Tomás de Aquino

O universo não existiu sempre

Tomás de Aquino (1225-1274)

Extraído de:

Suma Teológica, part. III, q. 46, a. 1, de Tomás de Aquino

O MUNDO EXISTIU OU NÃO EXISTIU SEMPRE? 

Objeções pelas quais parece que a totalidade das criaturas, que chamamos mundo, não começou a existir, mas existiu desde a eternidade: 

1. Tudo que começou a existir, antes de existir tinha a possibilidade de existir, porque, do contrário, seria impossível que existisse. Portanto, se o mundo começou a existir, era possível existir antes que existisse. No entanto, o que tem possibilidade de existir é a matéria, que tem potência de existir pela forma e de não existir pela privação da forma. Portanto, se o mundo começou a existir, antes dele havia matéria. Mas não pode haver matéria sem forma. A matéria do mundo junto com a forma é o que constitui o mundo. Consequentemente, haveria mundo antes que ele começasse a existir. Isto é impossível. 

2. Mais ainda. Nada que tenha capacidade de existir sempre, pode às vezes existir e às vezes não existir, porque, por natureza, cada ser existe tanto quanto pode. Mas todo incorruptível tem capacidade de existir sempre, pois não é determinado pela duração. Portanto, nada incorruptível às vezes existe e às vezes não existe. Porém, tudo que começa a existir às vezes existe e às vezes não existe. Por conseguinte, nada incorruptível começa a existir. Mas há muitas coisas incorruptíveis no mundo, como os corpos celestes e todas as substâncias intelectuais. Portanto, o mundo não começou a existir. 

3. Ainda mais. Tudo o que é não-gerado não começa a existir. Mas o Filósofo [Aristóteles] em Física, I, demonstra que a matéria é não-gerada. E, em Sobre Céu e Mundo, que o céu é não-gerada. Portanto, a totalidade das coisas não começou a existir. 

4. E mais. O vazio é um lugar onde não há corpo, mas pode haver. Se o mundo começou a existir onde agora está a massa do mundo, antes não havia nenhuma massa, do contrário, tampouco a haveria agora. Portanto, antes do mundo, havia vazio. Isto é impossível. 

5. Além disso. Nada começa a se mover novamente sem que se dê uma nova alteração no motor. Mas o que se altera se move. Portanto, antes que todo movimento novo comece a ser, havia algum movimento e, consequentemente, sempre houve algum movimento. Também houve sempre algum motor, porque não é possível o movimento sem motor. 

6. E também. Todo motor é natural ou voluntário. Nenhum começa a mover sem algum movimento prévio. Pois a natureza sempre opera do mesmo modo. Portanto, o agente natural não começa a mover com um movimento novo sem que haja alguma alteração anteriormente no motor. Do mesmo modo, a vontade pode alterar a realização do que se propõe, sem que haja alteração por sua parte. Mas não pode adiar esta execução sem imaginar alguma alteração, ao menos temporal. Exemplo: quem quer fazer uma coisa amanhã, e não hoje, espera que amanhã se dê alguma circunstância que não se dá hoje. Ou, pelo menos, espera que passe o hoje e chegue amanhã. Isto não se dá sem que se produza alguma alteração, porque o tempo é a medida do movimento. Portanto, deve-se concluir que, antes de todo movimento novo que se realiza, há outro movimento que o precede. Assim, resulta o mesmo que antes. 

7. Mais uma. O que está sempre no princípio e sempre no fim não pode nem começar nem acabar, porque o que começa não está em seu fim e o que acaba não está em seu começo. Mas o tempo está sempre em seu princípio e em seu fim, porque não há outro tempo que o agora, que é o fim do passado e o começo do futuro. Portanto, o tempo não pode nem começar nem acabar, e, por isso, tampouco o pode fazer o movimento, que é medido pelo tempo. 

8. Digamos também. Deus é anterior ao mundo só por natureza ou por duração. Se o é só por natureza, por ser Deus eterno, também o mundo existiria desde a eternidade. Se o é por duração, tanto o antes como o depois constituem o tempo. Portanto, houve tempo antes de existir o mundo. Isto é impossível. 

9. Mais outra. Estabelecida uma causa suficiente, segue-se o efeito. Pois a causa à qual não segue o efeito é uma causa imperfeita, que necessita de algo para que se siga dela um efeito. Mas Deus é causa suficiente do mundo. Causa final, devido a sua bondade. Causa exemplar, devido a sua sabedoria. Causa eficiente, devido a seu poder, tal como se demonstrou anteriormente (q. 44, a. 1, 3, 4). Portanto, existindo Deus desde a eternidade, também desde a eternidade existiu o mundo. 

10. Por último. Para uma ação eterna, efeito eterno. Mas a ação de Deus é sua própria substância, que é eterna. Portanto, o mundo é eterno. 

Ao contrário está o que se diz em João 17,5: “Glorifica-me, Pai, junto a Ti mesmo, com a mesma glória que eu tinha antes que existisse o mundo”. E em Provérbios 8,22: “O Senhor me colocou no começo de seus caminhos, antes que existisse qualquer coisa”. 

Solução. Deve-se dizer: Fora Deus, nada existe desde a eternidade. Sustentar isto não é contraditório. Pois ficou demonstrado anteriormente (q. 19, a. 4) que a vontade de Deus é causa das coisas. Portanto, na medida em que alguma coisa é necessária, o é enquanto Deus o quer, posto que a necessidade de um efeito depende da necessidade da causa, tal como [Aristóteles] diz em Metafísica, V. Também foi demonstrado anteriormente (q. 19, a. 3) que, em termos absolutos, não é necessário que Deus queira algo fora de si mesmo. Portanto, não é necessário que Deus quis que o mundo existisse sempre. Pois o mundo existe tanto quanto Deus queira que exista, porque a existência do mundo depende da vontade de Deus como causa. Por conseguinte, não é necessário que o mundo tenha existido sempre. Daí que tampouco se possa demonstrar sua existência eterna.

Os argumentos que Aristóteles oferece não são absolutos, mas relativos, isto é, para rebater os argumentos dos antigos, que sustentavam certos modos, de todo inadmissíveis, do começo do mundo. Isso é assim por três razões. 1) Primeira, porque tanto em Física, VIII, como em Sobre o Céu, I, já antecipa certas opiniões como a de Anaxágoras, Empédocles e Platão, contra as quais aduz argumentos contraditórios. 2) Segunda, porque sempre que fala deste assunto, traz à tona testemunhos dos antigos. Isso não é próprio de quem demonstra algo, mas de quem persuade com probabilidades. 3) Terceira, porque, como diz expressamente em Tópicos, I, há certos problemas dialéticos para os quais não temos argumentos demonstrativos, como, por exemplo, “se o mundo é eterno”. 

Resposta às objeções: 1. À primeira, deve-se dizer: Antes que o mundo existisse era possível existir, porém, não por alguma potência passiva, a matéria, mas pela potência ativa de Deus. Também se diz que algo é absolutamente possível não por alguma potência, mas pela exclusiva relação de termos que não implicam contradição. Assim, possível se opõe a impossível, como nos consta pelo Filósofo [Aristóteles] em Metafísica, V. 

2. À segunda, deve-se dizer: O que tem capacidade de existir sempre, não é possível que às vezes exista e às vezes não exista. No entanto, antes de ter tal capacidade, não existia. Este argumento sustentado por Aristóteles, em Sobre o Céu, I, não leva à conclusão absoluta de que o incorruptível não tenha começado a existir, mas que não começou a existir segundo o modo natural como começa a existir o que é gerável e corruptível. 

3. À terceira, deve-se dizer: Aristóteles, em Física, I, demonstra que a matéria é não-gerada porque não tem um sujeito do qual seja feita. Em Sobre Céu e Mundo, I, demonstra que o céu é não-gerado porque não tem um contrário do qual se origine. De tudo isso se conclui apenas que a matéria e o céu não começaram por geração, como sustentavam alguns, em especial acerca do céu. Nós, em vez disso, sustentamos que a matéria e o céu foram feitos por criação, tal como dissemos (q. 45, a. 2). 

4. À quarta, deve-se dizer: Para o conceito de vazio, não é suficiente que não haja nada, mas exige-se a existência de algum espaço com capacidade, no qual não haja nada, como nos consta por Aristóteles em Física, IV. Nós sustentamos que, antes que o mundo existisse, não havia nem lugar nem espaço. 

5. À quinta, deve-se dizer: O primeiro motor permaneceu sempre imóvel. Mas não o primeiro móvel, que começou a existir depois de não haver existido. No entanto, isso não se deu por uma alteração, mas por criação, que não é alteração, como dissemos anteriormente (q. 45, a. 2, ad. 2). De onde se deduz que o argumento que Aristóteles oferece em Física, VIII, vai contra aqueles que sustentavam a existência de seres móveis eternos, mas não contra o movimento eterno. Assim pensavam Anaxágoras e Empédocles. Nós sustentamos que, desde que começou a haver seres móveis, sempre houve movimento. 

6. À sexta, deve-se dizer: O primeiro agente é agente voluntário. E, ainda que eternamente tivesse a vontade de produzir algum efeito, nem por isso produziu algum efeito eterno. Tampouco é necessário pressupor alguma alteração, nem sequer com respeito à representação do tempo. Pois é necessário conceber de um modo distinto o agente particular, que pressupõe algo e causa algo, e o agente universal, que produz tudo. Pois, assim como o agente particular produz a forma, ele pressupõe a matéria. Daí que seja necessário que a forma mantenha certa proporção com a matéria. Pelo que se supõe racionalmente que ele aplica a forma a tal matéria, e não a outra, em virtude da diferença que há entre uma matéria e outra. Porém, isso não é aplicável racionalmente a Deus, que produz tanto a forma como a matéria; somente é aplicável na medida em que produz a matéria adaptada à forma e ao fim. O agente particular supõe o tempo como também a matéria. Daí se ter presente que o agente opera em um tempo posterior, e não no anterior, motivo pelo qual concebemos o tempo a partir da sucessão. Porém, com respeito ao agente universal, que produz o ser e o tempo, não se deve supor que opere agora e não antes, a partir da concepção do tempo, como se necessitasse do tempo, pois atuou quando quis e quando o acreditou conveniente para demonstrar seu poder. Com mais evidência se chega ao conhecimento do poder divino criador se se pensa que o mundo não existiu sempre, do que se ele existiu sempre. Pois é evidente que tudo aquilo que não existiu sempre, teve causa. Mas isso não resulta tão evidente naquilo que sempre existiu. 

7. À sétima, deve-se dizer: Tal como [Aristóteles] diz em Física, IV, o antes e o depois se dão no tempo, como o anterior e o posterior se dão no movimento. Portanto, o princípio e o fim devem ser concebidos no tempo e no movimento. Suposta a eternidade do movimento, é necessário que qualquer momento no movimento seja tomado como princípio e como fim; o que não sucederia se o movimento tivesse começo. O mesmo se deve dizer do agora do tempo. Desse modo, resulta evidente que aquele argumento que fala do agora, que sempre é princípio e fim do tempo, pressupõe a eternidade do tempo e do movimento. Daí que Aristóteles apresente este argumento em Física, VIII, contra aqueles que sustentavam a eternidade do tempo, mas negavam a eternidade do movimento.

8. À oitava, deve-se dizer: Deus é anterior ao mundo em duração. Porém, aí, esse antes não indica anterioridade temporal, mas se refere à eternidade. Também se pode dizer que indica a eternidade do tempo pensado, mas não realmente existente. Assim como quando se diz que sobre o céu não há nada, este sobre indica só um lugar imaginado, na medida em que é possível imaginar que às dimensões dos corpos celestes se adicionam outras. 

9. À nona, deve-se dizer: Assim como o efeito segue à causa por natureza segundo o modo de sua forma, assim também o efeito da causa que atua voluntariamente se segue dela em conformidade com a forma preconcebida e determinada, como se deduz do que foi dito anteriormente (q. 19, a. 4; q. 41, a. 2). Assim, ainda que Deus desde a eternidade fosse causa suficiente do mundo, no entanto, não é necessário supor que o mundo foi produzido por Deus, a não ser na medida em que foi predeterminado por sua vontade. Isto é, que o mundo começou a existir depois de não existir para que, assim, proclamasse de forma mais clara seu Autor. 

10. À décima, deve-se dizer: Estabelecida uma ação, segue-se o efeito em conformidade com a exigência da forma, que é princípio da ação. Nos agentes voluntários, o que foi preconcebido e determinado é tomado como a forma, que é princípio da ação. Assim, da ação eterna de Deus não se deduz um efeito eterno, mas tal como Deus o quis, ou seja, que começasse a existir depois de não existir.

 

—  Tomás de Aquino

Suma Teológica, parte 3, q. 46, art. 1.

  

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