Luiz Gustavo Oliveira dos Santos

A noção de Deus segundo Emmanuel Lévinas

Luiz Gustavo Oliveira dos Santos

DEUS NA FILOSOFIA DE EMMANUEL LÉVINAS

Emmanuel Lévinas nasceu em Kaunas, Lituânia, em 1905, indo ainda jovem para a França. Talvez a ética de Lévinas deixe entrever o que pensa sobre Deus mais facilmente. Inicialmente sua ética é a da alteridade radical, que precede a própria ontologia e onde o “Outro” ocupa o lugar fundamental. Na filosofia de Lévinas, “Outro” é o outro da alteridade, do diferente, do estranho. Lévinas nos alerta de que não somos donos de nossa própria casa, de que oferecemos à visitação do outro o que dele usurpamos, de que para com ele temos desde sempre uma dívida irresgatável. Assim se estrutura a alteridade (alter = outro) de Lévinas, que o fará, como menciona Emilio Baccarini, falar de Deus “outramente”

Para ele, o Outro, o estrangeiro, sempre será estranho, mesmo aquele que habita dentro de nós mesmos – o outro (de mim ou de outrem). Ser sujeito, portanto, é já ser subjugado ao outro. Um ponto decisivo na elaboração levinasiana é o da afirmação de que o ético antecede o ontológico. Porém, ele fala não de um “dever ser” mas de um “ter de ser”; não da possibilidade de fazer escolhas, mas de uma disponibilidade de responder ao outro (responsabilidade) que antecede qualquer voluntarismo. Neste sentido, não há opção, não há decisão, só intimação pelo Outro. O Outro sempre transborda e ultrapassa a nossa compreensão, se constitui excesso de significação. Esta abertura ao Outro, mesmo significando uma responsabilidade radical para com o próximo, não é fruto de uma intencionalidade, mas de uma sensibilidade onde o Eu deixa-se impactar pelo estranho, pelo externo, pela alteridade, e torna-se refém do Outro. 

Resumidamente, o para-o-outro se transforma em constituição do eu pelo-outro, subjetivamente. Contudo, esta subjetividade é a de um sujeito desde sempre sujeitado, cuja obediência a outrem é anterior a qualquer ordem. É como um traumatismo sofrido por um sujeito refém de um outro em relação ao qual sua aproximação é de uma distância ética. Seu esforço de aproximação se torna possível no amor erótico, na fecundidade e na constituição de uma relação de paternidade e ‘filialidade’, por exemplo. Com esses elementos da ética levinasiana, podemos entender a sua posição com relação à idéia de Deus. O pensamento de Lévinas nos impõe esta evidência: “Deus nos vem à idéia” (Lévinas, De Deus que vem à ideia). 

Lévinas nos esclarece que a palavra Deus é uma palavra significante, independentemente do problema da existência de Deus. Aliada a isso, a idéia de Deus nos chega na forma cartesiana da “idéia-de-infinito-em-nós. Neste sentido, a idéia de Deus, em Lévinas, nada tem de teológica nem mesmo de teleológica. Diz respeito à idéia de Infinito, em sua anterioridade em relação à idéia de finito. Trata-se de uma responsabilidade, contudo, que não exige reciprocidade, pois a responsabilidade de outrem é coisa dele. É, porém, pelo outro que nos chega o Infinito. “Deus-vindo-à-idéia, como existência de Deus”. Na proximidade de Outrem se coloca esta espera de Deus, este temor pelo próximo que nos coloca na condição de reféns, cuja responsabilidade é ilimitada. Diz Lévinas que a teologia racional é vassala da filosofia ocidental, do pensamento do ser que torna Deus o ente por excelência. A transcendência é destruída. Assim, a filosofia é imanência mesmo, e não só conhecimento desta imanência. E sua interpretação de Deus se faz como imanência e presença. 

Lévinas busca em Descartes a noção de Infinito enquanto ruptura com a consciência, com a presença e com a representação. “A idéia de Deus, é Deus em mim, mas a partir de agora Deus rompendo a consciência que visa a idéias, diferindo de todo conteúdo”. A idéia de Infinito em nós é uma não-indiferença do Infinito pelo pensamento incapaz de englobá-lo, ou seja, uma passividade “traumática” diante do Infinito. A subjetividade, então, não se trata simplesmente da negação do finito pela idéia de Infinito, mas de a idéia de Infinito no pensamento ser anterior ao próprio finito. Nas palavras dele, “A diferença entre o Infinito e o finito é uma não-indiferença do Infinito com relação ao finito e ao segredo da subjetividade” (Lévinas,  De Deus que vem à ideia). O pensamento não pode compreender, representar, o Infinito, pois esta é a “incondição” do pensamento. 

Então o que seria Deus para Lévinas? É “outro que outrem”, uma alteridade anterior à alteridade de outrem – a transcendência verdadeira. Ele afirma que quando do frente-a-frente com o Outro, resta dizer: “eis-me aqui em nome de Deus”. Não se trata de um diálogo, mas de um anúncio de paz e de responsabilidade absoluta (Lévinas,  De Deus que vem à ideia). É a responsabilidade enquanto pura obediência, onde não foi dada nenhuma ordem. A relação com o tu leva a Deus, conforme suas palavras: “o movimento mesmo que conduz a outrem conduz a Deus. O sentido do ser humano estaria na responsabilidade irrecusável para com o outro, neste amor pelo outro que é, no fim, Deus que vem à idéiaRevelação. Mas Lévinas sublinha que isso nada tem a ver com uma “nova prova da existência de Deus”, e sim com a significância que a palavra Deus tem para o homem. Este é o âmbito da ética levinasiana, onde as noções de Infinito, de Absoluto e de Transcendência fazem sentido. 

Uma outra vertente que podemos tomar para compreender Deus no pensamento de Lévinas é a metafísica, onde ele trata do já falado Infinito. O termo “metafísica” tem, em Lévinas, significado próprio. Para Lévinas, a ética tem o nome de metafísica porque se refere à transcendência de “outrem”, que não é meramente física. O indicativo dessa transcendência é “a idéia do infinito”. Lévinas nos faz entender que “o desejo metafísico tende para coisa totalmente outra, para o absolutamente outro”. Lévinas não está dizendo de Deus, pois não faz teologia. Nosso uso de advérbios como totalmente, absolutamente, fundamentalmente, essencialmente, ultimamente ou outro, só tenta representar o irrepresentável, a separação infinita do Outro no face a face, “relação última e irredutível que nenhum conceito abrange

Na base do fato humano do desejo, comumente interpretado, encontra-se a necessidade: o desejo marca um ser indigente e incompleto. O desejo coincidiria com a consciência do que foi perdido. Seria como uma saudade de uma grandeza perdida (conforme a sua teoria da criação ex nihilo, segundo a qual o Infinito se produz renunciando à invasão de uma totalidade numa contração que deixa um lugar ao ser separado, inaugurando uma sociedade, na qual o homem deve resgatar essa diminuição na contração criadora do Infinito). Mas, desse modo, o homem nem sequer suspeitaria o que é o verdadeiramente outro, pois geralmente associamos nossos desejos a coisas profanas. O desejo metafísico tem outra intenção, pois deseja o que está além daquilo que possa simplesmente completá-lo. O Desejo é desejo do absolutamente Outro, que entende a distância, a alteridade e a exterioridade do Outro. Para o Desejo, esta alteridade tem um sentido. É entendida como alteridade de Outrem e como do Altíssimo. Segundo escreve Benedito Cintra: “Morrer pelo invisível – eis a metafísica [de Lévinas]”. 

Do exposto, compreende-se que Lévinas diga: “A presença de um ser que não entra na esfera do Mesmo, presença que a excede, fixa seu ‘estatuto’ de infinito”. Comumente se pensa o infinito a partir do finito: “o infinito supõe o finito que ele amplia infinitamente”. Lévinas toma precisamente de Descartes a “idéia do infinito”. Descartes diz na Terceira de suas Meditações: “Não devo imaginar que não concebo o infinito por uma verdadeira idéia, mas somente pela negação do que é finito, do mesmo modo que compreendo o repouso e as trevas pela negação do movimento e da luz: pois, ao contrário, vejo manifestamente que há mais realidade na substância infinita do que na substância finita e, portanto, que, de alguma maneira, tenho em mim a noção do infinito anteriormente à do finito, isto é, de Deus antes que de mim mesmo. Pois, como seria possível que eu pudesse conhecer que duvido e que desejo, isto é, que me falta algo e que não sou inteiramente perfeito, se não tivesse em mim nenhuma idéia de um ser mais perfeito que o meu, em comparação ao qual eu conheceria as carências de minha natureza?... E isto não deixa de ser verdadeiro, ainda que eu não compreenda o infinito... pois é da natureza do infinito que minha natureza, que é finita e limitada, não possa compreendê-lo”. 

Lévinas toma o esquema formal da idéia do infinito para pensar a relação com Outrem. E não a partir da existência de Deus, que Descartes vê implicada no fato da idéia. O face a face é a experiência da idéia, sem recurso a Deus enquanto termo da idéia: a relação do Mesmo (Eu) com o Outro, sem que se unam num “Todo” o Mesmo e o Outro, é colocada na situação descrita por Descartes onde o “eu penso” se relaciona com o Infinito, que não pode conter e do qual está separado, a relação chamada “idéia do infinito”. As coisas, as noções matemáticas e morais nos são presentes, segundo Descartes, por idéias, e delas se distinguem. Mas a idéia do infinito tem isso de excepcional: o “ser ideado” (ideatum) excede sua idéia, enquanto que, para as coisas, pode haver coincidência total de suas realidades “objetiva” e “formal”. A distância que separa o “ser ideado” (Infinito) e a idéia constitui o próprio conteúdo do “ser ideado”. O infinito é próprio do ser transcendente enquanto transcendente, o Infinito é o Absolutamente Outro. Pensar o infinito, o transcendente, o Estrangeiro, não é então pensar um objeto. É pensar o que não tem os traços de um objeto, na realidade é fazer mais do que pensar. O Infinito no finito, o mais no menos que se realiza pela idéia do Infinito, produz-se como Desejo, conforme já escrito acima. Não como um desejo (profano) que a posse do desejável satisfaz, mas como Desejo do Infinito que o Desejável suscita, em lugar de satisfazer. Desejo perfeitamente desinteressado, ou seja, Bondade

Lévinas seculariza a “idéia do Infinito” de Descartes. Ela diz respeito à “relação do Mesmo (do Eu) com o Outro (do Eu)”. O “eu penso” cartesiano entretém com Outrem, que não pode conter a idéia do Infinito e do qual está separado. Estas são algumas considerações feitas por Lévinas sobre esse Infinito:

— “O infinito é próprio do ser transcendente enquanto transcendente, o infinito é o absolutamente outro.”

— “Pensar o infinito, o transcendente, o Estrangeiro, não é então pensar um objeto.” O termo “Estrangeiro” é próprio da tradição bíblica em que se alimenta Emmanuel Lévinas em seus escritos. Está presente na quatríade do profeta Isaías, profeta ao modo dos celebrados poetas gregos Homero e Hesíodo. A quatríade é a seguinte: “o pobre” (que não tem recursos econômicos), “a viúva” (que não tem marido que a sustente), “o órfão” (que não tem abrigo que o recolha), “o estrangeiro” (que não tem pátria onde pisar). Em resumo, são “os condenados da terra”, que hoje chamamos de excluídos. Então, para Lévinas, a única idéia que lhes cabe é a “idéia do Infinito”!

— “O infinito no finito, o mais no menos que se realiza pela idéia do Infinito, produz-se como Desejo. Não como um Desejo que a posse do Desejável apazigua, mas como Desejo do Infinito que o desejável suscita, em lugar de satisfazer. Desejo perfeitamente desinteressado — bondade.” Nesse trecho, já comentado acima, a “idéia do Infinito” vira “desejo do Infinito”, contanto que seja “desejo perfeitamente desinteressado — bondade”. A relação com Outrem é infinita. 

Lévinas emprega também o termo “infinição”. Ele escreve: “A relação com o infinito não pode, por certo, ser dita em termos de experiência, porque o infinito desborda o pensamento que o pensa. Nesse transbordamento, precisamente se produz a sua própria infinição, de sorte que será preciso dizer a relação com o infinito em outros termos que não em termos de experiência objetiva. Mas, se experiência significa precisamente relação com o absolutamente outro... a relação com o infinito plenifica a experiência por excelência”. Se “a relação com o infinito” é relação com outrem, não se deve entender que outrem seja “ontologicamente” infinito, pois teríamos o Deus cartesiano. É infinito “porque desborda o pensamento que o pensa”. Por isso, na relação com outrem, “se produz [da relação] a sua própria infinição”. Não será em termos de experiência objetiva. Mas, se experiência significa precisamente relação com o absolutamente outro, então a relação com o infinito plenifica a experiência, conforme Lévinas escreve ainda: “A idéia do infinito é o modo de ser — a infinição — do infinito. O infinito não existe antes para se revelar em seguida. Sua infinição se produz como revelação, como inserção em mim de sua idéia. Produz-se no fato inverossímil em que um ser separado, fixo à sua identidade, o Mesmo, o mesmo do eu, no entanto contém em si o que não pode nem conter nem receber pela força somente de sua identidade. A subjetividade realiza essas exigências impossíveis: o fato surpreendente de conter mais do que é possível conter.” 

Para Emmanuel Lévinas, há Revelação da infinição da subjetividade. Essa revelação é a inserção em mim da idéia do Infinito. Descartes também fala de inserção em mim da idéia do Infinito, operada por Deus. Lévinas, porém, diz que a infinição se produz. A idéia do infinito é o “modo de ser” da subjetividade. Significa que o infinito da subjetividade é a infinição da subjetividade. O “sujeito” (“Eu penso”) se sujeita a Outrem, num aparente paradoxo, conforme observado por Benedito Cintra: o sujeito, sujeitando-se, vira sujeito

Resumindo, conforme a descrição de Lévinas do evento da criação ex nihilo, o Infinito se retrai da dimensão ontológica e abre para si mesmo a ordem do bem. Esse bem praticado, entretanto, não reduz a distância entre o homem e o Infinito. Produzem-se, assim, duas realidades: de um lado a existência gratuita e, de outro, como diz Emilio Baccarini, um Deus que, mesmo na sua transcendência, na sua absolutidade, deixou seu rastro

Prof. Luiz Gustavo Oliveira dos Santos

Professor de Filosofia

Formado em Filosofia (IESCO)

Pós-Graduado em Filosofia Política (IESCO)

Bibliografia

BACCARINI, Emilio. Dizer Deus “Outramente”, in Deus na Filosofia do Século XX, org. por PENZO, Giorgio; GIBELLINI, Rosino. Ed. Loyola. São Paulo, 2002. 

CINTRA, Benedito E. L., Emmanuel Lévinas e a Idéia do Infinito. Publicado na página: <http://www.pucsp.br/ margem/pdf/m16bc.pdf. São Paulo, 2002.

FREIRE, José C., MOREIRA, Virgínia. Psicopatologia e Religiosidade no Lugar do Outro: Uma Escuta Levinasiana. Publicado na página: <http://www.scielo.br/pdf/pe/v8n2/v8n2a09.pdf>. Maringá, 2003.

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