belo do que o fizera no Fedro. Para esse efeito, ele o destaca, por assim dizer, dos objetos, sem, no entanto, chegar a uma definição geral. Esse mesmo diálogo encerra esta fala de Sócrates, frequentemente comentada pelos moralistas: “Todos os homens, a começar desde a infância, fazem muito mais mal do que bem”. — O Segundo Hípias, ou da mentira, parece ter sido composto visando os sofistas, que se vangloriavam de ensinar a virtude, mercadejando máximas das quais não examinavam o alcance. A autenticidade desse pequeno diálogo teria sido certamente contestada, se Aristóteles não o tivesse citado no fim do 5º livro de sua Metafísica.

O Menexeno, ou da Oração fúnebre, oferece um interesse histórico, antes que filosófico: aí se encontram algumas informações preciosas sobre as relações dos atenienses com os persas e os lacedemônios, informações coroadas por esta máxima: “O homem que faz depender de si mesmo a sua felicidade, ou ao menos o que leva a ela, é o homem sábio, corajoso, prudente: só este tem bem ordenada a sua vida”.

Os quatro pequenos diálogos intitulados: Íon, Teages, Hiparco e os Rivais (Ἐρασταὶ [Erastai]) não parecem, ao menos os três últimos, ser de Platão. No primeiro, que trata da poesia, os rapsodos são bem maltratados. Os verdadeiros poetas, aí é dito, formam uma cadeia de homens inspirados: não é à arte, mas a uma sorte de delírio divino que eles devem seus mais belos poemas. O Teages é, sobretudo, interessante no que concerne ao demônio de Sócrates e às condições que permitiam tornar seu ensinamento proveitoso. Aí se nota também esta fala profunda posta na boca de Demódoco: “As plantas, os animais, o homem, todas as coisas, enfim, giram sobre o mesmo plano (τὸν ἀυτὸν τρόπον ἔχειν [ton auton tropon echein])”. ― O Hiparco, ou Do amor do ganho, seria melhor intitulado: Cada um toma seu prazer onde o encontra. Aí se nota uma distinção impressionante entre o homem pertencente à mesma espécie e o homem considerado como indivíduo livre ou isolado. Ao menos, é assim que compreendemos estas palavras: “Como homem, um não é nem mais nem menos homem do que outro; o bom não o é mais do que o mau e o mau, não mais do que o bom (ἄνθρωπος οὐδέτερος οὐδετέρου οὔτε μᾶλλον οὔτε ἧττόν ἐστιν, οὔτε ὁ χρηστὸς τοῦ πονηροῦ οὔτε ο πονηρός του χρήστοῦ [anthropos oudeteros oudeterou oute mallon oute etton estin, oute o chrestos tou ponerou oute o poneros tou chrestou])”. Esse pequeno diálogo é atribuído a Simão, o Socrático, que parece ser também o autor dos Rivais, onde este procura definir a filosofia; mas não chega a nenhuma definição que abarcasse, ao mesmo tempo, o conjunto e os detalhes.

Os sete diálogos seguintes: o Teeteto, o Crátilo, o Eutidemo, o Sofista, o Parmênides, o Timeu, o Crítias, foram denominados metafísicos, para distingui-los dos outros, que acabamos de passar em revista e aos quais se deu o epíteto de morais. Mas essa distinção, um pouco arbitrária, não está fundada sobre nenhum caráter decidido. Assim, o Parmênides se liga, como o mostramos, ao Fedro, ao Górgias e ao Fédon; enquanto que o Timeu e o Crítias encerram uma espécie de cosmogonia que não tem nada de metafísica.

No Teeteto, Platão critica as definições incompletas da ciência, assim como a maior parte das fontes (a sensação, a opinião etc.) de onde ela emana. “A ciência, diz ele, não reside nas sensações, mas no raciocínio sobre as sensações.” Mas o raciocínio se compõe de pensamentos; o que é, então, o pensamento? “É, responde o autor, um discurso que a alma dirige a si mesma sobre os objetos que ela considera.” Esse mesmo diálogo contém a comparação de nossas lembranças com tabuinhas de cera depositadas nas almas. Aí se encontram também documentos preciosos concernentes às doutrinas de Protágoras e de Heráclito, cuja fórmula geral: Nada é, tudo se torna, foi reproduzida em nossos dias por Hegel e sua escola, querendo dizer, o que seria mais claro, que nada é imutável ou fixo, e que tudo muda ou se move. No fim do Teeteto, nota-se esta fala de Sócrates: “Há a sabedoria em não crer saber o que tu não sabes”. Nessa conta, bem poucos cientistas são sábios.

O Crátilo trata dos nomes ou dos sinais dos nossos pensamentos: ele encerra, mais que nenhum outro diálogo, muitas sutilezas e delongas. Protágoras e Heráclito aí são o objeto de vivos ataques. Platão os reprova por terem criado nomes segundo a doutrina que supõe tudo em um movimento contínuo. “Como, acrescenta ele, uma coisa que muda perpetuamente poderia ser fixada? E, se ela permanece um instante imóvel no mesmo estado, é claro que ela não se torna; enfim, se ela é sempre idêntica a si mesma, como poderia mudar?”

O Eutidemo, ou o Disputador, se propõe a derrubar a sofística, provavelmente saída da escola de Mégara. A arma de que o autor se serviu para esse fim é a do ridículo e da sátira. “Há, diz ele, pessoas que divertem seus semelhantes por equívocos, como as que vos dão rasteiras ou tiram vosso assento quando quereis vos sentar, e riem, em seguida, quando vos veem cair. Mas essas pessoas, por mais que se as derrubem, levantam-se imediatamente.” Era, acrescenta ele, um sofista a hidra de Lerna.

O Sofista tem por objeto o ser (τὸ ὄντως ὄν [to ontos on]). Platão aí faz a guerra aos que só falam para fazer alarde de um vão saber: “Tentemos, diz ele, torná-los, de início, se é possível, mais honestos em palavras; se não, não nos importemos com eles e procuremos apenas a verdade”. Ele distingue particularmente duas espécies de sofistas: os tolos que creem saber o de que se fizeram uma opinião, e os que se dão o ar de não ignorar o que se vangloriaram de saber. – Essas duas espécies de sofistas passaram da praça pública de Atenas para os salões de nossa sociedade. – Após ter refutado as diferentes definições dadas pelos discípulos de Heráclito e da escola jônica, Platão define o ser: “tudo o que tem o poder de exercer ou de sofrer uma ação qualquer”. No fim desse diálogo, nota-se o esboço da célebre demonstração da existência de Deus, que Santo Agostinho, o grande admirador do platonismo, devia desenvolver tão eloquentemente.

É no Timeu que se encontram reunidos todos os elementos de uma verdadeira enciclopédia de ciências matemáticas, físicas, naturais e médicas na Antiguidade. Esse diálogo oferece, portanto, um interesse particular ao historiador das ciências. Ele começa pelo discurso que Platão põe na boca do sacerdote de Saís falando a Sócrates: “Nos movimentos dos astros em torno da Terra, podem, em longos intervalos de tempo, acontecer catástrofes em que tudo o que existe sobre o globo é destruído pelo fogo”. Essas palavras não recordam a teoria moderna dos períodos geológicos? Timeu é, em seguida, convidado a falar do nascimento do mundo e da natureza humana. Pelo julgamento desse sábio conviva de Sócrates, o mundo não existiu de todo o tempo, é apenas a cópia de um modelo imutável, cópia que o supremo ordenador fez sair do caos. “Deus, querendo que tudo seja bom, tomou a massa das coisas visíveis que se agitava de um movimento sem freio e sem regra, e, da desordem, fez sair a ordem.” É preciso não esquecer que a palavra grega ordem significa, ao mesmo tempo, ornamento ou universo (κόσμος [cosmos]). O soberano ordenador julgou “que, de todas as coisas visíveis (materiais), ele não podia tirar nenhuma obra que fosse mais bela do que um ser inteligente, e que em nenhum ser podia haver inteligência sem alma. Ele pôs, portanto, a inteligência na alma e a alma no corpo e organizou o universo de maneira que ele fosse, por sua constituição mesma, a obra mais bela e a mais perfeita”. Enfim, após muitos desenvolvimentos, o autor chega a concluir que “este mundo é um animal verdadeiramente dotado de uma alma e de uma inteligência pela providência divina (πρόνοια θεῖα [pronoia theia])”. Mas, a qual tipo esse animal devia se assemelhar? O interlocutor responde que “o mundo é semelhante a um ser do qual todos os outros seres, tomados individualmente e por gêneros, são partes; essas partes são todos diversos de um todo único, perfeito, isento de velhice e de doença”. Quanto à forma, ela é “a mais perfeita e a mais conveniente a um animal que devia encerrar em si todos os outros animais”, isto é, a forma esférica. Esse animal, redondo, é, ao mesmo tempo, perfeitamente liso em sua superfície; pois, “como não restava nada fora para ver nem nada para ouvir, ele não tinha necessidade nem de olhos, nem de ouvidos; não tinha, tampouco, necessidade de órgãos para digerir, nem de mãos para pegar, nem de pés para andar. Ele pôs a alma no meio, e fez um globo girando sobre si mesmo, um mundo único, solitário, bastando-se por sua própria virtude, um Deus se conhecendo e se amando a si mesmo, engendrado pelo Deus que existe de todo o tempo.” – Sabe-se que a ideia de um mundo animal foi, mais de dois mil anos depois, retomada por Hobbes e outros filósofos. Os detalhes nos quais Platão entra a respeito da organização da alma do mundo são bastante obscuros e parecem, em parte, emprestados das doutrinas pitagóricas, pois os números e as figuras geométricas aí desempenham um grande papel. Entretanto, a distinção do corpo e da alma aí é sempre fortemente mantida. “O corpo do mundo é visível; a alma é invisível; ela participa da razão e da harmonia dos seres inteligíveis e eternos, e é a mais perfeita das coisas que saíram das mãos do Criador.” Para aproximar ainda mais a cópia de seu modelo, ele lhe adapta “uma imagem móvel da eternidade”, o tempo. Foi com esse desígnio que Deus criou o Sol, a Lua e os planetas, verdadeiros relógios do mundo. Esses astros foram dotados, para falar a linguagem de Platão, do movimento do diverso, enquanto que o animal-mundo obedecia ao movimento do mesmo. Foram necessários, ao espírito humano, muitos séculos de esforços para chegar a descobrir que “o movimento do mesmo”, ou movimento geral do céu, não é senão aparente, e que é o efeito da rotação diurna de nosso próprio globo, enquanto que “o movimento do diverso”, isto é, o movimento próprio ou particular (anual), atribuído ao Sol, pertence à Terra18. É assim que erros podem, durante séculos, ser universalmente aceitos como verdades. Estaríamos nós hoje isentos de semelhantes ilusões? Sim, responde o incorrigível orgulho humano. Os antigos também estavam persuadidos de ter a verdade e de não ser joguetes de nenhuma ilusão: a ideia de poder se enganar não lhes vinha, mais do que a nós, ao espírito.

Ao lado dos astros ou deuses visíveis, vêm se colocar os demônios ou deuses invisíveis, numa palavra, todos os seres que povoavam o mundo mitológico. “A esse respeito, diz Platão, é preciso se reportar aos relatos dos antigos que, sendo descendentes dos deuses, conheciam, sem dúvida, seus ancestrais.” O que ele diz, em seguida, sobre a formação das almas desses deuses invisíveis colocados nos corpos humanos está longe de oferecer sempre um sentido bem claro; talvez esse assunto tocasse demasiado de perto as doutrinas esotéricas, cujo acesso era interdito aos profanos. Entre os instrumentos de que se serve a alma, Platão coloca, em primeiro lugar, a vista. “A vista é, para nós, diz ele, a causa do maior bem; pois ninguém poderia discorrer, como o fazemos, sobre o universo, sem ter contemplado o Sol e os astros. Devemos à vista a própria filosofia, o mais nobre presente que o gênero humano já tenha recebido da munificência dos deuses.” Segundo o autor, a função da vista é uma sorte de ação mista do olho e do objeto percebido, é uma sorte de combinação do fluido luminoso do primeiro com o do segundo: “O semelhante encontra seu semelhante, a união se forma e não há mais, na direção dos olhos, que um só corpo, que não é mais um corpo estranho e no qual o que vem de dentro é confundido com o que vem de fora”. Desde Platão, não se pôde ainda se entender sobre a teoria dos fenômenos da visão. Quanto às suas ideias sobre o fogo, a água, o ar e a terra, considerados como elementos constitutivos do mundo, elas são hoje de um bem fraco interesse para a ciência, que procura a exatidão e as aplicações úteis.

O que toca, sobretudo, o leitor atento do Timeu é que, no meio dessas especulações falsas ou ininteligíveis, há como clarões de gênio que sulcam as trevas. Assim, por exemplo, o método experimental do qual se atribuiu, bem erradamente, a invenção ao chanceler Bacon, aí se encontra nitidamente formulado nestes termos: “É preciso que a experiência sirva de fundamento a todos os nossos discursos”. Em outro lugar, lê-se, como conclusão de tudo o que acabava de ser dito sobre o peso: “é a tendência de cada coisa a se reunir às coisas de mesma espécie que torna pesado o que se levanta, que faz chamar alto o ponto para o qual tende o esforço, e dar os outros nomes às qualidades e às posições contrárias”. Essas palavras não contêm em germe a teoria da atração universal? – O Timeu termina por uma fisiologia e uma patologia do homem, das quais os médicos da Antiguidade e da Idade Média fizeram numerosos empréstimos.

O Crítias dá o relato dessa famosa Atlântida, ilha situada além das colunas de Hércules, e na qual alguns eruditos acreditaram reconhecer o Novo Mundo. Esse relato era, segundo a tradição, tirada dos velhos escritos egípcios que Sólon trouxera a Atenas. A Atlântida recebera seu nome de Atlas, filho de Netuno, a quem caiu essa ilha quando os deuses partilhavam o mundo. Ela era rica em ouro, em frutos raros e em animais desconhecidos no resto da Europa. Quanto aos seus habitantes, “estimavam pouco suas riquezas; em lugar de se deixarem inebriar pelas delícias da opulência e de perderem o governo de si mesmos, não se afastavam da temperança; compreendiam à maravilha que a concórdia com a virtude aumenta os outros bens, e que, procurando-os demasiado ardentemente, perdem-se os bens e a virtude com eles”. Enquanto seguiram esses princípios, tudo lhes sucedeu bem; mas, desde que a natureza divina se enfraqueceu nos atlantes e que o elemento humano aí tomou o controle, eles degeneraram: “Aqueles que não podem apreciar o que faz a verdadeira ventura os creram chegados ao cúmulo da glória da felicidade, quando eles se deixavam dominar pela injusta paixão de estender seu poder e suas riquezas”. Eis as palavras das quais Platão fazia questão de encontrar o emprego. – A Atlântida desapareceu por “uma decisão do Deus dos deuses, que governa tudo segundo a justiça e de quem nada está escondido”. Qualquer que seja a opinião dos eruditos, pensamos que a Atlântida não é senão uma ficção.

É na República (Πολιτεία [Politeia]) que Platão, por assim dizer, marcou encontro com as altas concepções e com os preceitos sublimes que se encontram disseminados nos outros diálogos. A questão do melhor dos governos possíveis, questão imensa que em todos os tempos ocupou os legisladores, o discípulo de Sócrates a reconduziu a este problema fundamental: Encontrar os verdadeiros princípios da justiça, para que os homens sejam felizes. Eis o pensamento que domina, sem ser nitidamente formulado, os dez livros da Πολιτεία (Politia), que se teria melhor traduzido por Pacto social do que pela palavra República. Assegurado desse pensamento condutor, pode-se abordar a leitura da obra imortal sem temer se extraviar num labirinto de detalhes. — O primeiro livro tem por objetivo estabelecer que a justiça e a felicidade, da mesma forma que a injustiça e a infelicidade, são termos correlatos, isto é, que o homem justo é feliz porque é justo, e o mau, infeliz porque é mau. Essa exposição de doutrinas é entremeada de observações de uma profunda justeza. Assim, longe de lastimar, o autor repreende os velhos pesarosos por sua juventude. “A velhice, diz ele, é um estado de repouso e de liberdade, em que não se experimenta mais nada da parte dos sentidos... É que, com efeito, os homens que sempre se sacrificaram aos sentidos, tornados velhos, devem sofrer, justo castigo, como essas almas danadas que não têm mais seu corpo, senhor delas, para contentar seus desejos. O velho, cheio de más lembranças, tem como um antegosto desses sofrimentos. O que se relata dos infernos e dos suplícios que aí são preparados lhe volta então ao espírito. Começa-se a temer que o que se tratara como fábula seja verdadeiro... Está-se, desde então, cheio de suspeitas e de pavor; passam-se em revista todas as ações de sua vida, para se assegurar de que não se fez mal a ninguém. Aquele que, no exame de sua conduta, encontra-a cheia de injustiças treme; frequentemente, durante a noite, o susto o desperta em sobressalto. Mas aquele que não tem nada a se repreender tem sempre junto de si uma doce esperança, que lhe serve de nutriz.” — Platão examina, em seguida, as diferentes maneiras de entender ou de fazer reinar a justiça, e refuta-as todas, umas após as outras. Esse exame, com numerosas digressões, mais aparentes que reais, preenche os livros IIº, IIIº e a quase totalidade do livro IVº. Entre as belas reflexões que aí se encontram, assinalaremos particularmente a seguinte: “O sábio é aquele que, para ser feliz, pode se bastar a si mesmo e passar sem os outros. Ora, é precisamente este que deveria ser chamado ao governo de um Estado. Os sábios não querem se pôr à frente dos negócios, porque temeriam ser acusados de amar o dinheiro se exigissem um salário, e desdenham as honras, uma vez que não têm nem ambição nem orgulho”. São esses sábios que Platão propõe constranger a aceitar o poder; o modelo de um Estado bem governado seria aquele onde “se disputasse a condição de particular, como se disputam hoje (esta palavra de Platão tem sido verdadeira em todos os tempos) as funções públicas. Num semelhante Estado, reconhecer-se-á claramente que o verdadeiro magistrado não tem em vista seu próprio interesse, mas o dos cidadãos; e cada um, convencido dessa verdade, preferiria ser feliz pelos cuidados de outrem do que trabalhar para a felicidade dos outros”. É assim que se explicam estas palavras, frequentemente citadas, de Platão: “Os povos não serão felizes senão quando os reis forem filósofos, isto é, sábios, ou quando os filósofos forem reis”. O legislador lacedemônio ordenara lançar no Eurotas as crianças disformes de corpo. Platão quer que se condenem à morte, em sua República, todos os maus incorrigíveis, esses disformes de alma. Semelhante lei se compreenderia infinitamente melhor que a dos esparciatas.

No IVº livro, um dos mais interessantes de toda a República, o autor considera mais de perto o que é necessário para fundar um governo onde a felicidade não seja a partilha de um pequeno número de particulares, mas comum a toda a sociedade. Ele mostra que demasiadas riquezas e demasiada pobreza são igualmente nocivas, e que um Estado bem constituído deve, como um verdadeiro filósofo, ser senhor de si mesmo. Essa expressão, ele a explica assim: “Há na alma do homem duas partes, uma, superior, outra, inferior; quando a parte superior comanda a outra, diz-se do homem que ele é senhor de si mesmo, e é um elogio. Mas, quando, por uma falta de educação ou por um vício de hábito, a parte inferior prevalece sobre a parte superior, diz-se do homem que ele é desregrado e escravo de si mesmo, o que é uma reprovação”. – À temperança, à força e à prudência, é preciso, sobretudo, juntar a justiça. O que é, então, a justiça? É alguma coisa que não se detém fora do homem, mas lhe regula o interior. Esse interior se compõe de três partes da alma, a racional, a irascível e a concupiscível, respondendo às três ordens do Estado: magistrados, guerreiros, mercenários. Não é senão depois de ter posto essas três coisas em um perfeito acordo, como, na música, o baixo, a oitava e a quinta, que o homem deve começar a agir, seja que se proponha a viver como simples cidadão ou a se meter nos negócios públicos. Enfim, segundo a definição dada por Platão, a justiça é o funcionamento harmônico e regular de todas as peças, de todas as engrenagens que entram na constituição de um Estado. Os livros seguintes são consagrados ao desenvolvimento dessa grande e bela ideia. — O Vº livro trata da educação dos homens e das mulheres, do casamento, do meio de conservar as raças puras, da comunidade de mulheres e de crianças, da guerra e dos guerreiros. Platão, embora seja ainda estranho à ideia de uma solidariedade comum entre todos os povos, quer, entretanto, que os gregos não façam mais a guerra entre si, “porque a inimizade entre aliados se chama discórdia”. Ele proíbe também aos seus compatriotas ter entre si gregos escravos. Em geral, suas ideias sobre a escravidão são mais generosas que as de Aristóteles. — O VIº livro se estende sobre as qualidades dos magistrados e a excelência da verdadeira filosofia. Ele termina por um magnífico quadro do mundo ideal e do mundo sensível, resumido nestes termos: “Quando se voltam os olhos para objetos que não são aclarados pelo sol, têm-se dificuldade em discerni-los e a vista é perturbada; são vistos, ao contrário, muito distintamente quando o sol os ilumina. A mesma coisa tem lugar para a alma. Quando ela fixa seus olhares sobre objetos aclarados pela verdade imutável, reconhece-os nitidamente e mostra que está de posse da inteligência; mas, quando seus olhares caem sobre o que é mesclado de trevas, sobre o que nasce e perece, sua vista se obscurece e não tem mais por apoio senão probabilidades ou opiniões que variam sem cessar, e ela parece como desprovida de inteligência”. O mundo ideal e o mundo sensível são comparados a dois reis, um representado pelo bem e o outro, pelo sol. É uma imagem luminosa para distinguir nitidamente a ordem imaterial ou moral da ordem física ou material. — O VIIº livro contém a educação daqueles que são chamados ao comando, e fala das ciências que lhes são indispensáveis. Ele se levanta com força contra “esses hábeis patifes cuja vista não é penetrante senão para tudo o que lhes interessa exclusivamente, tão malfazejos quanto sagazes e que constrangem sua alma a servir de instrumento à sua malignidade.” — No VIIIº e IXº livros, Platão volta sobre esta máxima, de que só a justiça pode dar a felicidade, após ter passado em revista as diferentes formas de governo fundadas sobre os caracteres da alma. Os oligarcas, os tiranos e os ociosos aí são bem maltratados. O próprio povo tem sua parte de repreensões: “Ávido de mudanças, ele vê a servidão mais amarga suceder a uma liberdade excessiva e desordenada”. Os simples cidadãos, o autor os divide em cúpidos, ambiciosos e filósofos. Cada uma dessas classes tem uma tendência exclusiva. “Se lhes perguntares, continua ele, qual é a vida mais feliz, cada um te diria que é a sua própria: o cúpido poria o prazer do ganho acima dos outros prazeres; ele desprezaria o saber e as honras, a menos que trouxessem o dinheiro. O ambicioso não trata como vil o prazer de amontoar riquezas, e como vã fumaça as ciências, estimando apenas o que pode conduzi-lo às honras e à glória? Quanto ao filósofo, nada está, para ele, acima do gozo que pode proporcionar a contemplação do verdadeiro... Os que não se elevaram jamais a essas altas regiões, e que, à semelhança dos animais, têm sempre os olhos fixados sobre seu pasto se entregam brutalmente aos prazeres da mesa e do amor; depois, disputando a posse desses prazeres, voltam suas armas uns contra os outros, e terminam por se matar com seus cascos e suas armas de ferro, no furor de seus apetites insaciáveis.” A alma social é representada, sob forma de imagem, por um monstro de numerosas cabeças, umas, de animais pacíficos, outras, de bestas ferozes, com a faculdade de produzir essas cabeças e de mudá-las à vontade. — O Xº e último livro da República não é uma conclusão da obra. Platão aí volta sobre os poetas trágicos e cômicos, que trata como corruptores do Estado. Aí faz também uma nova crítica de Homero, e reprova os que procuram na Ilíada e na Odisseia as regras de conduta. Enfim, ele termina pelo estado da alma imortal, “que não deve limitar seus cuidados e suas vistas a esta vida tão curta”, e pelo relato de Er, o armênio, que, ressuscitado dos mortos, descreve o que tinha visto no outro mundo. O objetivo desse relato é fazer tremer os maus na aproximação da morte, e dar aos bons a coragem e a esperança.

As Leis são a obra da velhice de Platão; por isso, esse diálogo, cujos interlocutores são três velhos, brilha menos pela imaginação do que pela maturidade da reflexão e pela solidez dos pensamentos. Deixando de lado os tipos da perfeição, ele se prende ao que é mais proporcional à fraqueza humana. Se o gênero de governo ao qual adapta suas Leis é de um ideal menos acabado que o da República, elas devem conduzir os homens à virtude por uma via mais branda e mais eficaz. O tratado das Leis, composto em doze livros, como o da República, é a arte de fazer a felicidade de um Estado, não pela extensão da dominação, nem pelas riquezas, nem pela glória das armas, mas pelo afastamento do mal e pela prática do bem. O Iº livro tem por objeto a influência dos banquetes e a educação em geral, a fim de combater esta funesta tendência da natureza humana, segundo a qual “todos são inimigos de todos, os Estados tanto quanto os indivíduos entre si”. É o que Hobbes traduziu por: Homo homini lupus [“O homem é o lobo do homem”]. A ideia desenvolvida por Hobbes parece ter preocupado muito Platão em sua idade madura, após uma vida tão cruelmente provada. Somente, em vez de tratar os homens como lobos sempre prontos a se entredevorar ou ocupados em se garantir de suas presas, Platão os considera como autômatos ou marionetes, que os deuses fazem mover. “Figuremo-nos, diz ele, que cada um de nós é um autômato saído da mão dos deuses, seja que eles o tenham feito para se divertir, seja que tenham algum desígnio mais sério; pois disso não sabemos nada. O que sabemos é que nossas paixões são como tantas cordas que nos puxam, cada uma de seu lado, e produzem o espetáculo estranho das ações tão diversas e tão opostas do vício e da virtude.” — O IIº livro continua a matéria do Iº: o autor aí examina o poder característico do canto e da dança, assim como as festas e os jogos que os acompanham; faz algumas digressões muito interessantes para a história das belas-artes. Ele faz remontar a origem da música e da ginástica à idade (infância) em que “o homem grita sem nenhuma regra e salta do mesmo modo”. — Os livros IIIº e IVº traçam o esboço de uma verdadeira história da civilização. Uma coisa notável é que Platão, embora apenas separado de dois ou três séculos da época em que começa a história autêntica, fala do passado como se um número infinito de anos já tivesse decorrido até ele. As antigas tradições, παλαιοὶ λόγοι [palaioi logoi], seriam, como o pretendem os antigos Pais da Igreja, o Antigo Testamento? A questão é muito duvidosa; pois a tradução dos Setenta está longe de ser contemporânea de Platão, e não se conhece versão grega da Bíblia anterior a essa. Seria preciso, portanto, supor que o discípulo de Sócrates nelas tivesse sido instruído pelo canal dos egípcios, hipótese que nenhuma prova veio ainda justificar. ― O Vº livro tem por objeto o desenvolvimento deste pensamento de “que, de todos os bens do homem, a alma é, depois dos Deuses, o que deve tocá-lo mais de perto, e que a melhor maneira de honrar a alma é cultivá-la”. Um dos maiores ultrajes que se possa, segundo Platão, infligir à alma é considerar a vida como o maior de todos os bens, e viver como se não houvesse nada além. Ele recomenda, acima de tudo, amar a justiça e não procurar se enriquecer. “Consideremos a justiça, diz ele, como a mais importante avenida de nossa cidade; é preciso que as posses dos cidadãos estejam ao abrigo de toda repreensão; e, se eles têm, a esse respeito, antigas razões de se queixarem uns dos outros, por pouco que um legislador tenha de senso e de prudência, deterá sua obra e não a retomará senão após ter desviado a injustiça.” Esse preceito, ele mantinha no coração, pois a ele volta frequentemente: “Não deixaremos, acrescenta ele, de repetir que o último de nossos cuidados deve ser o dos bens da fortuna... Para que um Estado seja isento de perturbações, é preciso que os cidadãos não sejam, uns, demasiado ricos, outros, demasiado pobres, porque o excesso de opulência leva diretamente à revolta, como o excesso de indigência”. Entretanto, em religião, tinha ideias eminentemente conservadoras. Ele quer “que não se faça nenhuma inovação ao que foi regulado pelos oráculos de Delfos, de Dodona, de Júpiter Amon, ou por antigas tradições, sobre qualquer fundamento que essas tradições repousem, sobre aparições ou inspirações.” ― O VIº livro é consagrado à instituição dos magistrados, às suas qualidades e seus deveres. O senado devia ser composto de trezentos e sessenta membros, número muito divisível, representando o número de graus do círculo e o de dias do ano antigo; era também um número místico, um múltiplo da tétrade (4 × 90 = 360), reminiscência da doutrina pitagórica. É nesse mesmo livro que se encontra a passagem mais interessante, talvez, de toda a Antiguidade sobre os escravos, encarregados de prover a toda a vida material dos cidadãos que empregavam seu tempo em perorar, em dissertar, em governar e em se bater. Eis esta passagem: “O homem é um animal difícil de lidar: ele se presta com infinita dificuldade a esta distinção de livre e de escravo, de senhor e de servo, introduzida pela necessidade. O escravo certamente é um móvel bem incômodo; a experiência o mostrou mais de uma vez, testemunham as frequentes revoltas acontecidas entre os messênios, os infortúnios aos quais estão expostos os Estados onde há muitos escravos falando a mesma língua, enfim, o que se passa na Itália, onde escravos vagabundos infestam o país de roubos e de mortes. Portanto, quando se reflete sobre essa grave matéria, não é espantoso que se esteja na incerteza sobre o partido a tomar. Não vejo senão dois meios de resolver o problema: o primeiro, ter escravos de diferentes nações, a fim de que não possam facilmente se entender entre si, falando línguas diferentes; o segundo, tratá-los bem, não somente para eles, mas para si mesmo”. — O VIIº livro trata dos cuidados a dar à infância e das ciências ou artes a fazer ensinar à juventude. Ele assinala o perigo que há em afagar os gostos ou os desejos das crianças, sobre os quais deve velar a razão dos pais. Aí se encontram mesmo alguns bons preceitos higiênicos, como este: “Qualquer um que queira ter o corpo são e o espírito livre não deve tomar de sono senão o que dele é preciso para a saúde, e é preciso pouco quando se soube criar para si bons hábitos”. O autor recomenda também ser sóbrio de elogios: “A respeito dos vivos, há sempre risco em louvá-los, até que, tendo percorrido toda a carreira, eles tenham terminado sua vida por um belo fim”. Bela divisa para os biógrafos! Enfim, Platão volta sobre a comparação dos homens com autômatos: “Eles são, em quase tudo, autômatos, nos quais só se encontram pequenas parcelas da verdade”. — No VIIIº e no IXº livro, o autor propõe as leis regulando as festas e os sacrifícios, assim como as relações dos diferentes sexos e dos cidadãos, tanto entre si quanto para com seus escravos e os estrangeiros. Ele quer que não se confunda o culto dos deuses subterrâneos com o dos deuses celestes, e que todas as transações comerciais sejam livres: “Ninguém no Estado pagará nenhum imposto para a exportação nem para a importação de nenhuma mercadoria”. A ideia da livre troca é, como se vê, muito antiga. A morte de um escravo não era justiçável dos tribunais: o assassino estava livre disso para se purificar. Eis uma lei que recorda uma lei toda semelhante de Moisés [Êxodo 21:28]: “Se uma besta de carga mata um homem, os mais próximos parentes levarão queixa diante dos juízes, que examinarão o caso: o animal culpado será morto, e lançado fora dos limites do Estado”.

No meio de seus discursos legiferantes, Platão é, por vezes, tomado de um desencorajamento estranho. “Não, exclama ele, os assuntos humanos não merecem que se lhes dê tanto ao trabalho.” Depois, acrescenta logo: “É preciso, no entanto, tomar cuidado deles, e é o que há de fastidioso neste mundo”. A causa desse desencorajamento em Platão acreditamos encontrá-la em seu profundo conhecimento da natureza humana, cujos instintos contrariavam todos os seus projetos de organização social. “A natureza mortal, diz ele, todo desconcertado, levará sempre os homens a desejar, uns mais do que outros, e não fará pensar cada um senão em seu interesse pessoal; pois ela foge da dor e persegue os prazeres sem razão nem regra; ela os porá, em seu espírito, bem acima do justo e, cegando-se a si mesma, terminará por se precipitar, com o Estado que ela governa, em um abismo de infortúnios.” O egoísmo inato do homem, está aí, com efeito, o escolho contra o qual fracassaram e fracassarão todos os autores de constituições políticas e sociais. Platão pensa que o temor dos deuses seria o remédio mais eficaz contra esse vício radical da natureza humana. Mas, antes de ordená-lo com sucesso, seria preciso ter irrefragavelmente demonstrado a existência de Deus. Está aí o assunto de todo o Xº livro, o mais belo de todo o tratado das Leis e que faz melhor conhecer toda a teologia platônica, da qual o cristianismo tanto emprestou. Assim, por exemplo, a passagem seguinte, sobre o ambicioso atingido pela justiça divina, poderia servir de texto a muitos sermões: “Deus é acompanhado da justiça, sempre pronta a castigar os infratores da lei divina. Qualquer um que queira ser feliz deve se prender a essa lei, e andar humildemente sobre seus passos. Infeliz daquele que se deixa inflar pelo orgulho, a quem as riquezas e as honras inspiram altos sentimentos de si mesmo, e que é devorado de desejos ambiciosos, a tal ponto que pensa não ter necessidade nem de mestre nem de guia, e que se crê em estado de conduzir os outros: Deus o abandona a si mesmo. Assim desamparado, junta-se a outros presunçosos como ele, sacode todo freio e põe a perturbação por toda parte. Durante algum tempo, ele parece alguma coisa aos olhos da multidão; mas logo a justiça divina lhe aplica uma vingança fulgurante: termina por se perder sem remédio, ele, sua família, sua pátria”. (IVº livro das Leis). ― Algumas linhas adiante, Platão acrescenta: “O único meio de se fazer amar por Deus é fazer todos os seus esforços para se lhe assemelhar”. É o que dizia também o Cristo, quase nos mesmos termos [Mateus 5:48]. Em outro lugar (no Xº livro), lê-se: “Jamais tu escaparás à ordem estabelecida pelos deuses, nem quando te rebaixares até o centro da Terra, nem quando fores bastante grande para te elevares até o céu. Mas levarás, seja sobre esta Terra, seja nos infernos, a pena devida aos teus crimes”. Colocai Deus em lugar de deuses e tereis um fragmento de São Basílio ou de Bossuet. — O que a Igreja ensina, Platão o pusera na boca de seu legislador: “A alma, diz ele (no XIIº livro das Leis), é inteiramente distinta do corpo; nesta vida mesmo, só ela constitui o que nós somos; nosso corpo não é senão uma imagem que acompanha cada um de nós... Após a morte, essa alma será chamada a prestar conta de suas ações, conta tão consoladora para o homem de bem quanto temível para o mau”.

Os dois últimos livros (o XIº e XIIº) das Leis fazem, em parte, disparate com os precedentes; e, como o autor aí volta sobre a maior parte dos pontos já tratados, eles formam, de alguma sorte, um acessório. Seríamos quase tentados a crer que, não mais que o Epínomis, pequeno diálogo que os segue, eles não são do filósofo ao qual a Antiguidade concedera o epíteto de divino.

Partindo de um centro comum, a inteligência humana, Platão e Aristóteles terminam em dois pontos diametralmente opostos: seus sistemas formam como os dois polos do movimento do pensamento. É em torno desse eixo que giram, há mais de dois mil anos, todas as doutrinas da filosofia; e não poderia ser de outra forma. Com efeito, elevar-se do particular ao geral, do concreto ao abstrato, e descer do geral ao particular, do abstrato ao concreto, a análise e a síntese, eis as duas grandes vias que o pensamento humano seguiu em suas evoluções múltiplas e variadas. Atribuir a invenção desses dois métodos gerais exclusivamente a Aristóteles e a Platão seria cometer um grave erro. Foram-lhes transmitidos por seus predecessores, que, eles mesmos, não mais que os iniciadores Tales, Pitágoras, Heráclito, não tinham o direito de lhes reivindicar a propriedade. De tempo imemorial, eles deveram servir de alavancas à investigação da Verdade. Inerente à marcha de nosso espírito, o fundo comum do platonismo e do peripatetismo constitui, de alguma sorte, o patrimônio do gênero humano. Por isso, em todas as épocas, vê-se reproduzir-se, sob formas diferentes, o antagonismo radical entre as duas tendências extremas, personificadas por Platão e Aristóteles. Na Idade Média, revestiu a forma do nominalismo e do realismo (vede ROSCELINO, GUILHERME de Champeaux etc.), e, em nossos dias, revela-se na luta secular entre os que pretendem atingir a verdade iniciando pelo absoluto e os que querem a ela chegar interrogando a natureza e a experiência.

O terreno comum onde todos os pensadores se encontram é a necessidade da certeza. Aí também começa o erro. Platão, sentindo à maravilha que suas ideias abstratas, tomadas por base imutável da variabilidade infinita das coisas da realidade, poderiam ser tachadas de imaginárias se não as ligasse a proposições de uma evidência incontestável, não ousava avançar senão cercado do cortejo das matemáticas. Ele inscrevera, diz-se, no frontispício de sua escola: “Ninguém entre aqui a menos que seja geômetra”; e despedia da Academia qualquer um que não possuísse as alças da filosofia (τὰς  ἀντιλαϐὰς  τῆς  φιλοσοφίας [tas antilabas tes philosophias]). Em vários de seus diálogos, ele se detém com complacência sobre as matemáticas, único saber certo de que o homem possa se orgulhar. Enfim, aquele que não tivesse lido das obras de Platão senão o Timeu se persuadiria sem dificuldade, ao ver o papel que aí desempenham os números e as figuras geométricas, de que o discípulo de Sócrates era o simples continuador de Pitágoras. Estaria aí, entretanto, um estranho mal-entendido. Para Platão, as matemáticas não eram senão um meio de dar mais solidez ao edifício de suas ideias. Quanto a Aristóteles, dirigia-se, pela mesma necessidade de certeza, às leis do entendimento, às categorias, como as chamava, onde o pensamento se elabora e das quais ele conserva, como de um molde, perpetuamente a marca. Assim, enquanto Aristóteles procurava seus meios de demonstração no interior de nossa organização intelectual, Platão os demandava, fora de nós mesmos, à ciência das quantidades.

Essa distinção bem estabelecida, compreender-se-á facilmente a dificuldade extrema, se não a impossibilidade absoluta de conciliar, um com o outro, esses dois eminentes chefes de escola. Por isso, seus comentadores todos faliram nesse grande empreendimento. Bem mais: em vez de uma aproximação, terminaram eles mesmos por formar dois campos opostos, sempre prontos a se combater; em lugar da conciliação que tinham prometido, não fizeram nascer senão a controvérsia e lutas nas quais o cristianismo tomou, desde sua origem, uma parte vivíssima. Os primeiros Pais da Igreja proclamam altamente suas simpatias por Platão. “As doutrinas do Cristo, diz Justino, o Mártir, não estão muito afastadas do platonismo: falando da criação, nós não diferimos de Platão senão gramaticalmente: Moisés diz o ser (supremo), ὁ ὤν [o on], e Platão: o Ser, τὸ ὄν [to on].”19 São Clemente de Alexandria não hesita em derivar a filosofia platônica e o cristianismo da mesma fonte divina: seus escritos contêm numerosos paralelos para estabelecer a concordância entre os preceitos de Platão e os do Cristo. A verdadeira filosofia era, para ele, idêntica à verdadeira religião, e admitia sem dificuldade que o cristianismo era o platonismo chegado ao seu mais alto grau de perfeição20. Esse desejo de conciliar ou de identificar as doutrinas platônicas com as da Bíblia se nota também em Orígenes, em Santo Ireneu, em Eusébio, em Teodoreto, mas, sobretudo, como o dissemos, em Santo Agostinho. Sua Cidade de Deus é a mais bela de todas as tentativas para unir a sabedoria de Platão com o espírito do Evangelho. Embora adversário decidido do paganismo, o grande bispo de Hipona se aprazia em reconhecer que os platônicos não tinham a mudar senão poucas palavras e frases para ser verdadeiros cristãos: Paucis mutatis verbis atque sententiis christiani fierent [“Mudando poucas palavras e sentenças, cristãos se fariam”]21.

Mas, à medida que a Igreja, nos séculos subsequentes, afasta-se do espírito do Evangelho, suas simpatias pelo platonismo se enfraquecem e se extinguem. O discípulo de Sócrates queria melhorar os homens pela purificação de seus pensamentos e de seus atos: é também o que queriam os primeiros Pais da Igreja, em acordo com Jesus Cristo e seus apóstolos. Enquanto os cristãos, perseguidos como inovadores perigosos pela autoridade conservadora da sociedade antiga, eram, para sua comum defesa, obrigados a cerrar suas fileiras, a união, que faz a força, era para eles uma necessidade imperiosa, um interesse todo poderoso. Mas, logo que o perigo passou e que o sangue dos mártires selou o triunfo do cristianismo, os filhos dos perseguidos se tornaram, a seu turno, tão intolerantes e cruéis quanto os perseguidores de seus pais. Constituindo-se temporalmente, a Igreja se arma, não para tocar os transgressores com a lei evangélica, que ordena amar mesmo seus inimigos, mas para a manutenção de dogmas criados posteriormente à vinda do Salvador, dogmas que, fazendo nascer intermináveis disputas e verter torrentes de sangue por definições de termos incompreensíveis, não deviam em nada contribuir para a melhoria moral dos povos. É nesse momento que se vê reaparecer na cena Aristóteles, o perpétuo antagonista de Platão. A Escolástica se acomodava melhor às categorias do Estagirita; a teocracia da Idade Média se achava mais à vontade com as sutilezas do peripatetismo do que com o espiritualismo de Platão. Essa predileção interessada trouxe um golpe funesto à unidade da Igreja. Passando em revista a lista dos heresiarcas, ver-se-á que, de todos os argumentos que eles adiantavam para deitar por terra a autoridade hierárquica, o mais temível era que a Igreja, por suas riquezas, seu poder e suas atitudes demasiado mundanas, desviara-se completamente da rota que traçaram o Cristo e seus apóstolos, e que era preciso, reformando-a em seu chefe e em seus membros, reconduzi-la à Igreja dos primeiros séculos. Lutero vocifera tanto contra Aristóteles como contra o papa, enquanto que, em cada uma das páginas de seus escritos, faz brilhar seu entusiasmo por Santo Agostinho, o grande admirador de Platão. Enfim, em nossos dias, o platonismo é retomado, no sentido dos neoplatônicos, por uma escola que o fanatismo religioso e o dogmatismo da razão sempre concordaram – estranho acordo – em condenar ao silêncio. Mas a impulsão está, desta vez, cremos, irresistivelmente dada: nada poderia mais detê-la. O que sairá desse movimento, de alguma sorte, superior à vontade humana? É o que nos dirá, talvez, o porvir.

F. HOEFER.      

 Cícero, Diógenes de Laerte, Olimpiodoro, Proclo. — Tenneman, Geschichte des Phil., t. I. — Ritter, idem, Ast, De Vita et Scriptis Platonis; Leipzig, 1816, in-8º. — Stallbaum, Disputatio de Platonis vita, ingenio et scriptis, no topo de sua edição das obras de Platão.

[Notas de rodapé]

1 Segundo Diógenes de Laerte, ele nasceu na ilha de Égina.

2 Não se está de acordo sobre a ordem na qual suas viagens se sucederam. Assim, Cícero (De finib., V, 29; Tuscul., I, 17; De republ., I, 10) o faz primeiro passar à África, depois dali, à Itália. Segundo Apuleio (t. II, p. 186, ed. Oudendorp), Platão visitou a Itália antes da África. Vede Corsini, De die natali Platonis, ejus ætate, etc., em Gorius, Symbol. litt., vol. IV, p. 100, e Stallbaum, Disputatio de Platonis vita, etc., no início de sua edição.

3 Diodoro de Sicília afirma que “Platão, Sólon e Licurgo tinham emprestado dos egípcios suas instituições” (Liv. I, cap. 98).

4 Santo Agost., De Civ. Dei. VIII, 11; XI, 21. São Clemente de Alex., Admonit. ad gent.

5 Diógenes de Laerte, III, 20; Plutarco, Dion; Cícero, De orat., III, 34.

6 Olimpiodoro, p. 587. Philopon. in. Arist. Phys., II.

7 Diodoro de Sicília (XV, 7) conta esse fato um pouco diferentemente. Segundo esse historiador, os outros filósofos reunidos, na corte de Dionísio, cotizaram-se para resgatar Platão, que tinha sido conduzido, por ordem do tirano, ao mercado público e vendido por vinte minas (um pouco menos de dois mil francos).

8 Pelo relato de Ateneu, a Academia não era somente um lugar de conferências, mas de banquetes. De resto, Platão aí tratava seus convivas com muita frugalidade; é o que fez dizer Timóteo, filho de Cônon, “que aqueles que ceiam em Platão se encontram perfeitamente no dia seguinte”. (Deipnosophistes, liv. X.)

9 Foi, sem dúvida, esse Espêusipo que Platão encarregou um dia de castigar um de seus escravos contra o qual estava muito irritado (Sêneca, De ira, III, 12). O mesmo traço é contado também de Árquitas de Tarento, dizendo ao seu intendente que gerira mal sua casa: “Vai; eu te esfolaria bem se não estivesse em cólera.” (Cíc. Quæst. tusc., IV, 36.)

10 A obra composta de todo o ensinamento de Sócrates compreende os treze Diálogos intitulados: Íon, Alcibíades I, Hípias I, Hípias II, Lísis, Cármides, Laques, Mênon, Protágoras, Eutífron, a Apologia de Sócrates, Críton e Górgias: são os Diálogos socráticos ou morais; sua forma literária recorda a pureza e a simplicidade do estilo de Xenofonte. Os diálogos compostos após a morte de Sócrates, no intervalo compreendido entre a primeira e a segunda viagem à Sicília, são, segundo Stallbaum, o Eutidemo, o Crátilo, o Teeteto, o Sofista, o Político, o Parmênides, o Fedro, o Menexeno, o Banquete, o Fédon, o Filebo, a República, o Timeu e o Crítias. Reconhece-se aí a influência da escola de Mégara e das doutrinas de Pitágoras.

As Leis formam a terceira e última classe dos escritos de Platão: é a obra da velhice do filósofo. Quanto aos outros diálogos que se lhe atribuem, sob os títulos de: Alcibíades II, Teages, os Amantes, Hiparco, Minos, Clitofonte, Eríxias, são apócrifos, como o demonstraram há longo tempo Meiners, Tennemann, Bœckh, Ast, Schleiermacher, etc. Nas primeiras edições de Platão, encontram-se seus escritos classificados, segundo o sistema de Trasilo, em tetralogias, das quais a primeira continha o Eutífron, a Apologia de Sócrates, o Críton, o Fédon; a segunda, o Crátilo, o Teeteto, o Sofista, o Político; a terceira, o Parmênides, o Filebo, o Banquete, o Fédon; a quarta, os dois Alcibíades, Hiparco, os Rivais; a quinta, o Teages, o Cármides, o Laques, o Lísis; a sexta, o Eutidemo, o Protágoras, o Górgias, o Mênon; a sétima, os dois Hípias, o Íon, o Menexeno; a oitava, o Clitofonte, a República ou Política, o Timeu, o Crítias; a nona e última, Minos, as Leis e treze Cartas. Essa classificação, capricho de um gramático, rejeitada pela Antiguidade, não foi adotada senão por um editor moderno (C. F. Hermann). Em nossos dias, Tennemann, Schleiermacher, Ast, Socher propuseram divisões que os recolocam, uns, na ordem cronológica, outros, na ordem metódica. A mais recente é a de Stallbaum; na primeira classe, esse sábio editor posiciona o Íon, o primeiro Alcibíades, os dois Hípias, o Lísis, o Cármides, o Laques, o Mênon, o Protágoras, o Eutífron, a Apologia de Sócrates, o Críton e o Górgias: é o que ele chama os Diálogos éticos, contendo todas as doutrinas de Sócrates. A segunda classe compreende os diálogos que Platão compôs desde a fundação da Academia (o Eutidemo, o Crátilo, o Teeteto, o Sofista, o Político, o Parmênides, o Fedro, o Menexeno, o Banquete, o Fédon, o Filebo, a República, o Timeu, o Crítias). Enfim, a terceira classe contém os doze livros das Leis, o Epínomis e os pequenos diálogos atribuídos a Platão.

11 O Fédon, cap. XXVII (p. 106 da ediç. de Stallbaum, 1850).

12 Fédon, p. 53 e 56 (ediç. Stallb.).

13 Fédon, p. 113 e 114.

14 Ibid., p. 213, ed. de Stallbaum.

15 Essas digressões também chocaram Montaigne, que tinha, por assim dizer, nutrido-se de Platão. “A licença do tempo, diz ele, escusar-me-á desta sacrílega audácia de estimar tão arrastados os dialogismos de Platão mesmo, sufocando por demais sua matéria, e de lamentar o tempo que põe nessas longas interlocuções vãs e preparatórias um homem que tinha tantas coisas melhores a dizer?” (Ensaios, liv. II, cap. 10.)

16 Ateneu supõe que os Diálogos de Platão são, no fundo, verdadeiras sátiras, e nomeia as pessoas que teriam sido atacadas no Mênon, no Eutidemo, no Íon, no Laques, etc. (Deipnos., liv. XI.)

17 É no Fedro que se trata da corrente de um fluido que os seres simpáticos deixam escapar, corrente que recorda o magnetismo animal.

18 Platão não conhecia o movimento diurno ou a rotação da Terra em torno de seu eixo, apesar do que tenha dito sobre isso o Sr. Gruppe (Kosmisches System der Griechen), como o estabeleceu perfeitamente o Sr. Bœckh, em uma erudita dissertação intitulada: Untersuchungen über das Kosmische System des Platon; Berlim, 1852. Comp. H. Martin, Estudos sobre o Timeu.

19 Just., o Mártir, Diálog. contra Trif., 105.

20 S. Clem., Stromat., I, 207, 234; VII, 503, 526.

21 S. Ag., De Civ. Dei, IV, 7. [A passagem está em De Vera Religione., IV, 7. (Nota do tradutor.)]