Allan Kardec

Explicação filosófica da noção de Deus

Allan Kardec (1804-1869)

Educador, contabilista, filósofo, escritor e tradutor francês, discípulo e colaborador de H. Pestalozzi

Bacharel em Ciências e Letras (Instituição de Pestalozzi, Yverdun - Suíça)

Professor de Astronomia, Física, Química, Matemática, Fisiologia e Anatomia Comparada

Presidente-Fundador da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas

Extraído e adaptado de:

A Gênese, de Allan Kardec

EXISTÊNCIA DE DEUS

1. — Deus sendo a causa primeira de todas as coisas, o ponto de partida de tudo, o pivô sobre o qual repousa o edifício da criação, esse é o ponto que importa considerar antes de tudo.

É princípio elementar que se julga de uma causa por seus efeitos, mesmo quando não se vê a causa. A ciência vai mais longe: ela calcula a potência da causa pela potência do efeito, e pode mesmo determinar sua natureza. Foi assim, por exemplo, que a astronomia concluiu pela existência de planetas em regiões determinadas do espaço, pelo conhecimento das leis que regem o movimento dos astros: procuraram-se, e se encontraram os planetas, que, na realidade, pode-se dizer terem sido descobertos antes de ser vistos.

2. — Numa ordem de fatos mais vulgares, se se está mergulhado num espesso nevoeiro, pela claridade difusa se julga que o sol está sobre o horizonte, embora não se veja o sol. Se um pássaro fendendo o ar é atingido por um chumbo mortal, julga-se que um hábil atirador o feriu, embora não se veja o atirador. Não é, portanto, sempre necessário ter visto uma coisa para saber que ela existe. Em tudo, é observando os efeitos que se chega ao conhecimento das causas.

3. — Um outro princípio também elementar, e passado ao estado de axioma por força de verdade, é que todo efeito inteligente deve ter uma causa inteligente.

Se se perguntasse qual é o inventor de tal engenhoso mecanismo, o arquiteto de tal monumento, o escultor de tal estátua ou o pintor de tal quadro, o que se pensaria daquele que respondesse que isso tudo se fez sozinho? Quando se vê uma obra-prima da arte ou da indústria, diz-se que ela deve ser o produto de um homem de gênio, porque uma alta inteligência deveu presidir à sua concepção; julga-se, contudo, que um homem deveu fazê-la, porque se sabe que a coisa não está acima da capacidade humana, mas não virá a ninguém o pensamento de dizer que ela saiu do cérebro de um idiota ou de um ignorante, e ainda menos que ela é o trabalho de um animal ou o produto do acaso.

4. — Por toda parte se reconhece a presença do homem por suas obras. Se vós abordásseis uma terra desconhecida, fosse ela um deserto, e que aí descobrísseis o menor vestígio de trabalhos humanos, disso concluiríeis que homens habitam ou habitaram essa região. A existência dos homens antediluvianos não se provaria somente pelos fósseis humanos, mas também, e com igual certeza, pela presença, nos terrenos dessa época, de objetos trabalhados pelos homens; um fragmento de vaso, uma pedra talhada, uma arma, um tijolo, bastarão para atestar sua presença. Pela grosseria ou pela perfeição do trabalho se reconhecerá o grau de inteligência e de adiantamento daqueles que o realizaram. Se, portanto, encontrando-vos em um país habitado exclusivamente por selvagens, descobrirdes uma estátua digna de Fídias, não hesitaríeis em dizer que, os selvagens sendo incapazes de tê-la feito, ela deve ser a obra de uma inteligência superior à dos selvagens.

5. — Pois bem! Lançando os olhos em torno de si, sobre as obras da natureza, observando a previdência, a sabedoria, a harmonia que presidem a todas, reconhece-se que não há nenhuma delas que não ultrapasse o mais alto alcance da inteligência humana, uma vez que o maior gênio da Terra não poderia criar o menor ramo de erva. Desde que a inteligência humana não pode produzi-las, é que elas são o produto de uma inteligência superior à humanidade. Essa harmonia e essa sabedoria se estendendo desde o grão de areia e o ácaro até os astros inumeráveis que circulam no espaço, é preciso concluir que essa inteligência abarca o infinito, a menos que se diga que há efeitos sem causa.

6. — A isso, alguns opõem o raciocínio seguinte:

As obras ditas da natureza são o produto de forças materiais que agem mecanicamente, por consequência das leis de atração e de repulsão; as moléculas dos corpos inertes se agregam e se desagregam sob o império dessas leis. As plantas nascem, brotam, crescem e se multiplicam sempre da mesma maneira, cada uma em sua espécie, em virtude dessas mesmas leis; cada sujeito é semelhante àquele do qual saiu; o crescimento, a floração, a frutificação, a coloração estão subordinados a causas materiais, tais como o calor, a eletricidade, a luz, a umidade, etc. Dá-se o mesmo com os animais. Os astros se formam pela atração molecular, e se movem perpetuamente em suas órbitas pelo efeito da gravitação. Essa regularidade mecânica no emprego das forças naturais não acusa uma inteligência livre. O homem mexe seu braço quando quer e como quer, mas aquele que o mexesse no mesmo sentido, desde seu nascimento até sua morte, seria um autômato; ora, as forças orgânicas da natureza, consideradas em seu conjunto, são de algum modo automáticas.

Tudo isso é verdade; mas essas forças são efeitos que devem ter uma causa, e ninguém pretendeu que elas constituam a divindade. Elas são materiais e mecânicas; não são inteligentes por si mesmas, isso é ainda verdade; mas elas são postas em operação, distribuídas, apropriadas para as necessidades de cada coisa por uma inteligência que não é a dos homens. A útil apropriação dessas forças é um efeito inteligente que denota uma causa inteligente. Um relógio de pêndulo se move com uma regularidade automática, e é essa regularidade que faz o seu mérito. A força que o faz agir é toda material e nulamente inteligente; mas o que seria esse relógio se uma inteligência não tivesse combinado, calculado, distribuído o emprego dessa força para fazê-lo marchar com precisão? Do fato de que a inteligência não está no mecanismo do relógio, e de que ninguém a vê, seria racional concluir que ela não existe? Julguem-na por seus efeitos.

A existência do relógio atesta a existência do relojoeiro; a engenhosidade do mecanismo atesta a inteligência e o saber do relojoeiro. Quando se vê um desses relógios complicados que marcam a hora das principais cidades do mundo, o movimento dos astros, que tocam árias, que parecem, numa palavra, falar-vos para vos dar no momento preciso a informação de que tendes necessidade, já veio ao pensamento de alguém dizer: Eis um relógio bem inteligente?

Assim é com o mecanismo do universo; Deus não se mostra, mas ele se afirma por suas obras.

7. — A existência de Deus é, portanto, um fato adquirido, não somente pela revelação, mas pela evidência material dos fatos. Os povos mais selvagens não tiveram revelação e, entretanto, acreditam instintivamente na existência de um poder sobre-humano; é que os selvagens mesmos não escapam às consequências lógicas; eles veem coisas que estão acima do poder humano, e disso concluem que elas provêm de um ser superior à humanidade. 

 

DA NATUREZA DIVINA 

8. — Não é dado ao homem sondar a natureza íntima de Deus. Temerário seria aquele que pretendesse erguer o véu que o furta à nossa vista; falta-nos ainda o sentido que não se adquire senão pela completa depuração do Espírito. Mas, se não pode penetrar sua essência, sua existência sendo dada como premissa, ele pode, pelo raciocínio, chegar ao conhecimento de seus atributos necessários; pois, vendo o que ele não pode não ser sem cessar de ser Deus, disso conclui o que ele deve ser.

Sem o conhecimento dos atributos de Deus, seria impossível compreender a obra da criação; esse é o ponto de partida de todas as crenças religiosas, e é por falta de a isso se reportarem, como ao farol que podia dirigi-las, que a maior parte das religiões erraram em seus dogmas. Aquelas que não atribuíram a Deus a onipotência imaginaram muitos deuses; aquelas que não lhe atribuíram a soberana bondade fizeram dele um Deus ciumento, colérico, parcial e vingativo.

9. — Deus é a suprema e soberana inteligência. A inteligência do homem é limitada, uma vez que ele não pode nem fazer nem compreender tudo o que existe; a de Deus, abarcando o infinito, deve ser infinita. Se se a supusesse limitada num ponto qualquer, poder-se-ia conceber um ser ainda mais inteligente, capaz de compreender e de fazer o que o outro não fizesse, e assim por diante, até o infinito.

10. — Deus é eterno, isto é, ele não teve começo e não terá fim. Se ele tivesse tido um começo, é que seria saído do nada; ora, o nada não sendo nada, não pode nada produzir; ou bem ele teria sido criado por um outro ser anterior, e então é este ser que seria Deus. Se se lhe supusesse um começo ou um fim, poder-se-ia, portanto, conceber um ser tendo existido antes dele, ou podendo existir depois dele, e assim por diante, até o infinito.

11. — Deus é imutável. Se ele estivesse sujeito a mudanças, as leis que regem o universo não teriam nenhuma estabilidade.

12. — Deus é imaterial; isto é, sua natureza difere de tudo o que nós chamamos matéria; de outro modo, ele não seria imutável, pois estaria sujeito às transformações da matéria.

Deus não tem forma apreciável a nossos sentidos; sem isso, ele seria matéria. Nós dizemos: a mão de Deus, o olho de Deus, a boca de Deus, porque o homem, não conhecendo senão a si, toma-se por termo de comparação de tudo o que não compreende. Essas imagens onde se representa Deus sob a figura de um velho de longa barba, coberto com um manto, são ridículas; elas têm o inconveniente de rebaixar o ser supremo às mesquinhas proporções da humanidade; daí a lhe emprestar as paixões da humanidade, a fazer dele um Deus colérico e ciumento, não há senão um passo.

13. — Deus é onipotente. Se ele não tivesse o supremo poder, poder-se-ia conceber um ser mais poderoso, e assim por diante, até que se encontrasse o ser que nenhum outro pudesse ultrapassar em poder, e é este que seria Deus. Ele não teria feito todas as coisas, e aquelas que ele não tivesse feito seriam a obra de um outro deus.

14. — Deus é soberanamente justo e bom. A sabedoria providencial das leis divinas se revela nas menores coisas como nas maiores, e essa sabedoria não permite duvidar nem de sua justiça nem de sua bondade. Essas duas qualidades implicam todas as outras; se se as supusesse limitadas, fosse num só ponto, poder-se-ia conceber um ser que as possuísse em um mais alto grau, e que lhe fosse superior.

O infinito de uma qualidade exclui a possibilidade da existência de uma qualidade contrária que a diminuiria ou a anularia. Um ser infinitamente bom não poderia ter a menor parcela de maldade, nem o ser infinitamente mau ter a menor parcela de bondade; da mesma forma que um objeto não poderia ser de um preto absoluto com a mais ligeira nuança de branco, nem de um branco absoluto com o menor traço de preto.

Deus não poderia, portanto, ser ao mesmo tempo bom e mau, pois então, não possuindo nem uma nem outra dessas qualidades no supremo grau, ele não seria Deus; todas as coisas estariam submetidas ao capricho, e não haveria estabilidade para nada. Ele não poderia, portanto, ser senão infinitamente bom ou infinitamente mau; se ele fosse infinitamente mau, não faria nada de bom; ora, como suas obras testemunham de sua sabedoria, de sua bondade e de sua solicitude, é preciso concluir que, não podendo ser ao mesmo tempo bom e mau sem cessar de ser Deus, ele deve ser infinitamente bom.

A soberana bondade implica a soberana justiça; pois, se ele agisse injustamente ou com parcialidade em uma só circunstância, ou a respeito de uma só de suas criaturas, não seria soberanamente justo, e, por conseguinte, não seria soberanamente bom.

15. — Deus é infinitamente perfeito. É impossível conceber Deus sem o infinito das perfeições, sem o que ele não seria Deus, pois se poderia sempre conceber um ser possuindo o que lhe faltasse. Para que nenhum ser possa ultrapassá-lo, é preciso que ele seja infinito em tudo.

Os atributos de Deus, sendo infinitos, não são suscetíveis nem de aumento nem de diminuição; sem isso, eles não seriam infinitos e Deus não seria perfeito. Se se removesse a menor parcela de um só de seus atributos, não se teria mais Deus, uma vez que poderia existir um ser mais perfeito.

16. — Deus é único. A unidade de Deus é a consequência do infinito absoluto das perfeições. Um outro Deus não poderia existir senão com a condição de ser igualmente infinito em todas as coisas; pois, se houvesse entre eles a mais ligeira diferença, um seria inferior ao outro, subordinado a seu poder, e não seria Deus. Se houvesse entre eles igualdade absoluta, existiria de toda a eternidade um mesmo pensamento, uma mesma vontade, um mesmo poder; assim confundidos em sua identidade, não existiria em realidade senão um só Deus. Se eles tivessem cada um atribuições especiais, um faria o que o outro não fizesse, e então não haveria entre eles igualdade perfeita, uma vez que nem um nem o outro teria a soberana autoridade.

17. — Foi a ignorância do princípio do infinito das perfeições de Deus que engendrou o politeísmo, culto de todos os povos primitivos; eles atribuíram divindade a todo poder que lhes pareceu acima da humanidade; mais tarde, a razão os conduziu a confundir esses diversos poderes em um só. Depois, à medida que os homens compreenderam a essência dos atributos divinos, cortaram de seus símbolos as crenças que deles eram a negação.

18. — Em resumo, Deus não pode ser Deus senão com a condição de não ser ultrapassado em nada por um outro ser; pois então o ser que o ultrapassasse no que quer que seja, que fosse só na espessura de um cabelo, seria o verdadeiro Deus; por isso, é preciso que ele seja infinito em todas as coisas.

É assim que, a existência de Deus sendo constatada pelo fato de suas obras, chega-se, pela simples dedução lógica, a determinar os atributos que o caracterizam.

19. — Deus é, portanto, a suprema e soberana inteligência; ele é único, eterno, imutável, imaterial, onipotente, soberanamente justo e bom, infinito em todas as suas perfeições, e não pode ser outra coisa.

Tal é o pivô sobre o qual repousa o edifício universal; esse é o farol cujos raios se estendem sobre o universo inteiro, e que unicamente pode guiar o homem na procura da verdade; seguindo-o, ele não se desgarrará jamais, e se ele é tão frequentemente extraviado, foi por falta de ter seguido a rota que lhe era indicada.

Tal é também o critério infalível de todas as doutrinas filosóficas e religiosas; o homem tem para julgá-las uma medida rigorosamente exata nos atributos de Deus, e pode-se dizer com certeza que toda teoria, todo princípio, todo dogma, toda crença, toda prática que estivesse em contradição com um só desses atributos, que tendesse não somente a anulá-lo, mas simplesmente a enfraquecê-lo, não pode estar na verdade.

Em filosofia, em psicologia, em moral, em religião, não há de verdadeiro senão o que não se afaste uma vírgula das qualidades essenciais da divindade. A religião perfeita seria aquela da qual nenhum artigo de fé estivesse em oposição com essas qualidades, da qual todos os dogmas pudessem suportar a prova desse controle, sem com isso receber nenhum atentado.

 

A PROVIDÊNCIA 

20. — A providência é a solicitude de Deus para todas as suas criaturas. Deus está por toda parte, ele vê tudo, ele preside a tudo, mesmo às menores coisas; é nisso que consiste a ação providencial.

“Como Deus tão grande, tão poderoso, tão superior a tudo, pode se imiscuir em detalhes ínfimos, preocupar-se com os menores atos e os menores pensamentos de cada indivíduo? Tal é a questão que se põe a incredulidade, de onde ela conclui que, em admitindo a existência de Deus, sua ação não deve se estender senão sobre as leis gerais do universo; que o universo funciona de toda a eternidade em virtude dessas leis às quais cada criatura está submetida em sua esfera de atividade, sem que haja necessidade do concurso incessante da providência.”

21. — Em seu estado atual de inferioridade, os homens não podem senão dificilmente compreender Deus infinito, porque são eles mesmos finitos e limitados, é por isso que o figuram finito e limitado como eles; eles o representam como um ser circunscrito, e fazem dele uma imagem à sua imagem. Nossos quadros que o pintam sob traços humanos não contribuem pouco para entretecer esse erro no espírito das massas que adoram nele a forma mais que o pensamento. Esse é para o maior número um soberano poderoso, sobre um trono inacessível, perdido na imensidade dos céus, e porque suas faculdades e suas percepções são limitadas, eles não compreendem que Deus possa ou se digne intervir diretamente nas pequenas coisas.

22. — Na impotência em que está o homem de compreender a essência mesma da divindade, não pode fazer dela senão uma ideia aproximativa com a ajuda de comparações necessariamente muito imperfeitas, mas que podem ao menos lhe mostrar a possibilidade do que, à primeira vista, lhe parece impossível.

Suponhamos um fluido assaz sutil para penetrar todos os corpos, é evidente que cada molécula desse fluido, encontrando-se em contato com cada molécula da matéria, produzirá sobre o corpo uma ação idêntica àquela que produziria a totalidade do fluido. É o que a química demonstra todos os dias em proporções limitadas.

Esse fluido, sendo ininteligente, age mecanicamente só pelas forças materiais; mas, se supormos esse fluido dotado de inteligência, de faculdades perceptivas e sensitivas, ele agirá, não mais cegamente, mas com discernimento, com vontade e liberdade; ele verá, ouvirá e sentirá.

As propriedades do fluido perispiritual podem nos dar uma ideia disso. Ele não é inteligente por si mesmo, uma vez que é matéria, mas é o veículo do pensamento, das sensações e das percepções do Espírito; é em consequência da sutilidade desse fluido que os Espíritos penetram por toda parte, que escrutinam nossos pensamentos mais íntimos, que veem e agem à distância; é a esse fluido, chegado a um certo grau de depuração, que os Espíritos superiores devem o dom de ubiquidade; basta um raio de seu pensamento, dirigido sobre diversos pontos, para que eles possam aí manifestar sua presença simultaneamente. A extensão dessa faculdade está subordinada ao grau de elevação e de depuração do Espírito. É ainda com a ajuda desse fluido que o próprio homem age à distância, pelo poder da vontade, sobre certos indivíduos; que ele modifica em certos limites as propriedades da matéria, dá a substâncias inativas propriedades determinadas, repara desordens orgânicas e opera curas pela imposição das mãos.

23. — Mas os Espíritos, por mais elevados que sejam, são criaturas limitadas em suas faculdades, seu poder e na extensão de suas percepções, e não poderiam, sob este aspecto, aproximar-se de Deus. Entretanto, podem nos servir de ponto de comparação. O que o Espírito não pode realizar senão num limite restrito, Deus, que é infinito, realiza-o em proporções indefinidas. Há ainda esta diferença de que a ação do Espírito é momentânea e subordinada às circunstâncias: a de Deus é permanente; o pensamento do Espírito não abarca senão um tempo e um espaço circunscritos: o de Deus abarca o universo e a eternidade. Numa palavra, entre os Espíritos e Deus, há a distância do finito ao infinito.

24. — O fluido perispiritual não é o pensamento do Espírito, mas o agente e o intermediário desse pensamento; como é ele que o transmite, está de algum modo impregnado dele, e na impossibilidade em que estamos de isolá-lo, ele parece não fazer senão um com o fluido, como o som parece não fazer senão um com o ar, de modo que podemos, por assim dizer, materializá-lo. Da mesma forma que dizemos que o ar se torna sonoro, poderíamos, tomando o efeito pela causa, dizer que o fluido se torna inteligente.

25. — Que seja ou não assim com o pensamento de Deus, isto é, que ele aja diretamente ou pelo intermédio de um fluido, para a facilidade de nossa inteligência, representemo-lo sob a forma concreta de um fluido inteligente preenchendo o universo infinito, penetrando todas as partes da criação: a natureza inteira está mergulhada no fluido divino; ora, em virtude do princípio de que as partes de um todo são de mesma natureza, e têm as mesmas propriedades que o todo, cada átomo desse fluido, se assim se pode exprimir, possuindo o pensamento, isto é, os atributos essenciais da divindade, e esse fluido estando por toda parte, tudo está submetido à sua ação inteligente, à sua previdência, à sua solicitude; não há um ser, por mais ínfimo que seja, que dele não esteja de alguma sorte saturado. Estamos, assim, constantemente em presença da divindade; não há uma só de nossas ações que possamos subtrair a seu olhar; nosso pensamento está em contato incessante com seu pensamento, e é com razão que se diz que Deus lê nos mais profundos recônditos de nosso coração; Nós estamos nele, como ele está em nós, segundo a fala do Cristo.

Para estender sua solicitude sobre todas as suas criaturas, Deus não tem, portanto, necessidade de mergulhar seu olhar do alto da imensidade; nossas preces, para serem ouvidas por ele, não têm necessidade de atravessar o espaço, nem de ser ditas com uma voz retumbante, pois, sem cessar a nossos lados, nossos pensamentos se repercutem nele. Nossos pensamentos são como os sons de um sino que fazem vibrar todas as moléculas do ar ambiente.

26. — Longe de nós o pensamento de materializar a divindade; a imagem de um fluido inteligente universal não é evidentemente senão uma comparação, porém, própria a dar uma ideia mais justa de Deus do que os quadros que o representam sob uma figura humana; ela não tem por objeto senão fazer compreender a possibilidade para Deus de estar por toda parte e de se ocupar de tudo.

27. — Nós temos incessantemente sob os olhos um exemplo que pode nos dar uma ideia da maneira pela qual a ação de Deus pode se exercer sobre as partes mais íntimas de todos os seres, e, por conseguinte, como as impressões mais sutis de nossa alma chegam a ele. É tirado de uma instrução dada por um Espírito a esse respeito.

“Um dos atributos da divindade é a infinidade; não se pode representar o Criador como tendo uma forma, um limite, um contorno qualquer. Se ele não fosse infinito, poder-se-ia conceber alguma coisa maior que ele, e seria esta alguma coisa que seria Deus. — Sendo infinito, Deus está por toda parte, pois, se ele não estivesse por toda parte, não seria infinito; não se pode sair desse dilema. Portanto, se há um Deus, e isso não faz dúvida para ninguém, esse Deus é infinito e não se pode conceber extensão que ele não ocupe. Ele se encontra, por conseguinte, em contato com todas as suas criações; ele as envolve, elas estão nele; é, portanto, compreensível que ele esteja em relação direta com cada criatura, e, para vos fazer compreender tão materialmente quanto possível de que maneira essa comunicação tem lugar universalmente e constantemente, examinemos o que se passa no homem entre seu Espírito e seu corpo.

O homem é um pequeno mundo do qual o diretor é o Espírito e cujo princípio dirigido é o corpo. Nesse universo, o corpo representará uma criação da qual o Espírito seria Deus. (Vós compreendeis que não pode haver aqui senão uma questão de analogia e não de identidade.) Os membros desse corpo, os diferentes órgãos que o compõem, seus músculos, seus nervos, suas articulações, são outras tantas individualidades materiais, se assim se pode dizê-lo, localizadas em um lugar especial do corpo; se bem que o número dessas partes constitutivas, tão variadas e tão diferentes de natureza, seja considerável, não é, entretanto, duvidoso para ninguém que não se podem produzir movimentos, que uma impressão qualquer não pode ocorrer em um local particular, sem que o Espírito tenha consciência disso. Há sensações diversas em muitos locais simultâneos? O Espírito as sente todas, discerne-as, analisa-as, assinala a cada uma sua causa e seu lugar de ação.

Um fenômeno análogo tem lugar entre a criação e Deus. Deus está por toda parte na natureza, como o Espírito está por toda parte no corpo; todos os elementos da criação estão em relação constante com ele, como todas as células do corpo humano estão em contato imediato com o ser espiritual; não há, portanto, razão para que fenômenos de mesma ordem não se produzam da mesma maneira, num e noutro caso.

Um membro se agita: o Espírito o sente; uma criatura pensa: Deus o sabe. Todos os membros estão em movimento, os diferentes órgãos são postos em vibração: o Espírito sente cada manifestação, as distingue e as localiza. As diferentes criações, as diferentes criaturas, agitam-se, pensam, agem diversamente, e Deus sabe tudo o que se passa, assinala a cada um o que lhe é particular.

Pode-se disso deduzir igualmente a solidariedade da matéria e da inteligência, a solidariedade de todos os seres de um mundo entre si, a de todos os mundos, e, enfim, a das criações e do Criador.” (QUINEMANT. Sociedade de Paris, 1867.)

28. — Nós compreendemos o efeito, isso já é muito; do efeito remontamos à causa, e julgamos de sua grandeza pela grandeza do efeito; mas sua essência íntima nos escapa, como a da causa de uma multidão de fenômenos. Nós conhecemos os efeitos da eletricidade, do calor, da luz, da gravitação; nós os calculamos, e, entretanto, ignoramos a natureza íntima do princípio que os produz. É, então, mais racional negar o princípio divino, porque nós não o compreendemos?

29. — Nada impede de admitir, pelo princípio de soberana inteligência, um centro de ação, um foco principal irradiando sem cessar, inundando o universo com seus eflúvios como o sol com sua luz. Mas onde está esse foco? É o que ninguém pode dizer. É provável que ele não esteja fixado num ponto determinado assim como não o está sua ação, e que ele percorra incessantemente as regiões do espaço sem limites. Se simples Espíritos têm o dom de ubiquidade, essa faculdade, em Deus, deve ser sem limite. Deus preenchendo o universo, poder-se-ia ainda admitir, a título de hipótese, que esse foco não tem necessidade de se transportar, e que ele se forma sobre todos os pontos onde a soberana vontade julga a propósito se produzir, de onde se poderia dizer que ele está por toda parte e em nenhuma parte.

30. — Diante desses problemas insondáveis, nossa razão deve se humilhar. Deus existe: disso não poderíamos duvidar; ele é infinitamente justo e bom: essa é sua essência; sua solicitude se estende a tudo: compreendemo-lo; ele não pode, portanto, querer senão nosso bem, é por isso que devemos ter confiança nele. Eis o essencial; para o demais, esperemos que sejamos dignos de compreendê-lo. 

 

A VISÃO DE DEUS 

        31. — Uma vez que Deus está por toda parte, por que nós não o vemos? Nós o veremos em deixando a Terra? Tais são as questões que se põem diariamente.

        A primeira é fácil de resolver; nossos órgãos materiais têm percepções limitadas que os tornam impróprios à visão de certas coisas, mesmo materiais. É assim que certos fluidos escapam totalmente à nossa visão e a nossos instrumentos de análise, e, no entanto, não duvidamos de sua existência. Nós vemos os efeitos da peste, e não vemos o fluido que a transporta; nós vemos os corpos se moverem sob a influência da força de gravitação, e não vemos essa força.

        32. — As coisas de essência espiritual não podem ser percebidas por órgãos materiais; não é senão pela visão espiritual que nós podemos ver os Espíritos e as coisas do mundo imaterial; só nossa alma pode, portanto, ter a percepção de Deus. Ela o vê imediatamente depois da morte? É o que só as comunicações de além-túmulo podem nos ensinar. Por elas, nós sabemos que a visão de Deus não é privilégio senão das almas mais depuradas, e que, assim, bem poucos possuem, em deixando seu envoltório terrestre, o grau de desmaterialização necessário. Algumas comparações vulgares o farão facilmente compreender.

        33. — Aquele que está no fundo de um vale cercado de uma bruma espessa não vê o sol; entretanto, como o dissemos mais acima, pela luz difusa ele julga da presença do sol. Se ele escala a montanha, à medida que se eleva, o nevoeiro se aclara, e a luz se torna cada vez mais viva, mas ele não vê ainda o sol; quando começa a percebê-lo, está ainda velado, pois o menor vapor basta para enfraquecer seu brilho. Não é senão depois de ter se elevado completamente acima da camada brumosa que, encontrando-se num ar perfeitamente puro, ele o vê em todo o seu esplendor.

Dá-se o mesmo com aquele cuja cabeça estivesse envolvida por vários véus; primeiro, ele não vê nada; a cada véu que se remove, ele distingue um lampejo cada vez mais claro; não é senão quando o último véu desapareceu que ele percebe nitidamente as coisas.

Dá-se ainda o mesmo com um licor carregado de matérias estranhas; ele está turvado, de início; a cada destilação, sua transparência aumenta, até que, estando completamente depurado, ele adquire uma limpidez perfeita e não apresenta nenhum obstáculo à visão.

Assim é com a alma. O envoltório perispiritual, se bem que invisível e impalpável para nós, é para ela uma verdadeira matéria, demasiado grosseira ainda para certas percepções. Esse envoltório se espiritualiza à medida que a alma se eleva em moralidade. As imperfeições da alma são como véus que obscurecem sua visão; cada imperfeição de que ela se desfaz é um véu a menos, mas não é senão depois de estar completamente depurada que ela goza da plenitude de suas faculdades.

34. — Deus, sendo a essência divina por excelência, não pode ser percebido em todo o seu brilho senão pelos Espíritos chegados ao mais alto grau de desmaterialização. Se os Espíritos imperfeitos não o veem, não é que eles estejam mais afastados dele que os outros; como estes, como todos os seres da natureza, eles estão mergulhados no fluido divino, como nós o estamos na luz; somente que suas imperfeições são véus que o furtam à sua visão; quando o nevoeiro for dissipado, eles o verão resplandecer; para isso, eles não terão necessidade nem de subir, nem de ir procurá-lo nas profundezas do infinito; a visão espiritual estando desembaraçada das fronhas morais que a obscurecem, eles o verão em qualquer lugar em que se encontrem, fosse mesmo sobre a Terra, pois ele está por toda parte.

35. — O Espírito não se depura senão a longo prazo, e as diferentes encarnações são os alambiques no fundo dos quais ele deixa, a cada vez, algumas impurezas. Em deixando seu envoltório corporal, eles não se despojam instantaneamente de suas imperfeições; é por isso que, depois da morte, não veem mais Deus do que quando em sua vida; mas, à medida que se depuram, têm dele uma intuição mais distinta; se não o veem, compreendem-no melhor: a luz é menos difusa. Portanto, quando os Espíritos dizem que Deus lhes proíbe de responder a tal questão, não é que Deus lhes apareça, ou lhes dirija a palavra para lhes prescrever ou lhes interditar tal ou tal coisa, não; mas eles o sentem; eles recebem os eflúvios de seu pensamento, como nos ocorre a respeito dos Espíritos que nos envolvem com seu fluido, embora nós não os vejamos.

36. — Nenhum homem pode, portanto, ver Deus com os olhos da carne. Se esse favor fosse concedido a alguns, não seria senão no estado de êxtase, quando a alma está tão desprendida dos laços da matéria quanto isso seja possível durante a encarnação. Um tal privilégio não seria, aliás, senão o das almas de elite, encarnadas em missão e não em expiação. Mas como os Espíritos de ordem mais elevada resplandecem de um brilho ofuscante, pode ser que Espíritos menos elevados, encarnados ou desencarnados, tomados pelo esplendor que os rodeia, tenham acreditado ver o próprio Deus. Tal se vê por vezes um ministro ser tomado por seu soberano.

37. — Sob que aparência Deus se apresenta àqueles que se tornaram dignos desse favor? É sob uma forma qualquer? Sob uma figura humana, ou como um foco resplandecente de luz? É o que a linguagem humana é impotente para descrever, porque não existe para nós nenhum ponto de comparação que possa dar uma ideia dele; nós somos como cegos a quem se procuraria em vão fazer compreender o brilho do sol. Nosso vocabulário é limitado a nossas necessidades e ao círculo de nossas ideias; o dos selvagens não poderia pintar as maravilhas da civilização; o dos povos mais civilizados é demasiado pobre para descrever os esplendores dos céus, nossa inteligência, demasiado limitada para compreendê-los, e nossa visão demasiado fraca seria por eles ofuscada.

—  ALLAN KARDEC

A Gênese, capítulo I.