Gottfried W. Leibniz

O problema do mal: o mal é uma provação do bem

Gottfried W. Leibniz (1646-1716)

Extraído e adaptado de:

Teodiceia, de Leibniz.

O MAL É UMA PRIVAÇÃO DO BEM

29. E quanto ao concurso físico, deve-se ter em conta esta verdade, que tanto barulho fez nas escolas desde que Santo Agostinho a declarou: que o mal é uma privação do ser, enquanto a ação de Deus vai para o positivo. Esta resposta soa como um subterfúgio e até como uma coisa quimérica para muitas pessoas. Mas eis aqui um exemplo bastante patente que deverá tirá-las de seu erro.

 

30. O célebre Kepler e o Sr. Descartes (em suas cartas) falaram da “inércia natural dos corpos”; e isto é uma coisa que pode ser considerada como uma perfeita imagem e até como um exemplar da limitação original das criaturas, para mostrar que a privação constitui o formal das imperfeições e das desvantagens que se encontram tanto nas substâncias como em suas ações.

Suponhamos que a correnteza de um mesmo rio arrasta muitos barcos, que só se diferenciam uns dos outros pela carga, uns levando madeira, outros pedra, uns mais, outros menos. Assim sendo, acontecerá que os barcos mais carregados avançarão mais lentamente que os outros, supondo que não os auxiliem nem o vento nem os remos, nem nenhum outro meio semelhante. Não é propriamente o peso a causa desse retardo, posto que os barcos descem em vez de subir; mas é a mesma causa que aumenta também o peso nos corpos que têm mais densidade, quer dizer, que são menos esponjosos e estão mais carregados da matéria que lhes é própria, porque a que passa através dos poros, como não recebe o mesmo movimento, não deve ser considerada. Isso decorre, portanto, de que a matéria é levada originariamente ao retardo ou lentidão de movimento, isto é, à privação da velocidade, não reduzindo-a sozinha quando já recebeu esta velocidade, porque isso seria ação, e sim moderando, por sua receptividade, o efeito da impressão quando deve recebê-la. Por conseguinte, como quando o barco está mais carregado há mais matéria movida pela mesma força da correnteza, é preciso que avance mais lentamente. As experiências sobre colisão dos corpos, examinadas à luz da razão, mostram que é preciso empregar o dobro de força para dar uma mesma velocidade a um corpo da mesma matéria, mas duas vezes maior, o que não seria necessário se a matéria fosse absolutamente indiferente ao repouso e ao movimento, e se não tivesse essa inércia natural de que acabamos de falar, em virtude da qual tem uma espécie de repugnância a ser movida.

Comparemos agora a força que a correnteza exerce sobre os barcos, e que comunica a eles, com a ação de Deus, que produz e conserva o que há de positivo nas criaturas, dando a elas perfeição, ser e força; comparemos, digo, a inércia da matéria com a imperfeição natural das criaturas, e a lentidão do barco carregado com a falta que se encontra nas qualidades e na ação da criatura, e encontraremos que nada é tão exato como essa comparação. A correnteza é a causa do movimento do barco, mas não de seu retardo; Deus é a causa da perfeição da natureza e das ações das criaturas, mas a limitação da receptividade da criatura é a causa dos defeitos que há em sua ação.

E assim, os platônicos, Santo Agostinho e os escolásticos tinham razão em dizer que Deus é a causa do material do mal, que consiste no positivo, e não do formal, que consiste na privação. Assim como se pode dizer que a correnteza é a causa do material do retardo, sem sê-lo do formal; quer dizer, é a causa da velocidade do barco, sem ser a causa dos limites dessa velocidade. E Deus está tão distante de ser a causa do pecado, como a correnteza do rio de ser a causa do retardo do barco. Ademais, a força é para a matéria o que o espírito é para a carne; o espírito está pronto e a carne está fraca, e os espíritos agem... quantum non noxia corpora tardant [à medida que os corpos nocivos não os retardam].

 

31. Há uma relação igual entre tal e qual ação de Deus, e tal e qual paixão ou recepção da criatura, que só se aperfeiçoa no curso normal das coisas na medida de sua “receptividade”, como é chamada. E quando se diz que a criatura depende de Deus tanto no que ela é quanto em como ela age, e que a conservação é uma criação contínua, é o mesmo que dizer que Deus dá sempre à criatura e produz continuamente o que há nela de positivo, de bom e de perfeito, posto que todo o perfeito procede do Pai das luzes.

Por outro lado, as imperfeições e os defeitos das ações procedem da limitação original que a criatura não podia deixar de receber na primeira origem de sua existência, em virtude das razões ideais que a limitam. Porque Deus não podia lhe dar tudo sem fazer dela um Deus; assim, era preciso que houvesse diferentes graus na perfeição das coisas, e que houvesse também limitações de todas as classes.

 

32. Esta consideração servirá também para contestar alguns filósofos modernos que chegam a dizer que Deus é o único agente. É certo que Deus é o único cuja ação é pura e sem mistura do que é chamado “padecer”; mas isso não impede que a criatura tenha parte também nas ações, posto que a ação da criatura é uma modificação da substância que se esvazia naturalmente nelas e que encerra uma variação não só nas perfeições que Deus comunicou a ela, mas também nas limitações que tem em si mesma, por ser ela o que é. O que faz ver igualmente que há uma distinção real entre a substância e suas modificações e acidentes, contra o que opinam alguns escritores modernos e particularmente o falecido Duque de Buckingham, que se ocupou deste ponto num pequeno Discurso sobre a Religião impresso recentemente.

Por conseguinte, o mal é como as trevas; e não só a ignorância, mas também o erro e a malícia consistem formalmente numa espécie de privação. Eis aqui um exemplo de erro, de que já nos servimos. Vejo uma torre que parece redonda de longe, embora seja quadrada. O pensamento de que a torre é o que parece decorre naturalmente do que vejo; e quando me fixo nesse pensamento, resulta uma afirmação, um juízo falso; mas, se levo mais além o exame, e a reflexão me faz ver que as aparências me enganam, sairei de meu erro. Permanecer em certo lugar, ou não caminhar adiante sem tratar de fazer alguma observação, não são mais que privações.

 

33. O mesmo acontece quanto à malícia ou à má vontade. A vontade, por tender para o bem em geral, deve caminhar para a perfeição que nos convém, e a suprema perfeição está em Deus. Todos os prazeres têm em si mesmos algum sentimento de perfeição. Mas quando alguém se limita aos prazeres dos sentidos ou a outros, com prejuízo de bens maiores, como a saúde, a virtude, a união com Deus, a felicidade, é nessa privação de uma tendência ulterior que consiste a falta. Em geral, a perfeição é positiva, é uma realidade absoluta; o defeito é privativo, nasce da limitação e tende a privações novas.

E, assim, há um ditado que é tão verdadeiro como antigo: Bonum est ex causa integra, malum ex quolibet defectu [O bem procede de uma causa total – isto é, totalmente boa –, o mal, de qualquer defeito]; como igualmente o que diz: Malum causam habet non eficientem, sed deficientem [A causa do mal não é eficiente, mas deficiente]. Creio que se compreenderá melhor o sentido destes axiomas depois do que acabo de dizer.

 

—  Gottfried W. Leibniz

Teodiceia, II, 29-33.