Tomás Antônio Gonzaga

Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810)

Extraído e adaptado de:

Tratado de Direito Natural, de Tomás Antônio Gonzaga

DA EXISTÊNCIA DE DEUS

Ainda que não haja uma só causa, de que não se deduza a existência de Deus, Epicuro, Spinoza e outros ímpios que se compreendem no genérico nome de “ateus”, negaram detestavelmente esta incontrovertível verdade. Este erro é o mais nocivo à sociedade dos homens, pois os deixa despidos de qualquer obrigação, à semelhança dos brutos, a quem fez a natureza destituídos do discurso e da razão. Que coisa mais necessária para a honestidade da vida que o reconhecermos que há de haver um juiz a quem não engana o oculto, as ações torpes ofendem e as virtudes agradam1? Seria o mundo um abismo de confusões e desordens, se, tirado o temor do castigo, só servisse de regra às ações do homem a sua própria vontade. Como, pois, a existência de Deus é a base principal de todo o Direito, será justo que a mostremos com razões físicas, metafísicas e morais. 

1. Uma demonstração física da existência de Deus é a necessidade que temos de um Ente em que tenham princípio todas as coisas que vemos, pois, como não podiam dar a si próprias o ser, havemos necessariamente confessar que há um princípio incriado, causa da existência de todas. Esta verdade se faz evidente por meio da seguinte reflexão. Ou na coleção geral das causas de que tudo procede se dá uma causa incriada, ou todas são criadas. Se se dá uma causa incriada, há Deus; se não há causa incriada, então ou todas são criadas por si mesmas ou por outra que exista fora de semelhante coleção. Por si próprias não pode ser, pois ninguém pode ser causa da sua mesma existência; por outra, menos, pois fora da coleção de todas não a devemos admitir. Logo, na coleção de todas há uma causa incriada, de quem as mais recebem o primeiro ser. 

2. A segunda demonstração não é menos eficiente. Ou nós havemos admitir que todos os entes que existem são contingentes, ou havemos confessar que há um princípio necessário, causa da existência dos mais. Se admitimos um princípio necessário, confessamos a Deus; se dizemos que todos são contingentes, então havemos conceder que eles puderam em algum tempo não existir. E que absurdo se segue de semelhante consequência! Nada menos se segue do que pormos todos os entes que atualmente existem impossíveis de existirem. Façamos palpável esta verdade. 

3. Concedido que todos os entes que existem são contingentes, havemos de confessar que eles em algum tempo não existiram, pois que, se dissermos que não tiveram princípio, passávamos a fazê-los, de contingentes, necessários2. Isto é uma verdade que qualquer alcança. Como poderemos dizer que um ente pode existir ou não existir, que é a natureza do contingente3, sem que o consideremos em algum tempo não existindo? Logo, se houve tempo em que eles não existiram, é bem certo que nem hoje poderiam existir; pois que nem se poderiam tirar a si próprios do nada, nem podemos fazer a todos necessários, estando nós vendo o princípio e o fim de muitos. Eles, na verdade, existem; logo, havemos admitir um princípio necessário, causa da sua existência. 

4. Como toda a força das presentes demonstrações se firma no princípio de que “ninguém pode ser causa da sua própria existência”, não será estranho que mostremos a evidência de semelhante regra. E que mais é necessário que refletirmos nas qualidades do producente e do produzido? Todo o producente há de ser anterior ao produzido em tempo e em natureza; da mesma forma, todo o produzido deve ser posterior ao producente na mesma natureza e tempo; logo, nenhum ente pode ser causa da sua própria existência; porque repugna que possa ser, como producente, anterior a si mesmo como produzido; e, como produzido, posterior a si mesmo como producente. Além de que, o ente físico só pode ter princípio em outro ente que fisicamente exista. Daí vem que os entes físicos não podem receber de si próprios o primeiro ser; pois, antes que o recebessem, ainda não eram entes que o pudessem dar4

5. Epicuro, imaginando que a matéria não se podia tirar do nada, a fez eterna, e a formação do mundo procedia de um acaso. Esta doutrina é, na verdade, indigna de um animal dotado de razão. Se a matéria fosse eterna, teria as propriedades de Deus; e como as poderemos dar a um ente corpóreo? Este, por sua natureza, é composto, mutável e corruptível5, propriedades6 que totalmente repugnam à essência perfeitíssima de Deus. Além do que, se o acaso não é ente algum que tenha ser, como poderia receber dele o mundo sua formação? 

6. Para conhecermos mais o quanto é sem fundamento esta opinião de Epicuro, não é necessário mais do que fazermos a seguinte reflexão: se apenas vemos um relógio, ou outra máquina, não a podemos atribuir ao acaso, mas logo conhecemos que houve um artífice que a fabricou; como poderemos olhar para a máquina do mundo, tão superior a todas, sem que vejamos no conhecimento que havia haver um autor sumamente sábio e sumamente poderoso que a fizesse7? Este argumento não só se pode tirar da perfeição com que estão dispostas as partes desta grande máquina, mas também do movimento delas. É porventura o movimento alguma coisa essencial da matéria? Certo que não, pois nós a podemos conceber sem ele. Ora, se um corpo, a não ser animado de um princípio espiritual, não se pode mover sem que haja uma causa externa que o agite, como se poderão mover o Sol, a Lua e todos os mais planetas, sem concedermos um princípio externo, causa do movimento de todos8?  

7. Da história, manifestamente consta que o mundo foi criado no tempo; e, posto que a história digna de crédito não se estenda além de Nino9, contudo, nós havemos de julgar que esta história e notícia se conservou sempre pura por tradição desde o primeiro homem. Os princípios das cidades e dos impérios, as origens das ciências, os primeiros descobrimentos das artes, enfim, a própria multiplicação dos homens não nos estão dando um fiel testemunho desta verdade? Só duvidará dela quem não refletir em que o aumento de aumento de uma coisa é uma prova evidente do seu princípio; logo, se o gênero humano foi criado no tempo, é certo que ele teve autor. 

8. Aquela persuasão, que tiveram sempre, e que têm todos os povos em matéria de suma e gravíssima importância, se deve ter por verdade; e quem negará que em todos os tempos, entre todos os povos, sempre foi constante a persuasão que homens tiveram da existência de Deus? Dos antigos nos são testemunhas Sócrates, Sexto Empírico, Sêneca, Cícero e outros; das nações que existem, os tártaros, os cafres, os gentios da América setentrional e meridional e todas as nações mais bárbaras que se têm descoberto, não duvidam desta verdade. Logo, se em todos os tempos foi constante a persuasão que os homens tiveram da existência de Deus, não podemos deixar de confessar que há uma causa universal que assim o mostra, pois que a devemos conceder todas as vezes que os homens convêm geralmente em uma só coisa10. E qual pode ser a causa universal, que assim o mostre, a não ser uma revelação de Deus, conservada por uma sucessiva tradição, ou a voz da natureza, que não engana11?  

9. Outra prova tem qualquer pessoa em si mesma: quem haverá que nos perigos não recorra naturalmente a Deus? Os mesmos que se confessavam ateus, e têm assim praticado em semelhantes ocasiões, se alguém nega a Deus, não é porque a razão assim lho dite; mas sim por vício da vontade, para que possa mais livremente executar os seus péssimos apetites. Dado, porém, que ainda haja homens tão bárbaros que não o confessem, poderemos, contudo, dizer que o seu conhecimento não provém a todos por meio da razão? De nenhuma forma: quem negará que alimentar os filhos é um direito, que ensina a natureza até aos brutos, posto que haja pais que os desprezem para melhor gozarem do depravado uso das suas liberdades? Assim, pois, nos bastará também que em todos os tempos, e entre todos os povos, sempre fosse constante e confessada a existência de Deus pelos mais sábios, pelos mais pios, e enfim pela torrente de todos, para que não duvidemos desta verdade. 

10. É bem patente a todos que nós temos um princípio espiritual, que nos anima, pois conhecemos infinitas coisas; e este conhecimento não pode provir da matéria, como julgaram alguns filósofos antigos12; porque, se as afeições de um corpo não podem provir senão da diversa configuração e movimento das partes, não podemos conceber movimento e configuração alguma de que possa resultar a propriedade de conhecer13; logo, se temos um princípio espiritual que nos anima, bem certo fica que este não há de proceder senão de outro princípio espiritual. Nós havemos de dizer que este procede de um e aquele de outro? Não, pois repugna à razão admitirmos um processo infinito14; não havemos também dizer que estes se deram a si próprios o ser, pois que igualmente implica, como já mostramos; logo, havemos confessar que tem de haver um princípio espiritual necessário, causa de todos os entes espirituais voluntários.

 

—  Tomás Antônio Gonzaga

Tratado de Direito Natural.

 

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Notas:

1 D. AMBRÓSIO, De Offic., lib. I, cap. 26; De Nat. Dei, cap. 8. 

2 HEIN., De Offic., lib. I, cap. 4, § 2. 

3 HEIN., Elem. Mor., Part. I, cap. 3, Sect. 2, § 76. 

4 GRÓCIO, De Veritat. Relig. Christ., lib. 1, § 2. 

5 HEIN., Philos. Mor.. Part. I, cap. 2, Sect. 2, § 45. 

6 Que a criação não se podia fazer do nada, seguiu também Platão; porque admitiu que havia dois princípios eternos: um, Deus; outro, a matéria, independentes um do outro. Os estóicos também admitiram os mesmos princípios. Eles julgaram que Deus era um fogo artificial; e que, agitando a matéria conforme as leis do Fado, formara os Astros em que infundiu partes do fogo; e que estes, ficando por isso Deuses, formaram depois o ar, o fogo, etc. (MOSHEMIUS, Ad Luduvorth. Syst., cap. 4, § 25). Aristóteles também seguiu o sistema dualístico e pôs o primeiro móvel ligado ao primeiro céu, dizendo que nada mais podia fazer do que tinha feito, em dar o movimento à matéria (VERN. Appar. ad Philos. et Theol., P. I., lib. 1, p. 62). 

7 CÍCERO, De Nat. Deor., lib. 2, cap. 5; COCCEO. Ad Grot., in Prolog., § II; DERHAMUS, Theol. Phis.; NIAVENT., De Exist. et Atribut Dei. 

8 COCCEO, Ad Grot. in Prolog., § II. 

9 As histórias assíricas, e outras, que são alguma coisa anteriores a Nino, são totalmente indignas de crédito, pelas muitas fábulas de que se convencem estar cheias. 

10 COCCEO, Ad. Grot., Disert. Proem. XII, lib. 1, cap. 4, § 58. 

11 JAQUILÁCIO, De Exist. Dei; GENUENSE, Element. Metaphys., tomo 3, in Apend. Ad., cap. I. 

12 Os ginosofistas disseram que as nossas almas eram materiais, pois julgaram que Deus era um fogo; e que estas não eram outra coisa, senão uma porção dele (VERN., Appar. ad Phil., part. I, lib. I, p. 20). Os estóicos julgaram o mesmo, só com a diferença que os ginosofistas fizeram a Deus um fogo intelectual, e estes, artificial (LAÉRCIO, lib. 7, Sect. 55, SÊNECA, Epíst. 106 e 113; LÍPSIO, De Philos. Stoic., lib. 2). 

13 HEIN., Philos. Mor., Part. II, cap. 2, Sect. II. 

14 HEIN., De Offic., lib. 1, cap. 4, § 2.