Léon Denis

Articulista da Revista Suíça de Ciências Psíquicas 

Presidente de Honra da União Espírita Francesa

Patrono da Sociedade Brasileira de Filosofia, cadeira nº 8

Léon Denis (1846-1927)

Filósofo, escritor, jornalista e conferencista francês

Estudioso e autor de história do cristianismo e espiritualismo científico

Extraído de:

Depois da Morte, de Léon Denis

A ALMA IMORTAL 

O estudo do universo nos conduz ao estudo da alma, à investigação do princípio que nos anima e dirige nossos atos.

A Fisiologia nos ensina que as diferentes partes do corpo humano se renovam em um período de alguns anos. Sob a ação de duas grandes correntes vitais, uma troca perpétua de moléculas se produz em nós; aquelas que desaparecem do organismo são substituídas uma a uma por outras provenientes da alimentação. Desde as substâncias moles do cérebro até as partes mais duras da estrutura óssea, todo nosso ser físico está submetido a contínuas mudanças. Nosso corpo se dissolve e se reforma numerosas vezes durante a vida. Entretanto, apesar dessas transformações constantes, através das modificações do corpo material, permanecemos sempre a mesma pessoa. A matéria de nosso cérebro pode se renovar, mas nosso pensamento subsiste e, com ele, nossa memória, a lembrança de um passado do qual nosso corpo atual não tinha participado. Há, portanto, em nós um princípio distinto da matéria, uma força indivisível que persiste e se mantém em meio a essas perpétuas mudanças.       

Sabemos que a matéria não pode por si mesma se organizar e produzir a vida. Desprovida de unidade, ela se desagrega e se divide ao infinito. Em nós, ao contrário, todas as faculdades, todas as potências intelectuais e morais se agrupam em uma unidade central que as abraça, liga-as e as esclarece; e esta unidade é a consciência, a personalidade, o eu, numa palavra, a alma. 

A alma é o princípio da vida, a causa da sensação; é a força invisível, indissolúvel, que rege nosso organismo e mantém o acordo entre todas as partes de nosso ser1. As faculdades da alma não têm nada em comum com a matéria. A inteligência, a razão, o julgamento, a vontade, não poderiam ser confundidos com o sangue de nossas veias ou a carne de nossos músculos. É o mesmo com a consciência, esse privilégio que temos de pesar nossos atos, de discernir o bem do mal. Essa linguagem íntima que se endereça a todo homem, ao mais humilde como ao mais elevado, esta voz cujos murmúrios podem perturbar o clarão das maiores glórias, não tem nada de material. 

Correntes opostas se agitam em nós. Os apetites, os desejos passionais aí se chocam contra a razão e o sentimento do dever. Ora, se nós não fôssemos mais que matéria, não conheceríamos essas lutas, esses combates; nós nos deixaríamos ir sem pesares, sem remorsos, para nossas tendências naturais. Ao contrário, nossa vontade está frequentemente em conflito com nossos instintos. Por ela, nós podemos escapar às influências da matéria, domá-la, fazer dela um instrumento dócil.

Não se veem homens, nascidos nas condições mais difíceis, superar todos os obstáculos, a pobreza, a doença, as enfermidades, e chegar à primeira ordem por seus enérgicos e perseverantes esforços? Não se vê a superioridade da alma sobre o corpo se afirmar de uma maneira mais clara ainda no espetáculo dos grandes sacrifícios e das dedicações históricas? Ninguém ignora como os mártires do dever, da verdade revelada antes da hora, como todos aqueles que, pelo bem da humanidade, têm sido perseguidos, supliciados, atados na forca, puderam, no meio das torturas, até o limiar da morte, dominar a matéria e, em nome de uma grande causa, impor silêncio às revoltas da carne!  

Se não houvesse em nós mais que matéria, nós não veríamos, quando nosso corpo está mergulhado no sono, o espírito continuar a viver e agir sem a ajuda de nenhum dos cinco sentidos, e nos mostrar por isso que uma atividade incessante é a condição própria de sua natureza. A lucidez magnética, a visão à distância sem o socorro dos olhos, a previsão de fatos, a penetração do pensamento, são outras tantas provas evidentes da existência da alma.  

Assim, portanto, fraco ou possante, ignorante ou esclarecido, um espírito vive em nós, rege esse corpo que mais não é, sob sua direção, que um servidor, um simples instrumento. Este espírito é livre e perfectível, por conseguinte, responsável. Ele pode à sua vontade se melhorar, transformar-se, tender para o bem. Confuso nuns, luminoso noutros, um ideal esclarece seu caminho. Quanto maior este ideal, mais as obras que ele inspira são úteis e gloriosas. Feliz a alma que um nobre entusiasmo sustenta em sua marcha: amor da verdade, da justiça, da pátria, da humanidade! Sua ascensão será rápida, sua passagem aqui embaixo deixará traços profundos, um sulco de onde brotará uma messe bendita.  

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Estabelecida a existência da alma, o problema da imortalidade se coloca desde logo. Essa é uma questão da maior importância, porque a imortalidade é a única sanção que se oferece à lei moral, a única concepção que satisfaz nossas ideias de justiça e responde às mais altas esperanças da raça humana.  

Se nossa entidade espiritual se mantém e persiste através da perpétua renovação das moléculas e das transformações de nosso corpo material, sua dissociação, seu desaparecimento final não poderiam atingi-la mais em sua existência.  

Vimos que nada se aniquila no universo. Quando a Química e a Física nos demonstram que nenhum átomo se perde, que nenhuma força se esvanece, como acreditar que esta unidade na qual se resumem todas as potências intelectuais, chegue a se dissolver? Como acreditar que esse eu consciente, em que a vida se desprende das cadeias da fatalidade, possa se aniquilar?

Não somente a lógica e a moral, mas ainda – assim como estabeleceremos mais adiante − os próprios fatos, fatos de ordem sensível, ao mesmo tempo fisiológicos e psíquicos, tudo concorre para provar a persistência do ser consciente: a alma se encontra no além do túmulo tal como ela própria se fez por seus atos e seus trabalhos no curso de sua existência terrestre.

Se a morte fosse a última palavra de todas as coisas, se nossos destinos se limitassem a esta vida fugitiva, nós teríamos essas aspirações para um estado melhor, para um estado perfeito, do qual nada sobre a terra pode nos dar a ideia? Teríamos esta sede de conhecer, de saber, que nada pode apaziguar? Se tudo cessasse no túmulo, por que essas necessidades, esses sonhos, essas tendências inexplicáveis? Esse grito poderoso do ser humano que retumba através dos séculos, essas esperanças infinitas, esses impulsos irresistíveis para o progresso e a luz, não seriam mais que os atributos de uma sombra passageira, de uma agregação de moléculas apenas formada, logo esvaída? O que é, portanto, a vida terrestre, tão curta que não nos permite mesmo, em sua maior duração, atingir os limites da ciência; tão plena de impotência, de amargor, de desilusão, que nela nada nos satisfaz inteiramente; a tal ponto que depois ter conseguido o objeto de nossos desejos, nós permanecemos insaciáveis e nos deixamos arrastar para um objetivo sempre mais longínquo, mais inacessível? A persistência que metemos em perseguir, apesar das decepções, um ideal que não é desse mundo, uma felicidade que nos foge sempre, é uma indicação suficiente de que há outra coisa mais que a vida presente. A natureza não poderia dar ao ser aspirações, esperanças irrealizáveis. As necessidades ilimitadas da alma reclamam forçosamente uma vida sem limites.

 

—  LÉON DENIS

Depois da Morte.

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Nota:

1 Isso, com a ajuda de um fluido vital, que lhe serve de veículo para a transmissão de suas ordens aos órgãos. Nós retornaremos mais adiante sobre esse terceiro elemento, que constitui o corpo sutil ou perispírito; esse sobrevive à morte e, inseparável da alma, acompanha-a em todas as suas peregrinações.

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