Luiz Gustavo Oliveira dos Santos

Discussão sobre as consequências políticas da ética de Nietzsche

Luiz Gustavo Oliveira dos Santos

Discussão sobre as consequências políticas das ideias éticas de F. Nietzsche

            Friedrich Nietzsche chegou a se considerar um continuador de Schopenhauer, defendendo, como ele, a primazia da vontade. Inicialmente, Nietzsche se preocupou com a cultura grega e sua influência no desenvolvimento da cultura ocidental. Para resumir seu pensamento e fazer relações com a política, bem como apresentar críticas, expressaremos sua visão acerca da relação entre o homem e seus impulsos naturais. Segundo ele, “existem dois elementos fundamentais e antagônicos: o espírito apolíneo, que representa a ordem, a harmonia e a razão, e o espírito dionisíaco, que representa o sentimento, a ação e a emoção” (CHALITA, 2006). Na cultura grega, o espírito apolíneo é o símbolo da luz, da razão e da beleza masculina, associado à música e à moralidade. O espírito dionisíaco ligava-se a Dionísio, deus grego do vinho e da fertilidade, símbolo do drama. O papel da filosofia seria, então, o de libertar o homem dessa tradição apolínea para fazê-lo encontrar-se com valores que sejam afirmativos de sua existência real, de sua vontade de poder, para que escape dos valores e crenças tradicionais, como aqueles pregados pelo cristianismo.

            Sócrates teria papel fundamental na afirmação do espírito apolíneo rejeitado por Nietzsche, pois o filósofo grego associou a moral ao comportamento, desvinculando-o do prazer natural que deveria ser buscado por todos. A parte mais significativa do pensamento de Nietzsche se refere precisamente à ética e à crítica da religião. Em sua obra Genealogia da moral, Nietzsche critica mordazmente a ética associada à religião judaica, mostrando como Moisés, libertador de escravos, manipulou a história ao pôr como apropriada a igualdade de fortes e fracos, de senhores e escravos, de modo a fazer pesar a consciência daqueles que dominam e oprimem. O cristianismo, com sua ética da compaixão, também seria apenas uma justificativa para inibir a vontade que afirma a vida, presente nos fortes e dominadores. Por isso Nietzsche avalia como muito melhor a parte do Antigo Testamento em que ocorreram as guerras de Josué e dos juízes contra os povos caananitas, do que a ética mortificadora do Novo Testamento, presente principalmente nas epístolas paulinas. 

            Assim Chalita (2006) resume a ética da superação de Nietzsche: 

Do seu ponto de vista, a verdadeira virtude é característica de uma minoria de indivíduos, que deve sobrepujar as massas medíocres, formadas por homens “inferiores”, que cultivam essencialmente o ressentimento. Acredita na disciplina e na força de vontade e vê a compaixão como uma fraqueza a ser combatida. 

            Em sua frontal discrepância com o cristianismo e o socratismo, Nietzsche rejeita qualquer distinção entre este mundo e outro, seja o mundo inteligível de Platão ou o paraíso cristão. Só este mundo é real, com suas cores e movimentos, em constante mudança. Sua postura perspectivista nega a possibilidade de atingirmos tais verdades inteligíveis e imutáveis. O real está em permanente transformação e se repete num eterno retorno.

            Por ser esta a característica da realidade, o homem tem apenas uma reação acertada no mundo: aceitar a vida como ela é. O eterno retorno tem como consequência ética o amor fati, isto é, o sentimento de que o que o homem sofre ou faz não deve trazer desgosto ou ressentimento, pois é a vontade de poder, impulso vital inescapável e afirmativo da existência dos seres, que leva a cabo todos os acontecimentos do mundo. Devemos, antes, amar os fatos a ponto de não nos angustiarmos caso ocorressem de novo eternamente. O eterno retorno é um teste para reconhecermos o grau de libertação do ressentimento a que chegamos.

Entretanto, a afirmação da vida não significa a aceitação do homem. Precisamente o estágio de “humanidade” deve ser superado. Os “homens” estão, desde Sócrates, inseridos no espírito apolíneo instaurado há cerca de 25 séculos. Este homem, agora, pode se libertar do jugo artificial e ilusório que pôs sobre si mesmo e fazer valer aquilo a que a natureza o impele por meio da vontade. A esta superação do “estágio humano” Nietzsche chama de “super-homem”, ou “além-homem”, expressão da vontade de poder. “Um líder guerreiro, altamente disciplinado, capaz de ser cruel quando as suas conquistas o exigirem; este é o perfil do super-homem de Nietzsche” (CHALITA, 2006). Tal super-homem é, então, alguém que não doma o seu espírito nem enfraquece a vontade de poder, agindo mesmo por meio do orgulho, da paixão, da cólera, dos instintos de guerra e de conquista.

Por este motivo, sua personagem Zaratustra, no livro Assim falou Zaratustra, aconselha com a força da verdade, diante da irracionalidade do mundo, a adotarmos uma dentre três posturas. Podemos ser fracos como o camelo, que carrega o ressentimento sobre as costas; fortes como o leão, que se revolta contra os valores inferiores; e inocentes como a criança, que “é capaz de esquecer, de recomeçar, de aceitar o jogo natural da criação e da vida” (idem). Esta última, a postura da “criança”, é aquela que faz nascer o super-homem, tendo já superado os estágios de “camelo” e de “leão”.

Podemos ver, a partir de agora, as consequências políticas do pensamento nietzscheano. Para tanto, devemos considerar a sua visão do direito, sobre o qual se fundamenta o Estado. É o próprio Nietzsche quem pergunta: “De onde surge (...) este poder súbito do Estado, cuja meta está além do exame e além do egoísmo do homem singular?” (NIETZSCHE, apud OLIVEIRA JR.). E esta é a sua resposta, incômoda para os defensores de um cordial pacto social: “É a violência que dá o primeiro direito, e não há nenhum direito que não seja em seu fundamento arrogância, usurpação, ato de violência” (idem).

            Segundo R. Jolivet (1966), a teoria do direito de Nietzsche faz “da ordem jurídica e da ordem moral o resultado da força”. Mas, sendo assim, “equivale isto a dizer que não há ordem moral propriamente dita, mas apenas um conjunto de fatos jurídicos, que ao homem se impõem de fora” (idem). A questão está em saber se o direito assim concebido ainda conserva um sentido e algum valor.

            Buscando um fundamento para a origem do direito na teoria de Nietzsche, só podemos nos deparar com a antiga ideia do “direito do mais forte”, conforme explicitado por ele mesmo em trecho acima, no qual defende que a violência é que dá o primeiro direito, e o Estado só pode se apoiar sobre esta violência para se constituir, sendo esta a práxis política derivada da ética de Nietzsche.

            Para fundamentar nossa linha de raciocínio, mencionamos o que afirma Jolivet (1966) sobre a antiguidade desta ideia do direito do mais forte, com proeminente presença no pensamento dos sofistas, como Cálicles. Este sofista declarava

que “mais poderoso, mais forte e melhor são uma só e mesma coisa” (cf. Platão, Górgias, 482c), e que os costumes públicos e as leis só protestam contra essa redução do direito à força porque o maior número dos homens, cônscios de sua fraqueza, imaginaram, para se proteger contra a força, uma pretensa regra moral comum a todos e que ordena o respeito de uma justiça fundada numa igualdade que já não existe na natureza (JOLIVET, 1966).  

            Podemos citar com pertinência um precioso trecho do discurso de Cálicles para conferir sua proximidade com o pensamento moderno de Nietzsche.

Segundo a natureza, tudo o que é mais mau é também mais feio. Sofrer uma injustiça é, portanto, coisa mais feia. Porém, segundo a lei, mais feio é cometê-la. E, com efeito, sucumbir sob a injustiça alheia não é próprio do homem, senão de vil escravo, para quem é mais vantajoso morrer do que viver, quando, sofrendo injustiças e afrontas, não está em condições de se defender a si mesmo, nem àqueles por quem se interessa. Quanto às leis, como, segundo penso, elas são obras dos mais fracos e da maioria, ao decretarem-nas só tiveram eles em consideração a si mesmos e seus interesses: se aprovam, se censuram algo, não têm outra coisa em vista. Para assustar os mais fortes, que poderiam ter mais que os outros, e para os impedir de chegar a isso, dizem eles que é coisa feia e injusta ter alguma vantagem sobre os outros, e que trabalhar para se tornar mais poderoso é fazer-se réu de injustiça. Tal é a razão por que, na ordem da lei, é injusto e feio procurar sobrepujar os outros, e por que se deu a isso o nome de injustiça. (CÁLICLES, cf. Platão, Górgias, 482c, e também República, 338c. seg., apud JOLIVET, 1966).

Nietzsche mostra toda a sua concordância com esta doutrina, bem expressa pelo trecho seguinte: 

A revolta dos escravos na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e procria valores: o ressentimento desses seres, a quem a verdadeira reação, a da ação, é vedada, e que só acham compensação numa vingança imaginária. Enquanto a moral aristocrática nasce de uma triunfal afirmação de si mesma, a moral dos escravos opõe desde o início um “não” ao que não faz parte dela, ao que é “diferente” dela, ao que é o seu “não-eu”, e esse “não” é o seu ato criador (NIETZSCHE, 2002). 

Construindo uma crítica, verificamos que, nessas teorias, nem mesmo se pode mais falar em direito, mas apenas de uma realidade, que é a força. A força é apenas um fato, um dado da realidade, não uma prescrição abstrata e universal que possa se tornar num imperativo ético. Conforme Adams (2006), fazer essa passagem seria cometer o que Hume chama de “erro categorial”, qual seja, o de passar da ordem do “é” para a ordem do “deve ser”, sendo este um procedimento normalmente feito pelos teóricos jusnaturalistas (que Nietzsche, aliás, combate). Assim observado, afirmamos que a hipótese de Cálicles e de Nietzsche é realmente contraditória: não consegue explicar nem a moral nem o direito, não servindo, portanto, para fundamentar qualquer teoria do Estado. O direito aqui, afirma R. Jolivet (1966), “acha-se esvaziado de todo conteúdo real. Porquanto, se o direito não passa de um fato que se justifica por sua própria existência, independentemente de toda norma superior a ele, já não há mais direito, pelo menos propriamente falando”.

Avancemos na análise da teoria nietzscheana com respeito ao surgimento da “moral dos fracos”. Parece que esta teoria, defendida no livro Genealogia da moral, nos introduz num domínio de pura ficção: em verdade, não há na história vestígios do tipo de desforra que os fracos teriam tomado sobre os fortes com as ideias de direito e de justiça. Esta suposição de Nietzsche é tão fictícia quanto o “estado de natureza” de Hobbes, ou o de Rousseau. Sem qualquer comprovação, mas apenas como elaboração teórica, Nietzsche não vai além do que fizeram os filósofos políticos iluministas e empiristas, ao dar a sua interpretação histórica da origem da moralidade como sendo resultante de uma “desforra original” dos fracos.

Além de ser apenas uma construção teórica (o que não traz nenhum problema, exceto se for assumido como realidade) esse fenômeno também é pouco compreensível, visto que, para que os fracos conseguissem impor o direito, teria sido necessário que eles fossem, de alguma forma, os mais fortes. Pode-se dizer que eles apenas persuadiram os mais fortes a submeter sua força às regras do direito e da justiça. Mas, para isto, teria sido preciso que eles tivessem sobre os mais fortes a superioridade da inteligência, o que ainda é uma força, e mesmo a principal. Apoiando-se sobre fatos históricos, verificamos que a moral da justiça e da igualdade foi que ganhou espaço na sociedade, seja por meio da religião, seja por meio das teorias éticas racionalistas (com Descartes, Locke, Rousseau, Kant, etc.). Ademais, por que Nietzsche não via nos mais ferrenhos inquisidores da Idade Média (ligados justamente ao cristianismo), exemplos vívidos da vontade de poder em ação? Enfim, conforme verificamos, a “força do direito” instituído foi uma vitória até hoje consagrada dos fracos sobre os fortes.

Para terminar a crítica, no que concerne à tentativa de Nietzsche de ir “para além do bem e do mal”, tecemos as seguintes considerações. Ainda que fosse verdade que o ressentimento e o instinto de vingança dos fracos tivessem originado as ideias morais, as avaliações morais das ações como sendo boas e más, que Nietzsche pretende superar, acabariam não sendo superadas absolutamente, pois as avaliações dos valores morais dos “escravos” pressupõem a distinção moral entre o bem o mal, ou seja, a anterioridade das avaliações morais. Jolivet (1966) comenta este ponto crítico considerando que a pretensão de Nietzsche de pôr fim à moral (superar as distinções morais entre bem e mal) padece do mesmo problema que ele quer resolver, visto que não se faz a moral “nascer da pura individualidade biológica, a não ser cumulando esta, antecipadamente, de todos os valores pessoais. Como se vê, há uma quase ingênua petição de princípio nessas doutrinas” (idem). Efetivamente, Nietzsche apenas pode julgar como má a doutrina corrente do bem e do mal utilizando um outro parâmetro de bem e mal. Como parece, Nietzsche jamais foi um niilista ético, pois apenas assentou os valores de bem e mal sobre o critério da vontade de poder.

Por fim, Nietzsche quase deixa entender que o melhor para a sociedade seria viver no estado de natureza, mas num estado de natureza hobbesiano de “guerra de todos contra todos”, sem o advento do desnaturado contrato social para inibir a vontade humana de se realizar. Este estado de natureza conflituoso parece ser um retrato compatível de uma sociedade de super-homens. No entanto, Nietzsche mesmo afirma que “sem Estado, no natural bellum omnium contra omnes, a sociedade não pode de modo algum lançar raízes em uma escala maior e além do âmbito familiar” (NIETZSCHE, apud OLIVEIRA JR.). Ora, então, sem a sujeição do direito imposto pelo Estado, não formaríamos mais que famílias no estado de natureza dionisíaco. A família seria a condição máxima de desenvolvimento social dos super-homens?

Talvez ainda seja cedo para desdobrar todo o alcance político da obra de Nietzsche, costurando as suas assertivas para compor uma visão coerente da condição do homem e sua relação com o Estado. Numa sociedade futura, composta por super-homens, talvez nem faça mais sentido o estabelecimento de um Estado, sendo este o fator de uma etapa tão somente humana e já há muito superada.

 

Prof. Luiz Gustavo Oliveira dos Santos

Professor de Filosofia (SEDF) 

Graduado em Filosofia (IESCO) 

Pós-Graduado em Filosofia Política (IESCO)

Mestrando em Filosofia da Religião (UnB)

  

Referências bibliográficas 

ADAMS, Ian; DYSON, R. W. David Hume. In 50 pensadores políticos essenciais. Trad. Mario Pontes. Rio de Janeiro: DIFEL, 2006. 

CHALITA, Gabriel. Vivendo a filosofia. 3. ed. São Paulo: Ática, 2006. 

JOLIVET, Régis. Tratado de filosofia, tomo IV: Moral. Trad. Gerardo Dantas Barretto. Rio de Janeiro: Agir, 1966.

MOSCA, Gaetano; BOUTHOUL, Gaston. História das doutrinas políticas desde a Antiguidade. Trad. Marco Aurélio de Moura Matos. 6. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987. 

NIETZSCHE, Friedrich W. A genalogia da moral. Trad. Joaquim José de Faria. 5. ed. São Paulo: Centauro, 2002.  

OLIVEIRA Jr., José A. de. A filosofia política de Nietzsche. s/d. Disponível em: <http://www.scribd.com/doc/10148474/a-filosofia-politica-de-nietzsche-por-jose-amorim-de-oliveira-junior>. Acesso em 1 out. 2009.  

SCHILLING, Voltaire. O pensamento de Nietzsche. s/d. Disponível em:  <http://educaterra.terra.com.br/voltaire/artigos/ nietzsche_ pensamento3.htm>. Acesso em 1 out. 2009.

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