Aristóteles

Demonstração da existência do primeiro motor (Deus), substância imutável e eterna

Aristóteles (384-322 a.C.)

Extraído de:

Metafísica, livro XII, caps. 6 e 7.

Adaptação a partir das traduções de Leonel Vallandro (Globo, 1969) e de Edson Bini (Edipro, 2006).

Demonstração da existência de uma substância suprassensível, imutável e eterna: o primeiro motor (Deus).

 

6. Dissemos que há três espécies de substâncias, sendo duas delas naturais e uma imutável. Desta última, vamos falar agora, demonstrando que existe necessariamente uma substância que é eterna e imutável. 

As substâncias são as primeiras das coisas existentes. E, se todas elas forem destrutíveis, todas as coisas também serão destrutíveis. Ora, quanto ao movimento1, este não pode ser gerado ou destruído, pois sempre existiu2; e o mesmo quanto ao tempo, pois, do contrário, não haveria antes e depois. Assim, como o tempo é contínuo, o movimento também é, dado que o tempo é ou idêntico ao movimento ou um atributo dele3. O problema é que não existe movimento contínuo exceto o espacial e, deste, apenas o circular.

 Mas, se existe algo que tenha potência de mover as coisas ou de agir sobre elas, mas não o faça em ato, então não haverá necessariamente movimento, pois é possível que aquilo que tem uma potência não a atualize. 

Assim, de nada nos adianta postular substâncias eternas, como o fazem os que acreditam nas Formas, a não ser que, nelas, haja algum princípio com potência de produzir mudança. Todavia, nem mesmo isso basta, como não bastaria se houvesse uma outra substância além das Formas; pois, a menos que seja em ato, não haverá movimento. Digo mais: ainda que seja em ato, isso não bastará, se a sua substância for apenas potência; pois, neste caso, não haverá movimento eterno, porquanto o que é em potência pode não ser. A conclusão é que deve haver necessariamente um princípio cuja própria substância seja ato. Além disso, estas substâncias têm que ser imateriais, devido à necessidade de serem eternas, se alguma coisa o é. Portanto, sua substância é o próprio ato.

Mas, aqui, há uma dificuldade. Segundo parece, tudo que se atualiza tem uma potência, mas nem tudo que tem potência se atualiza. A potência teria, então, prioridade. Mas, se for assim, nenhuma das coisas existe necessariamente, pois é possível que todas as coisas tenham a potência de existir, mas sem existirem ainda. No entanto, mesmo se adotássemos as opiniões dos teólogos4 que deram origem a tudo a partir da Noite5, ou a doutrina dos físicos segundo a qual “todas as coisas estavam juntas”, em ambos os casos a impossibilidade é a mesma. Pois, como haverá movimento, se não há uma causa existente em ato? Claro é que a madeira não se moverá por si mesma: é preciso que a arte do carpinteiro atue sobre ela para pô-la em movimento. Tampouco serão os mênstruos ou a terra que se fecundarão a si mesmos: é indispensável que as sementes atuem sobre a terra e que o sêmen atue sobre o mênstruo.

Eis aí por que alguns filósofos admitem o ato eterno, como Leucipo e Platão6, pois afirmam que há sempre movimento. Mas não explicam nem por que há movimento, nem o que ele é; e, se o mundo se move desta ou daquela maneira, não nos indicam a causa disso. Ora, nada é movido ao acaso, mas é preciso que sempre haja uma causa motora; de fato, uma coisa se move de um modo por sua própria natureza, de um outro pela força, pela razão ou por algo mais. 

E qual é o tipo primário de movimento? Eis aí uma questão da mais alta importância. 

Na visão de Platão, ao menos, não cabe aqui explicar aquilo que ele supõe às vezes ser o princípio do movimento, aquilo que se move por si mesmo7; pois, de acordo com ele, a alma é posterior ao movimento e simultânea aos céus8. Assim, pois, considerar a potência como anterior ao ato é uma opinião verdadeira de um ponto de vista e errônea de outro; explicamos a distinção9

Que o ato é anterior, atestam-no Anaxágoras (pois o seu “Intelecto” [nous] é ato), Empédocles, com a sua doutrina do Amor e Discórdia, e os que sustentam a eternidade do movimento, como Leucipo.

Por conseguinte, o Caos10 ou a Noite não existiram por um tempo ilimitado; ao contrário, as mesmas coisas é que têm sempre existido (seja passando por um ciclo, seja em conformidade com algum outro princípio), se o ato é anterior à potência. Ora, se há um ciclo constante, é necessário haver alguma coisa que permanece sempre ativa de uma mesma maneira. E, para que exista geração e destruição, é necessário haver alguma outra coisa que seja sempre ativa de diferentes maneiras. É preciso, então, que esta segunda coisa seja ativa de uma maneira em virtude de si mesma, e de outra maneira em virtude de alguma outra coisa — ou seja, ou de um terceiro agente ou do primeiro. Ora, forçosamente será em virtude do primeiro, já que este é a causa tanto do terceiro agente quanto do segundo. Por isso, é preferível dizer: do primeiro. Ele foi a causa do movimento regular eterno, sendo que alguma outra coisa é a causa da variedade; evidentemente, então, ambos conjuntamente constituem a causa da variedade eterna. Este é, em consonância com o exposto, o caráter realmente exibido pelos movimentos. Que necessidade há, portanto, de buscar outros princípios?

 

7. Como é essa uma explicação possível desse assunto, e, na hipótese de não ser verdadeira, nos veremos obrigados a considerar tudo originado da Noite, de “todas as coisas juntas” e do não-ser, essas dificuldades podem ser consideradas como superadas.

Existe, então, algo que é sempre movido com um movimento constante, que é um movimento circular; o que é provado não só pela teoria, como pelos próprios fatos. Segue-se, em conclusão, que o primeiro céu11 tem que ser eterno, e também que é movido por alguma coisa. E, como o que move e é movido é um intermediário, existe algo que move sem ser movido, que é eterno e que é tanto uma substância quanto um ato.

Mas vejamos como ele move. Assim é o movimento do desejável e do pensável: eles movem, sem ser movidos. Os primeiros objetos do desejo e do pensamento são idênticos, pois o bem aparente é o objeto do apetite, o bem real é o primeiro objeto do desejo racional. Mas o desejo é o produto da opinião, e não esta o produto do desejo, já que o pensamento é o ponto de partida. Ora, o pensamento é movido pelo pensável, e uma das duas colunas de contrários constitui em si mesma o pensável. Nesta coluna, a substância ocupa o primeiro lugar; e, na substância, aquela que é simples e existe em ato. (Uno e simples não significam a mesma coisa; o uno designa uma medida, e o simples, um estado determinado do sujeito.) Mas o belo e o que é desejável por si mesmo também se encontram na mesma coluna; e o que é primeiro em qualquer classe é sempre o melhor ou análogo ao melhor.

A possibilidade de existir uma causa final entre as coisas imutáveis é demonstrada pela distinção dos seus significados. Com efeito, a causa final é tanto o a favor de que, quanto o para que. No segundo sentido ela se aplica às coisas imutáveis, mas no primeiro não. Portanto, a causa final produz o movimento enquanto é amada, ao passo que todas as outras coisas movem porque são movidas. Ora, o que é movido pode ser diferente do que é. De modo que, se o ato dos céus12 [i.e., o movimento circular] é a primeira forma de movimento, na medida em que os céus estão sujeito à mudança, eles são capazes de ser diferentes — se não em substância, pelo menos quanto ao lugar. Mas, como há algo que move sem ser movido e que existe em ato, este não pode ser diferente do que é, em nenhum aspecto. O primeiro tipo de mudança é o movimento no espaço; e o primeiro tipo de movimento no espaço é o movimento circular13. E este é o que o primeiro motor produz. O primeiro motor existe, então, necessariamente e, porque ele é necessário, o seu modo de ser é bom; e neste sentido ele é um primeiro princípio. Com efeito, o necessário tem todos estes significados: o que é forçosamente necessário por contrariar o impulso natural, aquilo que é condição imprescindível do bem, e o que absolutamente é de tal maneira e não pode ser de outra.

Portanto, tal é o princípio a que estão subordinados os céus e toda a natureza. E sua vida é semelhante à melhor que podemos fruir (apenas por pouco tempo), visto que ele se encontra perpetuamente nesse estado (o que, para nós, é impossível), e porque seu ato é também prazer14. (E por esta razão a vigília, a sensação e o pensamento são os maiores prazeres, enquanto a esperança e a memória só são prazeres devido à relação que têm com estes.) O pensamento em si ocupa-se com aquilo que é melhor em si; e o pensamento no mais elevado sentido, com aquilo que é o melhor no mais elevado sentido. E o pensamento pensa-se a si mesmo através da participação no pensável. De fato, ele próprio se torna pensável graças ao ato de apreensão e pensamento, de modo que pensamento e pensável são idênticos. Com efeito, aquilo que é capaz de receber o pensável, isto é, a substância, é o pensamento. E ele funciona em ato ao possuir esse objeto. Consequentemente, é o ato e não a potência o elemento divino que o pensamento parece conter; e o ato da especulação é o mais prazeroso e melhor. Se Deus está eternamente naquele bom estado que nós só conhecemos por instantes, tal coisa nos enche de admiração, e mais ainda se seu estado é ainda melhor. E, seguramente, é melhor. Ademais, a vida reside nele, porque o ato do pensamento é vida, e Deus é esse ato. E o ato essencial de Deus é a vida maximamente boa e eterna. Dizemos, pois, que Deus é um ser vivo, eterno, maximamente bom, de modo que a ele dizem respeito a vida e a existência contínua e eterna; pois isso é Deus.

Os que supõem, como os pitagóricos e Espêusipo, que o mais belo e o mais excelente não existem no começo, porque os princípios tanto das plantas como dos animais são causas, enquanto a beleza e a perfeição estão nos efeitos dessas causas, enganam-se em suas opiniões. Com efeito, a semente provém de indivíduos anteriores que são completos, e o que é primordial não é a semente, mas o indivíduo completo. Devemos dizer, por exemplo, que antes do sêmen há um homem — não o produzido pelo sêmen, mas um outro homem do qual provém o sêmen.

Evidencia-se, assim, por força da explicação acima, que existe uma substância eterna, imóvel e independente das coisas sensíveis. Fica também demonstrado que essa substância [Deus] não pode ter nenhuma extensão, que ela não possui partes e que é indivisível, pois produz o movimento através do tempo infinito, e nada que seja finito pode ter uma potência infinita. Portanto, considerando-se, pela razão dada acima, que toda extensão é finita ou infinita, não é possível que essa substância tenha extensão finita, nem tampouco infinita, porque simplesmente não existe, de modo algum, extensão infinita. Evidencia-se também que essa substância é imperturbável e inalterável, uma vez que todos os demais tipos de movimento são posteriores ao movimento no espaço. Fica, assim, bem claro porque essa substância tem esses atributos.

 

—  Aristóteles,

Metafísica, Livro XII, caps. 6-7.

1 No sentido aristotélico, entendido amplamente como mudança.

2 Cf. Física, Livro VIII, caps. 1-3.

3 Cf. Metafísica,  Livro XI, cap. 12.

4 Teólogos (theologoi). Aristóteles se refere aos mitólogos, como Hesíodo, que escreveram sobre a origem dos deuses.

5 Noite (nyctos), personificação divina da noite. Cf. Hesíodo, Teogonia, 116ss; Os Trabalhos e os Dias, 17.

6 Cf. Platão, Timeu, 30.

7 Cf. Platão, Fedro, 245; Leis, 894.

8 Ou ao universo. Cf. Platão, Timeu, 30-34.

9 Cf. Metafísica, Livro XII, cap. 5.

10 Caos (khaos), personificação divina do “abismo profundo, nebuloso e desordenado”, anterior ao universo ordenado (kosmos).

11 Ver o tratado Sobre o céu.

12 Isto é, o movimento espacial circular; no caso, a translação.

13 Cf. Física, Livro VIII, caps. 7 e 9.

14 Cf. Ética a Nicômaco, Livro X, cap. 4, onde Aristóteles trata da relação entre ato e prazer.