Luiz Gustavo Oliveira dos Santos, Guilherme Oliveira dos Santos e Juliana Cristina C. Rattes

A usura na Idade Média e o fim da servidão

  

                                                     Juliana Rattes      Luiz Gustavo O. dos Santos   Guilherme O. dos Santos  

Usura na Igreja e Fim da Servidão 

Abertura para o Capitalismo

 

Objetivos 

Este texto procura analisar o período histórico aproximado da transição do feudalismo para o capitalismo, a participação decisiva da Igreja e sua posição relativamente aos princípios emergentes da burguesia, que viriam a instituir novos valores em oposição à doutrina dominante da Igreja. Também será relacionado o fim da servidão à abertura de um campo propício ao desenvolvimento da sociedade comercial que se instaurava com grande força. Por fim, almejamos contemplar o quadro geral de crenças e posições antagônicas que dariam início ao futuro sistema capitalista.

  

Introdução

A civilização da Europa Ocidental entre 800 e 1300 foi profundamente diversa da que existiu no começo do período medieval. E o contraste mais flagrante que se observava era na esfera religiosa e intelectual, principalmente porque a primeira fase da Idade Média era produto de uma época de transição e de um enorme caos. A estrutura política e social romana se desintegrara e ainda não emergira um novo regime para substituí-la, o que orientou o pensamento da época para o pessimismo e preocupações extraterrenas. 

Mas, depois do século IX, essas atitudes deram pouco a pouco lugar a sentimentos mais otimistas e a um interesse crescente pelas coisas terrenas. Em meio a essa confusão, alguns movimentos tentaram restaurar a pureza espiritual da Igreja, como o Movimento de Cluny, o movimento cartuxo e o radical movimento cisterciense (de Cister, Borgonha) por volta do século XII. No entanto, eles acabaram caindo no lamaçal de interesses terrenos, em parte devido à acumulação de riquezas, e também porque a vida conventual nos antigos moldes já não era mais compatível com os ideais da época. O mais significativo movimento de reforma foi o dos frades, com a Ordem Franciscana.

O desenvolvimento da Igreja na época feudal coincidiu com o aparecimento de ambiciosos chefes políticos, por isso o conflito de idéias foi praticamente inevitável, como o que ocorreu entre o papa Gregório VII e o imperador alemão Henrique IV. Todas essas lutas de poderes trouxeram conseqüências desgastantes principalmente à Igreja, tendo sido o papado desprestigiado, a intervenção política do papa fortaleceu o nacionalismo, e, por fim, esse quadro estimulou a atividade intelectual. Esse tipo de mentalidade fruto da crescente complexidade da vida econômica também foi um dos motivos para a organização das cruzadas. 

A nova realidade econômica, a ascensão comercial e a introdução do dinheiro no cotidiano da população levaram à quebra de muitos aspectos da vida feudal: a cavalaria foi mais desprezada, a filosofia escolástica foi desdenhada, os banqueiros e comerciantes cresciam, apesar da condenação dos negócios lucrativos. 

Com esse panorama, podemos analisar mais de perto a atitude da Igreja com relação à condenação da usura e a ascensão das classes mais baixas, como os artesãos e principalmente os camponeses. 

 

A usura na Igreja 

Praticamente todas as transações de hoje são realizadas com dinheiro emprestado, sobre o qual pagamos juros. Esta prática é tão comum que a consideramos algo natural, como se sempre houvesse existido. Entretanto, nem sempre foi assim. Houve época em que cobrar juros pelo uso do dinheiro era considerado não somente um pecado, como hoje, mas também um crime. Juro sobre empréstimo é usura, e usura, segundo a Igreja, é pecado

Não era apenas a Igreja que condenava a usura, mas também governos municipais e, mais tarde, os governos dos estados, que baixaram leis contra elas (onde era designada como um dos vícios mais odiosos e detestáveis). As penas para a prática eram o confisco do valor emprestado, da usura (juro) e ainda a prisão do cobrador. 

Esta visão da usura surgiu das relações da sociedade feudal, em que o comércio era pouco e haviam poucas formas de investimento. Um empréstimo, via de regra, só era contraído em caso de necessidade e não com o objetivo de enriquecimento. O sentimento medieval era de que não se deveria lucrar com a desgraça alheia. O bom cristão ajudava o próximo sem pensar em lucro, pois este era considerado exploração e injustiça

Segundo o pensamento da Igreja, o justo era receber apenas o que se emprestara, nada mais nem menos. Segundo Tomás de Aquino, considerado o maior pensador religioso da Idade Média, seria injustiça se o devedor pagasse menos ou não pagasse o empréstimo. O devedor tem que devolver no mínimo a quantia que pegou emprestado. Essa era a obrigação de quem tomou o empréstimo; entretanto, se este não tiver como pagar, a recomendação vai para aquele que empresta:

 

“E se emprestais àqueles de quem esperas receber, que mérito há nisso? Também os pecadores emprestam aos pecadores para receberem outro tanto. Amai, porém, os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai sem esperar coisa alguma em troca; e grande será a vossa recompensa, e sereis filhos do Altíssimo; pois ele é bom até para com os ingratos e os maus (Lucas 6:34-35).           

 

Para demonstrar o fundamento bíblico acerca da condenação da usura, destacamos alguns trechos da Escritura:

 

“Se emprestares dinheiro ao meu povo, ao pobre que está contigo, não te haverás com ele como credor; não lhe imporás juros (Êxodo 22:25).

“Também, se teu irmão empobrecer ao teu lado, e lhe enfraquecerem as mãos, sustentá-lo-ás; como estrangeiro e peregrino viverá contigo. Não tomarás dele juros nem ganho, mas temerás o teu Deus, para que teu irmão viva contigo. Não lhe darás teu dinheiro a juros, nem os teus víveres por lucro” (Levítico 25:35-37).    

“Quem aumenta a sua riqueza com juros e usura, ajunta-a para aquele que se compadece do pobre. Quem desvia os seus ouvidos de ouvir a lei, até a sua oração é abominável” (Provérbios 28:8-9).   

“Um homem (...) que empresta com usura e cobra juros porventura viverá? Certamente não viverá! Todas estas abominações ele praticou; ele morrerá e o seu sangue cairá sobre ele. Contudo, se ele (...) não explora ninguém, não empresta sob penhores nem rouba, porém, reparte o seu pão com o faminto e cobre o nu com vestimenta, aparta sua mão da iniquidade, não recebe usura nem mais do que emprestou, observa as minhas ordens e anda sob meus estatutos; esse não morrerá...” (Ezequiel 18:13,16-17).      

 

A Igreja ensinava também que se o lucro do corpo representava a ruína da alma, o bem-estar espiritual tinha prioridade. “Que lucro terá o homem se ganhar todo o mundo e perder sua alma?” (Mateus 16:26). 

A moderna noção de que qualquer negócio é lícito, desde que seja possível realizá-lo, não condiz com o pensamento Medieval. Os empresários de hoje, que compram pelo mínimo e vendem pelo máximo, com juros, seriam duplamente excomungados na Idade Média e, segundo Jesus, são pecadores. 

Quem cobra juros pelo uso do dinheiro está vendendo tempo, e o tempo não pertence a ninguém para que possa ser vendido. O tempo, e tudo o mais, é de Deus, e ninguém tem o direito de vendê-lo (“Do Senhor é a terra e a sua plenitude; o mundo e aqueles que nele habitam” — Salmos 24:1). Também era condenável acumular mais bens do que era necessário para a manutenção própria (“Tendo, porém, o que comer e com que se vestir, estejamos com isso satisfeitos” — 1 Timóteo 6:8). 

A Igreja dizia que a usura era totalmente errada. Isso é o que ela dizia, pois os bispos e reis combatiam e faziam leis contra os juros, mas eram os primeiro a violar estas leis. Eles mesmos tomavam empréstimos ou os faziam a juros. Banqueiros italianos emprestavam muito dinheiro, fazendo grandes negócios e, quando seus juros não eram pagos, o próprio Papa ia cobrá-los com ameaças espirituais. 

Apesar disso, a Igreja se colocava contra os usurários. Quando o dinheiro começou a ter papel importante na sociedade, a doutrina do pecado da usura começou a limitar os negócios dos novos grupos de comerciantes da Europa. 

No choque entre a doutrina da Igreja destinada a uma economia antiga e a nova força da classe dos comerciantes, a doutrina acabou cedendo. As leis deixaram, gradativamente, de condenar a usura em todos os casos. Vinha afrouxando em determinadas situações, colocando exceções em algumas circunstâncias, e permitindo, embora fosse pecado, exercer a usura. 

Assim, a doutrina da usura foi sendo modificada e desaparecendo para atender às novas condições da sociedade. Leis, formas de vida em conjunto, tudo foi modificado quando a sociedade entrou nessa nova fase de desenvolvimento. A partir daí, a prática comercial diária passou a predominar.

 

Fim da servidão 

Durante o período feudal, as relações entre senhor e servo estavam fixadas pela tradição, sendo quase impossível a um camponês melhorar a sua condição. Os laços que o prendiam, entretanto, foram se enfraquecendo devido ao crescimento do comércio, introdução de uma economia monetária e o crescimento das cidades.           

O autor alemão E. O. Schulze, no século XIII, referiu-se a isso dizendo que os camponeses e os pobres eram oprimidos e injustiçados por causa da avareza dos poderosos, o que os forçava a venderem seus patrimônios e emigrarem para terras distantes. A dificuldade foi encontrar essas terras, pois a maior parte do território da França, Alemanha e Inglaterra eram de florestas e pântanos, onde não se praticava o cultivo. Contudo, o desafio dessas terras pantanosas desaproveitadas foi aceito pelos camponeses, habituados ao trabalho duro, que, movidos pela ânsia da liberdade sem trabalhos forçados e da possibilidade de ter uma propriedade, avançaram arando e abrindo florestas a machado para transformar esse território em terras aproveitáveis. 

Passaram, então, a implorar pela concessão dessas terras. O bispo de Hamburgo celebrou, nesta ocasião, um acordo com os holandeses (camponeses) por ter percebido que seria bom para o reino, já que os poderosos receberiam um arrendamento anual pela concessão da terra (dízimos, taxas por cada jeira de terra, etc...). Outros senhores de terra, a Igreja e os leigos perceberam que era realmente lucrativo que suas terras incultas passassem a ser utilizáveis pelos pioneiros, que ainda lhes pagavam para cultivá-las. 

Milhares de terras inúteis se tornaram produtivas devido a esse crescente movimento de colonização. Desde o século XII até o ano de 1350, por causa da ascensão desse movimento, houve na Silésia 1.500 aldeias novas. Isso começou a atrair os servos da antiga sociedade. 

Os servos não tinham desejos de produzir além do que o necessário, primeiramente por se sujeitarem à doutrina da Igreja, que os fazia aceitarem suas difíceis condições, a falta de ânimo em virtude do mercado limitado e pelo fato de o senhor provavelmente vir a tomar parte do aumento da colheita. 

Mas a situação se modificara, pois o mercado havia crescido de tal modo que qualquer excedente poderia ser vendido e o camponês receberia dinheiro, com o qual ele ainda aprenderia a lidar. Com o tempo, o seu trabalho poderia ser vendido por dinheiro e, futuramente, ele poderia comprar a sua liberdade. Os senhores começaram a concordar em trocar o trabalho do servo pelo dinheiro, até porque não tinham outra alternativa, pois, se não o fizessem, era muito possível que alguns deles fugissem, deixando-os sem dinheiro nem trabalho. 

Aos poucos, os senhores perceberam que o trabalho livre era mais produtivo que o trabalho escravo. O escravo trabalhava de má vontade, enquanto que o trabalhador livre tinha empenho em aumentar sua produção, ciente de que lucraria com isso. Foi assim que os servos começaram a alugar suas terras, livrando-se da obrigação de trabalhar, e a comprar, também, sua liberdade pessoal. 

Era de se esperar que a Igreja liderasse um movimento de libertação dos servos, no entanto, posicionou-se contra o movimento de emancipação. A Igreja não arrendava um centímetro de suas terras nem libertava nenhum servo, pois era defensora do sistema feudal que a beneficiava, garantindo seu poder sobre as terras, sem poder vendê-las. Isso acabava fazendo os senhores mais humanitários que os sacerdotes, e era principalmente contra estes últimos que o movimento dos servos se rebelava, às vezes até violentamente. 

Apesar do empenho da Igreja em conter o processo de libertação, a pressão das forças econômicas foi grande demais para haver resistência. A Peste Negra assolou a Europa matando mais gente que a Primeira Guerra Mundial, o que preocupou os senhores e a Igreja. Ela contribuiu para o processo de libertação, afinal, maior valor foi atribuído aos trabalhadores que sobreviveram. A oferta de trabalho se reduziu e a procura relativa deste aumentava. O trabalho do camponês valia mais do que nunca — e ele sabia disto. 

Com o aumento do preço do trabalho, o senhor podia pagar menos servos. Em vão foram emitidas proclamações ameaçando quem pagasse mais ou servos que exigissem mais do que era pago antes da Peste, com o intuito de conter o aumento de preços. 

O choque entre os senhores de terras e os trabalhadores era forçoso. Isso gerou inúmeras revoltas, pois os trabalhadores queriam a liberdade que haviam experimentado e os senhores mantinham uma postura conservadora. Há quem diga que as revoltas ocorreram devido aos senhores que desejavam forçar os camponeses a trabalhar como antes, usando até da violência, e devido aos senhores que se recusavam a conceder a comutação. Muitos foram enforcados, mas não adiantou, pois a velha organização feudal rompeu-se sob a pressão de forças econômicas que não podiam ser controladas. Por volta do século XV, na maior parte da Europa ocidental, os arrendamentos em dinheiro substituíram o trabalho servil, e muitos camponeses haviam alcançado a emancipação completa.       

Conclusão   

Com esta análise, verificamos como a doutrina da usura, que condenava incisivamente o lucro e a acumulação de riquezas, foi sendo modificada e desaparecendo para atender às novas condições da sociedade. A partir desse fato, a prática comercial passou a predominar e estavam lançadas as bases para a invasão do germe do sistema capitalista atualmente vigente, tendo seus princípios então solidificados pela postura contraditória da Igreja e pelos ideais libertadores das camadas sociais ascendentes (burgueses). Aliada a isso, está a força descontrolada do comércio que rompeu aos poucos as amarras dos servos, predestinados ao eterno labor, segundo a Igreja. Esses fatores, combinados historicamente, ofereceram campo propício à desestruturação do sistema feudal e à emersão de uma nova mentalidade da sociedade, desgarrada do misticismo e do ascetismo eclesiásticos que a coagia em seus excessos e marcada pela valorização dos interesses individuais cada vez mais exacerbados. Interesses estes que incitariam o povo a explorar ao máximo a sua capacidade produtiva e seriam tomados, posteriormente, como parâmetros orientadores da conduta humana. 

  

Bibliografia

 

BÍBLIA de Jerusalém. Paulus. São Paulo, 1996.

BURNS, E. McNall. História da Civilização Ocidental. vol. I. Globo. Porto Alegre, 1975.

GRANDE enciclopédia Delta Larousse. Delta. Rio de Janeiro, 1972.

HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. 21 ed. LTC. Rio de Janeiro, 1986.

 

― Guilherme O. dos Santos, Luiz Gustavo O. dos Santos, Juliana Cristina C. Rattes

 (Trabalho de conclusão da disciplina História das Civilizações I, do curso de Filosofia ― IESCO-DF, 2005)