Prof. Guilherme O. dos Santos

Ensaio sobre o ateísmo com base nas leis da conservação

Guilherme O. dos Santos

Texto escrito em 14.05.2009, 

publicado em 15.12.2010,

revisado e atualizado em 01.09.2017.

Ensaio sobre o ateísmo com base nas Leis da Conservação

“Na natureza, nada se cria e nada se perde, tudo se transforma”, afirmou Lavoisier, em 1789, ao definir o princípio de conservação da matéria após vários estudos relacionados à combustão e calcinação do oxigênio. As leis da física que se desenrolaram a partir dos estudos de Lavoisier culminaram nas leis da termodinâmica, as quais têm reforçado que não apenas a matéria se mantém, mas também a energia em seu sentido mais amplo. Tais leis não excluem Deus do universo como seu Criador?

 S. Tomás de Aquino, em sua Terceira Via, na Suma Teológica, pretende provar a existência de Deus a partir da “contingência dos seres”, defendendo que, na natureza, existem coisas que nascem e perecem, ou seja, que podem ser e não ser, o que significa que poderiam existir ou não, já que não têm em sua essência a existência. Nas palavras do filósofo:

Encontramos, entre as coisas, as que podem ser ou não ser: com certeza, encontram-se algumas que nascem e perecem, consequentemente, podem ser e não ser. É impossível, para tudo de tal natureza, sempre ser: pois o que pode não ser, em algum momento não é. Então, se tudo pode não ser, houve um momento em que nada havia. Mas, se isso é verdadeiro, ainda agora nada existiria: pois o que não é, não começa a ser senão por meio de algo que já é. Por conseguinte, se não havia nenhum ente, seria impossível que algo começasse a ser, e, desse modo, nada existiria: o que é falso. Logo, nem todos os entes são possíveis: mas é preciso que algo seja necessário entre as coisas. Tudo, pois, que é necessário, ou tem a causa de sua necessidade em outro, ou não tem. Aqui também não é possível proceder até o infinito na série dos necessários que têm uma causa da sua necessidade, assim como nas causas eficientes, como está provado. Logo, é preciso afirmar algo que seja necessário por si, que não tenha a causa de sua necessidade em outro, mas que seja causa da necessidade para os outros: o que todos chamam Deus. (Tomás de Aquino, Suma Teológica, parte 1, q. 2, art. 3.)

Analisando o princípio da conservação de energia no contexto termodinâmico, físicos da modernidade como Joule, Carnot, Émile Clapeyron e outros concluíram, em síntese, que “a energia não é criada ou destruída, mas convertida em outra forma”. Assim, o caráter contingente que geralmente se atribui às coisas, conforme se lê acima na afirmativa “o que pode não ser, em algum momento não é”, deve-se apenas à forma que essas possuem em um determinado momento, de modo que elas não deixam jamais de existir enquanto matéria. Isto é, a matéria e a energia, como um todo, não são contingentes, mas apenas o são as coisas formadas por elas. Portanto, contrariando o argumento tomista, a matéria e a energia poderiam ser consideradas eternas no universo.

Desta observação, infere-se que o universo não precisa de um Primeiro Motor ou um Deus eterno e infinito, uma vez que este espaço infinito de tempo que é preenchido por Ele pode, tendo como base as leis de conservação de massa e de energia, ser preenchido por uma eterna sucessão de causas e efeitos, conforme será melhor explicado mais adiante.

Uma vez que se admite que Deus possa ser eterno, não se poderia igualmente admitir o universo como tal? Teístas argumentariam que não, da mesma forma que não se poderia supor que as águas de um rio estivessem se movendo se não existisse uma nascente, por mais extenso que fosse este rio; por analogia, isso colocaria em xeque a existência do movimento e de todas as coisas do universo. É necessário um primeiro motor (imóvel) para se explicar a existência do movimento. Aristóteles explica, na Metafísica, que movimento é a passagem de um estado de poder vir a ser (a que chamou potência) para um estado de ser (a que chamou ato). Tal constatação nos conduziria, segundo o filósofo, à certeza necessária de um gerador desse movimento, que o filósofo chamou de Motor Imóvel. Este Motor Imóvel é semelhante ao que entendemos por Deus. S. Tomás de Aquino baseou sua Primeira Via para a existência de Deus neste raciocínio de Aristóteles. Nas palavras do filósofo:

É certo, e nossos sentidos constatam, que algumas coisas se movem neste mundo. Ora, tudo que se move é movido por outro. Nada é movido que não esteja em potência em relação ao fim de seu movimento; ao contrário, o que move o faz enquanto está em ato. Portanto, mover nada mais é do que levar algo da potência ao ato. Nada pode ser levado da potência ao ato, a não ser por um ente em ato. Algo quente em ato, como o fogo, torna a madeira, que é quente em potência, quente em ato, e assim a move e altera. Não é possível que o mesmo ser, sob o mesmo aspecto, esteja simultaneamente em ato e potência, a não ser sob aspectos diversos: por exemplo, o que é quente em ato não pode ser simultaneamente quente em potência, mas é frio em potência. É impossível que, sob o mesmo aspecto e do mesmo modo, algo seja motor e movido, ou que mova a si mesmo. É preciso que o que se move seja movido por outro. Se o que move também é movido, necessariamente é movido por outro; e este, ainda por outro. Aqui, porém, não se pode proceder até o infinito: pois assim não haveria um primeiro motor; e, por conseguinte, tampouco outros motores, pois os motores segundos não se movem, a não ser pelo movimento do primeiro motor; como uma bengala não se move, a menos que seja movida pela mão. Logo, é necessário chegar a um primeiro motor, que por nenhum outro é movido: e este, todos entendem ser Deus. (Tomás de Aquino, Suma Teológica, parte 1, q. 2, art. 3).

Nota-se, no meio do argumento supracitado, a seguinte premissa: “Aqui, porém, não se pode proceder até o infinito: pois assim não haveria um primeiro motor”. Entretanto, como se pode admitir a possibilidade de Deus com tanta facilidade, se o problema da ausência de um início no tempo pode ser atribuído igualmente à existência de Deus eterna, ou seja, sem uma origem? Se há uma “falha” de raciocínio (ou algum tipo de “fé”) ao admitir o universo como eterno por parte dos ateus, tal “falha” também está presente no raciocínio dos teístas lógicos e criacionistas ao admitir Deus como eterno. Colocá-lo como a origem é simplesmente dar um nome bonito (e cristão) para um problema que permanece sem solução. A única coisa que torna as teorias teístas mais sedutoras é a cultura. Isto é o que se chama “Deus das lacunas”: preenche-se o que ainda não se sabe explicar com milagres sobrenaturais, para confortar nossa ignorância com uma explicação que tem como base o mistério.

O ponto de conflito aqui proposto entre ambos os raciocínios (ateu e teísta) situa-se na suposta necessidade de se atribuir uma origem ao movimento, que perdura na eterna sucessão de causas e efeitos do universo (no caso do argumento ateu, que sugere um “universo eterno”), e, por outro lado, uma origem para Deus (no argumento teísta, o que sugeriria novamente uma eterna sucessão de causas e efeitos). Ignoramos, aqui, a fé cega e irrefletida de que Deus seja eterno, uma vez que tal postura não seria proveitosa em termos filosóficos, já que incide numa circularidade que parte da crença cega de que Deus existe e conclui serem essas questões “mistérios de Deus” (ou seja, parte da crença e termina na crença), o que limitaria a busca por uma explicação racional mais acessível ao nosso limitado entendimento.

Ora, se “na natureza, nada se cria e nada se perde”, e Deus é a origem de todas as coisas, então, Este seria também o criador de tal lei e, ao mesmo tempo, o primeiro a infringi-la. Onde estaria, então, o “Lógos”, o “grau máximo” da coerência e da inteligência divina? Seria este “Deus” o Gênio Maligno de Descartes?

Alguns teístas defendem ainda que, como todo sistema tende à perda de energia, conforme dita a lei de entropia, o universo, como um todo, também tende a isto e, do mesmo modo que um dia se tornará inerte, houve tempo em que o era, sendo necessário um ser não material, acima destas leis, que dê início à sequência de fenômenos observáveis na natureza. Isaac Asimov, estudioso, escritor de obras de ficção e de divulgação científica, explica:

A Segunda Lei da Termodinâmica afirma que a quantidade de trabalho útil que você pode obter a partir da energia do universo está constantemente diminuindo. Se você tem uma grande porção de energia em um lugar, uma alta intensidade dela, você tem uma alta temperatura aqui e uma baixa temperatura ali, então, pode obter trabalho dessa situação. Quanto menor for a diferença de temperatura, menos trabalho você pode obter. Então, de acordo com a Segunda Lei da Termodinâmica, há sempre uma tendência para as áreas quentes se resfriarem e as áreas frias se aquecerem ― assim, cada vez menos trabalho poderá ser obtido. Até que, finalmente, quando tudo estiver numa mesma temperatura, você não poderá mais obter nenhum trabalho disso, mesmo que toda a energia continue lá. E isso é verdade para TUDO em geral, em todo o universo. (The Origin of the Universe, em Origins: How the World Came to Be, série em vídeo, Eden Communications, EUA, 1983.)

Asimov faz uma excelente explicação sobre a tendência da entropia crescente e de suas consequências. Inclusive, vários textos criacionistas, com base em tais ideias, concluem que, se o universo tende à perda de energia e a entropia sugere a passagem de uma situação em que há maior ordem (menor entropia) para outro de menor ordem (maior entropia), então a evolução deve ser um fenômeno que foge completamente às leis da física, de modo que Deus deve ser a inteligência por trás da ordem dos fenômenos num mundo onde a tendência seria o oposto.

Esta seria uma argumentação brilhante, se não fosse a impropriedade cometida ao se fazer uma associação direta entre entropia termodinâmica e a ordem ou desordem de sistemas (erro no qual incorreu, inclusive, o próprio Asimov em outros textos muito citados por criacionistas, apesar de ter sido feliz na citação destacada acima), pois a termodinâmica não trata da ordem ou desordem entre sistemas, mas apenas da transferência de energia entre sistemas abertos. A evolução que se percebe nos seres vivos, por exemplo, não fere a lei da entropia. Por mais que possam haver corpos que tendam a se tornar cada vez mais “organizados”, de acordo com as teorias evolucionistas, esses corpos tendem também, e por isso mesmo, a perder mais energia para outros sistemas do que outras formas “menos organizadas”, como os seres unicelulares, por exemplo, que gastam muito menos energia isoladamente do que as células que formam corpos mais complexos. Contudo, em sistemas fechados, não há perda de energia segundo as leis de conservação. O universo, como um todo, funciona como um sistema fechado, portanto, não há perda de energia para outro sistema. Ele pode ter sempre existido e, por mais que tenda ao equilíbrio, conforme a explicação de Asimov, não necessita de Deus para criá-lo.

Alguns defensores criacionistas argumentam que, como a ciência considera que o surgimento do universo se deu a partir de uma explosão inicial, o Big Bang, este não pode ter acontecido “do nada”, sendo, portanto, necessário um ser todo-poderoso capaz de fazê-lo.

É importante destacar, para entendermos a falha do raciocínio criacionista acima, que existem atualmente diversos modelos cosmogônicos e cosmológicos para explicar como esta energia se mantém no universo. Um desses é o modelo do “universo oscilante”. A teoria sustenta que o universo é muito mais antigo do que o Big Bang. Esta explosão “inicial” é apenas mais uma das inúmeras explosões que aconteceram no universo até aqui, pois, daqui a alguns bilhões de anos, toda a massa do universo tenderá a se aglomerar novamente, quando a atração gravitacional entre os corpos celestes for maior do que a energia da explosão que causou a expansão do universo. Isso culminará num Big Crunch, quando o universo entrará em colapso pela enorme concentração de energia, causando uma nova explosão, ou seja, um novo Big Bang. Assim, não havendo perda de energia para outros sistemas, o universo como um todo seria o único verdadeiro moto-perpétuo.

Tal teoria está em conformidade com as mais atuais descobertas na física, apesar de ser também confrontada pela teoria do Big Rip (“grande ruptura”, em português), ou Big Freeze, segundo a qual a atração gravitacional entre os corpos jamais vencerá a expansão do universo, o que conduz a uma expansão eterna deste. E a energia, que se manteria a mesma, conforme as leis da termodinâmica, tenderia a se resfriar infinitamente até que todos os átomos se desintegrassem, pois toda a matéria estaria cada vez mais esparsa, o que causaria a conhecida “morte térmica” do universo, uma “morte do tempo”. Isso ocorreria não porque a energia do universo se perderia, mas porque o universo estaria se expandindo, enquanto a energia se mantém a mesma, o que faz a temperatura cair. É como imaginarmos um balão de ar. Se fosse possível expandirmos infinitamente o balão (sem que estourasse) mantendo a mesma quantidade de ar, o que aconteceria? Apesar de haver a mesma quantidade do início, este ar seria tão pouco espalhado dentro do balão que, matematicamente, tenderia ao zero, assim como a temperatura num universo em eterna e infinita expansão.

Ambas as teorias científicas acima trazem respaldo para a possibilidade de um universo eterno, seja numa “pulsação” eterna (conhecida como Big Bounce, na teoria do “universo oscilante”), seja num Big Rip, pois o universo pode ter vindo de outros Big Bangs nos quais não houve um Big Rip. Portanto, Deus não é “necessário” para a existência do universo como o conhecemos, pois este pode ser eterno, o que, mais uma vez, contraria a ideia apresentada na Primeira Via de S. Tomás de Aquino, no início do texto, que conclui que “não se pode proceder até o infinito: pois assim não haveria um primeiro motor”. Assim, fica refutado o argumento criacionista.

Na sua Quinta Via, S. Tomás de Aquino chega à conclusão de que o universo é organizado; logo, deve haver uma inteligência que governa o mundo, afinal, o mundo sozinho, carregado apenas de matéria, não poderia se desenvolver e “evoluir” sem uma causa inteligente que crie as leis que regem o universo. Assim o filósofo desenvolve:

Vemos, com efeito, que algumas coisas carentes de conhecimento, como os corpos naturais, operam em vista de um fim: o que se manifesta pelo fato de que, sempre ou frequentemente, operam do mesmo modo, a fim de conseguirem o melhor. Fica claro que não é por acaso, mas por uma intenção que chegam ao fim. Aquilo, pois, que não tem conhecimento não tende a um fim, a não ser dirigido por algum conhecedor e inteligente, como a flecha pelo arqueiro. Logo, existe algo inteligente, pelo qual todas as coisas naturais são ordenadas ao fim: e a isso chamamos Deus. (Tomás de Aquino, Suma Teológica, parte 1, q. 2, art. 3.)

Seguindo este raciocínio, S. Tomás conclui que, se existem leis e evolução, então existe ordem. Alguns criacionistas ainda acreditam que Deus e teorias evolucionistas são incompatíveis, quando, por este argumento, tal conflito deixa de existir desde que S. Tomás o desenvolveu, uma vez que a evolução dos seres poderia caminhar tranquilamente ao lado da crença em Deus.

Não obstante, é notável que a presença de leis naturais não traz consigo necessariamente uma concepção de mundo organizada, de modo que as leis de conservação não só ignoram, como excluem totalmente a possibilidade de um Deus criador e organizador do mundo, conforme foi explicado.

        As leis da natureza (da física) são meras características do universo, e estas, segundo as mais recentes descobertas da física, seriam outras caso a “singularidade” (termo que, na física, designa fenômenos tão extremos que as equações não são mais capazes de descrevê-los) do surgimento do universo tivesse ocorrido de outro modo. Inclusive, a principal ideia por trás da teoria quântica do “universo oscilante” é que, como a densidade naquele momento se aproxima do infinito, o comportamento da “espuma quântica” (como é chamada a matéria naquela forma, bem diferente da conhecida devido à situação extrema) muda. Todas as então chamadas constantes físicas fundamentais, incluindo a velocidade da luz no vácuo, não seriam constantes no Big Crunch, especialmente no intervalo de elasticidade de 10-43 segundo antes e depois do ponto de inflexão. Ou seja, as “leis” da física são determinadas pela forma como acontecem as reações na “singularidade”, no momento da geração do universo, não por Deus.

É muito comum uma ordem aparentemente surpreendente aparecer naturalmente em processos geológicos, como é o caso da Calçada dos Gigantes (Giant’s Causeway), na Irlanda do Norte, onde grandes colunas de pedra apresentando divisões perfeitamente hexagonais, dando a impressão de terem sido projetadas, foram formadas quando o magma incandescente chegou à superfície da Terra e se resfriou. Esta não passa de uma característica das rochas. Porém, alguns poderiam dizer que estas têm os lados “perfeitamente” hexagonais porque há uma “Inteligência Divina” que as alisou e, assim, atribuir uma “ordem” ou “perfeição” ao fato de as rochas serem hexagonais e lisas. Isso seria totalmente arbitrário, tal como é arbitrário julgar o mundo como organizado, simplesmente por possuir leis naturais. Qualquer concepção “organizada” do mundo não passa de mero modo de ver, arbitrário.

 Sendo assim, ambas as teorias (teísta e ateísta) seriam, no mínimo, equivalentes num sentido filosófico, pois, tal como Deus poderia ser eterno, o universo poderia ter se sustentado sozinho na eternidade. Entretanto, há um diferencial: as Leis de Conservação são científicas e sustentadas, não na fé, mas na observação, no escrutínio das leis que regem a natureza e, além de sugerirem uma autossuficiência do universo, descartam a possibilidade de Deus em sua base.

  

Prof. Guilherme Oliveira dos Santos

   Formado em Filosofia (IESCO)

   Pós-Graduado em Filosofia Política (IESCO)

   Prof. de Filosofia do Colégio Militar D. Pedro II (Brasília-DF)

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